quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Olá, Belchior

 


João me ligou agora há pouco. Estava feliz e eufórico. Não era para menos. Acabou de ganhar um disco com as vinte músicas mais conhecidas de Belchior. Ele diz estar maravilhado com o presente, pois, como já conhece de cor a letra de todas as músicas, coloca o som bem alto, e se põe a cantar também. Segundo ele, não há terapia melhor para aliviar o estresse e o cansaço e que, quanto mais canta, mais tem vontade de cantar, sentindo-se alegre e revigorado. Na noite passada, ouviu o disco por diversas vezes e adormeceu ouvindo o canto mágico de Bel. De repente, abriu os olhos. O dia estava claro e uma revoada de pássaros passou sobre sua cabeça, enchendo os céus de uma música afinadíssima e alegre. Ao longe, ouvia-se o ronco de alguma cachoeira. Como havia chovido quase a noite inteira e o sol despontava radiante, o verde ao redor tornara-se tão intenso, que mais parecia um cenário de sonhos. Ele caminhava sozinho por uma estreita trilha de terra, ainda húmida pela chuva da madrugada e, imediatamente, após abaixar-se para desviar-se de um tronco que se punha no caminho e colocar-se novamente de pé, quem vê à sua frente? Ninguém menos que Belchior. Surpreso, e sem entender tamanha coincidência e sorte, cumprimenta o poeta que, também andava só, porém em sentido oposto ao seu. – Bom dia. Belchior? Não acredito. Nossa, que sorte a minha. O que faz por aqui? Que felicidade em vê-lo. Agora mesmo, acabo de ganhar um belíssimo disco seu. Isto é que é presente. Belchior posta-se à sua frente, a trilha ali ainda é mais estreita, o mato se fecha, e enquanto um atravessa, o outro tem que aguardar. Belchior observa-o, silenciosamente, e não dá muita importância aos cumprimentos. João insiste - Belchior, sou o maior fã que há. Não imagina o prazer que é encontrá-lo por aqui. Está só? Pois eu também. Posso fazer-lhe companhia? Belchior encara-o, fixamente, olhos nos olhos, e diz apenas, “O passado é uma roupa que não nos serve mais”.  João, curioso, em tom amável e sem dar a passagem, responde – Amo esta sua música, como amo todas as outras também. Diga-me, Bel, para onde vai? Eu estou sem horários ou compromissos. Seria uma honra poder acompanhá-lo. “Saia do meu caminho, eu prefiro andar sozinho, deixem que eu decida a minha vida”, diz o cantor, que mostrava-se impaciente com seu interlocutor. João, sem graça, um calor abrasador lhe subia a face a ponto de enrubescê-la, resolve, porém, não desperdiçar a oportunidade do raro encontro. Desculpe-me, Belchior - ele disse, abrindo o caminho - De forma alguma traria incômodos ou inconveniências a quem só me proporcionou alegrias. Mas diga-me Bel, por onde tem andado? “Se você vier me perguntar por onde andei no tempo em que você sonhava, de olhos abertos lhe direi, amigo eu me desesperava”, responde o poeta. Mas está tudo bem com o senhor? Insiste João, tentando ser amigável. “A minha alucinação é suportar o dia-a-dia, e meu delírio é a experiência com coisas reais”, diz Belchior, que dá as costas, e segue pela trilha sem olhar para trás. Mas Belchior - implora João - permita-me apenas fazer algumas perguntinhas, por favor. Não é necessário chatear-se, diga-me apenas por onde anda e por que o mau humor? Neste instante, Belchior interrompe os passos e vira-se para ele com um sorriso amigável e diz – “Eu sinto tudo na ferida viva do meu coração”. “Meu bem, o meu lugar é onde você quer que ele seja, não quero o que a cabeça pensa, eu quero o que a alma deseja”, “Mesmo vivendo assim, não me esqueci de amar...”, “A noite fria me ensinou a amar mais o meu dia, e pela dor eu descobri o poder da alegria”. Neste instante, João é tomado de grande alegria e entusiasmo. Outra vez, uma grande revoada de pássaros enche o céu de cantorias. Um pássaro, maior que os outros, com o bico preto e afunilado, penas cinzas e peito amarelo, pousa suavemente sobre os ombros do poeta, que ainda diz – “Meu bem, talvez você possa compreender a minha solidão, o meu som e a minha fúria e essa pressa de viver”, “Aparências, nada mais, sustentaram nossas vidas que apesar de mal vividas têm ainda uma esperança de poder viver”. Belchior abre um sorriso sincero e amável para João que, tímido e desconcertado, arrisca ainda uma pergunta – O que tem feito de bom? – “Tenho ouvido muitos discos, conversado com pessoas, caminhado meu caminho”, “Amar e mudas as coisas me interessa mais”. Os dois estão em pé, um olhando para o outro. João não consegue conter-se em entusiasmos e indaga – Tem acompanhado as coisas todas que tem acontecido no Brasil? Belchior dá um sorriso sem graça, lança um olhar consternado e diz – “Tenho comigo pensado, Deus é brasileiro e anda do meu lado, e assim já não posso sofrer no ano passado”. Dá uma piscadela para João e acrescenta – “Por força deste destino, um tango argentino me vai bem melhor que um Blues”. Neste minuto, um silêncio se interpõe entre eles, quebrado apenas por um bando de andorinhas cantadoras que realizam uma coreografia sobre a cabeça dos dois. Belchior põe-se a andar. João o chama. – Belchior, há saída? – “Falaremos para a vida: vida, pisa devagar, meu coração, cuidado, é frágil”, “Você não sente nem vê, meu amigo, que uma nova mudança em breve vai acontecer” - ele responde. Belchior lhe dá um aceno em despedida, vira-se e segue pela trilha. No terceiro passo, um muro branco, caiado, aparece à margem esquerda do caminho. O poeta retira um pincel do bolso, volta-se, mais uma vez para João, as andorinhas dão-lhe uma rasante, esvoaçando sua cabeleira, e ele diz – “E a certeza que tenho coisas novas, coisas novas pra dizer”. O poeta banha o pincel em uma lata de tinta que carregava nas mãos, leva-o até a parede branca e grita para João – “Sonho e escrevo em letras grandes de novo pelos muros do país”. É o instante em que João desperta e o disco ainda tocava, era a última faixa. O fato é que João levantou-se, foi ao banheiro e correu de volta para a cama, na tentativa de retomar o sonho. Inútil. Dormiu uma noite inteira como uma pedra e ninguém mais o visitou durante o sono. Agora, me atormenta ao telefone querendo que o ajude a descobrir o que é que Belchior já ia escrever naquele muro. Tem como?

 

Marcos Vinícius.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

Raskólnikov

 


Neste ano, finalmente, pude ler Crime e Castigo, de Dostoiévski. Esta obra monumental e intrigante, tem como protagonista, Raskolnikov, um jovem estudante, que resolve assassinar uma velha agiota, e assim o faz, de forma fria e calculada. Após o assassinato brutal, Raskolnikov é assolado por um tormento tal que o adoece a ponto de, por fim, confessar a sua culpa. Ainda que na conturbada mente de um assassino confesso, o autor assoma uma dimensão ética à condição humana, onde o próprio assassino, não vê alternativas possíveis, além do sofrimento, a prisão e o castigo. Raskolnikov é uma metáfora as avessas do que se tornou uma parte do Brasil. Quais foram as barreiras éticas demolidas para que agentes do crime organizado transformem-se em símbolos de salvação nacional? Quais foram os limites que tivemos que transgredir para que autodenominados cristãos, substituam a dimensão do sagrado pela violência da pólvora? Onde perdemos a compaixão? O que terá ocorrido pelo meio do caminho para que um pedaço da sociedade brasileira eleja como mito, quem adota políticas genocidas, como recusar-se a imunizar o país, deixando uma população inteira refém de um vírus demolidor, além de desdenhar das centenas de milhares de mortes alheias? Lembra-se que as metas iniciais eram uns trinta mil? A quantas andam as contabilidades dos genocidas que nunca dormem? Onde foi que nos tornamos isto? Talvez, lá das brumas e névoas da São Petersburgo do século XIX, Raskolnikov  nos observe, atônito e assustado, de ver como por aqui, fazemos da morte, espetáculo, redenção e glória, em uma terra sem leis, onde o crime, sequer merece o castigo. E com indiferença, fria e mórbida, não enxergamos os mortos.

 

Marcos Vinícius.

sábado, 26 de dezembro de 2020

Palavra em transe

 


Não faz muito tempo, a palavra todos meteu-se em encrencas. Se alguém se dirige ao público e diz, todos aqui estão convidados ou todos os presentes deverão comparecer, logo aparecerá quem dirá que uma fala destas, traz conotações carregadas de discriminação de gênero, pois afinal, ali, estariam reunidos não apenas homens, mas também as mulheres. A partir desta descoberta, creio que é uma descoberta deste século, não são poucas as reuniões ou encontros em que agora ouvimos, todos e todas estão convidados e convidadas ou todos e todas deverão usar trajes esportivos. Não sou conhecedor das artes gramaticais, mas a primeira vista, ou aos primeiros ouvidos, a impressão que tenho, é de ser algo desnecessário, redundante, onde o discurso parece abrir-se já enfadonho e duvido mesmo que alguém que preze pelas boas literaturas assinaria um texto com esta inovação. Porém, se um dia me convencer que a nova prática poderá, de alguma forma, de fato, resolver problemas de gênero, ponho-me de acordo. Ocorre que agora, mais recentemente, a palavra todos meteu-se em encrencas ainda maiores. Como se já não bastasse o enjoado todos e todas, há agora uma nova vanguarda de militantes que resolveram que todos ou todas já não bastam, é necessário uma nova variação, e eis que surgem as expressões todes e todxs, para abarcar todos os gêneros possíveis, e só não sei ainda se a palavra todos ainda continuaria valendo. Como miséria pouca é bobagem e nisto somos especialistas, vem agora o gênio-mor-semianalfabeto, vereadore Carluxo, e apresenta na câmara municipal do Rio de janeiro, um projeto de lei proibindo “terminantemente’ o uso destas expressões inovadoras, para evitar “perversões e alterações maliciosas e progressistas” no uso da Língua, podendo, inclusive, suspender os alvarás das escolas que violarem a norma. Alguém deve ter soprado para o energúmeno, que esta dinâmica da língua é resultado de alguma conspiração comunista e aí resolve-se o problema com a ditadura da palavra, o engessamento e a perseguição, os remédios mais apropriados para conterem as perversões destes corrompidos que aprendem o português nas cartilhas impressas em Cuba, na Venezuela, sabe-se lá, na China. Além dos males todos que dividimos, nunca perdemos o hábito de criarmos outros tantos, afinal, filhos de um tempo onde tudo já parece ter sido inventado e dito, é necessário então, criarmos outras modalidades de chatices, pedantismos e autoritarismos. E neste aspecto, somos vocacionados, não é a toa que uma figura destas, que imagina ser capaz de conter a dinâmica viva da língua em um projeto de lei, sem pé nem cabeça, tenha sido o segundo mais votado para a câmara da cidade do Rio de Janeiro.

 

Marcos Vinícius.

sábado, 14 de novembro de 2020

Às urnas

 


Amanhã é dia de retornarmos às urnas. Já são dois anos que o fizemos pela última vez e os estragos são, não apenas explicitamente visíveis, como a maioria da população brasileira já sente na pele, muitos no estômago, a dimensão da irresponsabilidade que a cada dois anos deposita nas urnas. Amanhã vou até a urna com um sentimento de apreensão, não apenas pelos excessos de precauções sanitárias que há que se tomar até o momento do voto, mas pelos resultados que colheremos de nossas novas escolhas. Obviamente, não podemos nos largar das esperanças, pois sem elas, o que nos resta? Porém, ao observarmos um pouco atentamente o Brasil que vai às urnas, não nos faltará motivos para preocupações. O Brasil que vai às urnas é um país doente, não apenas pela pandemia que já matou mais de cento e sessenta mil brasileiros e pelos milhões de infectados, mas por possuir um eleitorado de uma irresponsabilidade tal que, pode alçar aos cargos de controle e aos governos, loucos, perversos, sádicos, assassinos, malfeitores de toda a ordem, da noite para o dia. Nos últimos anos, o festival de ignorância e de absurdos que temos visto, por parte de uma ampla parcela do eleitorado, realmente, é de fazer cair o queixo e arrepiar os cabelos. O Brasil que vai às urnas amanhã é um país que desconhece seu passado, ainda cai nas mesmas armadilhas de sempre, a cada eleição, mais sofisticadas, um país que mitifica bandidos e sádicos, e especializou-se na arte de atirar nos próprios pés. O Brasil que vai às urnas amanhã ainda carrega quem defenda torturas, ditaduras, genocídios, extermínios em massa e a senzala. O Brasil que vai às urnas amanhã é o país que lota templos suntuosos, supostamente cristãos, onde fiéis louvam a deus fazendo arminhas com a mão. É um país de desigualdades profundas. O Brasil que vai às urnas amanhã é o país da impunidade, da fake news, do império da mentira, que aplaude a retirada de direitos, a pena de morte, a subserviência e o entreguismo. O Brasil que vai às urnas amanhã é o país do dedo duro, do puxa saco, do lambe botas, dos sem noção, da não ciência, que queima livros, apaga a poesia, desconstrói conhecimentos, culturas e saberes. O Brasil que vai às urnas amanhã é o Brasil sem saúde, sem educação, sem políticas públicas, sem criatividade política, é o país que nega cidadanias e a própria vida. O Brasil que vai às urnas amanhã é o Brasil que estaciona sobre o meio fio, fura filas, avança os sinais, que atropela sem olhar para trás, do golpe fácil, da mentira deslavada. É o país onde há quem defenda que a Terra é plana, que é contra vacinas, e que diante da economia e do capital, a vida é nada. O Brasil que vai às urnas amanhã é o Brasil, onde morrem mil pessoas a cada dia, vítimas do novo coronavírus e da ignorância em sua modalidade mais mortífera e assustadora. O Brasil, onde se enterram mil a cada dia, mortos pela pandemia, é o Brasil que programa festas, comemorações, churrascos, reuniões familiares, enche os bares, visita parentes, amigos, vizinhos, onde se tosse uns sobre os outros. É o Brasil que mata o segurança do supermercado, ao ser cobrado sobre cuidados mínimos. O Brasil que vai às urnas amanhã é um pobre doente, trocou os sonhos pelo engano, e aglomera-se com a máscara no pescoço. São mais de quinhentos mil candidatos na disputa em todo o país. O que sairá daí? Ouço muitos candidatos dizendo que há que se votar com a esperança, pois o voto do ódio já nos trouxe estragos demais. Que assim seja. Um bom voto para todos.

 

Marcos Vinícius.

sexta-feira, 13 de novembro de 2020

Novembro

 




Nos últimos dias, em São Paulo, no Brasil e nas vizinhanças, temos vivido momentos de euforia e entusiasmo entre as forças democráticas, progressistas e de esquerda, apesar de tantos absurdos e retrocessos. A vitória das forças populares no Chile que, em plebiscito, disseram não a constituição de Pinochet, a expulsão dos golpistas do governo da Bolívia, a derrota de Trump e a ascensão da candidatura de Guilherme Boulos, em São Paulo, reacenderam esperanças, como há muito não se via aqui entre nós. O governo Bolsonaro vai se enveredando por tortuosos caminhos de contradições e embaraços, perversidades e psicopatias, a ponto de tornar-se, a cada dia, mais difícil até mesmo para seus mais fiéis e fanáticos seguidores, armar-se de qualquer defesa, dentro de qualquer razoabilidade. A ameaça de guerra aos EUA, pois, é disso que se trata quando se fala em pólvora, lança o bolsonarismo na esfera do ridículo, de forma ainda mais radical e com repercussões globais, para muito além dos terraplanismos. Talvez Bolsonaro tenha dado, com o episódio, um dos maiores tiros no pé, pois os gigantes de lá, por mais que briguem entre si, não demora, as forças se ajeitam e o mercado da política se acomoda, mas, geralmente, são intolerantes e implacáveis com a traição e a insubordinação de seus capachos, do lado de fora. As perspectivas para a famílicia já não são as melhores. Em São Paulo, a campanha de Boulos é uma das mais bonitas do país, há nela um entusiasmo, um carisma, emoção, interatividade, criatividade e engajamento, que parecem revitalizar as forças de esquerda e o ânimo dos setores populares organizados. Pelas últimas pesquisas, Boulos teria ultrapassado Russomano e, portanto, ocupa o segundo lugar na disputa, credenciando-se ao segundo turno. São Paulo é o epicentro da disputa política nacional, senão latino-americana, ao longo desta semana. A vitória de Guilherme Boulos é uma amarga derrota para os tucanos paulistas, que há anos fazem do Estado, seu ninho privilegiado, e uma pancada no bolsonarismo, representado na patética figura de Celso Russomano. Situação dramática vive também o PT. Seu candidato não decola e sequer foi convidado a participar do debate promovido pela UOL e Folha de São Paulo, pois apenas os quatro primeiros colocados compuseram a mesa. Incômodo ainda maior para o partido ocorrerá se Boulos perder a vaga no segundo turno, pela falta dos votos que foram para o candidato petista. Aí teremos uma disputa entre Bruno Covas e Celso Russomano. Para Lula, talvez não haja cenário pior. Se saiu grande da apertada cela de Curitiba, sairá menor, diante dos olhos do mundo, atentos à entusiasmada campanha, de ampla mobilização popular, que se construiu para combater o fascismo e a direita, a partir da cidade de São Paulo. A uma hora destas, o ronco do motor da Kombi do Boulos está tirando o sono de muito gente. Porém, o que se tira desta história toda, é o fato da gente ainda ter alguma esperança.

 

Marcos Vinícius.

quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Sabiás

 


O pequeno mico saltou de uma árvore para outra, da árvore para os ferros da grade, para outra árvore, e por fim, atravessou a rua, equilibrando-se sobre um fio que conectava dois postes elétricos, sem que fosse poupado um segundo sequer dos ataques de furiosos sabiás que lhe deram fortes e, certamente, dolorosas bicadas. A perseguição foi implacável, vários deles, por um bom tempo e longo percurso atacaram o pequeno primata, sem qualquer trégua ou piedade. Não sei o que fez o macaquinho para merecer tão contundente ataque e parece ter se safado, graças a uma inigualável habilidade em deslocar-se entre árvores, postes e muros. Talvez tenha importunado os pássaros marrons, de bicos finos e avantajados em seus ninhos, alimentando-se de seus ovos, ou ameaçando filhotes, isto não é possível saber. Hoje, tenho sabiás como vizinhos bem próximos, convivemos e trocamos olhares. Possuem um ninho enorme, vistoso, do qual, devem orgulhar seus arquitetos, sobre uma passagem por onde transito. Na maioria das vezes, quando me aproximo, voam em debandada, noutras, porém, posicionam-se bem à minha frente, como, se desta vez, enfim, fossem me impedir a passagem. Encaram-me fixamente, olhos bem abertos, sem piscar, como a medir-me dos pés a cabeça, e permanecem completamente imóveis, inertes, onde até as mais finas penas, resistem aos movimentos do vento. Neste momento, ponho-me a imaginar quantos metros a menos eu precisaria ter para, assim como o pequeno mico que fugia apavorado, ser, também eu, alvo das tão incisivas bicadas. O jeito é torcer para que a altura, peso e volume, de fato, inibam ações mais agressivas das aves guerreiras ou que sejam elas, assim como eu, adeptas das políticas das boas vizinhanças.

 

Marcos Vinicius.

quinta-feira, 24 de setembro de 2020

Paisagem

 


Quando, após dobrar uma curva, deparei -me  com esta paisagem, não pensei duas vezes, saquei o telefone do bolso e, de imediato, tirei a fotografia. Assim que disparei o clique, de dentro do casebre, saiu um senhor, de chapéu de palha, chinelos remendados, uma indumentária esfarrapada e cara de poucos amigos. Encarou-me com o semblante duro, fechado, e com um olhar de pedra. Não respondeu aos meus insistentes cumprimentos, passou sem alterar a expressão, não olhou para trás e logo, desapareceu no caminho. Por um bom tempo, a imagem da fotografia fixou-se também em meus pensamentos e por várias vezes, coloquei-me a contemplá-la detalhadamente.  Mas afinal, o que encontrei de tão curioso e familiar nesta paisagem? Diante de tantos cenários e visões, por que  esta impressionou-me e apenas ela, inspirou-me a fotografia? Pensando no assunto, que agarrou-me aos calcanhares, descubro que, hoje, esta imagem é praticamente um retrato em metáfora de mim mesmo. Solitário no meio da paisagem, mantenho-me de pé, observando o tempo e os escombros que despencam pelo meu interior. O telhado mantém plenamente aberto o abrigo que as portas e as janelas há muito tempo trancaram. As cercas não guardam territórios e já não há proteção ou marcos de propriedade. Ao fundo, o lago vazio e o leito seco, são áreas de pastagens. A terra à frente é vermelha. O dia, porém, é luminoso e o ar é leve. As nuvens carregadas são promessas de chuva e vida, quem sabe um dia, a ponto de transbordar o lago. Por trás da fotografia, os pássaros fazem acrobacias no céu e enchem o mundo com o seu canto efusivo e arrebatador, as flores das redondezas são espetáculos de cores e exuberâncias. E é  por estas e outras, que insisto pelos bons dias e um sorriso breve, nestes lábios enrugados e quebradiços, do velho de semblante duro e olhos de pedra que sai, carrancudo, da paisagem que sou.

 

Marcos Vinicius.

Fotografia: Sumidouro, 22 de setembro de 2020.

quarta-feira, 23 de setembro de 2020

Entre julho e setembro



Á saída da reunião ministerial, Damares, Paulo Guedes, o Conde Drácula, Frankstein, e a liderança do grupo, o boneco Chuky, anunciaram, em rápida coletiva, que, finalmente,  'foi resolvido o problema com o quilo do arroz, e não se fala mais nisto, pois o valioso produto, será a partir de agora, vendido, não mais no peso, mas aos grãos'. Além do que, arroz com feijão é coisa de comunista. Dos elevados platôs morais da terra plana, é lançado o novo prato do dia, do Brasil sem corrupção, do desgoverno Bozo e os irmãos metralha: o novo prato verde e amarelo, macarrão com feijão. Fartem-se, enquanto podem, daqui a pouco chamam o Dória para prescrever a ração. Hi-hó, hi-hó. (10 de setembro).

 

A foto do inominável, o único sem máscaras, em meio a várias autoridades e, mesmo os puxa-sacos de sempre, todos com suas máscaras brancas, devidamente colocadas, em pleno Sete de Setembro, faz-me ver que, além do atoleiro movediço em que nos metemos, acabamos de perder o terrível e cruel desafio que a história nos colocou, frente a frente, qual seja, uma imensa roleta-russa, onde, prontamente, apertamos o gatilho, no justo momento, em que ajusta-se à mira, a pesada bala de chumbo. O mito da independência, enfim, dobra-se à mitificação do absurdo, a uma autofagia pseudopatriótica e à infalível roleta-russa do capitão. Corre o Sete de Setembro de 2020. (07 de setembro).

 

A vitória da morte, pelas vias da política, faz-se tão decisiva, que sequer percebemos, quando desinventaram o luto. O país do mito é uma nação de zumbis, não pelos que já se foram, pois estes, jazem sepultos, mas por estes que fazem da morte, objeto de culto e veneração, vagam carregando as bandeiras da tirania e da tortura, ornados com correntes de ossos, profanando cadáveres e disseminando o ódio. Estes mesmos que, orgulhosos, aprenderam a fazer arminha com a mão, símbolo da conquista de uma cidadania ensandecida, em um país em estado de putrefação, a louvar e eleger demônios e atirar nos próprios pés. O Brasil, sempre tão adormecido, acordou do sono profundo, como um gigante imbecil, que mete a testa ao espelho, pois prefere sangrar, a ver o quanto pode ser feio. (06 de setembro).

 

A covardia e a perversão caminham juntas, lado a lado. O desgoverno que temos, nas excrementíssimas  pessoas do execrável merdatário, e seus entes, doentes, mais próximos, é o retrato acabado, em altíssima resolução, da união de todas as sandices e maldades que a desnatureza humana pôde conceber. A esta altura do campeonato, quem ainda se põe a lamber deste esgoto, é tão mortífero como os piores dos vírus. São putrefatamente escrotos estes canalhas. (03 de agosto)

 

O mesmo primitivismo do pensamento, embotamento da razão, que, por ter fora de seu campo de visão, as curvaturas da Terra, proclama que ela é plana, empunha a bandeira do há que se ver para crer, como das mais confiáveis e preciosas. Diante de um agente patológico mortífero e invisível, que impõe cuidados, consigo mesmo e com os outros, teremos que fazer as contas, a verificar qual vetor apresenta maior letalidade, o vírus, por si só, ou o fundamentalismo da ignorância, a negação plena da sapiência que, a duras penas, nossos mais remotos ancestrais nos deixaram como legado, para que sobrevivéssemos como espécie. Estaremos  à altura de tamanho empreendimento e desafio? (24 de julho).


Marcos Vinícius.


terça-feira, 21 de julho de 2020

Formigas



Não há quem não se admire com a incrível capacidade das formigas em carregar, em seus minúsculos e quase invisíveis tentáculos, pesos mais de cem vezes maiores que o seu. Percorrem longas distâncias transportando, enfileiradas, paus, folhas, insetos, o que quer que possa ser-lhes útil e servir de alimento nas profundezas subterrâneas dos enormes formigueiros. Observando o fluxo intenso de caminhões pesados pela rodovia, me lembrei delas. Nas enormes carrocerias destas máquinas de ferro e aço, transportamos pesos, também, infinitamente maiores que os nossos próprios, em escalas e proporções, maiores mesmos, que os das pequeninas formigas, principalmente, se levamos em conta, os imensos aviões e navios de carga, que atravessam o mundo de uma ponta a outra, se é que tem pontas o mundo. E há mesmo quem diga, que bastaria uma alavanca e um ponto de apoio, para deslocá-lo de sua órbita. Diante disto, alguém poderia dizer, Ah, pois, então, veja como as superamos e realizamos proezas ainda maiores. Penso que não há engano maior. As pequenas o fazem com as forças próprias, sem recorrerem a motores ou ferramentas. Sim, nós carregamos a tal inteligência criadora que nos possibilita realizações que também impressionam. O que tem que se levar em conta, é que, a depender dos recursos, o empenho e o trabalho hercúleo das formigas, creio que, milhões de anos poderão se passar e o mundo permanecerá vivo e saudável, girando em sua órbita própria, em uma infinita sucessão de estações, já quanto a nós, o uso desenfreado da inteligência que nos permitiu carregar pesos incalculáveis, também poderá levar o planeta inteiro a um estado de devastação irreversível, onde sequer a vida das pequenas formigas será possível. Aí sucumbiremos todos, sob o peso das ilusões que jogamos sobre os ombros.

Marcos Vinicius.

segunda-feira, 20 de julho de 2020

Labaredas



Fazia um calor abrasador, as placas de ferro derretiam-se em fornalhas e labaredas. Era tudo de um vermelho intenso e avassalador, escaldante. Dos abismos enfumaçados exalava o fedor do enxofre.  Ainda o vermelho. De fogo e sangue. Por detrás das caldeiras fumegantes, a besta, entre grunhidos, solta um hálito quente e fétido. Distraída, mal percebe quando se aproxima a fera, montada em seu cavalo morto. Fera, você por aqui? Sim, besta, afinal, nos encontraríamos uma hora, não é assim? E o que faremos nós, ó demônio das terras chamuscadas, dos paraísos carbonizados? Ora, que pergunta. Só mesmo uma besta. O que fazemos de melhor? Não é a morte? Isto, façamos, pois, uma pestezinha, afinal, juntos, dezenas de milhares são nada. Ela deverá contar-se aos milhões. Feito. Eu crio o princípio letal, você faz as oferendas em carnes, ossos e vidas. Juntos, festejaremos sobre as covas dos homens. Very well? Taoquei, porra.


Marcos Vinícius.

domingo, 19 de julho de 2020

Na Venda Nova de 1916



A foto é um recorte do jornal O Movimento, do dia 13 de fevereiro de 1916.

Mais que justa a reivindicação dos habitantes de Venda Nova, afinal já corria o ano de 1916 e não faltavam promessas que a Cidade Jardim seria também, a Cidade do Futuro. Remédios não faltavam, para todas as dores e sofrimentos. Desde o Elixir do Nogueira, considerado um grande depurativo do sangue e encontrado em todas as Pharmacias, o Remédio Vegetariano de Orhmann, que prometia milagres contra a tuberculose e as doenças pulmonares, o Mororo, outro depurativo do sangue, voltado, principalmente, para a cura de cancros venéreos, a Canhyra, contra as moléstias do figado e as doencas do aparelho digestivo, o Vegetalino, para os reumatismos, a Parentana, para os rins, o Phyllantus, para as cólicas uterinas, a Yerobina, contra acidez estomacal e os excessos de gases, além, de tonificar o intestino, o Yucaty, para a cura da gonorréia ao Elixir de Inhame Goulart, que prometia a cura das moléstias nos olhos, causadas pela sífilis. Muitos outros, certamente, sequer foram catalogados. Segundo o Jornal O Movimento, do dia 06 de fevereiro de 1916, uma jovem de Belo Horizonte teria sido curada pelo propagandeado Elixir de Inhame Goulart , como por um encanto. "Em Bello Horizonte, à rua Aymores, mora a menina Irene, curada de uma moléstia nos olhos. Irene foi tratada não só em Bello Horizonte como no Rio de Janeiro  e operada na Santa Casa desta última cidade sem o menor resultado. Segundo o pai, o incômodo começou a se manifestar há 6 anos mais ou menos com uma purgação e inflamação que lhe privava da vista e, desenganado, resolveu experimentar o Elixir de Inhame Goulart, vendo no fim de alguns dias, a moléstia desaparecer como por encanto e hoje frequenta o Collegio Santa Maria, em Bello Horizonte, completamente curada". Sobre o Elixir de Nogueira, o mesmo jornal, no mesmo dia, trouxe o seguinte  depoimento "Declaro que estando sofrendo há oito mezes de uma syphilis rebelde, tendo-me apparecido uma erupção rebelde por todo o corpo, rosto e mãos, usei de grande quantidade de remédios a conselho de diversos médicos, tudo em vão, nem sequer apresentava melhora. (após ler) diversas declarações sobre o Elixir de Nogueira, resolvi experimentá-lo, e só com dois vidros fiquei completamente são!"  Tudo isto era o que diziam os jornais daquele tempo. Resta, no entanto, saber se, de fato, foram assim, tão milagrosos tais medicamentos, como divulgava a imprensa e o mercado à época.  Seja lá como for, qualquer alívio da dor, será sempre melhor que remédio nenhum. De uma forma ou de outra, os que com estes elixires se remediaram, já não estão mais entre nós, para darem o seu testemunho. A reivindicação dos antigos moradores de Venda Nova já tem mais de cem anos. Felizmente, a medicina, de lá para cá, evoluiu de forma impressionante. Infelizmente, no entanto, os frutos e resultados desta evolução, no que diz respeito a exames, procedimentos e remédios, não são para todos. A maioria de nós, morre de enfermidades que o dinheiro, certamente, salvaria. Ainda há muito o que reivindicar. Por agora, mais de imediato,  já seria um bom sinal se, no mínimo, não nos negássemos a ouvir os conselhos e a sabedoria da ciência, usássemos máscaras, quando em público, e levássemos a sério a necessidade e urgência de algum distanciamento social em meio ao alastramento da pestilência. Ainda não temos a cura, nem remédios milagrosos. Pequenos gestos ou a ausência deles, podem significar a trágica escolha entre a vida ou a morte. Lamentável que ainda exista quem a isto resiste na Belo Horizonte de 2020.

Marcos Vinicius.

terça-feira, 7 de julho de 2020

Belmiro e Targino




Era uma terça-feira, onze e meia da manhã. Belmiro, sob o sol luminoso e frio de julho, mantinha-se sentado sobre a rocha escura que há anos, a se perder de vista e da memória, elegera como a morada fundamental e dali não se mudava ou arredava pé, mesmo que o céu desabasse ou a terra rachasse ao meio. Tanto é, que nas poucas vezes que se levantava, para fazer o que sentado seria impossível, podia-se observar que o assento de pedra, praticamente, tornara-se um molde perfeito de suas nádegas magricelas. O que não se sabe, pois não há quem guarde lembrança, é se a pedra sempre fora assim e, talvez, por este motivo mesmo, ele a tenha escolhido, ou se por força do tempo, de tanto suportar aquele peso, havia adquirido a forma do homem. Isto, porém, já não importa. Ele mastigava um caule de capim entre os dentes, lançava cusparadas ao chão e observava duas formigas que carregavam folhas enormes, tão grandes, que ele nunca compreendia como podiam suportar tamanho peso. Belmiro gira alguns poucos graus na pedra, deslizando-se, muda a posição e o campo de visão, em qualquer uma que estivesse, ela lhe proporcionava conforto, e não havia mais pontas e ranhuras, que há muito tempo, deixaram de incomodá-lo. Não se recordava do que pode ter ocorrido com elas. Enfia a mão no bolso, puxa de dentro um relógio grande e dourado e confere as horas. Exato, onze horas e trinta minutos, não se deixavam enganar os ponteiros. Belmiro olha para o mato que havia em frente e diz, Em dois minutos, ele sai dali. Segura o relógio entre as mãos e fica observando o lento deslizar dos ponteiros e a brenha do mato que ainda não se mexia. Quando o ponteiro maior, completa a volta, marcando os exatos dois minutos que Belmiro previra, o mato se abre, e surge Targino. Com as roupas surradas, tão magro quanto o outro, de olhos esbugalhados, cabelos desgrenhados e um óculos quadrado, que lhe conferia uma expressão muito peculiar, grita, antes mesmo de se aproximar, Bom dia, Senhor Belmiro. Muito bom dia, Senhor Targino. Os dois encaram-se, olhos nos olhos, fixos, enquanto Targino vai se aproximando. Assim que para em frente a Belmiro, dá-lhe um sorriso amigável. Belmiro lança outra cusparada sobre o capim, joga fora a folha que mantinha nos dentes e indaga Targino, Ô seu Targino, venho pensando comigo, e de tanto pensar, depois destes anos todos, concluo que o senhor ficou louco. Louco? Mas louco por quê? Targino encara-o com assombro e sem compreender o amigo. Fecha os botões da camisa, ajeita o cinto das calças, apruma os óculos sobre o nariz, passa a mão sobre os cabelos, penteando-o com os dedos e aguarda a resposta de seu interlocutor. Sabe o que é? Fico imaginado como pode e, confesso, nunca ter visto caso igual. Toda terça-feira, as onze e trinta e dois da manhã, o senhor me surge daquele mato, aqui fica alguns poucos minutos, depois, novamente, se põe a andar, e só retorna na próxima terça-feira, por detrás da mesma moita, exatamente, no mesmo horário, e estas ocorrências, já se dão há décadas. Décadas, por que foi só o que vivemos, talvez, se ultrapassássemos os séculos e os milênios, cá estaria o senhor, repetindo, eternamente, o mesmo feito, o mesmo percurso e a mesma aparição. Diga-me, Senhor Targino, se isso não é coisa de louco. Ora, Senhor Belmiro, não tenho culpa do tempo que temos e as medidas que se lhe meteram, além do que, não fui eu quem me colocou sob os pés os caminhos que ando. Que posso eu fazer, se o percurso que é necessário percorrer apenas se completa neste tempo em que cabe a semana? Ora, sinceramente, Senhor Belmiro, que falta de respeito. E penso mesmo, já tinha estas dúvidas, mas agora sou também obrigado a confessá-las, pois entrou para o campo das certezas, louco é o senhor. Há anos passo por aqui, normalmente, em meu habitual caminho, e vejo-o prostrado nesta pedra, sem tirar a bunda do lugar. Passam anos, décadas e séculos e toda uma eternidade, se ela vier, e estará aí, plantado, sem rodar pelo mundo. Sabia que o mundo gira, senhor Belmiro? Não demora, esta pedra sai andando e fica o senhor, enraizado, fincado para sempre. Quem sabe, não acabe virando, o senhor mesmo, uma pedra bruta? Ora, tenha paciência. Que ultraje, senhor Targino, que ultraje. Como se atreve? Que sabe o senhor do mundo? Só porque fica a girar como peão? Diga-me que maravilhas encontra por aí, em seu percurso de sete dias. Ofegante como sempre o vejo, não creio que tenha tempo de parar e pensar ou refletir sobre a realidade do mundo e da vida. A contemplação é a fonte de toda a sabedoria, Senhor Targino. Ora, Senhor Belmiro, quantas idiotices. Quem disse ao Senhor e de onde tiraste tal autoridade para afirmar que para se contemplar o mundo há que estar estacionado? Contempla-se o mundo, andando, percorrendo-o.  O que vejo é que o senhor parece ter desistido dele. Cala a boca, seu desajustado. Não sabe do que fala. Daqui do meu campo de observação, tenho certezas sobre o que vejo. Conheço a fundo a flora e a fauna que me cercam. Já sou íntimo destas forças da natureza. Vê estas formigas? Já conheço os seus caminhos, suas tocas, suas preferências e a sua ordem e hierarquia. Vê aqueles pássaros? Já me habituei ao seu canto e voo. Conheço cada nota da sua cantoria e os galhos preferidos ao pouso. Vê estas gramíneas? Conheço todo o seu ciclo de vida. Quando brotam e quando secam. Vê estas árvores? Vejo-as crescer e conto os gomos e os anéis dos seus troncos. E sei que aquele mato, toda terça-feira, se abre, as onze e trinta e dois, onde sempre, sem falhar uma terça-feira, anos após ano, me aparece o Senhor, com estas loucuras de andarilho. Quer saber, Senhor Targino, vou é mandar prendê-lo. O Senhor é um perturbador da ordem das coisas. Ora, louco é o Senhor. E eu é que vou trancá-lo em uma cela. Sabe o que faz o mundo girar, Senhor Belmiro? São os passos das pessoas. Se todos prostrassem como o senhor aqui está, não haveria conhecimentos, ciência, não haveria histórias, geografias ou as matemáticas, não haveria as filosofias, não haveria a civilização, Senhor Belmiro. Não se constrói sobre o desconhecido. Sabe do universo das formigas depois que elas entram pelos buracos? Sabe para onde vão os pássaros depois de abandonar as árvores que vê? Pensa que os matos crescem todos da mesma maneira em diferentes lugares? Quem não anda pelo mundo, Senhor Belmiro, não apenas o ignora, como não permite que ele se mova. Ora, mas que afronta, Senhor Targino, sinceramente. Vou já resolver a questão. Belmiro enche os pulmões de ar e grita com toda a força que tinha, Louco, louco, Socorro, há um louco aqui. Targino, não pensa duas vezes. Põe-se também a gritar, fazendo coro com o amigo, Louco, louco, Socorro, há um louco aqui. Louco, louco. Em meio às histéricas gritarias, surge apressado, um agente das forças de segurança. Mas o que ocorre por aqui? Que gritarias são estas? Estão perturbando o sossego, se não pararem agora, meto os dois na cadeia. Os homens reduzem o tom, mas não cessam as acusações. Louco é você. É você. Não fosse a presença do segurança, certamente, sairiam aos tapas. O agente, observando a algazarra e ouvindo os argumentos de um e de outro, embaraça-se em resolver a pendenga. Os homens estavam tão excitados e eufóricos em sua discussão que o agente imaginou que ali, realmente, pudesse haver algum sinal de loucura. Decide, então, até porque ficara curioso em saber quem era o louco e quem tinha a razão, resolver a questão a sua maneira e grita, Calem-se. Calem-se ou os levo presos já. Os dois. Ele havia ouvido em algum lugar, apesar de não se lembrar onde, que louco que é louco rasga notas de cem. O policial tira a carteira do bolso, arranca de lá, duas notas de cem e as atira ao chão. Os homens entreolham-se, assustados e curiosos. O policial, confuso e com o suor escorrendo pela testa, sob o sol do meio dia, aguarda o resultado do teste. Belmiro pega a nota de cem e a enfia no bolso. Targino repete o gesto, com gosto. Olham um para o outro e passam a gritar a plenos pulmões. Socorro, socorro, há aqui um louco jogando dinheiro no chão. Socorro. Socorro.



Marcos Vinícius.

segunda-feira, 6 de julho de 2020

Baús



Coisa impressionante é o estudo da história.  Entendiado, nestes tempos de isolamento, venho vasculhando os seus velhos e os novos baús, na tentativa de conhecer um pouco mais sobre os primeiros tempos de Belo Horizonte. Antes, porém, fiz e refiz algumas leituras sobre o século XIX, este tumultuado e dinâmico século, onde Beagá foi concebida e, finalmente, inaugurada em 1897. Passei por alguns romances de Dostoiévski e sua São Petersburgo e, mesmo que, na distante Rússia, o século se abre diante de nós. Agora, releio o historiador inglês, Eric Hobsbawm, e sua Era do Capital, sobre a história do mundo, entre os anos 1848 e 1875. O complexo xadrez do cenário mundial, mais uma vez se mostra revelador e, detalhes que, a primeira vista, passam despercebidos, sempre se apresentam em uma segunda leitura. De volta a Belo Horizonte, a descoberta e o levantamento de um acervo fabuloso de fotografias antigas, traz a cidade, em seus primeiros tempos, para um diálogo inédito, com seus cenários de época, as vestimentas e os hábitos dos primeiros moradores, costumes esquecidos, avenidas sendo abertas e prédios levantados, os bondes que já não circulam, o verde que já foi devastado, os rios, hoje esgotos canalizados, que corriam limpos, fartos, e em cachoeiras. As imagens em preto e branco nos proporcionam um grande salto rumo ao passado. Como se não bastasse, encontro, pelo caminho,  um inesgotável arquivo de jornais do país inteiro, inclusive, de Minas e Belo Horizonte, referentes ao período. Aí foi que a aventura tornou-se, de vez, assombrosa e impactante. Milhares de vozes saltaram dali, rompendo o longo silêncio do tempo, ansiosas para contarem suas histórias há tanto tempo guardadas. Estou a ouví-las e é surpreendente, além do que, não há tédio que resista.

Marcos Vinicius.

quinta-feira, 11 de junho de 2020

Era uma vez



Por estes dias, dentro de casa, e sem muito com o que nos ocuparmos, começamos a inventar modas, pensar no que nunca havíamos imaginado, observarmos os cantos, sempre escondidos, das paredes do quarto, os quais, apesar de tão próximos, cotidianamente, nunca nos demos conta deles ou se fizeram tão presentes. O isolamento nos impele a percebermos os detalhes mais colados a nossa volta, os próximos ao toque e aos olhos e, também, nos permite trazermos, outra vez, à vida, lembranças, episódios e histórias do nosso passado, da nossa infância que, talvez, pouco nos recordaríamos em um dia comum, de correria, de falta de tempo, quem dirá, sentarmos a frente do notebook e registrá-las. Navegando por um grupo, em uma rede social, que me trouxe inúmeras imagens e recordações da terra e das ruas da minha infância, lugares por onde não percorro há décadas, um sentimento nostálgico apossou-se de mim. As imagens e as recordações vieram com uma força muito grande e, por alguns dias, fiz um mergulho nas memórias da minha meninice, como não imaginei que um dia pudesse fazer. O fato de ter me ausentado há muitos anos, uma vida inteira, de minha terra natal, sem visitas, passeios ou notícias, acabaram por tornar essas visões e imagens bastante impactantes. O efeito, provavelmente, não seria o mesmo, se estivesse a recordar uma infância distante, porém, em ruas e territórios que nunca se ausentaram. Pois aqui, não apenas o tempo tornou-se distante, mas também o local, o território das lembranças. Então, trata-se de uma distância e um reencontro duplo, com a terra que se diz natal e consigo mesmo, lá trás. As imagens que povoam a minha memória, de quando vivi por lá, são as imagens da minha infância, até aos dez anos de idade, afora, uma lembrança ou outra, mais rarefeita, porém, das poucas vezes em que lá estive, durante a minha adolescência, a passeio. Hoje, me recordei, especialmente, das brincadeiras de rua, que fazíamos na época, das quais, as minhas preferidas eram confeccionar e soltar pipas e papagaios, cheguei a confeccioná-los para vender, fazia papagaios lindos, de variados tamanhos e cores, alguns levavam a logomarca do bloco de carnaval que a família participava, noutros, procurava sempre alguma inovação, para, literalmente, dar asas a imaginação, e atrair alguma freguesia. Daí, os papagaios se transformavam em verdadeiras obras de arte, com rabiolas de tamanhos diversos, combinações inusitadas de cores, cheguei a fazer um papagaio gigante, nunca fizera um tão grande, alaranjado, lindo, que me foi cortado por uma linha de vidro, assim que atingiu as primeiras alturas. Outra brincadeira com a qual muito nos divertíamos, eram os carrinhos de rolimã, estes, apesar de achá-los o máximo, não dominava a técnica de sua produção, mesmo porque, não havia às mãos, as ferramentas e matérias primas, necessárias ao seu fabrico. Além do que, a rua em que morava, e onde os garotos, geralmente, maiores e mais velhos, se esbaldavam em alegrias e entusiasmos com os seus carrinhos, era uma rua bastante íngreme, o que tornava a experiência perigosa e arriscada para os mais novos e para os que não dominavam de todo, o manejo do pequeno automóvel de madeira. Mas assistir aos campeonatos que transformavam alguns condutores em verdadeiros heróis da vizinhança, já proporcionava uma diversão garantida e única. Também caçávamos vaga-lumes e, covardemente, os aprisionávamos em garrafas transparentes, que iluminavam nossas noites de curiosidades, espanto, sonhos e alegrias. Esculpíamos abóboras, com caras de monstros, e iluminávamos seu interior com velas, afixando-as nos barrancos das laterais da rua escura, para que a figura fantasmagórica assustasse os transeuntes mais desavisados. Por algumas vezes, pintei as galinhas brancas de granja das mais variadas cores, tornando o quintal de casa povoado de galináceas multicoloridas, e ainda hoje não sabemos ou dimensionamos o mal que a tinta impregnada em suas penas poderia lhes causar. Amarrei gato pelo pescoço para ver a altura dos pulos que davam, fiz castelos e cidades inteiras de areia, em um bairro em construção, guerras de mamonas e treinamos tiro ao alvo com tuchos de barro em lençóis brancos da vizinha, pendurados no varal, que sempre nos negava as frutas do seu quintal, causamos incêndio de médias proporções em um matagal, fazendo experiências com o fogo no mato seco, o que me rendeu um susto e um pânico tão grande, junto ao meu comparsa, que estávamos dispostos a ficarmos um ano inteiro escondidos debaixo da mesa, se fosse necessário. Um brinquedo inesquecível foi o telefone de lata e barbante. Amarrávamos duas pequenas latas nas pontas de um extenso barbante, que esticávamos de uma ponta a outra da rua e, ali, numa época em que não apenas ainda não existiam os telefones celulares, mas sequer os telefones fixos eram acessíveis a toda a gente. Na ocasião, era coisa de luxo, poucas eram as famílias que possuíam uma linha, que além de caríssima, às vezes, levava tempos intermináveis para que se realizasse uma instalação. Além do quê, era um luxo mantido sempre à distância da criançada. A primeira vez que ouvi a voz do colega através daquela lata de massa de tomate, após atravessar toda a extensão do barbante do tamanho de um quarteirão, fiquei tão impressionado e admirado, que por um bom tempo, aquilo tornou-se meu brinquedo favorito. Leitor voraz de revistas em quadrinhos, tinha um estoque de revistinhas que me permitia fazer um cineminha com caixa de sapato. Recortava a revista em tiras, emendava umas nas outras, geralmente, com o mesmo grude que fazíamos para colar os papagaios, atávamos as pontas das extensas tiras de quadrinhos em canetas sem carga e as acoplávamos as caixas de sapato que perfurávamos. Girávamos a caneta, os quadrinhos iam se sucedendo na tela de papelão e mesmo que a história não fizesse qualquer sentido, pois recortado o gibi, não havia como encaixar os quadrinhos em uma sequência lógica, a diversão era total e, por muito tempo, me dediquei a esta primitiva e inesquecível arte cinematográfica. As nossas infâncias localizam-se em um tempo histórico próprio, definido, e que, obviamente, não se repete. Não há infâncias semelhantes em tempos distintos, também no que diz respeito às brincadeiras. Por mais que resgatemos antigos jogos, brinquedos ou travessuras, o conjunto deles, que de certa forma, nos fez quem somos, só se vê em seu tempo próprio, não há repetições. Aquele conjunto, há muito tempo já se foi. Sequer as bolinhas de gude, que sempre me pareceram um brinquedo eterno, universal e insubstituível, nunca mais as vi rolarem nas mãos dos garotos de hoje. A propósito, fico imaginando, que adultos serão as crianças que perderam o caráter lúdico das brincadeiras que fizemos. Cortávamos papéis, confeccionávamos a cola com a farinha de trigo, criávamos os carretéis e fazíamos voar as pipas, serrávamos a madeira, fazíamos o veículo completo e nele, na velocidade dos rolimãs, nos esfolávamos no asfalto quente e no concreto das calçadas, inventávamos nossas parafernálias de recortes de quadrinhos, nossas telas de caixas de papelão, nossos telefones de barbante. Éramos pequenos, porém, mesmo nas mais corriqueiras das brincadeiras, também fomos gênios inventivos. Quanto às crianças de hoje, fico imaginando que, lá na frente, quando adultos, a pensarem em brincadeiras do passado, talvez não tenham em mente, outra coisa além das telas de seus luminosos smartphones. E grudados como estão em seus aparelhos a todo o momento, ininterruptamente, sem prestar atenção a qualquer coisa à volta, desconfio mesmo, que sequer se recordarão, não apenas de uma infância, propriamente dita, mas também das paisagens mais próximas, despercebidas, e dos caminhos por onde passaram, até os mais costumeiros. Tenho a impressão que muitos garotos que percorrem, em uma grande cidade, certa distancia, diariamente, por um ano, dentro de um carro ou ônibus e sempre grudados ao celular, caso algum dia, tenham que descer pelo meio do caminho, sequer saberão que rumo tomar, pois não tiveram tempo ou a disposição de observarem paisagens e caminhos. E o que é pior, o espírito da infância e a força criadora e redentora dos brinquedos e das brincadeiras de criança, parece, terem sido, tristemente sequestrados pelo jogo nefasto e perverso dos adultos, a que chamam de forças incontroláveis dos mercados. Neste jogo, praticamente, não há infância possível, entre os pobres, a expropriação total e a ausência de territórios livres para os seus corpos desbravadores e inventivos, nega-lhes o pleno exercício da infância, entre as elites, até mesmo seus filhos, perderam-na, pois a submissão completa ao mundo das mercadorias, por mais sofisticadas que estas sejam, os tolhem da ludicidade criativa e solidária de uma infância sem as amarras eletrônicas. Assim é o mundo. Pelo menos, brincamos, enquanto ainda era o tempo.

Marcos Vinícius.

quarta-feira, 10 de junho de 2020

Retrato


Há lugares que, mesmo que nunca mais coloquemos os pés, nunca desabitam de nós; povoam, para sempre, os recônditos das nossas memórias persistentes, o labirinto indecifrável das nossas fantasias perdidas e as sombras enfumaçadas e obscuras dos nossos sonhos esquecidos. Há paisagens que, enquanto houver memória, carregaremos por dentro, mesmo que as escondidas de nossa consciência, dos arquivos profundos do tempo, haverá o dia, em que nos reaparecerá, de súbito, para relembrar quem fomos e para que não percamos de vistas, mais que o passado, o que fizemos de nós.



Marcos Vinicius.

terça-feira, 2 de junho de 2020

Ainda os fantasmas




A live do facínora, regada a copos de leite, adoção de outro símbolo da violência, monstruosidades e absurdos dos supremacistas brancos, à moda Ku Klux Klan, somada a nota de hoje do antijuiz e desministro Moro, sobre as intenções do chefe do Executivo em armar seus seguidores para uma guerra civil no país, encerra, pois, um ciclo, mais um capítulo, onde se levantam os últimos panos, a respeito de qualquer dúvida que ainda pudesse haver de que o fascista-mor vem seguindo, passo a passo, a cartilha hitlerista, no que diz respeito a ações e táticas, para a formação de seus rebanhos ensandecidos e sanguinários. A receita é forjada fora, advinda de poderosas organizações fortemente estruturadas em redes cibernéticas e canais militantes da extrema direita norte-americana, com o fermento das mágicas dos algoritmos, robôs e muito dinheiro, financiada por multibilionários que investem fortunas incalculáveis em sua estratégia genocida e tresloucada de controle do mundo. Hitler caiu apenas após lançar-se à guerra total, sem medir meios ou consequências, deixando atrás de si, um gigantesco e sinistro rastro de destruição e mortes. Até onde caberemos, aqui no Brasil do século XXI, neste modelito nazi, anacrônico, robótico, de rebanho e trevas, terraplanista, negacionista, anti-ciência, onde se juntam não só o lixo que nos é próprio, mas também, todo o esgoto da história?


Marcos Vinícius.

terça-feira, 5 de maio de 2020

O encontro




Era uma manhã de inverno, o dia estava nublado, o céu, cinzento, e um vento frio varria as pedras dos calçamentos, levantava a poeira do chão e fazia os queixos tremerem. A rua estava completamente deserta, era um domingo, as poucas lojas estavam fechadas, assim como as janelas dos apartamentos que havia ao redor. Dentro da taberna, as mesas estavam vazias e apenas um homem, com perfil angustiado, barbas grandes e calvo, permanecia sentado, estático e pensativo, acomodado na última mesa dos fundos. José Saramago, que entrara apenas para tomar um café, esconder-se do vento gelado e aquecer-se um pouco, assusta-se ao ver aquele homem. Poxa, não é que o conheço de algum lugar? Olha-o um pouco sem graça e tímido. O homem o ignora. De repente, uma luz parece se acender, Saramago espanta-se, dá um sobressalto, aproxima-se do homem e diz, Bom dia, Senhor Dostoiévski? Bom dia, Sim, mas quem é o senhor? Não o conheço, responde secamente, com ares de quem não estava muito disposto a render o assunto. Saramago se apresenta e ele apenas diz, Nunca ouvi falar. Saramago, intrigado e atônito, sem saber o que fazer, diante do espanto e da inusitada situação, pergunta, O senhor não imagina o quanto o conheço e admiro. A propósito, o que faz por aqui? F. Dostoiévski olha para ele, e por alguns instantes, mantem-se calado, em seguida, pega um livro que deixara sobre a mesa, abre-o, e inicia a leitura, “vinha evitando qualquer tipo de companhia nos últimos tempos. Agora, porém, alguma coisa o impelira de repente para o convívio humano. Alguma coisa de aparentemente novo se passava dentro dele, e ao mesmo tempo ele experimentava certa sede de gente. Estava tão cansado de todo aquele mês de melancolia consumidora e excitação obscura que queria passar ao menos um minuto respirando em outro mundo, fosse qual fosse, e era com satisfação que ia ficando na taberna, apesar de toda a sujeira.” Fecha o livro, volta-se para seu interlocutor e pergunta, Ouvi dizer que cegaram. O que lhes ocorreu? Saramago apressa-se em responder, “Por que foi que cegamos? Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão. Queres que te diga o que penso? Diz! Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, Cegos que veem, Cegos que, vendo não veem”. Dostoiévski coloca as duas mãos sobre a mesa, olha fixamente para Saramago e diz, “O vazio é o espaço da liberdade, a ausência de certezas. Mas é isso o que tememos: o não ter certezas. Por isso trocamos o voo por gaiolas. As gaiolas são o lugar onde as certezas moram.” Dostoiévski interrompe a fala, sem tirar os olhos de Saramago, leva a xícara até a boca, dá um trago, alisa a barba até as pontas inferiores e volta à carga, “Como passam rápido os anos! E a gente volta a perguntar a si mesmo: que fizestes de teus anos? Onde enterrastes o teu tempo? Viveste ao menos? Ou não?” Saramago, ainda sem conseguir conter a surpresa e o susto, toma o primeiro gole do café, sente o peito aquecer-se e diz, “Eu talvez tenha um senso fatalista da vida. Mesmo quando era jovem, eu me dizia que o que era para ser meu a mim viria. Eu não precisava de ir à busca, bastava estar atento. Se há alguma sabedoria na minha vida é de saber esperar. Tenho a impressão de que tive a melhor vida possível e porque não projetei nada e acabei por ter tudo.” Dostoiévski sorve o último trago que havia na xícara, levanta as mãos em direção ao céu e, em um tom mais alto, que havia dado a sua voz até então, exclama, “Meu Deus! Um minuto inteiro de felicidade! Afinal, não basta isso para encher a vida inteira de um homem?” Saramago dá outro trago no café, faz uma pausa na conversa, solta pelo canto da boca, um ligeiro sorriso de contentamento, e diz a Dostoiévski, “ponho-me a imaginar o que mais gostaria de fazer nesta altura da vida (sem ter que perder nada do que tenho, claro está), e simplesmente descubro que seria perfeito poder reunir em um só lugar, sem diferença de países, de raças, de credos e de línguas, todos quantos me lêem, e passar o resto dos meus dias a conversar com eles.” Trim-trim-trim, o despertador toca, vejo que acordo em meio a uma pandemia e o celular avisa que há recados, mensagens não lidas e uma nova publicação no grupo.

Marcos Vinicius.

( Os diálogos entre os dois são transcrições retiradas de suas obras e publicações e identificadas entre aspas) – Para o Grupo José Saramago.

sexta-feira, 10 de abril de 2020

O milagre - Parte 2




Sem qualquer ruído, despertador, ou luz que viesse anunciar a chegada do dia, Alberto abre os olhos às cinco horas em ponto, nem um minuto a mais ou a menos. O sol ainda não havia despontado e a noite ainda enchia de escuridões todos os cantos do quarto. O relógio está programado para tocar as cinco e meia, mas agora não há mais remédios, Alberto está, irreversivelmente, desperto. Ainda tem duas horas para se preparar antes de reunir-se com a equipe e pegar a estrada em direção a Jurupemba. Fica alguns instantes a fitar o teto e, bruscamente, se levanta. Vai direto para o banho, em seguida, faz o desjejum, veste-se com uma roupa mais leve, uma calça bege de moletom, uma blusa de algodão azul cobalto, um tênis leve e confortável, apara alguns pelos excessivos da barba, fecha os últimos zíperes das duas malas, fecha a casa, ajeitando o que ainda estava fora do lugar e, pontualmente, às sete horas, como o combinado, estaciona o carro em frente ao edifício do escritório, onde a equipe já estava reunida lhe aguardando, próximos a uma Van, que os levará ao destino, em previstas oito horas de viagem. Somados ao tempo em que parariam para o almoço, o cálculos indicam que chegarão em Jurupemba ao final da tarde. Não foi difícil montar a equipe, Alberto possui, sob seu comando, um número razoável de profissionais competentes e dedicados, mão de obra qualificada, que foi selecionando ao longo de sua gestão na empresa. Ainda enquanto ouvia o discurso do patrão, no escritório, na semana passada, já havia a lista dos nomes em mente. Rogério, o repórter, que há dois anos o acompanha, e que, impressiona Alberto, com sua voz grave, penetrante, invasiva e convincente, foi um dos primeiros nomes a se lembrar. Alberto costuma dizer que não há quem não acredite em seus relatos. Alberto já lhe dissera, mais de uma vez, que sua voz lhe traz recordações dos antigos filmes que assistia de heróis e profetas, em seus tempos de infância, cujo tom, carrega uma aura de suprema confiabilidade, que fazem das palavras proferidas, uma mensagem do infinito, com ares de verdades absolutas. Outro profissional de destaque, já previamente escalado, em qualquer destas ocasiões de emergência, era Pedro, o cinegrafista, destes que chamamos pau pra toda obra, sempre disponível e entusiasmado, além de possuir um olhar especializado em flagrar os melhores momentos e capturar os melhores ângulos e tomadas de cena. Vão ainda, Carlos e Samuel, dois jovens auxiliares, responsáveis pelo som e iluminação, além do motorista, claro, o veterano na empresa, o senhor Arimatéia. Os cinco estavam apenas aguardando a chegada de Alberto para que dessem a partida, todas as bagagens e os equipamentos necessários já estavam acondicionados nos bagageiros da van. Os outros dois homens, Anthony e Peterson, os tais agentes lá do Império, que Alberto ainda não conhecera, chegariam no dia seguinte à Jurupemba e os encontrariam no hotel, onde todos ficarão hospedados. Alberto e a equipe sairão juntos, mas ele viajará em seu próprio carro, o que lhe garante alguma privacidade, da qual, em raras ocasiões, abre mão, além do que, viajaria mais confortável, teria mais espaço para suas coisas, mobilidade garantida em Jurupemba, e evitaria o desconforto de viajar por horas a fio ao lado de seus empregados, o que ele acredita que, ao fim e ao cabo, levaria a exageradas proximidades e intimidades, que põe sob risco, o ritual do exercício de sua autoridade. Antes de partir, todos dão uma última olhada no mapa, para certificarem-se que, mesmo viajando em veículos diferentes, seguiriam todos a mesma rota. Não havendo mais o que acertar, entram todos em seus respectivos carros e tomam o caminho de Jurupemba. Alberto liga o ar condicionado, ajusta o rádio em um volume mínimo e vai observando a paisagem, esta que vê pela primeira vez. Apesar de gostar de viajar e sempre o faz, seja a passeio ou a trabalho, ainda não havia explorado a região para onde se dirige. São, realmente, caminhos novos, o que lhe proporciona uma sensação de prazer, pois gosta disto, percorrer o inexplorado, desbravar novidades. E pelo que vai observando, à medida que se aproxima de seu destino, aquelas paisagens são, de fato, diferentes de tudo o que já viu. A estrada que, em alguns trechos, estreita-se e afunila-se, a adaptar-se as inconsistências do relevo, de um asfalto escuro, segue cortando extensas montanhas de pedra. Em alguns trechos, o dia escurece, pois a estrada corta elevados paredões de rochas negras, por onde, apenas em algumas poucas horas do dia, o sol encontra permissão para entrar. Em alguns pontos, o caminho torna-se bastante íngreme, o que exige habilidades do motorista, nem sempre postas em prática, dadas as surpresas e as peculiaridades da geografia. Subidas ou descidas muito inclinadas requerem sempre um bom sistema de freios e sorte a sua, pois o carro, antes da viagem, passara por uma detalhada revisão mecânica. As plantas rasteiras e as árvores que se agarram às rochas são de um verde exuberante e farto. As árvores, em sua maioria, são de modestas estaturas, com troncos ligeiramente retorcidos, copas generosas e que, em algumas delas, quase tocam o chão. Vez ou outra, destacam-se na paisagem árvores enormes, cobertas de exóticas flores lilás e iluminadas por um céu exageradamente azul, o que dá ao local, pelas imaginações de Alberto, ares dos cenários dos contos de fadas. É necessário, porém, estar muito atento à velocidade e às curvas, pois uma relação mal calculada e ajustada entre elas, pode resultar em fatalidades. Há curvas exageradamente acentuadas, fechadas, onde, caso o motorista desatento, deixe de colocar o carro em velocidades mínimas, pode se esborrachar penhasco abaixo, de alturas tais, em que torna-se impossível qualquer chance de sobrevivência. A estrada é perigosa, mas de uma beleza única, pensa Alberto. Ele encara aqueles paredões de rocha escura, as longas, estreitas e profundas crateras e fendas que se abrem nas montanhas gigantes de pedra, os filetes de água cristalina que escorrem em leitos duros de cascalhos coloridos e, imagina, Certamente, são destas belezas todas, que hão de arrancar a rica matéria-prima que, no frigir dos ovos, claro, secreta e inconfessavelmente, é o que nos traz a Jurupemba. Ao cruzar uma ponte estreita sobre um pequeno riacho, Alberto observa-o e recorda-se de um comentário que ouviu há alguns anos, dentro de um bar, quando tomava das suas cervejas, Se é verdade que água mole em pedra dura, tanto bate até que fura, também o é que, água mole em pedra dura, tanto bate até que um dia a água acaba. Alberto solta um discreto sorrido sem graça, constrangido, e ao virar a curva, avista ao longe, parte posta em uma planície, parte incrustrada na pedra, Jurupemba. 

Alberto chega meia hora antes de sua equipe e dirige-se diretamente para o hotel, pois tudo o que deseja, de imediato, é tomar um banho, tirar aquelas roupas de viagem, e fazer um lanche. Como o previsto, chegou à cidade ao final do dia. Ele percorreu o trajeto em sete horas e meia, mas sua equipe, na van, gastou, em trânsito, as exatas oito horas, minuciosamente calculadas pelo senhor Arimatéia. Por mais que tenhamos pesquisado mapas, lido sobre o local, visto milhares de fotografias, há coisas que só percebemos quando lá colocamos os pés, qual seja, o espírito do local, com seus ruídos, o sotaque e os trejeitos populares, o clima, o regime dos ventos, os ângulos da incidência do sol sobre as cores nativas, as naturais e as artificiais, a conjugação da vegetação, os cantos dos pássaros, as manias, os traumas, a ginga, as lendas, as histórias dos heróis e da gente comum, seus casos, santos, crendices, e aquilo, sabe-se lá o quê, que todo povo tem e é só seu, o que diríamos,  o que aquela gente tem de mais peculiar. Devido às altitudes, Jurupemba, tem um clima ameno, muitas vezes, frio, o que agrada Alberto que, sempre dorme melhor nas temperaturas mais baixas. Jurupemba é a típica cidade do interior, pequena, provinciana, a localização, entre as montanhas e os paredões de pedra, tamanhas barreiras naturais, certamente lhe proporcionou, ao longo de sua história, algum isolamento e, ainda mais peculiaridades. Lugares assim, geralmente, apresentam sólidas tradições culturais. Além do que, cada lugar, com suas belezas e problemas, é único. A rua principal acompanha o curso de um vale que serpenteia três grandes montanhas, que circundam toda a região central, muitas das ruas adjacentes, embrenham-se pelas serras acima, as casas são baixas, os poucos prédios não ultrapassam quatro a cinco andares, o comércio é modesto, mas movimentado, com feiras de barracas de alimentos e coisas da terra, e a população local, apesar de todos se conhecerem entre si, não é de estranhar a presença de forasteiros, pois com eles já se acostumaram, graças ao fluxo de turistas que, no verão, vem usufruir das águas frias de suas abundantes cachoeiras. O hotel é grande, espaçoso e confortável, ocupa um prédio antigo que passou por muitas reformas, têm largas portas de vidro, as janelas são amplas, as paredes são limpas e ornamentadas com quadros e artesanatos, e o atendimento é sempre bem avaliado.  Alberto e sua equipe já eram esperados na recepção, o que facilitou as acomodações, tanto é, que assim que chegou, apresentou-se e correu para o chuveiro, tomou um banho quente e, quando retornou à sala das recepções, lá estava a sua equipe apresentando-se ao recepcionista e descarregando suas bagagens. A viagem transcorrera sem qualquer infortúnio. Depois de guardarem os equipamentos e malas nos quartos do hotel, os homens se reúnem para um jantar servido pelo restaurante do estabelecimento. Estão todos famintos e cansados depois de oito horas de viagem, o que não impede que conversem animados e elogiem as belezas e o clima da região que, segundo dizem, os havia encantado durante a maior parte do percurso. A mesa é farta, a comida é saborosa, e todos comem de bom grado e gula, e por um bom tempo, houve um silêncio absoluto no local, quando todas as bocas não faziam outra coisa além de mastigar e salivar com os temperos típicos da região. Após a sobremesa, saem todos para a rua, a fim de tomarem um pouco do ar frio da cidade. Uns ficam conversando na calçada, bem em frente à porta de vidro da entrada principal do hotel, enquanto outros saem em busca de aspirina e cigarros. Alberto resolve permanecer no hotel, pois precisa redigir algumas correspondências e preencher relatórios, além, claro, de ligar para Virgínia, para dizer-lhe que foi bem de viagem e procurar, mais uma vez, consolá-la, a despeito do adiamento das comemorações do aniversário. Apesar de compreender as demandas do trabalho de Alberto, e as emergências que, vez ou outra, tem que atender, ela não consegue livrar-se da chateação e do tormento, que é ver seus planos, indo por água abaixo. Ele, então, tranca-se no quarto e liga para ela. Alô, meu amor, como estão as coisas por aí? Por aqui está tudo bem. A viagem foi muito tranquila, sem qualquer transtorno e, por um longo trecho, digamos, a partir da segunda metade da viagem, a estrada estava praticamente vazia. A paisagem é linda e o carro, como bem sabe, é muito confortável e não há melhor para viagens. Tranquilize-se, estou muito bem por aqui, além do que, o hotel é confortável, bem localizado, a comida é maravilhosa, e a equipe, apesar de serem todos muito bons de serviço, são pessoas bacanas e de convívio fácil. Não se martirize, Virgínia, a festa pode esperar. Em dez dias estarei de volta e, então, faremos uma comemoração bem maior ou melhor do que seria esta que não poderá ser. E não acabou, digo que além da festa que faremos, já lhe adianto que pode pensar em preparar malas, pois, depois desta minha empreitada, quando voltar, faremos uma boa e inesquecível viagem para um paraíso qualquer. Já pode ir olhando os mapas, escolhendo destinos e hotéis, aí sim, finalmente, poderemos usufruir de merecidas férias e descanso. Fazemos a festa e, em seguida, viajamos. O que acha, meu bem? Não se desespere, porém, e nem precisa consumir-se em ansiedades, ainda temos um bom tempo pela frente, ao longo da semana, vamos conversando e programando melhor. Descanse, meu amor, que é, também, o que farei agora. Como estão todos por aí? Mande, por favor, meus abraços e saudações. Tchau, beijos. Desliga o telefone, solta um longo suspiro e senta-se na beirada da cama. O telefone pisca, mensagem do senhor Hamilton. O que se lê, Boa noite, senhor Alberto, como vai? Espero que tudo tenha transcorrido bem durante a viagem e que tenha gostado do hotel. Passo para avisar que os agentes Anthony e Peterson, ao contrário do previsto, não chegarão amanhã, vão se atrasar em alguns dias. Quando a data estiver definida, envio mensagem. Boa noite e bom trabalho. Abraço. Alberto olha para o aparelho celular, desliga-o e põe-se a imaginar, Mas o que terá ocorrido? Já estou curioso para conhecer estes dois. Afinal, a tarefa que tem pela frente, é de extrema ousadia. Como farão para realizar com sucesso tal empreitada? Será tão transparente assim o equipamento, a ponto de ninguém percebê-lo? Como farão para instalá-lo, acioná-lo e desmontá-lo à vista de todos? Claro, estando tudo combinado com o candidato, facilitam muito as coisas. No momento exato, o candidato, em discurso, chamará todas as atenções para si, quando então, as mãos habilidosas dos agentes, entrarão em ação. Vou evitar preocupar-me com isso, afinal, o Império não encarregaria de tais ações, gente inexperiente e despreparada. Quanto a mim e a equipe, temos que nos preocupar com os registros e as devidas edições, produzir nosso trabalho jornalístico, as reportagens, e claro, dar cobertura aos agentes, fazer crer que somos todos da mesma equipe de trabalho, técnicos de um jornalismo sério e de qualidade. Alberto levanta-se e vai até a janela. Ao abri-la, a primeira imagem que lhe vem aos olhos é a da estátua do Coronel Jovelino Miranda, robusta, imponente e grandiosa, com a expressão de bronze, observando e dominando toda a praça. Um calafrio percorre os braços de Alberto, passa pelo peito e soca-lhe o estômago, arrepiando-lhe os pelos. Ele mira-a por alguns instantes, intrigado, fecha a janela e resolve deitar-se para dormir. Acomoda-se na cama, mas o sono custa a chegar, vira para um lado e para o outro, diversas vezes, até que o sono venha lhe subtrair as forças. Ao dormir, porém, os sonhos não lhe dão sossego, uma sucessão de imagens, advindas de sua vida real, do seu dia a dia, e de situações absurdas, lhe vem à mente, as paisagens que vira na estrada, Virgínia, a fisionomia onipotente do patrão, os dois agentes, os quais nunca viu, sequer em fotografias, lhe aparecem com os rostos encapuzados, Bianca em toda sua sensualidade, e de repente, aparece o candidato Josemar com as mãos voltadas em sua direção, em forma de ganchos, prontas para estrangulá-lo, e quando prepara o grito de socorro, a estátua do Coronel, tomba sobre si , a esmagar-lhe. Neste momento, Alberto desperta em um salto da cama, tem o corpo, o lençol e o travesseiro ensopados de suor. Levanta-se, toma um copo d’água, vai até o chuveiro, toma um banho rápido, ao voltar, abre a janela, a constatar se Jovelino Miranda se mantém em seu posto, lá está, intocável, e fecha-a rapidamente. Volta para a cama. São quatro horas da madrugada e o sono resolve abandoná-lo. As cinco, levanta-se novamente, abre a agenda com os números dos telefones dos candidatos à Prefeitura de Jurupemba e rascunha, em uma folha de papel, a programação dos trabalhos para os próximos dias. Pontua, em tópicos, os assuntos que ainda hoje, pretende tratar com sua equipe, em reunião, após o café da manhã. Às sete e meia estavam todos reunidos em torno de uma grande mesa, recheada com todo tipo de guloseimas, pães, bolos, cafés, sucos e chás, além de uma considerável variedade de frutas e, mais uma vez, todos degustam em silêncio, à exceção de um comentário ou outro, sobre o sabor das iguarias, e pequenas brincadeiras e piadas de uns com os outros, o que é comum entre colegas de trabalho, nos raros momentos de descontração e lazer. Às oito horas, sentam-se todos ao redor de Alberto, que, valendo-se de sua condição de liderança, expõe as metas e as ações daquele dia. E assim os dias se sucedem em Jurupemba, entre reuniões pela manhã, desjejuns maravilhosos e inesquecíveis, e uma longa rotina de filmagens, entrevistas, pesquisas de opinião, conversas com autoridades, técnicos do governo, levantamento de dados e informações e a produção de um infinito número de imagens. Ao fim da tarde, a equipe se reúne novamente para realizar um balanço da produção do dia. Alberto, às vezes, vara madrugadas, a conferir o material produzido e planejar suas edições. Esta rotina se mantém ao longo dos dias e, em uma semana, já haviam entrevistado todos os candidatos e seus principais assessores. 

A rotina iria se alterar apenas com a chegada dos agentes que, como o senhor Hamilton havia avisado, ocorrerá nesta manhã de quinta-feira, às nove horas, quando a equipe já saiu para seu trabalho de campo, e apenas Alberto os aguarda para fazer as devidas recepções, na véspera do esperado comício do candidato Josemar Miranda aos pés da estátua do avô. Enquanto Alberto aguarda a chegada dos homens, deita-se um pouco na cama, em seu quarto, logo após o café da manhã e a saída de seus funcionários. Mal teve tempo de acomodar-se no leito, a recepcionista, pelo interfone, avisa que Anthony e Peterson acabam de chegar e estão à sua espera. Alberto dá um salto da cama, abre a janela do quarto, guarda a camisa que havia deixado em cima da escrivaninha, ajeita duas cadeiras, olha-se no espelho, ajeita os fios da barba e do cabelo que estavam levemente desalinhados e pede a recepcionista que os encaminhe para o quarto, onde vai recebê-los. Bom dia, senhor Alberto Matias, como vai? Disse Anthony, com sotaque carregado das línguas estrangeiras. Bom dia, senhores, muito prazer. Sentem-se, acomodem-se, aceitam um copo d’água? Necessitam de algo, um lanche, um banho? Afinal, acabam de chegar de uma longa viagem. Não se preocupe, senhor Alberto, respondeu Peterson, estamos bem. Alberto os observa com curiosidade. São jovens, bem vestidos, altos, de pele clara, os dois são parecidos, não ao ponto de assemelharem-se a irmãos ou primos, mas como pertencentes a um grande grupo familiar, como se do mesmo ramo genético, ou no mínimo, como se houvessem sido criados sob os mesmo códigos de condutas e posturas. Eles se parecem, inclusive, observa Alberto, na maneira de se sentarem e de olharem para ele. Nada que lembrasse as aparições em sua noite de pesadelos. Pois, então, senhor Alberto, o senhor já sabe a que viemos, já recebeu as orientações, então, aqui estamos, o senhor não tem muito com o que se preocupar, com relação a nós, o que lhe cabe fazer é integrar-nos a sua equipe, como se dela fizéssemos parte por todo o sempre, pois, amanhã, na hora do evento, teremos que estar entre eles, manipulando os equipamentos de filmagens, com seus pedestais, cabos, tomadas, fios, e luzes, sim, mais que qualquer outra coisa, é importante que tenhamos um holofote em mãos, ele nos ajudará na cena, apenas como mais uma garantia, qual seja, ofuscar um pouco as vistas dos que estiverem mais próximos do ponto zero do milagre, a estátua do Coronel Jovelino. Quanto aos demais detalhes da operação, o senhor não se preocupe, não tem como dar errado, nosso método é bastante eficaz. Estivemos agora pela praça e percebemos que o monumento e suas medidas são exatamente aquilo que temos catalogado em nossos registros e imagens. O candidato está ciente de toda a operação, é coadjuvante, e já nos entendemos com ele, antes mesmo de virmos para cá. No momento em que ele se referir ao avô e repetir suas palavras, gravadas aos pés da estátua, quinze minutos após o início do comício, o milagre ocorrerá. Prepare seus olhos e lentes, senhor Alberto.  Infelizmente, não há como fazer demonstrações prévias, mas o senhor verá o milagre acontecer. Já viu algum, senhor Alberto? Alberto esboça um sorriso sem graça e desajeitado. Vários, senhores, vários, responde. Anthony retira uma folha em dobras do bolso e abre-a sobre a mesa, é uma fotografia da praça do Coronel, quase um mapa, feita por satélites, em alta resolução, onde se pode ver detalhes da imagem, um retrato minucioso do local onde ocorrerá o comício. Os três homens tem os olhos fixos sobre a fotografia. Anthony percorre a imagem com os dedos e vai apontando para Alberto, os pontos exatos, onde cada um deverá se posicionar, para garantir o sucesso da operação. Alguns minutos após terminar sua exposição, acertam ainda um detalhe ou outro e, por fim, Peterson, indaga, Ainda há alguma dúvida, senhor Alberto? Não, está bem entendido. Os homens, então, como se ouvissem uma senha, levantam-se, e Anthony diz, Pois bem, agora, precisamos comer alguma coisa, tomarmos um banho, nos acomodarmos e descansar um pouco. Qualquer coisa, senhor Alberto, estamos no quarto ao lado. Foi um prazer conhecê-lo. Os homens se levantam e estendem as mãos para Alberto. Deixe que eu os acompanho, diz Alberto, procurando oferecer gentilezas. Muito obrigado, senhor Alberto, mas não é necessário. Nos vemos ao final do dia. Até lá, abraços. Os homens saem pela porta e desaparecem como um raio, como se por ali, nunca houvessem passado. Alberto resolve passar o resto da manhã dentro do quarto, revisando parte do material produzido pela equipe ao longo da semana e programando possíveis edições. Liga o computador, espalha algumas folhas pela mesa, muda a caneta de lugar e vai até a janela. Encosta-se no parapeito e passa a observar, detidamente, a estátua do coronel. Fixa os olhos nela e deixa-se levar por um turbilhão de pensamentos, até perder-se no meio deles, e se esquecer do trabalho que havia programado realizar. Quando dá por si, já eram as horas do almoço. Ao final do dia, reúnem-se todos no salão reservado do hotel, Alberto, a equipe e os dois novos agregados, Anthony e Peterson, que são rapidamente apresentados. A equipe esbanja simpatias para os dois novatos, no intuito de melhor integrá-los ao grupo, fazem brincadeiras e o quanto podem em gentilezas para deixá-los à vontade. Os dois, porém, apesar de esbanjarem cordialidades e delicadezas, estabelecendo amistosas relações, são homens de poucas palavras, dão respostas curtas e evitam estender os assuntos. Antes de encerrar o relato que o repórter Rogério fazia sobre o seu trabalho do dia, Anthony e Peterson pedem licença, despedem-se e, desculpam-se pela súbita retirada, alegando a necessidade de dormirem bem, para estarem devidamente descansados e preparados para o exaustivo dia de amanhã. Meia hora depois, todos se despedem e recolhem-se aos seus aposentos.

Como ainda não havia ocorrido desde que chegara a Jurupemba, Alberto dorme, ininterruptamente, mais de oito horas. Quando abre os olhos pela manhã e percebe o sol já bem claro e o dia quente, assusta-se, imaginando que, talvez, houvesse dormido por uns dois dias consecutivos. Sente-se confortável, após uma noite de um sono revigorante, estende levemente os músculos dos braços e das pernas e, rapidamente, pega o relógio, para conferir o adiantado das horas. Ainda é cedo, não há necessidade de correrias, mesmo porque, hoje à noite será o esperado comício do candidato e a equipe não sairia a campo durante o dia, ficariam todos no hotel para ajustar os equipamentos e fechar últimos detalhes da cobertura. E assim se fez. Alberto quase não sai do quarto durante todo o dia, e a equipe aproveita a ocasião para empanturrar-se das guloseimas que o local oferece, comem de tudo, dos salgados aos doces, e o resto do tempo, dedicam-se ao ócio e ao sono. Anthony e Peterson são vistos muito rapidamente, apenas durante o horário do almoço. O comício terá início às oito horas da noite, e tudo já está preparado, organizado, faltando apenas aguardar o momento de iniciar os trabalhos na praça. Enquanto seus funcionários se empenharão em registrar o evento, carregando filmadoras, microfones, lâmpadas, cabos e toda a parafernália própria do ofício, posicionando-se nos mais apropriados ângulos, não apenas para registrar as melhores imagens, mas também para dar as devidas coberturas ao trabalho dos agentes, caberá a Alberto apenas acompanhar todo o trabalho e o desenrolar dos acontecimentos. Fará o papel de observador, ao mesmo tempo em que sua presença impõe o espírito de coordenação e organização do grupo, o mais importante que terá a fazer na ocasião, será tentar perceber, bem de perto, a eficácia da ação dos agentes, tanto no que diz respeito à sua habilidade e presteza, quanto à reação do público presente. Como está programada uma apresentação musical após a fala do candidato, estarão ali, tanto seus eleitores como, certamente, eleitores dos candidatos adversários, uma vez que, muitos são movidos apenas pela promessa da música e pelo movimento que estes eventos, geralmente, proporcionam em uma cidade, normalmente, pacata. A partir das sete horas, mal a noite caíra sobre Jurupemba, e grupos de pessoas, eleitores, curiosos, correligionários de Josemar Miranda começam a chegar, a equipe já se encontra posicionada, ainda esticando e enrolando fios, dando os últimos ajustes em suas lentes, nos controles dos equipamentos, nivelando os tripés, testando áudios e microfones, regulando as luzes e no caso de Rogério, exercitando a voz. O palanque, montado bem ao lado da estátua do coronel, recebe os últimos retoques, técnicos fazem os testes finais em suas aparelhagens e mulheres, jovens e idosas, cuidam da ornamentação do local, com flores, arranjos e material diverso de campanha, entre bandeiras, cartazes, banners e faixas. Aos poucos, o local vai se enchendo. Vem gente de todas as direções. Jovens aos grupos, senhoras, casais de todas as idades, com filhos ou sem eles, crianças, que ao colocarem os pés sobre a calçada da praça, soltam-se das mãos de seus pais e correm apressados ao redor dos canteiros e dos jardins, carros se aglomeram pelas ruas laterais, entre congestionamentos e buzinaços, homens montados em cavalos, vindos da extensa área rural de Jurupemba, representantes de partidos políticos, organizações empresarias e entidades de fazendeiros, com suas siglas, símbolos e logomarcas, pipoqueiros, vendedores de balas, de algodão doce, militantes que distribuem santinhos, chaveiros, panfletos, adesivos, homens e mulheres vestidos com camisetas estampadas com a foto de Josemar, sacodem, efusivamente, bandeiras de plástico com as cores da campanha e do partido do candidato. Anthony e Peterson, estes dois que parecem um, de tão juntos e inseparáveis que são, vestidos com o uniforme de jornalismo da equipe, já estão a postos, bem próximos da estátua do coronel. Eles têm o semblante duro, fechado, por mais que se esforcem em compartilhar simpatias e cumprimentos, seus olhares alternam-se entre o palanque, o monumento ao coronel Jovelino e a multidão ali reunida, ao conjunto dela, suas medidas e dimensão, e ao mesmo tempo, procuram observar um a um dos que a compõem, como a procurar desvendar sua natureza ou intenções, as individuais e as coletivas. De longe, Alberto os observa e pensa consigo mesmo que, pudesse apostar, apesar do pouco que os conhece, diria, sem medo de errar, que ali se trata de um elevado estado de espírito de tensões. Como que para quebrar seu pensamento, ao que chega a assustar-se, uma música alta, executada por uma banda de trompetes e cornetas, irrompe do nada, sem aviso. Os músicos, com suas bochechas de foles, enchem e esvaziam freneticamente os pulmões, e com sopros retumbantes, tomados pelo entusiasmo, e pela potência da laringe e de seus instrumentos, enchem a praça e explodem os espíritos dos cidadãos com sua música milenar. Anunciam a chegada de Josemar Miranda. Uma grande euforia toma conta do lugar. Enquanto sobe ao palanque, a multidão grita seu nome repetidas vezes, soltanto urras, já ganhou, já ganhou, Josemar, Josemar, e é efusivamente aplaudido pela maioria das pessoas que tomavam a praça. O candidato posta-se à frente do microfone, sobre o palanque, ainda em silêncio, com os braços erguidos, acompanhando as manifestações de seus entusiasmados apoiadores. Do alto, o candidato vai cumprimentando os que acenam para ele. O candidato vê Alberto, mesmo porque já sabia onde este estaria posicionado e o cumprimenta com um ligeiro aceno com a mão. Sem graça e visivelmente desconfortável, Alberto retribui o gesto. Por alguns minutos, o candidato ainda ficaria a cumprimentar e apertar as mãos dos que lhe estavam mais próximos. O candidato leva a mão ao microfone e inicia seu discurso. Neste momento, faz-se um silêncio geral na plateia. E Josemar inicia, Boa noite, meus amados cidadãos, conterrâneos e compatriotas. É com muito prazer e satisfação que hoje me dirijo a vocês, aqui, reunidos em praça pública, praça esta, que por tantas vezes podemos nos encontrar, conversarmos e darmos as mãos, nesta local, tão cheio de significados, para mim, em particular, e para todo o povo de Jurupemba, para os que aqui ainda estão e para os que desta já se foram, os da geração passada. Por isto, este nosso encontro, não poderia ocorrer em nenhum outro local. Amigos, Jurupemba não se esquece dos seus antepassados, dos seus heróis, dos que permitiram, lá atrás, que pudéssemos chegar aonde chegamos, com sacrifícios e dificuldades, é claro, mas com o orgulho dignificado, com a honra restabelecida e, mais importante, com a alma lavada. Neste momento, Josemar é interrompido por uma saraivada de palmas. E volta, com a voz mais firme e o punho em riste, Sim, meu povo, nunca nos esqueceremos dos nossos fundadores, dos nossos guerreiros de ontem, mas Jurupemba vislumbra uma era de prosperidades e não tira os olhos do futuro. Precisamos, juntos, construirmos a Jurupemba que queremos, e para isto, preciso de todos vocês, não apenas do seu voto, mas do seu dinamismo e de seu poder de convencimento, para convencer cada cidadão de Jurupemba, o pai indeciso, a mãe que ainda se definiu, o tio que ainda não compreendeu que o nosso governo é o melhor que podemos fazer por esta terra querida. Por isto, amigos de Jurupemba, conclamo todos vocês, nestes dois dias que nos restam, a fazer o possível e o impossível para conquistar o voto que seja, do indeciso, do que pretende abster-se e por que não, dos que pretendem votar no adversário. Sãos momentos decisivos, meus irmãos. É tudo ou nada. Ou vai ou racha. Jurupemba está nas mãos de vocês. Não podemos titubear. Outra vez, Josemar é interrompido por aplausos e gritos de euforia. Viva, Josemar, o homem que vai salvar nossa terra, berra alto, um homem no meio da multidão. Viva, Viva. Josemar volta-se para o homem e agradece, dá-lhe um aceno e retoma, Pois, então, irmãos de Jurupemba, milagres não fazemos, mas prometo, dos fundos da minha alma e do meu coração que de tudo farei, o que estiver ao meu alcance e o que não estiver, lutarei com todas as minhas forças, até o último suspiro, para ver este povo feliz. Jamais medirei meus esforços para levar Jurupemba pelos caminhos do desenvolvimento, da paz e do progresso. Faço esta profissão de fé, não apenas em meu nome ou movido por anseios pessoais, mas em honra ao espírito do meu avô que derramou seu sangue para o bem e a salvação do povo desta terra. Josemar põe as mãos sobre os ombros em bronze do avô. Era a senha. Alberto tem os olhos fixos no candidato e em Anthony e Peterson ao mesmo tempo. Os dois se movimentam de forma suave, quase imperceptíveis, e neste momento, por incrível que pareça, tem um ar de tranquilidade e um comportamento, nitidamente, profissional e movimentam-se, sem dar às vistas. Estes sujeitos estão bem treinados, pensou Alberto. O candidato mantem as mãos pousadas sobre os ombros do avô e proclama, Não terão sido em vão as palavras vivas do meu avô proferidas pouco antes de ser alvejado pelos inimigos cruéis e mortais, “Morrerei na batalha, mas meu sangue e minhas lágrimas inundarão de esperanças e coragem o coração do povo e a terra de Jurupemba”. Neste instante, sem mover o rosto um único milímetro, Peterson dá o primeiro arranque brusco nos braços, em seguida, um segundo solavanco, e sua expressão mantem-se completamente inalterada. Neste momento, o candidato solta um grito de espanto, Ele sangrou, ele sangrou. Josemar leva as mãos até o peito do avô e um sangue vermelho, viscoso e farto, escorre entre seus dedos, dos olhos de Jovelino, lágrimas salgadas correm em pequenas cascatas. Milagre, um milagre, o sangue de Jovelino volta a escorrer, Milagre, milagre, gritava Josemar, com as mãos levantadas para o alto. Assessores mais próximos aproximam-se da estátua para verificar o fenômeno e voltam, nitidamente, embasbacados com o que acabavam de ver. A equipe corria de um lado para o outro, de modo a fotografar o momento sob os mais variados ângulos, Alberto encontra-se paralisado como uma pedra. O povo, alarmado, em alvoroço, solta gemidos, lamentos, alguns ajoelham-se, outros clamam aos céus, entregam-se a cânticos, louvores e orações, o candidato insiste, do alto do palanque, Milagre, milagre, enquanto o sangue do avô lhe escorre pelos braços e ensopa a camisa. É sangue, é sangue. O sangue derramado do peito em bronze de Jovelino escorre por seu corpo, formando uma poça escura sob os pés da estátua. Os flashes das câmeras fotográficas são disparados em todas as direções. Os homens da equipe não tomam fôlego um segundo sequer, procuram capturar com suas máquinas possantes todos os registros possíveis. Anthony e Peterson espalham-se no meio da multidão com naturalidade tal, como se mais não tivessem feito, além da prestação de assessoria técnica à equipe de jornalistas, compram sacos de pipoca e refrigerantes e, em pouco tempo, estariam de volta ao hotel. Em meio ao alvoroço que se instalou, Josemar, com a roupa suja de sangue, pega novamente o microfone e diz, Amigos, irmãos, povo de Jurupemba. E neste instante, todos se calaram, um silêncio absoluto dominou toda a praça e apenas a voz de Josemar se fazia ouvir. Homens, mulheres e crianças, todos o olham com espanto e admiração. Meu povo, confesso que estou sem palavras, peço que tenhamos calma, afinal, é o sangue de Jovelino, é o sangue ancestral de Jurupemba que vem abençoar a nossa terra, o nosso povo e o nosso destino. Não nos alarmemos, pois. Tenho a plena certeza e convicção que o que temos é um sinal de sorte, é o anúncio de um novo tempo em que Jurupemba trilhará pelos caminhos da paz e da abundância. Creio que o melhor que fazemos agora, para evitarmos maiores tumultos, especulações ou confusões, é voltarmos para casa, refletirmos sobre este momento, entregarmo-nos as orações e não nos esquecermos que, depois de amanhã, daqui a dois dias, só temos um caminho, ao que a multidão atônita lhe interrompe e responde aos gritos, Josemar, Josemar, Salvador, Salvador. Alberto permanece de pé, observando o movimento e a reação das pessoas e a praça que, sob os pedidos de Josemar, começa a se esvaziar, não sem antes, em peregrinação, passarem, um a um, ao lado da estátua, para verem o sangue derramado do Coronel, porém, mantendo certa distância, sabe-se lá, por receio, respeito ou veneração. Boa noite, meu povo amado, estamos todos protegidos, até a vitória. Josemar, Josemar, Salvador, Salvador, o povo vai tomando o caminho de casa, cantando pelas ruas, Josemar, Josemar, Salvador, Salvador. O candidato, cercado por seguranças, assessores, curiosos e os fãs mais exaltados, dirige-se rapidamente para o carro e retira-se do local. A praça torna-se, a cada minuto, mais vazia. Enquanto a equipe recolhe e guarda os equipamentos, Alberto observa os últimos movimentos. Impressionante, ele pensa, Não imaginei que fosse viver para presenciar um milagre. Bem, mas como se diz por aí, milagres, realmente, acontecem. Estes de sangue, então, acredito serem os mais eficazes, pois há toda uma sacralidade em torno desta matéria física, deste fluido enigmático, que é o nosso sangue, afinal, é a fonte da vida, da energia, da saúde e, como acreditam muitos, é a fonte da salvação e, para tanto, é necessário jorrar. Faz-me recordar a passagem do livro sagrado, onde se diz que, De fato, segundo a Lei, quase todas as coisas são purificadas com sangue, e sem derramamento de sangue não há perdão, se então é assim, se são certas as palavras, o sangue do avô redimirá o neto e, este, muito, provavelmente, arrancará a vitória das urnas. Afinal, o sangue simboliza muitos dos pactos entre os homens e suas divindades. É símbolo da vida e das paixões, da fertilidade, em seu fluxo contínuo, ou ao contrário, onde também se manifestam seus poderes, nas cenas e no cotidiano da violência e da guerra, no contágio, nas doenças e nos genocídios. O sangue da morte, o sangue da vida. Retrata o fim e o extermínio, mas também, a purificação e a redenção. Enquanto há vida, há sangue, sem ele, é o fim, o nada. Além do que, ele, também, carrega de força as expressões ou as caracterizações humanas ou seus estados de espírito. És um sangue-frio ou ao contrário, é o fogo em chamas que corre por tuas veias? Um sanguinário, sanguinolento ou apenas um sanguessuga? Mais vale uma bala na agulha ou o sangue na veia? Tem sangue nos olhos? É sangue ruim? Sangue de barata? Sangra até a morte? É sangue do teu sangue? O acordo é da boca pra fora ou é um pacto de sangue? A disputa foi pacífica ou derramou-se um mar de sangue? Ah, quanto sangue derramado. A bem da verdade, não apenas a história dos homens está repleta de sangue, mas também, os seus dicionários. Que coisa. Rogério, o repórter, toca o ombro de Alberto, Tudo bem, chefe? Alberto desperta, assustado, a ponto de, mais uma vez, ser tomado pelo calafrio que lhe sobe os braços, irradia-se pelo peito e soca-lhe o estômago. Tudo bem sim, Rogério, tudo bem. Ufa, que dia, hein? Sim, miraculoso, responde Rogério. A propósito, rapazes, venham aqui, e acena para a equipe, chamando-a para junto de si. Pois, então, parabéns pelo trabalho, tenho certeza que temos em mãos um material preciosíssimo, vi bem o empenho de vocês durante todo o tempo. É o seguinte, comentários e avaliações, deixaremos para uma outra ocasião, agora tenho pressa, a noite mal começou, tenho muito trabalho pela madrugada adentro. Vou dar-lhe um tempo, mínimo, uma hora e meia, para que juntem todo o material produzido hoje, organizem, por favor, os arquivos, e me entreguem, em meu quarto, o material bruto, tudo, impreterivelmente, dentro deste prazo. Mãos a obra, garotos. 

Os homens se apressam, enrolam os últimos fios, desligam os últimos botões, e vão para o hotel. Alberto lhes passa mais algumas orientações, antes de dirigir-se ao quarto, e reafirma que os aguarda, ansioso, com o material, pois, ainda esta noite, deverá distribuir parte deles em outras seções e departamentos da empresa. Havia ainda aproximadamente trinta horas até as eleições, era o prazo que tinha, para enviar as imagens e audiovisuais capturados no comício para os responsáveis pela linha editorial e pela construção da propaganda. Uma propaganda agressiva, obviamente, incisiva, imagina Alberto, pois, não há outros caminhos ou estratégias viáveis, quando tão a beira do pleito. De lá, dos escritórios confortáveis da empresa, ainda nesta madrugada, os editores e redatores formatarão todo o material, de modo a encaixá-los nas estratégias de convencimento e persuasão mais eficazes que tem em mãos. Utilizando-se de truques imagináveis e também os inimagináveis, e todos os recursos que a tecnologia lhes oferece, dos quais, a empresa é pioneira e faz usos sem limites, em poucas horas, poderão invadir as telas dos eletrônicos de toda a população de Jurupema, valendo-se dos mais sofisticados códigos, sistemas e meios de transmissão de informação e contrainformação que a humanidade já vislumbrou, com todo o tipo de propaganda, montagens, frases de efeito, imagens sedutoras, enaltecendo o candidato Josemar Miranda e empurrando-o de vez, para as urnas e para a cadeira de prefeito. E o melhor de todos, os ingredientes desta complexa receita, a cereja do bolo, pensa Alberto, quase em voz alta, já sentado a escrivaninha, é este bendito milagre, este sim, talvez, seja a minha tábua de salvação. E sorri com ares de satisfação. Exatamente dentro do prazo estabelecido, os homens batem em sua porta e entregam-lhe as cópias de todos os arquivos. Alberto passa toda a madrugada, debruçado sobre o computador, vendo e revirando tudo quanto fora registrado, fazendo recortes, supressões, anotações, sugestões de estratégias e linhas de abordagens, e em comunicação direta, pelo telefone, com os técnicos, a centenas de quilômetros de distância que, trabalham, sem trégua, até o raiar do dia. Alberto passa a noite às claras, e às sete horas da manhã, para conseguir manter-se acordado, toma um banho e abre as janelas, pois em meia hora, receberá Anthony e Peterson, que estavam de malas prontas para a partida. Às sete e meia em ponto, os dois batem à porta de Alberto. Bom dia, senhor Alberto, como vai? Olá, rapazes, bom dia. Estou bem, felizmente, apesar de, como vocês podem imaginar ou observar, ainda não dormi, deste ontem, agarrado nestes serviços, diz Alberto, apontando para o computador ligado e os papéis espalhados sobre a mesa. Oh, lamentamos, senhor Alberto, nós dormimos como pedra, sabe, aquela sensação de missão cumprida, além do mais, para sermos sinceros, não é qualquer coisa que nos subtrai o sono. Mas não vamos prolongar os assuntos, senhor Alberto, pois já estamos de saída, a estrada é longa, então, estamos um pouco às pressas, diz Anthony, viemos apenas lhe dar as despedidas. Tudo bem, rapazes. Olha, parabéns, é impressionante a atuação de vocês, um trabalho executado com o máximo de destreza e discrição. Incrível, quanta habilidade. É nosso trabalho, senhor. A propósito, o senhor e a equipe ainda ficam muito tempo por aqui? Não, também estamos quase de saída, mas resta-nos ainda, fazermos, amanhã, a cobertura do dia da eleição, depois disso, fechadas as urnas, estamos todos liberados. A equipe sairá na manhã seguinte, segunda-feira, lá pelas sete horas, e eu, um pouco mais tarde que eles, estamos mesmo em carros separados, e pretendo dormir até mais tarde um pouco. Sairei na segunda-feira às nove horas da manhã. Na terça-feira, as oito, tenho compromissos inadiáveis no escritório. Mas, enfim, foi um prazer conhecê-los. Façam uma boa viagem e quem sabe nos encontramos em operações futuras. Um grande abraço para vocês.  Bom dia, senhor Alberto, descanse. Mande outro abraço para a equipe. Felicidades, sucesso. Abraços. Assim que saem, Alberto toma seu café da manhã, rapidamente, volta para o quarto, e dorme, praticamente, todo o dia, saindo apenas para as refeições e para saudar a equipe. No domingo pela manhã, todos se levantam cedo, é o dia que definirá a sorte de Jurupemba, o dia de ir às urnas. A equipe se divide em duas, na tentativa de fazer a cobertura da ida à cabine eleitoral dos principais candidatos que, via de regra, nestas ocasiões, sempre vão acompanhados de suas respectivas famílias e, no mais, registrar o clima eleitoral e o ânimos dos eleitores. Logo pela manhã, já se vê o movimento dos primeiros deles, os mais idosos, estes que, como se fosse combinado, são sempre os primeiros a chegar, inclusive, aglomerando filas em alguns postos de votação. Os mais jovens, na maioria dos casos, deslocam-se para suas seções no período da tarde. Estes preferem aproveitar o feriado do dia para dormirem o quanto podem. Enquanto os mais velhos engrossam as filas pela manhã, no desejo de depositarem logo os seus votos, os mais novos, em função de atrasos, ou outra prioridade qualquer, tumultuam o fechamento das seções, com a chegada aos locais, em cima da hora, às correrias, como se também, neste caso, houvesse alguma combinação prévia. O domingo corre tranquilo, sem qualquer incidente, e a equipe, no início da noite, já está com as malas prontas, para a viagem na manhã seguinte. Faltando alguns minutos para a meia noite, Jurupemba tem o resultado das urnas. Josemar Miranda será o novo Prefeito, sua vitória é confirmada. A cidade está em festa. Foguetes estouram por todos os lados, pequenas aglomerações se formam nas portas das casas, e muitos, entusiasmados e eufóricos, gritam das janelas de suas casas, saudando o candidato vitorioso. Alberto cumprimenta a equipe pelo trabalho, abraça um por um, dentro do hotel e, após uma rápida e discreta comemoração, vão todos para os seus quartos, porque, afinal, no dia seguinte, pela manhã, seria a hora de retornarem para casa. Todos caem em um sono pesado e a cidade, após festejar o resultado, adormece.

São três horas da madrugada. Enquanto a cidade dorme e o silêncio da noite paira absoluto, das sombras, submergem os vultos de Anthony e Peterson, vagueando pelas proximidades do hotel. Caminhando nas pontas dos pés e sem emitirem qualquer ruído, como fantasmas, de tão leves, enfiam uma agulha na fechadura do pequeno portão que dá acesso à garagem do hotel, abrem-no e entram rápido, com passos tão ligeiros e silenciosos, que parecem flutuar. Os dois vão até a Van em que viaja a equipe, enfiam-se por baixo dela, e acoplam em sua estrutura mecânica um minúsculo dispositivo eletrônico, depois, enfiam-se pelo estreito corredor lateral e vão até a cozinha, onde abrem e fecham algumas gavetas e, em seguida, saem as pressas, sem deixar qualquer evidência de sua passagem, qualquer rastro ou sinal, e daí, desaparecem e ninguém mais os vê. Às sete horas, em ponto, a equipe guarda a última mala no bagageiro da Van e o senhor Arimatéia dá a partida no motor. A manhã está luminosa, com um céu aberto e sem nuvens, mas um vento frio e úmido desce das montanhas escarpadas, levantando a poeira do chão e assobiando pelas esquinas das ruas, quando o veículo, com a equipe, deixa a cidade, definitivamente, para trás. São nove horas, quando, ao descer uma das mais íngremes encostas pedregosas da estrada, uma das rodas se solta, abruptamente, os freios arrebentam, e o senhor Arimatéia perde totalmente o controle do veículo, que se atira ao precipício. O impacto da queda é tal que o veículo explode e, em poucos minutos, é consumido pelas chamas. Exatamente às noves horas, Alberto é despertado pelo telefone. Senhor Alberto? Sim, bom dia, quem é? Senhor Alberto, aqui é da gerência do hotel e, imaginando o quanto o senhor deve ter se cansado por estes dias, dados o excessos do trabalho, faremos a cortesia de lhe oferecer um lanche especial nesta manhã, que lhe será servido no quarto. Alberto agradece a gentileza e acomoda-se novamente na cama. Em menos de dois minutos, recebe o lanche na porta. A mesa fica farta, com uma grande variedade de pães, bolos, frutas, doces e sucos. O aroma que vem dali, de imediato, abre o apetite de Alberto que, vai até o banheiro, escova os dentes, e corre, com gula, a devorar as tentadoras guloseimas. Em poucos minutos, ainda deliciando-se das sobremesas, um mal estar súbito lhe abate os ânimos, Alberto mira o espelho à frente e assusta-se com a palidez. Um tremor frio toma conta de si e, quando levanta-se, no intuito de solicitar ajuda e socorro, uma dor dilacerante lhe irrompe o peito, um engasgo medonho lhe torce a garganta, como se uma mão invisível a espremesse a torniquete. No primeiro passo, Alberto vai ao chão. Leva as mãos ao pescoço, na tentativa de desafogar-se, mas perdera, irremediavelmente, as suas forças. Algumas horas depois, é encontrado sem vida. O caso das mortes não teve grandes repercussões nas mídias nacionais e um texto único foi publicado e replicado em todos os veículos da imprensa que deram a notícia, “Laudos técnicos e periciais concluíram que a Van que transportava a equipe de jornalistas, não havia se submetido a reparos e revisões periódicas neste ano e Alberto Matias, o Diretor, traumatizado e impactado com a notícia da tragédia, veio também a óbito, em decorrência de uma parada cardíaca.”

FIM



Marcos Vinícius.