domingo, 28 de junho de 2009

O Rei e os ratos





O Rei e os ratos.



Já há muitos anos que era senhor absoluto por aquelas terras. Na verdade, o poder que acumulava não era fruto de apenas  uma vida ou geração, era poder que vinha de muito tempo, pois a família tinha sangue real e, em função da precariedade do serviço de registros, não se sabe dizer ao certo, há quanto tempo dominaram por ali. O reino era bem vasto, resultado de uma política expansionista agressiva, levada a cabo por várias gerações de antepassados . Sob seu comando, atingira o seu limite máximo, nunca fora tão amplas suas fronteiras. Dominava não só a região das montanhas, os planaltos, mas também a região dos lagos, as planícies, os vales e as praias. Os domínios estendiam-se por desertos e florestas. As insígnias do poder real espalhavam-se por todos os cantos, para que o rei pudesse estar em todos os lugares, onipresente, a fiscalizar a todos, a ditar-lhes as ordens, a ameaçá-los, pois de ameaças e arrogância também se faz o poder. Não havia muro, construções, monumentos, templos, prédios, que não trouxessem dependurados ou gravados os símbolos do Estado, da nação. Era preciso sempre lembrar aos homens, aos povos, quem de fato, exercia o domínio e o poder sobre eles. Era necessário também espalhar o medo, pois sem ele, dificilmente, reinos, impérios sobreviveriam ao longo dos tempos. A demonstração de força é recurso fundamental dos que desejam manter entre as mãos o cetro e, sobre os ombros, o manto real. Não há realeza que sobreviva ante súditos destemidos. Vez ou outra, punições exemplares, públicas, geralmente em praças, em centros religiosos, para que possam, também as execuções, serem atos de fé, consagrações. Os impérios se edificam não apenas sobre leis e fortalezas, pedras e pontes, mas também sobre o sangue dos homens.


Ele era particularmente impiedoso. Gostava, na maioria das vezes, de participar diretamente dos rituais de execução. Não se sabe ao certo o porquê do gosto especial que sentia nisso, mas era algo que há muito o fascinava. Talvez, fosse mesmo o momento em que mais poderoso se sentia. Afinal, era ali, mais que em qualquer outra ocasião, que se manifestava e se comprovava seu poder absoluto, pois podia trazer à morte quem desejasse, no momento em que melhor lhe conviesse. Não era ele quem dava o golpe final, mas fazia sempre questão de entregar, pessoalmente, o machado ao carrasco. Eram ritos que  considerava necessários, para que pudesse tornar-se e manter-se especial e temível diante dos olhos de seus súditos. Quando jovem, fizera vigorar por alguns anos uma lei que condenava ao degredo ou à morte quem ousasse sobre sua sombra pisar. Gostava sempre de manter-se à distância dos outros seres supostamente inferiores, mortais. Não que dispensasse os bajuladores, mas é que no fundo, sentia-se um deus, o qual de fato não poderia ser, se muito próximo aos homens estivesse.


O excesso de vaidade condenava-o a alguns vícios. Geralmente, não usava a mesma roupa mais de uma vez, o que não era um problema, uma vez que possuía inúmeras costureiras e criadas à sua disposição. Mais difícil às vezes o que sempre custava algumas vidas, era conseguir as matérias-primas, pois muitas de suas vestimentas preferidas eram costuradas com peças, tecidos, pedrarias, jóias, vindas de terras muito distantes e de difícil acesso. Fazia questão de perfurmar-se como ninguém. Havia uma grande perfumaria no palácio, onde montou uma considerável equipe de especialistas provenientes das mais diversas regiões do mundo até então conhecido. Semanalmente, banhava-se com ervas, flores, perfumes, para que a ninguém mais fosse proporcionada a graça dos mais finos aromas e cheiros. Usava pomadas, ungüentos, cremes, que retardavam o envelhecimento e proporcionavam uma pele suave, como só os reis, príncipes e princesas podiam usufruir. As roupas eram costuradas com fios de ouro. A coroa era mais bela e rica do que a de todos os outros ancestrais.


Fazia questão que as ruas e os caminhos por onde passasse fossem todos exaustivamente varridos, mais pelo ritual que lhe proporcionaria pela passagem, com centenas de homens e mulheres envolvidos na varrição, quando ia por longas caminhadas, que por uma mania ou obsessão pela limpeza. Não gostava de animais em casa e fazia questão que os tapetes fossem sempre trocados. Mas algo o irritava profundamente: Ver ratos atravessando os cômodos e dependências do palácio. Nunca o admitia. Característica que, a propósito,  herdara das gerações anteriores, pois recorda-se que já seu avô possuía verdadeiro horror aos roedores e sempre mandava seus criados persegui-los e eliminá-los. Tarefa que depois se soube inglória, pois por mais que se perseguissem os murídeos, eles estavam sempre, ainda, a cruzar-lhe os caminhos.. Já os encontrara em vários cômodos, pelos corredores e até pelos grandes jardins. Se era assim pelas entranhas do palácio, imagine quando ia o rei visitar as regiões mais distantes e pobres do seu crescente império... Essa presença animal deixava-o intrigado. Se já subjugara tantos povos, eliminara tantas aldeias e povoados, vencera tantas guerras e batalhas, por que sua dinastia não fora capaz, enfim, de eliminar os malditos ratos? Que teriam esses animaizinhos que os fazia resistir aos tempos, aos exércitos e às escaramuças? Com eles, nada podiam as armas, os venenos, as orações, as mudanças de hábito, a força, e parecia nada poder também   os deuses. Vem atravessando as gerações de homens, súditos e reis, invencíveis.


Muito o incomodava saber que, a rigor, os ratos dominavam  aquelas regiões muitos anos antes que os seus mais antigos antepassados, pois pertencem a uma estirpe animal que  soma dezenas de milhões de anos, existentes desde tempos imemoriais. São mesmo antiqüíssimos estes roedores que são aparentemente insaciáveis. Uma eternidade a roer. Vem há milhões e milhões de anos no encalço dos homens, afinal, a humanidade sempre proporcionou a eles uma grande possibilidade de sobrevivência, com seus mortos insepultos, seus lixos individuais e coletivos, sobras, restos, esgotos, sujeiras de todos os tipos. Muito do que não é bom para os homens é banquete para eles. Afinal, um sistema olfativo privilegiado deu-lhes condições, não só de escolher o que lhes é saudável entre o que perdido está, como ainda lhes proporcionar a possibilidade de escolhas, entre variadas preferências e cardápios de todos os tipos. Além do mais, têm os roedores uma invejável capacidade de adaptação aos mais diversos ambientes ou condições de vida, permitindo-lhes sobreviver, em muitas situações em que  os homens certamente morreriam.


Os grandes prejuízos que já tinham causado ao reino, desde um tempo de que já não mais se tem lembrança, foram transmitindo a todos que o trono ocupavam, ou próximo dele estivessem, uma aversão muito grande à sua presença. Perdas de colheitas, ataques aos depósitos de alimentos, silos, doenças e pestes, sempre fizeram dos ratos, ratazanas e camundongos alvos prefernciais das políticas de governo no reino. Seus antepassados fizeram todos os tipos de tentativas, todas fracassadas no longo prazo. Tipos imagináveis e inimagináveis de engenhocas foram criadas por inúmeros inventores que de todas as partes afluíam, incentivados pelo rei e por seus funcionários. Quase de tudo se tentou. Os danados sumiam, às vezes  por um largo tempo, mas retornavam depois, aos milhares, subitamente, a zombar dos inventos humanos e a desafiar o poder sagrado dos soberanos. Talvez, fosse mais por isso do que por qualquer outro motivo que o rei havia herdado uma obsessão praticamente genética, hereditária, em querer eliminá-los. Mais que uma necessidade de fato, era uma questão de honra. Um desejo de vingança que pudesse redimir os espíritos de seus ancestrais.


Quando à distância, o rei gostava de observá-los. Era um exercício. Ficava sempre a imaginar como podiam ser tão poderosos e resistentes. Não cediam. Eram como os homens, extremamente territoriais. Sobreviveram às guerras de conquista e anexação de territórios, que apesar de incorporados ao reino e de todo o aparato de segurança, fugiam ao controle dos governos. As profundezas, os subterrâneos, as frinchas dos telhados, os buracos imperceptíveis, as entranhas, os cantos, às escuras. Além do mais, se reproduziam em proporções geométricas e parecia ainda não dominar o mundo, pois não haviam vencido de todo a cruzada eterna, que se abatera sobre eles. Sim. Não podia haver esmorecimento. A impressão que tinha era que a antiga peleja que sempre tiveram que travar contra eles era condição fundamental da sobrevivência de seu poderio. Sem o ataque sistemático ao inimigo comum, dos povos e dos reis, talvez ao grande reino não houvesse sobrado nem mesmo os escombros, não só pela ação destruidora dos roedores, mas pelo que a luta contra os pequenos mamíferos não humanos pode gerar entre os que humanos são - um sentimento de identidade, além dos ressentimentos de classe. A guerra aos roedores servia, pois, como estímulo ao espírito patriótico, fortalecia o rei e ajudava a manter uma relativa ordem e paz social.


Como rei que era, não podia se descuidar deles. Então, subitamente, uma idéia lhe veio à mente. Em vez de enviar equipes profissionais, técnicos, burocratas pelo território à caça dos inimigos, por que não envolver cada súdito, a população inteira, numa guerra que afinal beneficiaria supostamente a todos? Sim. A idéia o estimulava. Seus olhos brilhavam. Quem sabe inventaria um método próprio, que mais sucesso teria do que todas as tentativas anteriores? Além de rei que era, poderia ainda, no futuro, quando neste mundo não mais estivesse, virar respeitável divindade, por haver dobrado fatalmente o inimigo que a todos sempre dobrou. Por que não havia pensado nisso antes? Os traços de seu rosto desenhavam linhas de satisfação e um sorriso rejuvenescedor agarrava-se aos cantos da boca. Os olhos estavam fulminantes. Por duas vezes passou a mão pela testa para certificar-se se um suor frio lhe escorria pela testa. Por que não havia pensado nisso antes? Claro. Pagar aos homens, a todos quantos pudesse, pelos ratos que conseguissem capturar. O reino vivia uma relativa prosperidade econômica e uma vitória como esta o levaria à consagração com que sempre sonhara: conquistar o amor ou o medo dos homens e um trono cativo pelos reinos do além. Seu rosto se iluminava.


Decretou que a partir da décima lua uma grande caçada, uma caçada coletiva, que deveria atrair não apenas um voluntário ou outro, mas multidões inteiras, se iniciaria por todas as terras do reino. Cada canto deveria ser devassado, todos os armários de todas as casas seriam abertos, revirados, os telhados seriam vasculhados, os porões iluminados, cada sombra perseguida, cada vulto inspecionado. A grande cruzada aos ratos. O estímulo seria em ouro, afinal não era pouca coisa o que estava em jogo. As famílias apresentariam às repartições oficiais o seu montante em ratos e levariam em troca, proporcionalmente ao peso, uma porção de pó de ouro. Era a promessa real. As multidões se alvoroçaram. Na verdade, não conheciam o que era o ouro, mas tinham ouvido sempre falar dele. O sonho do enriquecimento rápido mobilizou uma população inteira. Nos litorais, nos desertos, nas montanhas e florestas. No campo, nas aldeias, em todas as partes, crianças, velhos, homens, mulheres, doentes, se armavam de paus, cassetetes, venenos, armadilhas, para capturar o valioso adversário. O espírito da caça nunca seduziu a tantos. Parecia estar próxima do fim a espécie dos ratos, pavimentando à eternidade e à gloria divina a criatividade do rei, que nunca havia se sentido tão genial. Tinha a certeza da vitória, antes mesmo que a Grande Cruzada tivesse início.


Na véspera do grande dia, uma série de festividades animou o reino. O nome do rei corria de boca em boca. Todos faziam apostas, dançavam, cantavam e bebiam. Havia uma comoção nacional. Estavam felizes e ansiosos. Trocar ratos por ouro era algo em que realmente nunca haviam pensado. Mas fosse como fosse era uma oportunidade única, para que alguns mudassem seu destino. A partir do aparecimento da lua que, naquela noite, estaria a clarear o país inteiro e viria pela madrugada, começaria a campanha que poria fim a um longo capítulo da história do reino.


O rei recolheu-se aos seus aposentos. Estava feliz como nunca. O coração batia mais forte do que normalmente o fazia. Não conseguia pensar em outra coisa, além da grande guerra que estava por iniciar. Envaidecia-se. Não imaginava que pudesse ser tão criativo e genial. Sentia-se ansioso, porém. Um ligeiro formigamento percorria por todo seu corpo, como se um sangue novo, divino quem sabe, estivesse a percorrer-lhe rapidamente as veias. A sensação que sentiaera de que não era mais o mesmo e de que jamais o seria. Não se lembrava de ter vivido tão grande e satisfatória emoção. Conquistaria ele, depois de tantos anos, séculos, uma vitória que sempre parecera impossível?


Fechou a última janela do quarto, deixando a porta dos fundos entreaberta, para que a luz da lua pudesse adentrar pelo quarto, quando a grande hora chegasse. Deitou-se. Mas a sensação de formigamento se intensificava e o sono acabou por perder-se. Encostou-se na cabeceira da cama e se pôs a observar uma claridade intensa que começava a despontar por sobre os montes. Nunca havia experimentado nada igual. Sentiu uma coceira pelo corpo e os olhos ficaram um pouco embaçados, quando a luz da lua, que majestosamente se levantava, começou a clarear os objetos e móveis do quarto real. A visão prejudicada incomod-ou-o um pouco e ele resolveu ir até a janela. Mas uma sensação estranha acabou por prendê-lo à cama. Um forte cheiro de urina de rato sobiu-lhe pelas narinas. Imagina o rei que naquele momento, muitos homens, insones, já tenham saído para a guerra, que se promete vitoriosa, e que os inimigos já sentem a derrota iminente. O cheiro intenso faz o nariz arder e ao coçá-lo, estremece, pois nunca o sentiu tão frio e molhado. Terá apanhado um resfriado justamente numa noite tão importante para si? Resolve então apalpá-lo mais uma vez. Entra em pânico. O nariz, que esfregava, agora violentamente, estava terrivelmente modificado, mais pontiagudo, sentia-o pelo toque. Próximo dele, um grande bigode despontava como jamais imaginou que pudesse aparecer em um homem, que dirá em um rei. O corpo repentinamente se enche de um pelame grosso e denso. O pânico é total. Ao virar-se abruptamente para o lado uma cauda comprida e fina, embaralha-se por entre as pernas. Ao correr em busca de socorro, percebe o quão grande está a cama, e que duas outras novas pernas o ajudam a se locomover. Não compreende o que ocorreu. A voz não lhe sai, sente as orelhas enormes. Desce pelas pernas da cama e corre apressado, rente ao assoalho. Sorte ter deixado a enorme e pesada porta entreaberta, por onde atravessa. O sol já estava a pino, e a lua, muito branca, transparente, ainda resistia em deixar o céu. Uma criada do palácio, munida de um porrete, como quase todos os súditos do reino, aplica um golpe único e fatal no rato insolente que arrisca-se a andar pelos corredores reais. Naquele dia, os ratos sofreram uma perseguição implacável. Em pouco tempo, haviam desaparecido, e o rei, inexplicavelmente, também.



Marcos Vinícius.

sábado, 13 de junho de 2009

Os dias de Lúcia


Os dias de Lúcia


Exatamente às sete e meia, Lúcia entra pela porta de seu apartamento, como o faz praticamente todos os dias, de segunda a sexta-feira, sempre no mesmo horário. É uma rotina de muitos anos. É uma funcionária pontual, tanto no que diz respeito à hora da entrada, quanto da saída, mesmo porque a sua atividade profissional, o seu ofício diário, não requer horas-extras, ou permanência no local de trabalho além do horário estipulado no contrato de trabalho. O patrão é de uma família de tradição patronal, pois o avô do proprietário já era empresário à época, e ele conhece bem a legislação trabalhista, e faz questão de se organizar no sentido de evitar que seus empregados, estendam a sua jornada de trabalho diária, além do que rezam os acordos classistas, sindicais. Geralmente a funcionária sai pontualmente às seis horas da tarde, ao findar o dia, pega sempre o mesmo ônibus no mesmo ponto, no mesmo horário, motorista, e muitos dos mesmos passageiros, seus desconhecidos e eternos companheiros de viagem. No banco da frente, a mesma senhora de óculos, que faz questão de sentar sempre perto da janela, gosto pelo qual pode se dar ao luxo, por pegar o ônibus sempre no início da viagem, o senhor que vai sempre de pé, logo atrás do motorista, e o pirralho, que vai acompanhado da mãe, o qual já flagrou inúmeras vezes, colando melecas do nariz, debaixo do banco da frente. É sempre assim. Ao largar o trabalho, a primeira providência é realizar algumas ligações telefônicas para resolver assuntos pessoais, e na maioria das vezes, utiliza um telefone público, bem próximo ao ponto de ônibus. O tempo gasto nestas ligações, nunca excede os dez minutos, normalmente, é o tempo que leva para esperar sua condução. Por isto, chega, quase invariavelmente, às sete e meia em casa.



As circunstâncias da vida e algumas desilusões amorosas condenaram Lúcia à solidão. Normalmente, quando abre a porta, ao chegar, tem pressa em entrar, acender logo a luz, e ligar o som ou a TV, pois a sensação de romper o ambiente de escuro e silêncio, muito a incomoda. Suas mãos, ao largarem a maçaneta da porta, dirigem-se voluptuosas, apressadas em direção ao interruptor, como se não houvesse tempo a perder, como se o breu da sala, pudesse sombrear sua alma ou entristecer seu coração. As luzes se acendem, e quando há alguma correspondência por sob a porta, faz questão de verificar o remetente, quanto ao conteúdo, pode deixar para após o banho, a menos que seja algo que incite inevitavelmente sua pouca curiosidade. Fora isso, liga o rádio, e sem muito rigor seletivo, ou exigência musical, pois neste momento inicial, quando está a desvendar o lar, já deixado há horas, o que mais importa, é um ruído qualquer que possa preencher a sensação de vazio.



Não se sabe ao certo, se é o rigor profissional, com sua disciplina e horários, que fazem com que já em casa, Lúcia, tenha também uma rotina rígida e cronometrada, ou se ao contrário, são os hábitos domésticos, que a adequaram ao seu sistema de trabalho. Se pudéssemos colocar os dias de Lúcia, um por sobre o outro, como a película de um filme, veríamos como as mesmas tarefas e atividades sempre coincidem com os mesmos momentos e horários. É como se todo o tempo, fosse sempre o mesmo. Momentos eternizados pela repetição, como se cada passo, cada gesto, acompanhasse os mesmos tics e os mesmo tacs do relógio suntuoso do fundo do corredor que dá acesso aos quartos. Momentos que trazem a herança de ontem, e a quase certeza, do que pode vir a ser amanhã. Com algumas luzes acesas e o rádio ligado, prepara-se para o banho, pelo qual nutre um sentido quase sagrado, como se este fosse um ritual de purificação ou passagem, é quando se livra do arquétipo do trabalho, de seu padrão profissional, uniforme, quando deixa para trás o bafo das ruas, os fungos e bactérias dos assentos que precisou usar ao longo do dia.


Após um bom banho, realmente, se sente outra pessoa. E de fato, praticamente o é. A água quente e poder livrar-se das vestimentas que usou durante todo o dia, lhe proporcionam uma inigualável sensação de alívio e prazer. Após o banho se enrola na toalha e vai até a cozinha, às vezes, mesmo, até sem ter o que fazer, é um antigo hábito, como se necessitasse não só de fazer mais um reconhecimento dos cômodos do apartamento, para certificar-se que tudo estava normalmente, mais uma vez em ordem, mas também para que pudesse andar um pouco, livre das roupas escuras e pesadas que compõem seu uniforme de trabalho. Quem sabe, talvez, ainda nutrir alguma fantasia, guardada nos recônditos de seu subconsciente ou do velho lar, a lembrança de algum amor passado, o despir-se sensual, ante o amante que já não tem mais, ou quem sabe, algum belo vizinho, que possa estar a bisbilhotá-la, por sob as franjas das cortinas.


Volta mais uma vez ao banheiro. Antes de vestir a camiseta surrada, destas de se usar em casa, que sempre proporcionam um grande conforto, dá mais uma passada ao espelho. Joga os cabelos para trás, depois, repousa-os sobre os seios, para ver o quão de erotismo ainda pode tirar da sua face um pouco cansada. Apalpa os quadris, depois, suavemente, corre os dedos por sobre os seios, que se arrepiam repentinamente, suas pálpebras, chegam a abaixar, seus olhos negros, por poucas frações de minuto, parecem boiar, vagar como nau perdida em alto mar, mas o estado de semi-êxtase se rompe com a cantoria do vizinho do apartamento de cima, que normalmente, neste mesmo horário, preenche não só os espaços coletivos do condomínio, mas também dos apartamentos mais próximos com sua voz estridente de taquara rachada. Não há tesão que resista, ainda mais se tratando do mal-educado vizinho, que faz sempre questão de hostilizar suas raras intervenções ou falas nas assembléias dos moradores. O vizinho é um tormento, do qual ela adoraria poder se livrar. Pega bruscamente a camiseta, veste-a, fecha a porta do banheiro, para ver se isola um pouco o desagradável ruído e entra em seu quarto.


Abre a porta do guarda-roupa onde ficam os perfumes e cosméticos. Há uma grande variedade deles. Loção pós-banho, fragrâncias variadas, óleos, cremes, hidratantes, esfoleantes, perfumes, pomadas, formando um grande acervo de frascos, vidros, arranjos, potes, das mais variadas cores ou marcas, todos organizados sistematicamente, em seus mesmos lugares, milimetricamente posicionados. Tem dias, em que faz uso de praticamente todos eles. Não só pelos perfumes ou pelo conforto que os produtos podem lhe proporcionar, mas pela rara sensação de prazer que tem ao passá-los pelo corpo, é quase uma forma de massagem, excitamento, auto-conhecimento, um contato consigo mesmo, que a correria do dia a dia e as demandas do trabalho, quase impossibilitam. Além de ser ainda um bom exercício de vaidade, pois Lúcia se acha bela. Sente-se também, de certa forma, ungida, cidadã, na medida em que se vê como inserida no mercado de consumo, por guardar uma verdadeira coleção de marcas e nomes consagrados no mercado. Pensando bem, são muitos os seus conhecidos, ou colegas que não teriam as condições de manter um arsenal químico como os seu. Sente-se aliviada, e mesmo, privilegiada.


Após o ritual, que é repetido diariamente, de segunda a segunda, sempre ali no mesmo horário, no mesmo quarto, vai então, até a cozinha, fazer um breve lanche. Lúcia gosta de se vangloriar de comer pouco, não é quem se possa chamar de gulosa, muito antes pelo contrário, é bastante comedida em seus hábitos alimentares. Há anos mantém uma dieta bem equilibrada, evitando massas, gorduras e refrigerantes. Sempre acreditou que dessa maneira, pudesse manter a forma, e ganhar um tempinho a mais na linha da vida. À noite, quase não come, além deste pequeno lanche após o banho. Às vezes, toma um suco, um copo de leite ou achocolatado, torradas, biscoitos, pães e broas, quanto aos doces, apenas em raras ocasiões, dá-se ao prazer de degustá-los. Em raros momentos se excede no pecado capital da gula, o que normalmente ocorre, quando vai a festas de finais de ano, aniversários, na casa de amigos, ou em qualquer outra comemoração ou evento, em que não precise pagar. Não que seu salário não lhe permita manter uma alimentação saudável e satisfatória, mas sente-se orgulhosa por aproveitar bem as oportunidades de ocasião. E acredita que isto não afeta a qualidade se seu regime, por que não é lá dessas pessoas muito sociáveis, que possuem uma longa lista de amigos, para fazer dela uma freqüentadora assídua de festas, bares ou restaurantes. Os contatos sociais, fora do ambiente de trabalho, nos últimos anos, vêm se limitando mais a alguns amigos virtuais, conhecidos em sites de relacionamento, ou em salas de bate-papo, onde Lúcia perde às vezes, inúmeras horas de seu dia, principalmente às noites, nos finais de semana e feriados. É praticamente um vício. A impressão que se tem é que tanto o banho, quanto a massagem com os cremes, ou o lanche são sempre um pouco, inconscientemente acelerados, para que no final das contas, possa usufruir um tempo cada vez maior diante da tela de seu computador. Come apressadamente seus biscoitos, lava uma maçã, que não tem que necessariamente ser toda ingerida na cozinha, pode acompanhá-la pelo apartamento, e dá a última golada em seu suco, como se tempo não mais tivesse para esperar. Levanta-se de uma vez, e vai até o quarto, onde fica o PC.


Liga as tomadas, que ficam todas desplugadas em sua ausência, arranja os fios, ajeita o tapetinho do mouse, sopra um restinho de poeira por sobre o teclado, resíduos de um biscoitinho de queijo, que não resistiu em comer, na noite de ontem, coisa que normalmente não faz, pois teme danificar o equipamento, mas na noite passada não teve como evitar, pois a conversa calorosa que travou com seu namorado virtual, que diz viver na Europa, fez com que sonhos e fantasias, despertassem uma ansiedade tal, que não tinha como contê-la não fosse umas rosquinhas e uns biscoitinhos de queijo, que comprou no mercado ao lado da empresa em que trabalha, onde passa de vez em quando para comprar pães integrais ou alimentos dietéticos. Às vezes, ela própria, tão cuidadosa com seu patrimônio material, fica sem entender como pode cometer tamanho pecado ou delito. Afinal, sabe que farelos caídos por entre as teclas podem em última instância, comprometer o bom funcionamento de sua máquina. Mas a conversa ´caliente` que a absorvia, ao mesmo tempo, que despertava uma necessidade fisiológica qualquer, que acabava por descarregar no ato de comer, não permita que tirasse seus olhos vidrados, da tela do monitor de última geração que acabou de adquir. É aqui onde passa quase a totalidade de seu tempo, quando está em casa. Diante da tela. E é justamente, dentro de casa onde passa a maior parte de seu tempo, quando não está no trabalho. Nota-se que fora o trabalho, e a noite de sono, as horas gastas no computador são as que mais ocupam sua vida. Isso já há alguns anos.


Todos os dias é praticamente a mesma coisa. Aperta o botão, e ao captar o som da máquina ligada, tem a sensação de estar dando os primeiros passos para penetrar em outra dimensão, arranja a postura do corpo, como se estivesse prestes a realizar uma longínqua viagem, prepara-se, seus olhos fixam-se prontamente na tela, quando esta se ilumina. Lúcia não mais se atreve a virar para os lados. Está inerte, à abertura enfim, de sua esperada navegação pela internet. Os olhos de Lucia adquirem certo fascínio, estão brilhantes, estatelados. A luz excessiva do monitor de tela grande deixa seu rosto pálido, e os ligeiros sulcos em sua face, salientados. Mas é o momento esperado, enfim, quando poderá finalmente navegar, acariciar o pequeno mouse, bater ansiosamente seus dedos sobre o teclado, cujas letras, já começam a se apagar, o que não importa, pois seus pequenos dedos, como pequenos cérebros, memorizaram, quase sem chance de errar, a posição exata de cada letra, número, sinal, cada acento ou ponto. Locomovem-se sobre as teclas, como se fossem estas, sua antiga morada. Caminham por sobre elas, com uma desenvoltura e velocidade, que chega a impressionar. Inicia então a rotina diária, o seu plano de vôo, a sua rota de navegação traçada. Verifica sua caixa de correio, onde a maioria absoluta da correspondência é de anônimos, scraps, ou textos de auto-ajuda, de teor religioso, recheado de belas imagens, com fundo musical, feitos em Power Point. Sempre os recebe, mas dificilmente os lê até o final, mas os repassa imediatamente assim mesmo, para a maioria dos contatos de sua lista de emails. É sempre assim.


Aqui, pode-se mesmo afirmar que Lúcia perde a noção do tempo, como raramente acontece ao longo de seus dias, seja quando está no trabalho, ou dedicando-se a qualquer outra atividade fora do mundo virtual. Às vezes, se distrai a ponto de passar alguns minutos do horário que habitualmente faz questão de desligar a máquina para dirigir-se à cama. Neste aspecto, é disciplinada, pois não tolera a idéia, seja lá por que motivo for, de ver-se obrigada a reduzir o tempo de sono diário, que considera lhe ser de direito. Sabe, pela experiência dos já muitos anos que carrega às costas, que pouco tempo que subtraia ao seu sono, irá lhe trazer grandes prejuízos no dia seguinte, como uma dor de cabeça, que lhe traz uma baita mal humor, um raciocínio provavelmente um pouco mais lento, alguns esquecimentos, que considera insuportáveis, e por fim, uma sensação de mal estar, da qual sabe que poderá se safar, apenas no dia seguinte. Apesar de ficar por horas, em suas peregrinações pelas vias telemáticas, pelas páginas e links sem fim, faz questão de ser pontual, como se um último gesto de disciplina do dia, ao deitar-se e apagar as luzes do apartamento. Geralmente, nem minuto a mais, nem minuto a menos, às onze horas da noite.


Sentada diante da tela, Lúcia, vive uma contradição de sensações. Enquanto sente-se rodeada de informações e contatos, pois faz questão de se interagir com blogueiros, participar das grandes correntes de e-mails, trocar mensagens de auto-ajuda, militar em diversas comunidades de sites de relacionamentos, sente-se também, no casulo, no claustro do quarto, uma solidão arrebatadora, da qual tem a forte impressão de que não poderá se livrar, e de ser prisioneira de si mesma. Estranha sensação. Como se a vida, outro destino não tivesse que lhe apresentar. Mas evita perder-se neste tipo de pensamento, pois sabe bem o desconforto que ele lhe causa, além de lhe tomar o pouco tempo que tem para fazer o que acredita ter de ser feito todas as noites, diariamente, metodicamente, em seus poucos momentos de folga.


Lúcia recorda-se de quando se iniciou por esta saga pela internet. A princípio, gostava de coletar informações, saber dos próximos capítulos da novela, que sequer assiste, inteirar-se das fofocas dos ídolos, uma receita de bolo, a temperatura, a previsão do tempo, imagens dos lugares que pretende conhecer um dia, e daqueles que sabe que jamais conhecerá, fazer amizades, comunicar-se com os que do outro lado do mundo se encontram, em tempo real. Era o mundo a lhe abrir as portas. Mas com o tempo, os gostos e preferências de nossa personagem foram se alterando. Lúcia passava a descobrir alguns novos macetes que o uso diário das ferramentas passava a lhe proporcionar, foi adquirindo algumas habilidades, e a cada dia, novas e intrigantes descobertas. Novas idéias. Se estava mesmo sozinha em casa, e não havendo quem pudesse testemunhar a façanha, por que não poderia então, finalmente, fantasiar, fazer-se passar por quem nunca foi ou haveria de ser? Por que não falsear? Emitir opiniões, que além das suas próprias, outras muitas que nunca talvez tenha pensado, outras tantas que apesar de imaginar, nunca lhe passou pela cabeça divulgar? Por que não aproveitar então, a ocasião, vasculhar vidas alheias, devassar privacidades? Sim. Lúcia sentia-se vaidosa e dona de algum poder. Poderia, pois, conhecer de perto alguns universos pessoais, observar sem ser observado, como se de uma entidade superior se tratasse, podendo acompanhar os passos dos homens, quem os acompanha, por onde passam e o que fazem pelo caminho. E mais. Deixou de lhe bastar, com o tempo, a simples vigília, o rastreamento. A novidade e o exercício do poder tornaram-na ambiciosa. Queria testar sua criatividade e suas habilidades, alterando agora, as vidas, as realidades e contextos, dos outros.


Assim Lúcia o fez. Criou perfis e identidades falsos. Adulterou, burlou, corrompeu, aplicou pequenos golpes, tentou decifrar senhas. Copiou aqui, colou acolá. Potencializou como nunca, sua ação criadora. Sentia-se poderosa, e achava graça em poder manipular os homens, à distância, e em algumas ocasiões, e em certas medidas, alterar-lhe o destino. Afinal, pôde, invisivelmente, criar atritos entre casais, alguns novos, outros nem tão novos assim, vizinhos, parentes, conhecidos e desconhecidos, alguns embaraços no trabalho daquele cobiçado namorado da vizinha do apartamento ao lado, alguns desentendimentos entre familiares, que sempre se deram tão bem. Resolveu alterar a ordem e o aparente rumo natural das coisas. Estava vaidosa. O mundo cujas portas lhe abriam, parecia agora, entregar-lhe algumas chaves, desvendar-lhe alguns mistérios, e por fim, pousar-lhe sobre as mãos. Mas como em todas as noites, apressava-se ao se aproximar às onze horas. Era o fim do dia. Antes de desligar o computador, enfiava os dedos por entre as pernas e masturbava-se num gemido silencioso. Depois se levantava, ia até a cozinha, abria a porta do armário, e freneticamente, levava um comprimido à boca. Não se passavam quinze minutos, antes que começasse a dormir, até o dia seguinte, às seis.



Marcos Vinícius.

sábado, 6 de junho de 2009

Amor digital




Amor digital


Fazia três meses que se conheciam. Mais um destes relacionamentos modernos, resultado da procura por príncipes encantados e princesas dos sonhos infantis, que ainda perturbam a mente dos jovens e velhos, pelos bilhões de sites, agências de encontros, namoros, que se encontram tão fartamente no mundo virtual. Afinal, não eram os primeiros contatos que um ou outro faziam; na verdade, já haviam tido a oportunidade de trocarem e-mails com vários outros pretendentes, mas nada como agora, entre os dois. Os contatos anteriores pareciam frágeis, insignificantes, ante as novas impressões que são agora trocadas. As listas de contatos de um e de outro, caíram no esquecimento. Um tornou-se a lista do outro. Aqueles versos trocados, milhares de rimas de amor, imagens e fundos musicais edificantes, com os contatos anteriores, pertenciam já ao passado. E embrenharam-se, agora, em uma incessante troca de palavras, olhares e afagos digitais, praticamente diários. O círculo se fechou. O fluxo de mensagem entre as caixas de correio é cada vez mais freqüente. São muito eficazes os novos filtros de busca utilizados pelas grandes empresas, e neste caso, parecem ter realmente acertado. Os perfis pareciam feitos um para o outro. Na medida em que trocavam suas confidências diárias, suas imagens, não imaginavam mais a possibilidade de separarem-se, mesmo separados estando. Nunca talvez, os dados tenham se cruzado com tanta perfeição. O serviço parecia ter oferecido o impossível, acreditavam terem encontrado, enfim, suas almas gêmeas, seus pares perfeitos. Estavam admirados, encantados, em estado de graça, pelo novo achado, pela descoberta. Como não havia aparecido um para o outro há mais tempo? Por que o tempo fez-lhes tanto esperar? Com intervalos menores do que se possa imaginar, consultam não apenas suas caixas de correio eletrônico, mas seus perfis em comunidades diversas, e literalmente vasculham, rastreiam a vida um do outro. Sabem de cor os nomes de todos os amigos, dos amigos dos amigos, que também compartilham, participam dos mesmos grupos, e dos mesmos tópicos de discussão, um a reafirmar o outro, a abrir-lhe o caminho ou aparar a retaguarda. Era uma aventura nova e curiosa, para ambos. Ouviam músicas juntos, discutiam-nas, liam artigos, crônicas, assistiam a vídeos, se interagiam da forma como ainda não testemunharam os tempos e a história. Mensagens de textos, arquivos, figuras, beijos, torpedos, paraísos, num ir e vir estonteante, que acabou por entorpecer aos dois. Entregaram-se. São cúmplices, enfim. Era noite de sábado, ela um copo de vinho, ele uma garrafa de cerveja. Conectam-se. Ela está ansiosa, ele afoito. Acertam-se diante o teclado. Ela apaga a luz. Vêem-se pela tela escura. Ele geme seu nome. Ela se faz obscena. Gozam os dois, entre léguas intransponíveis e sem se conhecerem de fato.



Marcos Vinícius.