sábado, 27 de julho de 2013



Assim como há ateus, apartidários, anti-isto, anti-aquilo-outro, eu sou anti-futebol. Sabe aquele sujeito que já nasceu detestando o futebol? Pois é. Sou eu. Nunca me interessei por campeonatos, ligas, times, torcidas, jogos ou qualquer coisa do gênero. Ah... Mas nem a Copa do Mundo, com o Brasil na final? Não. O melhor a fazer neste dia é aproveitar as ruas vazias, andar de bicicleta, sentar no meio da avenida, pular, cantar, mas ficar sentado assistindo a partida? Isto nunca. E muito provavelmente, no dia estarei torcendo pelo país adversário, seja ele qual for. Não suporto a pergunta: Para que time você torce? Atlético ou Cruzeiro? Para nenhum oras, torço contra os dois e qualquer outro que esteja em campo. Para muitos, é um sinal claro e evidente de alguma anormalidade. Há anos, um amigo me sugeriu que respondesse que torcia pelo América, porque era um time, à época, muito pouco em evidência, e aí teria paz, e assim o fiz por muito tempo, até que um dia o time andou classificando-se em campeonatos. Sempre havia quem comentasse. E o seu América hein? Desesperado, então passei a dizer... Enganei a todos vocês, nunca torci para este time ou para qualquer outro, detesto futebol, sou anti-futebol, não me encham a paciência. Não são todos os dias em que estamos com sangue de barata. Mas desde ontem, fui colocado sob tortura intensiva. Não sei que diabo de campeonato é este que ocorreu na cidade ontem, e também não faço a menor questão de saber, onde o Atlético foi o vencedor, quando acabou a minha paz, o meu sossego. A cidade transformou-se em um grande pandemônio. Desde então, buzinas, gritos histéricos e estridentes soam por todos os lados, cortando a madrugada adentro. Vizinhos berrando como estivessem à morte, estouros, bombas e rojões, como se já não bastassem as bombas de gás lacrimogêneo, que agora conhecemos tão bem, lançados a torto e à direita, pela polícia durante todo o mês de junho. Imagina que incrível seria se o brasileiro mobilizasse toda esta força e energia para manifestar-se por um país mais justo e igualitário. Hoje cedo, já pela manhã, o buzinaço continuava, hinos do clube ressoavam em todos os automóveis, parcela da população mantém-se hipnotizada. Um inferno. A televisão, o rádio, as ruas, o facebook, em todos os cantos, não se fala outra coisa. Acabo de ver que a Praça Sete está tomada de torcedores fanáticos, com suas bandeiras em preto e branco, descoloridas, festejando uma vitória, que em última instância, não é sua. Quase enlouqueço. Ainda agora, quando escrevo este desabafo, um alto falante potente, estrondoso, com a mesma gritaria, acaba de cruzar a minha rua. Por fim, cansado, já irritado com o ruído que não cessa nunca, resolvo ir até um restaurante mais isolado, onde talvez pudesse livrar-me deste vandalismo futebolístico. Andei quilômetros, consegui enfim, um canto sossegado, vazio, um restaurante, onde além de mim, apenas um senhor tomava sua cerveja na mesa ao lado, quieto e reflexivo. Maravilha, era tudo o que eu queria. Finalmente, relaxei, e descontraído e feliz, aparentemente livre da euforia infernal, sem perceber, depois de pedir o almoço para a garçonete, sorri para o senhor, meu vizinho de mesa, pois a tranquilidade voltara a reinar e eu respirava aliviado. Foi a senha. Ele se levantou, saiu de onde estava, e do alto da sua experiência, já com mais de cinquenta anos de idade, aproximou-se para me contar, enquanto eu almoçava, sua longa história de torcedor, para enfim, tentar me convencer do quanto estava feliz e o do dom que tem o futebol de aproximar as pessoas.


Marcos Vinícius.

terça-feira, 23 de julho de 2013

Para onde?



Há quem diga que o século XXI e o Terceiro Milênio só se iniciaram de fato, do ponto de vista dos tempos históricos, com os ataques à Nova York em 2001. Sim, quando as explosões e as mortes ocorreram em solo americano, o mundo assistiu estupefato ao que poderíamos chamar de sinal dos novos tempos. Todos ficaram surpresos, atônitos, com um ataque que, gostemos ou não, foi espetacular. Não há quem se esqueça daquelas trágicas imagens. Sim, uma nova era se descortinava. Outra vez, a história nos pega de surpresa. Quem poderia imaginar, até bem pouco tempo atrás, que as massas se levantariam, como vem ocorrendo em todo o planeta? Milhões de homens e mulheres ocupando ruas, avenidas, praças e palácios, manifestando-se contra os desmandos dos poderes, lutando contra a opressão imposta pelos paladinos da chamada democracia, que mais não é que um desgastado jogo de cena. O modelo econômico que hoje nos rege levou suas contradições intrínsecas à radicalidade. O mundo nunca foi tão injusto e tão desigual. O fosso entre os de cima e os de baixo nunca foi tão profundo e as diferenças nunca foram tão colossais. Os chamados noventa e nove por cento resolveram gritar, o povo indignou-se, o gigante acordou. O sistema, ao levar suas contradições aos extremos, escancarou-se. O rei ficou nu. As mídias digitais, as novas tecnologias de informação e comunicação, tornaram o mundo menor, mais auto-perceptível, com fronteiras mais porosas, possibilitando não apenas a troca de informações, mas também de ideias e sensações. Em todos os lugares, o povo se levantou. Nos países árabes, em toda a Europa. Os estudantes chilenos quase reinventaram a política, onde parecia não mais haver alternativas. O Brasil convulsionou-se. Povos de todas as cores e nomes, num turbilhão de vozes e cantos em cada canto do planeta. Trabalhadores, estudantes, desempregados, vítimas sociais, Anonymus, Black Blocks, explorados e excluídos de toda ordem. E agora? Até a pouco tempo atrás, imaginávamos, que caso houvesse uma revolução popular um dia, esta teria à frente algum partido político, ou algo do gênero, mas hoje, não é bem isto o que vem dizendo uma parcela significativa de jovens que ocupam as ruas. Surge a ideia da horizontalidade. Referências à organização partidária, muitas das vezes, podem ser alvo de hostilidades. O que fazer? Que caminhos devemos trilhar para que o potencial e o sangue das ruas não seja desperdiçado e que possam levar a humanidade à um salto de qualidade no sentido da justiça social, distribuição de renda, uma democracia real e à um mundo, como diriam os zapatistas, “onde caibam vários outros mundos”? Se não quisermos desperdiçar esta grande oportunidade histórica, a grande porta que se apresenta aberta, teremos que pensar seriamente nas formas de organização e formação popular, mantermos viva a chama, para que tenhamos motivos para celebrar, agora sim, uma triunfal entrada no Terceiro Milênio.

Marcos Vinícius.

segunda-feira, 15 de julho de 2013

O achado

O achado



 Alice tamborilava seus dedos sobre a mesa, assim que terminou o último horário de aula antes do recreio. Assim que o sinal soou, as colegas correram para o pátio enquanto ela ficava ali ainda a pensar sobre o que o professor acabara de dizer. Naquele instante, não possuía pressa. A mão avançou sobre o lápis, abriu uma folha branca no final do caderno, e pôs-se a arriscar alguns versos. Imediatamente seus dedos corriam ligeiros sobre o papel, e uma estrutura modelada de palavras, em grafite, tomava forma, enquanto Alice repetia-as em voz alta para si mesma, para que pudesse perceber melhor sua sonoridade. Ainda criança, os versos já lhe encantavam. Escreveu uma estrofe atrás da outra, e elas lhe saíam espontâneas, repentinas, com pressa de chegar, aparentemente já prontas dentro da autora, que mais não fazia do que registrá-las no papel. Lia outra vez, e gostava do que ouvia. Em poucos minutos, o texto ficara pronto. Arranca a folha do caderno, dobra-a e a enfia no bolso. Não era para ficar ali exposta sobre a carteira à vista de algum colega mais curioso. Era uma aluna aplicada, gostava das aulas de literatura, ciências e geografia. Não apenas por haver ali os professores de sua preferência, mas porque eram as matérias que mais lhe traziam admiração. Gostava de ler os poetas e vibrava ao descobrir quão grande era o mundo, com suas ilhas, continentes, rios, oceanos e estrelas, ah, como amava admirar as estrelas. Como outras garotas da sua idade, onde o brilho das cidades e metrópoles ainda não as embaçara de vez, e podiam sempre mirá-las, viam nelas sinais dos amores prometidos, das paixões que ainda desfrutariam e das fortunas que lhes proveriam o caminho. Nas aulas de ciências, maravilhava-se com a grande diversidade da vida, que se espalhava pelo mundo e pelos tempos afora. Vivia distante da cidade em um pequeno povoado, e via nas leituras, mesmo ainda em tenra idade, uma grande janela para os lugares e épocas onde nunca pudera ir. Era sonhadora, generosa e tinha planos. Queria tornar-se uma grande cientista, não apenas para desvendar os grandes mistérios do universo, que os homens ainda não conseguiram decifrar, como usar seus conhecimentos para melhorar o mundo e salvar as pessoas. Era sincera em seus sentimentos e convicções e, além do mais, achava-se apaixonada. Não era um sentimento que já havia experimentado, não naquela intensidade. Alguns garotos já lhe despertaram a atenção, achara-os bonitos e carismáticos, mas nada que lhe fizesse o coração saltar aos pulos, como diante dos olhos daquele rapaz. Era algo novo e as maçãs do rosto lhe coravam quando o via passar ou ele se aproximava. A soma de todas as sensações e vivências faziam de Alice uma garota feliz.


Já era tardezinha quando Alice desgruda-se de suas amigas após as aulas e segue para casa. Vai andando sozinha, e uma série de lembranças vem se descortinando à frente, as falas dos mestres, o namorico da amiga que senta ao lado e as fofocas entre as colegas de sala já do lado de fora da escola. Vai sorrindo quando lembra-se mais uma vez do garoto e dos versos que levava no bolso. Senta-se sobre a raiz de uma árvore frondosa que se colocava ao caminho e, afoitamente, desdobra o papel que já segurava entre as mãos. Outra vez lê aqueles versos, primeiro silenciosamente, depois em voz alta para certificar-se de vez da musicalidade do texto. Assim que termina a leitura da última estrofe, um pássaro enorme do peito azulado pousa sobre um dos galhos da árvore e canta para ela. Apesar de viver já há um bom tempo naquela região, ainda não ouvira canto assim. Era um canto forte, alto, lindo, e a sensação que tivera era que cantava não apenas para si, mas para o planeta inteiro, e sentia que o pássaro lhe dera canção aos versos, como se a leitura do poema e a música daquela ave fossem uma coisa só. O peito se enchia de alegrias. Imaginava que onde quer que estivesse, ao ler novamente aquela última estrofe, aqueles sons lhe viriam à mente. O pássaro olha para Alice e passa a observá-la. Tem os olhos fixos, grandes. Em seguida, estica o pescoço, sacode-se, e estica suas duas compridas asas. Alice espanta-se e o pássaro põe-se a voar. Sobrevoa o local, quase em círculo e pousa novamente, agora em outra árvore, em frente, e continua a observá-la. Alice entrega-se outra vez aos seus pensamentos. O sol escondia-se atrás dos montes e uma sombra escura escorria sobre o povoado. A noite havia chegado. Quase prestes a se levantar, Alice pega do chão um galho seco, espalha com ele as folhas próximas de seus pés, e prepara-se para gravar ali uma idéia em palavras que lhe havia ocorrido, um último gesto, antes de abandonar o local. Fricciona o graveto ao chão e começa a arranhar as primeiras letras. Eram letras bem desenhadas, e ali mais valia a arte da caligrafia do que o conteúdo que pretendia gravar, que se resumiam nas iniciais de seu nome e o nome do amado, o que não havia feito no pedaço de papel. Esta superfície de terra era mais apropriada para o feito, pois podia exagerar no tamanho dos caracteres, dar-lhes formas novas e, ao despedir-se dali, poderia apagá-los com os pés, para que não ficassem vestígios do amor não declarado, uma vez que não tinha pretensões de tornar público os sinais de uma estimulante paixão ainda não correspondida. Após riscar as duas letras no chão, amarra-as com um grande coração, envolto de folhas secas e torrões de terra. As letras são gravadas com força, com profundidade, Alice desejava que a Terra fosse testemunha do seu amor, a grande mãe, que não iria traí-la, nem zombar de seu sensível coração. Ao levantar-se, os últimos feixes de luz solar já haviam desaparecido por completo, (ofuscando o desenho). Leva os pés sobre ele, para apagá-lo. Ao esfregar a terra com as pontas dos dedos, uma faísca luminosa, azulada, desponta sob suas sandálias. Teria a Terra ouvido seus apelos, seria uma resposta, a benção divina que consagraria aquele desejo? Alice fica eufórica. O mundo, provavelmente, conspirava a seu favor, e o manto do planeta havia se tornado cúmplice. Agacha-se para ver mais de perto e o brilho intenso que vinha do chão faz arder os seus olhos. Era um azul maravilhoso, uma coisa mágica, um pó fluorescente, que deixou Alice em êxtase. Apalpou-o, espalhou-o sobre os vestígios de suas iniciais que ainda não haviam se apagado, e se enche de esperanças. Que luz seria aquela? Põe-se de pé, e fica de boca aberta, observando, sem palavras, as duas iniciais que brilhavam no chão.


Após certificar-se que não havia ficado qualquer sinal de seus nomes, e nem das tortuosas linhas do coração, Alice volta a lhe esfregar os pés e observa que apenas a luz azul continuava a se desprender do solo. Resolve, então, mostrar a novidade para as amigas mais próximas para que, juntas, pudessem resolver o que fazer com aquilo e, quem sabe, poderiam também testar as possibilidades amorosas de cada uma delas, sugerindo que riscassem também seus nomes no chão, para ver qual dos amores traria um brilho mais intenso, se é que todos eles contassem com a mesma sorte. Na idade que tinham, todas elas levavam a arder alguma paixão no peito. Corre até a casa, seus pais ainda não haviam chegado, toma um banho rápido, pega um pedaço de pão que havia sobre a mesa da cozinha e posta-se diante do espelho. Estava mais bonita naquele dia. Fica alguns minutos a se contemplar. Tinha os olhos cheios. Olha-se de frente, vira-se, observa cada detalhe das formas. Retira os cabelos do rosto, enrola-o, contorce-o, e prende-o sobre a cabeça, tem o rosto totalmente descoberto. A conjunção dos olhos e a boca, mais o vermelho das faces, proporcionava-lhe uma beleza única. Solta novamente os cabelos, e ali se revela a mulher quase pronta que nasceria dela. Mas a meninice ainda não havia lhe deixado de vez.


Antes de que os pais chegassem e colocassem algum impedimento à sua saída, corre em disparada para as casas das garotas, para mostrar-lhes a novidade. Em poucos minutos, reúne um pequeno grupo delas e leva-o até a árvore frondosa, sob a qual uma luz azulada que irradiava do chão quebrava a monotonia da noite, deixando em segundo plano o brilho das estrelas, no coração daquelas meninas. Ficaram todas admiradas com o que viam, e como ver só já não lhes bastasse, após rabiscarem seus nomes e os de seus pretendentes sobre o pó brilhante, escavam mais a terra, para arrancar-lhe mais luz. Estavam em festa, e brincavam. Jogavam o pó umas sobre as outras, esfregavam-se nele, era um encontro radiante. Sem qualquer explicação sobre a descoberta, as garotas começam a especular, sobre como a novidade poderia alterar os seus destinos. Uma delas dizia: Acho que mais que muito amadas, nos tornaremos belas princesas, pois quem sabe não encontramos uma fonte inesgotável de riquezas que possa lá valer mais que o ouro? Já até me vejo em castelos, com jóias de todas as cores e brilhos, e não haverá no mundo mulheres mais cobiçadas que nós. Outra afirma: Ora, mesmo que não cheguemos a tanto, pelo menos, quem sabe, algum conforto poderemos proporcionar para as nossas famílias, pois uma coisa é certa, de alguma preciosidade se trata.Nunca vi tamanho brilho irradiando em farelos. A menor delas, que ouvia calada, desafia: Mesmo que não tenha valor algum esta coisa, uma certeza podemos ter - se jogarmos este pó por sobre nossas casas, teremos, para reconhecimento internacional, a aldeia mais bonita do mundo. Acho que já não é pouco. As meninas riam da inocência manifesta da caçula. E ficam ali conversando, especulando, brincando, sonhando, com riquezas, amores, com o futuro promissor que teriam. Ali permanecem em transe, até que uma delas lembrava às outras de que há muito havia passado a hora de irem para a casa, era tarde da noite. E seguem todas para seus lares, carregando consigo uma euforia indisfarçável e uma sombra azulada.


Em um vilarejo daquele tamanho, segredos desta natureza não eram para ficar guardados por muito tempo. Indagados pelos parentes porque naquela noite haviam demorado tanto para chegar à casa, os filhos foram contando a história, que foi se propagando de família em família, até que um grupo de homens resolve ir conferir o caso contado pelas crianças. Que luz misteriosa seria aquela. Alguns vizinhos passam chamando uns aos outros para irem até o local. À medida que iam chegando, ficavam paralisados, boquiabertos com a luz azul radiante, aproximavam-se, apalpavam os grãos luminosos, e olhavam uns para os outros, para ver se alguém podia explicar melhor o que seria aquilo. Havia em quantidade suficiente para que todos pudessem apanhar um bocado para si. Houve quem juntasse pequenos montículos e os levassem para a casa, para que todos pudessem ver a luz misteriosa que acabara de chegar aos moradores da vila. Era o assunto em quase todas as casas. A notícia se espalhou muito rapidamente. Durante a madrugada, crianças e adultos brincavam com o pó na intimidade dos seus lares. Quem sabe estivesse ali a redenção daquela gente, era o que muitos pensavam.


Na manhã seguinte, uma pequena multidão se aglomerou no local, todos queriam ver de perto a intrigante fonte luminosa. Os adultos e crianças disputavam a cotoveladas uma vaga mais próxima dos grãos azuis. Mas, naquele horário, com o sol espraiando sobre o vale, os pequenos grãos haviam perdido sua luz e o desalento era geral. Teriam tido um sonho, um delírio coletivo, a substância fora roubada enquanto dormiam, ou a luz havia se recolhido apenas temporariamente em respeito à luminosidade absoluta do sol que tudo clareia? Deveriam aguardar, então, a chegada da noite, para que pudessem certificar-se do que havia acontecido, se o sonho azul da noite passada haveria ou não de se repetir. Voltam todos a seus afazeres, e combinam retornarem juntos, quando o sol começasse a se esconder. Assim foi feito. Quando o dia vai a escurecer e as primeiras nuances da noite vem a assombrar-lhe o lume, a multidão outra vez de aglomera e ficam todos, atentos, atônitos, observando a luz que vai ficando a cada instante mais forte. Quando o véu da noite cobre o povoado, os seus moradores reúnem-se em torno da luz que lhes chegara, acreditavam, das profundezas da Terra. Todos queriam saber de Alice como fora a descoberta.


De início, a garota gostava de relatar o caso, contar sua história, omitindo, claro, os amores secretos, os corações e os nomes que haviam, por fim, revelado aquele fenômeno. Dizia apenas que esfregava, aleatoriamente, o graveto ao chão, quando a luz se fez. Contava que já havia lido sobre os minérios e os metais, mas que não conhecia imagem que pudesse se associar àquilo que viam. Todos queriam saber diretamente da garota, ouvi-la, como teria chegado àquelas pedras mágicas, iluminadas. Por fim, como eram muitas as pessoas que se aproximavam, todos fazendo as mesmas perguntas, com a mesma insistência, Alice começou a se cansar. Naquele dia, relatou o mesmo caso inúmeras vezes e certo esmorecimento já se esboçava em seu rosto fatigado. A euforia da noite passada já lhe perturbara o sono e esta noite não seria diferente.


Os homens, após muito observarem, tocarem, banharem-se naquele pó, começam a imaginar o que a sorte lhes proporcionaria dali para frente. Formavam um grande círculo em volta dos feixes azuis, onde debatiam suas expectativas e demandas e, sem que percebessem, o pássaro do dia anterior volta a pousar sobre a árvore, antes que o sol se escondesse de todo. Alice o vê assim que se aproxima. Os demais estavam muito preocupados em suas conversações e não deram por ele. Ele, do alto, com o pescoço erguido, observava a todos, mas estacionava seus olhos nos olhos de Alice. Ela mirava-o, interrogativa. Percebendo que a noite havia fatalmente chegado, o pássaro levanta voo, não sem antes inclinar por duas vezes a cabeça para mirar melhor a garota. Desta vez, não houve versos, e o pássaro foi-se, silenciosamente. Embaixo, os homens não paravam de falar. Alguém teve que organizar os debates, pois todos queriam expor seu pontos de vista ao mesmo tempo. Havia ali uma grande ansiedade. Alice chateava-se ainda mais. Por instantes, arrependera-se de anunciar a descoberta. Antes tivesse guardado apenas para si, feito segredo. Não teria passado por tanto interrogatório, nem causado tanta celeuma. Sabia, porém, que há segredos que não se guardam, principalmente quando se trata destes grandes mistérios que rodeiam a humanidade, onde não há como não compartilhar as dúvidas, curiosidades e anseios. Os raios azuis iluminavam aqueles rostos especulativos, enquanto emitiam suas mais variadas e díspares opiniões. O homem que agachava-se, próximo à luz, levantava o pó nas mãos, deixava-o escorrer entre os dedos e dizia: Nós somos um povo de sorte Iluminados. Este achado nos trará muita fortuna, penso que fomos eleitos. Muito não enriqueceram os homens, quando no passado descobriam o ouro? Muito nos enriqueceremos agora, com o ouro azul que brota por sob os nossos pés. Outro, empolgado, procura complementar o entusiasmo e a fala do homem: Sim, e como sabemos todos, fortuna traz também poder. Imaginem livrar-nos da condição de vila, e este pequeno povoado que somos transformar-se em um grande Império, de onde poderíamos conquistar o mundo. Faríamos todos parte de uma mesma elite imperial e do quase nada que somos tornaríamo-nos celebridades, e as portas da história se escancarariam para nós. Não é nada mal. Duas mulheres levantam-se e dizem que deveriam ter alguma cautela, pois como consideravam valiosa a descoberta, poderia também de nada valer. Era necessário relativizar as coisas, para que posteriormente não amargassem muita desilusão e frustrações. Não queriam ver depois os homens lamentarem por uma eternidade a enorme oportunidade perdida. Melhor talvez fosse chamar as autoridades para que, estas sim, em contato quase direto com as coisas da ciência, pudessem entender melhor, tentar traduzir o que por ali se passava.




Na terceira noite, quando as autoridades, prefeitos e o governador chegam ao local, encontram o povoado inteiro, todos os seus moradores ao redor da luz misteriosa. Não conseguiam desgrudar dali. O Secretário das Finanças é o primeiro a abrir a falação. Diz alegrar-se com o espírito empreendedor daquela gente, e afirma que logo depois que a substância fosse identificada, tivesse início sua exploração e comércio, e os lucros começassem a confluir aos cofres do governo e das grandes empresas, a população teria finalmente sua recompensa. O prefeito elogia a presteza daquele povo em informar-lhes da descoberta assim que esta é feita, e o governador promete mundos e fundos para aquela população agraciada que tivera a graça de receber o milagre à porta de suas casas. Uma mulher mais velha, com a pele enrugada e com grandes papas sob os olhos, agita freneticamente os braços e grita: Somos iluminados, os eleitos, os eleitos. Foi Deus. Foi Deus. Os homens entreolham-se, crédulos. O governador promete retornar o mais rápido possível, assim que estivesse concluído o laudo a partir das amostras que levariam. Antes de partir, porém, queria ouvir Alice. Esta encontrava-se abatida, os olhos estavam irritados, vermelhos, e a sensação de um cansaço incontrolável abatia-lhe o corpo. Alice fizera vômitos e não pode atendê-lo. Atrás do séquito das autoridades, ia aos tropeços, um bando de bajuladores, que disputavam espaço entre si, e rogavam benefícios e piedades. A partir daquela noite, enquanto aguardavam o resultado da análise que era realizada pelos técnicos, a comunidade inteira reunia-se em torno do seu tesouro azulado. Alice não apareceria mais ali, adoecera irremediavelmente. Em três dias, a comunidade recebera o laudo encomendado pelo governo. Não eram boas as notícias. Haviam colocado a descoberto o césio radioativo.


Marcos Vinícius.