segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

O sono de Atlas



A respiração havia se alterado e tornara-se mais leve, o ronco profundo do sono total e milenar dava lugar a um suspiro breve e aliviado. As pálpebras cerradas prenunciavam um ligeiro sinal que talvez fossem piscar. A musculatura do rosto duro, pétreo, distendia-se, como se, em breve, fosse possível, um roçar dos lábios, um ranger de dentes, sabe-se lá, um sorriso. O corpo gigante, imóvel, plantado sobre a areia branca, parecia despertar. Um primeiro movimento, mínimo, manifesta-se nas pontas dos dedos, que se arrastam e se afundam um pouco na areia fina. Os minúsculos grãos areníticos deslizam-se levemente uns sobre os outros, antecipando-se às mudanças de posição daquele homem enorme, forte e corpulento que, suavemente, começava a se mexer. Afora uma malha curta, que lhe cobria as partes íntimas, estava a descoberto. Era muito grande, titânico, aparentemente, de uma força descomunal. Tórax, braços e pernas eram músculos proeminentes. A barba estava coberta por uma poeira do tempo que lhe fazia aparentar uma idade mais avançada do que realmente tinha. Num súbito, desloca-se, vira para o lado, inquieta-se. Um estrondo enorme, como um raio a rasgar os céus, quebra o silêncio absoluto que há pouco imperava. Em poucos segundos, arregala os olhos, põe-se sentado e a expressão, deslocando-se do sono à vigília, torna-se atônica e assustada. Havia dormido muito mais do que imaginava ou planejara. Desde que recebera das divindades superiores, a expressa ordem, de carregar sobre  os ombros, a abóboda celeste, fora tomado não apenas por um grande cansaço, como também, por uma forte dor lombar. Sabia dos riscos que havia diante de qualquer tentativa de furtar-se ao castigo que lhe fora imposto e, portanto, jamais imaginou deixar de cumpri-lo. O incômodo, no entanto, tornara-se tal e a fadiga tamanha, que em uma rara oportunidade, resolveu entregar-se a um breve cochilo. O que não imaginava é que pudesse dormir tanto. Não fora a eternidade completa, mas um sono milenar. Sobressalta-se. Pelos deuses ancestrais, como pode ausentar-se do tempo? Com os olhos ainda um pouco embaçados, constata que a imensidão dos céus continua no mesmo lugar que a deixou, antes que a sonolência profunda tomasse conta de si. A enorme estrutura mantinha-se ali, ao seu lado, a espera que algum dia seu suporte divino viesse despertar. Atlas aproxima-se e prepara-se para, mais uma vez, soerguê-la. Antes, porém, detêm a observá-la e percebe que algo por ali parece ter se alterado. O azul celeste ofuscara-se, perdera o brilho, colunas de fumaça rasgavam-lhe ao meio e um cheiro forte, putrefato, substituía o aroma das flores e ervas. Um ruído contínuo e incômodo, um monoruído, como se proveniente de um maquinário maior que o próprio universo, ocupara-se do silêncio musical dos cantos dos bichos e do rufar das cascatas e águas. Preocupado com a possibilidade de um castigo ainda maior sobre seu destino e ombros, talvez em função do descuido e da longa ausência, do acaso em deixar o firmamento à deriva, procura levantá-lo de uma só vez, o mais rápido possível. Em contrapartida, sentia-se revigorado e fortalecido. Por mais danos e prejuízos que a orfandade temporária dos céus possa ter causado, o descanso advindo do sono longínquo, restaura-lhe as energias. Imagina que agora pudesse suportar sua carga por eras a fio. Rapidamente, espreguiça-se esticando todo o corpo, os braços compridos, as pontas dos dedos, dos pés e das mãos, gira lentamente a cabeça sobre o pescoço em colunata, sente o conjunto da musculatura colocar-se em alerta e prontidão e em um esforço sobrenatural, ciclópico, levanta, num arrastão, a abóboda celeste com suas estrelas vivas e as cadentes. A força, porém, fora tanta, colossal, que o globo terrestre colado a ela, depois de milênios, coexistindo grudados, desloca-se e levanta-se também, a reboque. Sobre os ombros divinos, uma esfera grandiosa, imensa, procurava se acomodar. O peso, porém, tornara-se quase insuportável e Atlas começava a afundar-se. No entanto, resiste; retesa todos os músculos, imprime-lhes a força mais hercúlea que possa empreender, dá uma chacoalhada no mundo e levanta-o como que em definitivo. Assim que a imensa esfera posiciona-se exatamente sobre sua cabeça, uma torrente de dejetos despenca sobre seu corpo titânico. A princípio, fere suas costas, o tronco, em seguida, escorre por toda a corpulência, riscando a epiderme. Ele flexiona os braços e dá-lhe mais uma brusca sacudidela, tentando encaixar melhor as órbitas e ondas gravitacionais e livrar-se do caldo que derramava sobre sua pele levemente iluminada. Não se sabe se devido a um mal alinhamento do eixo terrestre, o planeta derretia sobre as espáduas que o soerguiam. Incomodado e desentendido, Atlas procura elevar as estruturas para o mais alto que pode, põe-se sobre as pontas dos pés, gira-a à esquerda e à direita, sacode-a, e nada. O derramamento não se contém. Ao olhar para cima à procura de algum recurso onde pudesse estancar o vazamento, uma ilha de plástico, fedorenta, uma imensa gosma multicolorida, atlântica, despenca sobre seu rosto, como se lhe caísse um tapa. Raspa a barba no peito e a massa compacta transborda pelo dorso, pernas e grudam lhe os dedos dos pés. Gases soltam-se e ocorrem pequenas explosões, rejeitos químicos, nebulosas fétidas, contaminadas, ardem-lhe os olhos e uma lágrima salgada, avinagrada, escorre sobre as narinas irritadas. Não consegue mais olhar para cima. Pensa em atirar tudo pelos ares, mas detém-se. Um suor frio brota por toda sua pele, quando uma chuva ácida e um rio apodrecido despencam-se em cascatas turvas e envenenadas, intoxicando seus poros abertos. Cadáveres, carcaças de peixes, dos seres voadores, dos que vivem nas rochas, entornam-se sobre o corpo atlético, olímpico, que começa a curvar-se. Em seguida, há um contínuo escoamento de sangues, seivas, esgotos e lixos radioativos. Atlas cai de joelhos. O peso vai tornando-se insustentável. Atlas respira fundo, tentando capturar o oxigênio, que poderia reanima-lo, mas uma fumaça escura e densa, tomada de partículas e fuligens, entope lhe os pulmões. Enquanto tenta, ainda, equilibrar-se, uma tosse seca e persistente, mina-lhe resistências e uma lama amarronzada e tóxica, tempestuosa, desaba do alto, cobrindo a totalidade do corpo extenuado. Um manto de metais pesados, alumínio, ferro, arsênio, manganês, chumbo e zinco, envolvem o gigante e dobram lhe a força titânica. O que à primeira vista, lembrava uma chuva de astros, como se a abóbada celeste estivesse a desabar, era na verdade, uma tempestade de bombas que explodiam e queimavam a lama, que endurecia. Atlas petrificava-se. As cinzas das pólvoras grudaram-se na crosta entumecida e o gigante transformara-se numa imensa montanha rochosa e cinzenta. Sobre ela, o mundo e os céus balançavam, em um precário equilíbrio.


Marcos Vinícius.

quinta-feira, 9 de novembro de 2017

O chato de galochas


O chato de galochas é a pior espécie de chatos que há por aí.  O sujeito é tão chato, mas tão chato, que esta palavrinha de apenas cinco letras tornou-se muito pequena e estreita para ele, então a sabedoria popular lhe deu complemento. As galochas eram muito utilizadas há algumas décadas, principalmente, no interior do país; eram capas de borracha utilizadas sobre os calçados, para protegê-los da chuva e da umidade. O chato de galochas era, então, aquele sujeito inconveniente e desagradável, a ponto de entrar em casa ou em recintos fechados sem retirar a borracha molhada, trazendo a água e a sujeira da rua para os lares quentes e secos. A galocha há muito tempo foi abandonada, caiu em desuso, mas os chatos de galochas, para infelicidade geral, continuam mais vivos que nunca.


Marcos Vinícius.

quinta-feira, 2 de novembro de 2017

A boneca de Armênio


Já se passaram muitos anos desde que Armênio atingira a tão esperada maioridade e, junto dela, o primeiro emprego que iria finalmente, proporcionar-lhe a oportunidade de um salário e as primeiras aquisições com que há muito sonhara. Obviamente, não eram poucas as suas demandas e desejos de consumo em uma comunidade totalmente influenciada pela grande propaganda. Antes, porém, que qualquer outra coisa, os primeiros investimentos que faria, seriam um relógio de pulso, um paletó e uma gravata, que lhe acompanhariam, algum dia, ao casamento e ao altar. Sempre imaginou que o relógio de pulso fosse um atributo que pudesse enfim, dar-lhe ares de adulto, homem pronto, afinal, esta maquinazinha de ponteiros dourados, colada ao braço, não é coisa que carreguem as crianças e os mais jovens, alheios à lógica dos tempos contados, numéricos. Isto é coisa para os que já tornaram-se adultos, desvestiram-se das meninices e já carregam responsabilidades que a vida, inevitavelmente, proporciona. Quanto aos demais acessórios, o paletó e a gravata, vê neles, uma espécie de amuleto, um ritual de passagem que um dia o conduzirá a ser um homem completo. Afinal, como aprendera, com a totalidade da parentalha, o casamento era um pressuposto-chave, para que pudesse enfim, constituir a família. Assim fizeram seus pais, tios, primos e avós. Ele não faria diferente. Não seria ele a romper as antigas tradições que deram-lhe laços, sangue e nome. Armênio guardava bem fresca a memória deste tempo, ainda que décadas já tivessem passado, encontrar-se mais próximo da terceira idade do que da juventude e ter perdido parte das ilusões; mas ainda tinha fechado em seu guarda roupas, o  antigo relógio mecânico, analógico, o paletó e a gravata, praticamente, fora de moda. Aproximava-se a aposentadoria, mas o casamento não viera. Armênio sempre fora um namorador contumaz. Mal saía de um namoro e já metia-se em outro, as mulheres lhe proporcionam um conforto e refúgio, que tinha como imprescindíveis. Por várias ocasiões, pensou aproximar-se do matrimônio, mas não. Uma série de desencontros e oportunidades perdidas condenaram-no aos amores fugazes, passageiros. Desejos perdidos, cumplicidades despedaçadas, enganos, desenganos, infidelidades, ciúmes e incompatibilidades de toda ordem, condenaram Armênio a uma vida solitária. Mas o sonho do casamento sempre o perseguia e inquietava, proporcionando-lhe doses de mal estar, sensação de vazio e a dor da incompletude. Nesta primavera, resolvera, decididamente, fazer diferente. Sentou-se na frente do computador, e aproveitando-se da oportunidade de receber uma indenização que já aguardava há alguns anos, decidiu que iria, agora sim, se casar, não com uma das que tivera a chance de conhecer, de carne e osso, mas com uma boneca, de plástico e borracha, que o mercado agora oferecia, com qualidades e versatilidades que só mesmo a indústria é capaz de ofertar. Havia se cansado, em definitivo, de tentar compreender ou fazer-se compreendido. Sentira que o território do amor e do prazer era também o território da disputa e desavenças. Tornaram-se difíceis amarrarem em nós as relações que nunca passaram de breves, mesmo que largos laços. Armênio atirara a toalha. O dinheiro que recebera lhe permitiria adquirir uma das melhores e mais aparelhadas, com direito a uma textura semi-humana, vagina vibratória e gemido eletrônico. Não era pouca coisa. A versatilidade do material, apesar de inflável, possibilitava as mais variadas posições e uma película térmica lhe induzia o calor. Fechado o negócio, seria enfim, a hora de tirar do armário as velhas aquisições e o paletó e a gravata poderiam cumprir suas históricas e postergadas funções. O relógio seria o testemunho maior do tempo que se aguardou e do atraso que ora, se interrompia. Aquela seria uma ocasião especial. Naturalmente, por razões que são óbvias, não haveria convidados para a cerimônia, mas afora este detalhe, Armênio organizou um casamento completo. Providenciou doces e salgados, encheu a casa de flores, fitas e guirlandas. Perfumou os móveis e o apartamento inteiro transformou-se em um grande altar. Ele não se esquecera de comprar um vestido de noiva, ornado de rendas e rosas. Comprou champagnes, vinhos e taças. Enfim, a união iria se consumar. Armênio, retirou o embrulho de plástico que encobria sua esposa-mercadoria, retirou-lhe as fitas e perfumou-a inteira. Selecionou e programou o aparelho de som para tocar as músicas mais românticas que encontrara e tomou duas garrafas inteiras do seu vinho preferido. Os olhos de Armênio foguejavam. Levou a recém-esposa para o quarto. A lâmpada regulada à meia-luz. Despida a cônjuge, deita-se sobre ela, onde afoga todo o seu voluptuoso amor. Ama-a com toda intensidade que corpo e alma lhe permitiam e, com todos os pelos e poros em arrepios, sente que forças cósmicas o levam ao céu. Armênio entra em erupção, num explosivo surto de prazer. Olha bem dentro dos olhos de vidro de sua esposa de plástico. Uma descarga elétrica rasga seu peito. Levanta-se e abre a janela. Ao deitar-se de novo, abraça-a tão afoitamente, que a taça de vinho, no encosto da cama, espatifa-se em cacos. Um caco fino e cortante enfia-se na perna esquerda da boneca perfumada e ela, esvaziando-se num rasgo, rodopia pela cama, dá um salto para o alto e atira-se pela janela do quarto. Armênio senta-se no canto da cama. Não irá atrás dela e também não havia como reclamar ao fabricante.



Marcos Vinícius.

quinta-feira, 19 de outubro de 2017

Almas degeneradas


Um novo ingrediente foi acrescentado à profunda crise em que, por fim, nos atolamos. Como se não bastasse o vendaval de infortúnios que despenca sobre nosso golpeado e abatido país, corrupção generalizada, desmoralização completa das instituições políticas, executivos, legislativos e judiciários na lama, oligopólios midiáticos, ideologizados e vendidos, violência sistêmica, economia à bancarrota e uma completa falta de perspectiva e esperança em dias melhores, um elemento, até então, relativamente, pouco presente na sociedade brasileira, é introduzido com força total. O fundamentalismo. Poderíamos dizer, que comparado a outros países, ainda que sejamos um povo profundamente religioso, temos um nível de tolerância tal, que nos permite conviver sem problemas, nos mais diversos ambientes, com pessoas que professam uma fé diferente da nossa. Não é a religião que transforma nossas ruas e territórios em campos de batalha. Pois bem. A direita ultraconservadora, que surfa nas ondas fáceis do dinheiro grande e das vias telemáticas e digitais, acumulando vitórias uma após a outra, nos mares abertos de um liberalismo anabolizado, não apenas vê prosperar suas pautas econômicas, como nada de braçadas em um conservadorismo revigorado, que se espalha, fantasmagoricamente, entre os robôs invisíveis e as gigantescas redes sociais. A matriz é, certamente, estadunidense, mas nossas filiais locais, desempenham bem o papel, dinheiro não lhes falta. Como as conquistas materiais vêm sendo facilmente efetivadas, resta-lhes agora, os corações e mentes, a sedução espiritual. A solução encontrada é tão óbvia como explosiva. Insuflar o ódio contra a liberdade artística e de expressão e semear o caos sanguinolento da intolerância religiosa. Os manipuladores dos robôs invisíveis, que atuam por dentro das redes, os formadores de opiniões, os tecnocratas dos golpes, nossos e alheios, grupelhos barulhentos e fascistas, sob as mais variadas siglas, empenham-se em explorar a boa fé do brasileiro, canalizar a energia positiva de suas preces e orações ao ódio em relação ao diferente e ao desconhecido. Assim nascem as carnificinas históricas. Museus, Exposições, teatros e galerias de arte, tornaram-se alvos fáceis de ataques e violência. Em Belo Horizonte, desde que foi aberta a Exposição do artista plástico, Pedro Moraleida, morto há quase 20 anos, grupos religiosos vem se somando a ativistas exaltados do MBL, Direita Minas, Avança Brasil e uma pequena, mas agressiva legião de bolsominions, e reivindicando seu fechamento. O dia 10 de Outubro foi dramático e simbólico. Entre gritos, faixas, cartazes e palavras de ordem, fanfarrões e fanáticos, exigiam, no coração do Palácio das Artes, a censura. Pela exaltação e fúria dos manifestantes, não é difícil supor que, uma grande quebradeira poderia se instalar ali, se não houvesse uma segurança mínima. Não é a primeira vez que vejo rezas em atos públicos ou de natureza política, nisto não há o que se estranhar, mas uma oração embalada pelo ódio, ainda não havia visto por aqui. É o ingrediente novo, tão óbvio como explosivo. Quanta saudade da velha e inofensiva caretice.

Marcos Vinícius.

quarta-feira, 27 de setembro de 2017

O futebol, o sonho e a revolução.


Um dia desses, parado em um ponto de ônibus, impressionado com a algazarra que faziam os torcedores em dia de campeonato, com suas camisas coloridas, suas buzinas alucinantes, seus gritos tresloucados, sentei-me, quase entorpecido, em meio à legião de fanáticos, que desfraldavam as ruas, as avenidas, com suas bandeiras flamejantes e seus escudos dourados. Um breve formigamento me percorreu por inteiro, da cabeça aos pés, uma descarga elétrica, que levara, num súbito, as forças das pernas e o meu bom ânimo. Mal acabara de me ajeitar no banco estreito, sob a marquise de concreto, um rapaz envelhecido, que não aparentava a idade que tinha, pois a vida lhe parecia cruel, com os olhos inchados, a pele precocemente enrugada e as barbas mal feitas, sussurra ao meu lado, como se dissesse para si mesmo: Mas que diabos. Por que essas massas afoitas, mobilizadas pelo futebol e suas torcidas, não canalizam estas energias contidas, estas explosões não detonadas, este cataclismo encapsulado, para a ação política e a revolução social? Olhei para o homem, que não esperava qualquer reação, e mal sorri para ele, quando se levantou e desapareceu. A turba de torcedores, como uma manada desnorteada, já entopia os lotações, as esquinas, as calçadas e os bares, estava em todos os lugares, com suas palavras de ordem, suas rimas desgastadas e seus hinos agonizantes. Os carros estavam todos nas ruas e o fluxo era lento e eufórico. A cidade inteira é uma torcida insone, e o ruído contínuo da multidão alvoraçada e histérica, faz-me correr dali. Apesar de saber que nestas ocasiões, não existe abrigo seguro, os foguetes arrebentam por dentro dos nossos miolos, as cornetas perfuram os tímpanos, tomei o rumo de casa, pois se do barulho não há como se livrar, pelo menos, que entre eu e eles, se interponham algumas paredes. Assim fiz. Em casa, tomei uma ducha rápida, deitei-me e me enrolei em lençóis, colchas e travesseiros, para que pudesse, sem abafar a mim mesmo, abafar o ruído infernal que me embalaria madrugada adentro. Quando a escuridão total se fez, no breu dos meus olhos fechados, o jovem velho que encontrara no ponto, voltou a fitar-me com seu olhar fugidio. Sumiu na velocidade de um raio. Perguntei a mim mesmo, na agitação da alma, que já queria dormir. Por que essas massas afoitas...? Em poucos segundos, uma cantoria ritmada, com muitas vozes, mas muitas vozes mesmo, e o som de uma banda, que fez-se a cada segundo, mais próxima e presente, encheu todo o ambiente. As ruas cobriram-se de pétalas e flores despedaçadas. Das janelas, as bandeiras tremulavam com o sopro do canto dos homens, nas varandas, os estandartes arrastavam-se quase ao chão, com suas pedras coloridas, seus fios prateados e suas letras garrafais. Serpentinas coloridas escorriam das marquises e dos balaústres, vasos brilhantes enfeitavam muretas e balcões. Os homens marchavam. Eram muitos, infinitos. Um sem número deles. Eram também as mulheres. Aos milhões, ocupavam todos os espaços e territórios, as cidades e os países, lotavam os continentes, sabe-se lá como, tomaram também os mares, os oceanos, conquistaram o planeta, avançaram em direção ao universo. Eram muitos. Eram todos, uma unanimidade. Era um corpo coeso. Disciplinado. Todos eles, todas elas, um a um, uma a uma. De onde viera aquele canto padrão, aquele gigantesco bloco monolítico, aqueles gestos sincronizados? Em que oficinas se criaram estas vozes, em quais organizações formaram-se estas lideranças, modelaram os discursos? Eram milhões e se multiplicaram. Estavam muito organizados. Haviam abandonado o futebol e as torcidas, em definitivo, adotaram a política. Era incrível, mas o povo assumira o poder. Os cientistas políticos e os historiadores haviam subavaliado o potencial revolucionário das massas conectadas em rede. Uma nova ordem se instalou. Não era pouca coisa. A população, frenética, comemorava. O deus-mercado não apenas se revelou, impôs-se, com suas leis, princípios e sua imoralidade absoluta, venceu a guerra da colonização dos espíritos. O planeta tornou-se uma imensa propriedade privada. Na grande praça pública, no bairro aqui ao lado, estandartes gigantes eram suspensos. Nada tinha a ver com as torcidas organizadas ou qualquer um dos seus símbolos futebolísticos. Eram grandes retratos. Rothbard, Von Mises e Olavo de Carvalho. A população havia tomado as redes e as ruas. Pela primeira vez, pasmem, despenquei-me da cama. O sonho acabou. E agora?


Marcos Vinícius.

domingo, 11 de junho de 2017

O busto


Antes que se transmutasse em gesso, cera e bronze, a peça, obra-sujeito, a gênese e o delineamento de sua expressão eram delicadamente retirados do barro, sua forma primeira e definitiva. Com mãos habilidosas, plásticas e firmes, como carregam os melhores e mais extraordinários dos artistas, cavam cada curva do seu rosto, os músculos da face, as covas dos olhos, as rusgas da pele, a dura frouxidão do pescoço, o desenho dos lábios, os arcos das sobrancelhas e a eternidade dos olhos, duros e vivos. Cada detalhe, riscos invisíveis, traços pouco revelados, vão se desenhando na maleabilidade do barro. Os pincéis deslizam-se sobre os acabamentos finais. O semblante é rígido, petrificado, como o são quase a totalidade das esculturas e estátuas que se plantam nas grandes avenidas, jardins e parques públicos, praças, templos, quartéis e palácios. As mandíbulas são retilíneas, quase quadradas, o nariz aponta adiante, em direção a um suposto tempo, que não se sabe onde vai dar. Os olhos, fixos e impenetráveis, a tudo parecem enxergar, retrato metalizado do que foi no passado, fitarão com suas íris acastanhadas de bronze, as gerações do porvir. Dados os retoques finais, as minúsculas ranhuras, o abaixamento do pelo proeminente, o alinhamento dos lóbulos das orelhas, o artista, levemente, dá-lhe o último sopro, que encerra a provisória existência plástica do barro. Dali, metamorfoseia-se a matéria. Do barro ao gesso, do gesso à cera, da cera ao fogo líquido, que derrete e dá forma, do calor das fornalhas, ao endurecimento da peça. Ídolos, heróis, homens de poder e força, que arrastaram multidões ou a elas exterminaram, os conquistadores, os líderes militares, espirituais, os governantes dos altos escalões, as sumidades e os excelentíssimos de toda ordem, humanos que são, tem seu jeito próprio de desafiar a morte, não apenas pelos registros de seus nomes ou feitos nos gigantescos manuais da história, mas pelas multidões de estátuas de todos os tipos, espalhadas por cada rincão deste planeta. Do caso que tratamos, o destino final era uma grande praça pública, rodeada por árvores velhas, de rugosos e grossos troncos retorcidos e bancos quebrados, esparsamente distribuídos no grande pátio de concreto, com caramanchões desfloridos, ressecados, um pequeno coreto com todos os aspectos de abandono e muitas lâmpadas amarelas que tornavam as noites, monocromáticas. Para ali foi levado aquele pesado busto de bronze, firmemente estacado, pregado e parafusado sobre um robusto pedestal de concreto. Uma placa abaixo, em letras elegantes e rebuscadas, trazia, em dourado, o nome e as homenagens. Por ali ficaria, por quantos tempos perduram e sobrevivem esses humanos endurecidos, de metal, gravados no espaço público, até que a terra os engula ou que a história, por algum motivo, os sepultem de vez. 

Desde que foi posto ali, tornou-se, inevitavelmente, um ponto de parada e visitação, por praticamente todos que tinham que transpor aquela larga plataforma de cimento, incrustada em um dos bairros mais antigos e tradicionais da cidade. Praça com pouquíssimos atrativos e quase abandonada pelos poderes públicos, os pequenos arbustos e canteiros de rosas vermelhas e amarelas, sobreviviam à própria sorte, pois a água que os regava era, já sem sombra de dúvidas, a água das chuvas. Em meio ao largo, semidesertificado, a aridez do lugar era permanentemente quebrada pelas roupas coloridas e alegres dos sem número de transeuntes que por ali  passavam. Não eram poucos os que paravam por instantes a observar aquele personagem eternizado. Aquele semblante de metal bruto, endurecido, rígido, pétreo, sempre a observar o inobservável. Os olhos que a tudo parecem ver, que miram o não-horizonte e que não se fecham nunca. A gola fria do paletó com uma pequena dobra que jamais se desdobrará, o gesto dos lábios vitrificados, os fios do cabelo que não se desalinharão, distraíam os cidadãos que sempre o admiravam, não apenas pelo que foi, a maioria talvez não o soubesse, mas pela perfeição do seu acabamento, a fineza e robustez das linhas, a imponência, a eternidade do que já não existe, o poder do bronze, da estatuária, que nos posta à frente, quem aqui já não mais está. Não era raro, principalmente entre os mais jovens e curiosos, que alguns deles, pousassem sobre a face metálica, seus dedos sensíveis, que percorriam as dimensões da escultura, o contorno dos olhos, as papas, as ligeiras e finas rugas que entrecortavam a fronte, o penteado da cabeleira, o relevo do nariz, a espessura da boca e a envergadura do colarinho. De fato, a obra primava pela perfeição. Não são poucas as estátuas  espalhadas pelos centros urbanos, não há quem não as veja sempre, marcando as glórias e fama de um tempo, muitas das vezes, já esquecido, mas muitas delas são demasiadamente grotescas, mal acabadas, feitas às pressas, dada às emergências conjunturais, comemorações, centenários, vitórias políticas e golpes de Estado. Ao contrário da que temos, muitas são carentes de esmero e arte. Não eram poucos os que se impressionavam com o seu realismo e a perfeição do retrato, mesmo que não tenham visto aquela expressão e fisionomia sequer uma vez na vida. Talvez o tamanho natural, a sensibilidade dos moldes, a natureza da matéria-prima e o engenho do artista, sabe-se lá, os sonhos de perpetuação, desejos de imortalidade do retratado, tenham tornado aquele monumento, uma peça única.

Em menos de uma semana, fincado naquele território, já havia recebido um grande número de visitas. As crianças, principalmente, aquelas já acostumadas ao local, eram as primeiras a correr para conhecer a novidade. Os adultos dificilmente passavam sem lançar um olhar contemplativo e inquieto de indagações. No fundo, aquele vulto, que por ali se instalara, causava certo assombro tanto a uns, quanto aos outros. Impunha, à sua maneira, uma autoridade nova naquela praça destituída de grandes atrativos, limitados aos poucos assentos e a farta sombra das árvores. A paisagem mal se ajeitara, o busto ainda era um meio-estranho dominando o cenário, os pássaros pouco o haviam percebido, uma senhora de idade avançada, com a pele desfiada em rugas e as mãos tortas pelos reumatismos e calos, caminha em passos lentos, cambaleantes em seu aspecto físico, mas firmes na determinação em chegar ao seu destino. A mulher posta-se, também ela, uma pedra, o metal, diante da estátua fria. Encara o homem nos olhos, e ali, é como se apenas os dois houvesse. Naquele instante, os olhos de bronze, parecem encarar a mulher, como quem encara o infinito. Ela o desafia, leva lentamente seus dedos até ele e toca com desprezo as maçãs do rosto inerte. Os olhos dela, orgânicos e vivos, os dele, rígidos e secos, fixavam-se, intensamente. Haveria um diálogo possível? Ela range os dentes, e num murmúrio quase inaudível, pragueja, Maldito! Afasta um pouco a mão, injeta-lhe forças, e enfia um tapa naquele rosto compacto, que sequer apresenta qualquer milímetro de vibração. A expressão e o gesto daquele homem estático mantêm-se inalterados, inabalados e irremovíveis. De súbito, sem que ninguém o percebesse, ou que fosse, no mínimo, fenômeno visível ou explicável, e sem abalo de qualquer dos elementos do cenário, uma força inesperada, um desejo incontrolável apodera-se de um não se sabe o que daquele busto, que se tivesse braços ou movimento, teria a velha estrangulado.

Caralhos, mas que esbofeteio é este? Não que doa, deixe ferimentos ou arranhões, mas é uma desonra que jamais admitiria, pudesse livrar-me deste corpo imóvel, esculpido, cimentado, parafusado e os castigos e dores que se imporiam a estas mãos agressoras seriam os mais cruéis que meus carrascos pudessem imaginar. Velha estúpida! E o pior, definitivamente, não há o que se possa fazer. Qual terá sido o imbecil a me enfiar em uma estrutura destas, por que não dão aos mortos o descanso que supomos merecer? Óbvio que ambicionamos a imortalidade, mas não desgraçadamente nesta condição. Depois de tantas conquistas, disputas, artimanhas, planos bem sucedidos, guerras vencidas, tantos inimigos abatidos, não é a estátua que sou, a mais terrível humilhação que os vivos, maliciosamente, puderam oferecer? Pudesse ao menos, movimentar-me com pernas e braços de ferro, aço ou concreto, para esmagar os estúpidos e traidores que me subtraíram o silêncio e o esquecimento que o tempo lança sobre os corpos sepultos. Mas não, entrevaram-me. Óbvio que viveria um milhão de anos, mas com um corpo minimamente saudável, com carnes, peles, ossos e um sangue viscoso correndo entre as veias. Não esta imortalidade absoluta, inquebrantável. Duvido mesmo que os bajuladores quiseram desta forma, prestar-me homenagens, prolongar-me em suas memórias, a mim, mais parece, quiseram mesmo, foder-me, de uma vez por todas, aproveitando-se da fatalidade de estar a mais de sete palmos nas profundidades da terra, para erigir-me sobre esta praça, fatalmente indignado e, irremediavelmente, imóvel e endurecido. 

A velha ainda fitou-o por alguns segundos, ensaiou um segundo ataque, mas as forças dos braços não lhe estavam muito favoráveis, então, resignou-se a um fulminante murmúrio, virou-se de costas, lançou uma cusparada ao chão e afastou-se dali, até desaparecer de vez dos raios da visão, entre os caules das árvores, o brilho dos automóveis e o labirinto das avenidas. Ainda assim, o incômodo não o abandonou. E os anos se passaram.


Não há quem não queira prolongar suas vidas, por isso, não é de hoje, já desde o mais remoto dos tempos, todas as simpatias, emplastos, curandeiros, médicos, indústrias, voltaram-se para as mais variadas alternativas, no intuito de prolongar, o que já está por extinguir-se. Fracassadas todas as tentativas, formularam-se as mais sofisticadas técnicas de embalsamento e mumificação, sepulturas-fortalezas, palácios aos avessos do chão, uma parafernália infinita, que visava, em última instância, não apenas preservar, conservando por mais tempos nossos restos humanos, com a matéria que lhe é própria, mas acima de tudo, proporcionando-nos, segurança, sossego, o silêncio, o descanso e a escuridão. O que carrego não é sobrevida, mas um martírio. Prolongar-se em pedra, ligas metálicas, é pior que estar a si próprio, preso, pois é a prisão inteira, o cárcere onipresente, que se apodera de você. Esses bandos de seres, estudantes, trabalhadores, burocratas, funcionários, curiosos, que ficam a fitar-me, seja postando-se parados à minha frente, ou retardando seus passos, para radiografar-me inteiro, fazem-me sentir mais agoniado ainda. É um desalento inimaginável não poder acompanhar com os olhos, torcê-los um pouco, para acompanhar a silhueta daquela fêmea seminua, semidivina, que me passa à frente, apalpar os seios fartos e quentes que se ajeitam sob o meu nariz, ou me esfregam por todos os lados, para fotografar-nos, juntos, sob os mais variados ângulos. Enlouquecedor não poder soltar o mais alto e terrível dos berros, para expulsar esses moleques imbecis, que se põem a pendurar em meu célebre pescoço, ou não ter como esbofetear os pobres solitários que me vem revelar suas confidências, segredos ou intimidades, o que a mim, não desperta o mais ínfimo dos interesses, mas me enche de nojo e mal-estar. Pudera tombar sobre suas cabeças. Os anos passam, a bem da verdade, perdi suas contas, como se isso me fizesse alguma diferença, talvez já tenham se passado mesmo décadas ou séculos, que aqui estou a mirar esta humanidade. Isto, se não houver parado o tempo, o que sempre me levo a desconfiar. Passam os indivíduos, a impressão de serem sempre os mesmos, e não o são, já viraram gerações, introduziram novos gestos, manias, modismos, penteados extravagantes, indumentárias exóticas, mas por mais diferentes que sejam, estou sempre a confundi-los, como se, fossem um só corpo, um só movimento. Mas quem sou eu para falar em movimento, eu que vivo minuto por minuto de imobilidade a atravessar os séculos. Pergunto-me, quantas piscadelas me serão expropriadas se por aqui ainda estiver em um milhão de anos? Ah... Como é sofrível não pregar os olhos, não que sinta sono ou vontade de adormecer, isso não é sensação que tenham as estátuas, mas deixar de enxergar o mundo e esses homens e mulheres que não param de passar, por um segundo que fosse, talvez isso apenas, me trouxesse algum conforto. Mas não. Estou condenado a vê-los e tolerá-los, impedido de esboçar a mais insignificante reação. Há dias que são mais insuportáveis, dolorosos eu diria, não fosse o fato de não sentir qualquer tipo de dor, aqueles que me despertam o desejo de explodir, arrebentar-me, ou não sei o quê, algo que me tirasse de mim, livrando-me desta casca-masmorra, que não me permite sequer franzir a testa. Foi um final de semana, quando bem próximos, um grupo de jovens, garotos e garotas, puseram-se a dançar sob o som de uma música maravilhosa e inebriante. Não que aquilo me tornasse mais leve, como ocorria com todos aqueles corpos juvenis que se entregavam aos ritmos, mas um desejo insuportável e arrebatador de mexer-me, gingar-me minimamente, levava-me ao sonho ou delírio de ser dinamitado. Não havia um que por ali passasse, naquele momento, que não tivesse um cantarolar nos lábios, um estalo nos dedos, um descompasso nos pés, aquela música, mais que qualquer outra, fazia os homens vibrarem. Não há vibração possível. Talvez haja na explosão.

Numa madrugada, um jovem bem agasalhado, certamente fazia frio, para diante de mim e, rapidamente, saca por sob o paletó, uma pequena lata de tinta e pixa-me a testa, rabiscou signos e letras, os quais nunca pude descobrir do que se tratava. Ainda não decidi o que se tornou mais ridículo, o pixo em si, aquela situação ofensiva, uma mancha a deformar-me o perfil, o retrato, ou a ação indigna daqueles agentes públicos, que me esfregavam o rosto com uma escova já esfolada e gasta, e soluções auto-limpantes baratas, que não atentavam aos cuidados técnicos no trato com o bronze. Dada a rapidez com que se processou a operação, muito provavelmente, as inscrições do pichador, tinham conotações políticas. O trabalho realizado visava antes, a eliminação da mensagem, que a preservação do monumento, visto que muitos dos visitantes notavam que algo diferente, alguma espécie de defeito ou deterioração, havia corroído, o que provavelmente fui. Os bêbados me atormentavam com suas conversas desconexas, sem pés nem cabeça, a fala alta, o barulho aterrador, os namorados, com seus beijos, carícias e desejos, afrontavam a frieza do bronze que forma o meu peito. Se é certo que do pó viemos e a ele um dia iremos retornar, não faço ideia das quantas avarezas ainda irei testemunhar, para dissolver-me desta matéria bruta. Já não sei há quanto tempo, sobrevivo morto, e a cada dia o sei menos. Cem anos terão se passado? Não creio que aqui já esteja há um milênio, senão já teria me derramado em enfados. Há química que transforme o bronze em pó? Quem poderá responder-me?

Não sei o que se passa ao redor, mas as humanidades, já não são as mesmas, observo que, mais que nunca, estão a me homenagear, com longos palavrórios, fotografias, mas também me fazem alvo de  xingamentos e ofensas.  Venho despertando amores e ódios. Por estes dias, um tresloucado tentou, sem sucesso, arrancar a placa que traz completo o meu nome, minhas insígnias e condecorações. Não estivesse fatalmente engessado, em poucos minutos, o concreto o teria engolido. A placa não se soltou, mas tenho a impressão inconfundível, que se desalinhou, um pequeno empeno, que com certeza, jamais será restaurado, sequer percebido. Uma bela jovem, uma hora, se aproximou, passo a passo, ficou bem diante de mim, olhei para dentro dela, ah, e como gostaria de poder me arrepiar, mas acho que nunca fiquei tão imóvel, mais que já era, tão inerte e paralítico como naquele instante. A mulher aproximou seu rosto e de súbito, escarrou-me um jato grosso e esverdeado. A gosma escorria pelas minhas faces, adentrava ao pescoço e uma sobra de sua viscosidade pingava no chão. Não sei descrever o turbilhão de emoções e sentimentos que bem poderiam ter me proporcionado algum sacolejo, mas não. Minha imobilidade jamais havia sido tão duramente posta à prova. Não que estivesse livre de assédios, manifestos de admiração ou repulsa, mas, ultimamente, estes gestos não apenas se tornaram mais comuns, como também mais intensos. As esculturas serão resistentes aos humores, como o são ao tempo? Afora todos os incômodos que as humanidades aqui despejam, nesta existência longínqua, sobrevida-morta, longeva, ainda sobram-me os pombos. Soubesse que estes malditos iriam cagar-me por uma eternidade, teria os varrido da face da terra, quando pude fazê-lo. Não deixariam descendências. Por que os serviços de limpeza, quase nunca, retiram os dejetos dos pombos? Um rastro esbranquiçado de fezes desta ave asquerosa está a se fossilizar, por baixo dos lóbulos das minhas orelhas. Que honra construída em vida proporcionou-me este depósito de excrementos? Que batalhas aguerridas, territórios conquistados, transformaram meus cabelos alinhados em crostas de estrumes? Impossível saber se os mais nefastos são os inimigos declarados ou os bajuladores despudorados, extravagantes. Os últimos são sempre mais propensos a perpetuarem, petrificarem a injúria, a vergonha e a humilhação, principalmente, as alheias. Quisera tê-los feito engolir os pombos.

Mas Ó Deus das fundições e do fogo líquido, com o qual se fez meu corpo! Que tremores são esses? O chão de concreto parece balançar sob o suporte do busto que sou. Que hordas são estas? Quem é este povo e que bandeiras carregam? Invasores estrangeiros ou rebeldes nacionais? De onde saíram tantos, estes todos nas ruas? Uma multidão a galope. Punhos cerrados e gritos de guerra. Avançam sobre a praça, que fervilha de gentes. Venha a mim, Ó Revolução, exploda-me de vez, traga a dinamite e me arranque daqui, nem que seja a marteladas. Isto mesmo. Sabia que a força de mil braços conseguiria enfim, tombar-me. Que viva a morte. Livram-se de mim, talvez seja, minha última vitória, pois assim, o liberto, sou eu. Vejo, agora, o quanto sou pesado, são inúmeros os braços, escolhidos entre os mais fortes, a carregar-me pelos ares. Não imaginava quão rápido fossem desparafusar-me. Agora atiram-me ao chão e sou posto a arrastar-me no asfalto, por incontáveis mãos que, estapeiam-se pelo revezamento. Os homens estão frenéticos. A poucos metros, o cortejo fora breve, sou atirado, em uma vala larga, garganta profunda, ali, onde cabe-me inteiro. A fúria daqueles homens, os quais desconheço, um a um, tanto como os seus motivos, em tempo recorde, soterram-me. Ali não faltam areias, entulhos, escombros, para sepultar-me de vez. Ufa, é o meu fim. Não me interessam as causas e forças que movem estes braços determinados e ferozes, o que me importa é, agora, despedir-me do mundo. Uma última pá de lama é atirada sobre os tapumes, vedando em definitivo, o último feixe de luz que ainda vinha de fora. Mas, poxa, é muito escuro aqui no fundo e a terra é úmida e compacta.


Marcos Vinícius.

sexta-feira, 21 de abril de 2017

O dia em que fiz 50 anos




Pode-se dizer que o ano em que nasci, 1967, não foi um ano qualquer, como nenhum outro o é, não apenas porque decididamente pus-me neste mundo, mas por uma série de outros episódios, com certeza, mais relevantes, que marcaram para sempre, esta ocasião em que me foi concedido o benefício do nascimento. Foi nele em que perdemos personagens importantes do mundo contemporâneo, como Ernesto Che Guevara, vítima de uma emboscada na Bolívia e, segundo Jean Paul Sartre, autor de “A Idade da Razão”, “o ser humano mais completo de nossa era”, e o mineiro João Guimarães Rosa, autor de “Sagarana” e “Grande Sertão Veredas”, clássicos da literatura universal. Ainda neste mesmo ano, assumiria a presidência da República do Brasil, o General Costa e Silva, que no ano seguinte, 1968, com a decretação do Ato Institucional Nº5, implantaria em nosso país, um dos períodos mais duros, autoritários, repressivos e sanguinários da história brasileira. Mas como temos, humanos que somos, a habilidade inigualável de sempre nos reinventarmos, dada a nossa persistência em sobrevivermos enquanto espécie, 1967 foi também o ano em que Gabriel Garcia Márquez publicou o memorável e fascinante “Cem anos de solidão”, lançando um olhar inédito e definitivo sobre nossa América Latina, Caetano Veloso e Gilberto Gil gravaram “Alegria, alegria” e “Domingo no parque”, Glauber Rocha estreava nas telas do cinema com “Terra em transe” , as pílulas anticoncepcionais chegavam às farmácias, possibilitando o que se convencionou chamar de Revolução Sexual e na Cidade do Cabo,  África do Sul, foi realizado o primeiro transplante de coração; o órgão, de uma jovem de vinte e cinco anos possibilitou a sobrevida de um homem de cinquenta e cinco. Mas, talvez como uma demonstração de que talvez, não estivéssemos, afinal, com esta bola toda, o transplantado veio a falecer dezoito dias após a cirurgia. Para não prolongar demais em citações e lembranças, citaria por fim, como mais um símbolo de um ano, que agora, me sopra aos ouvidos, o filme que nesta ocasião, levaria o prêmio do Oscar, e que traz um título curioso e sugestivo, “O homem que não vendeu sua alma”. Não é pouca coisa. Mas enfim, no dia dezenove de abril, completei exatos cinquenta anos de existência e vida. Confesso que, ultimamente, não tenho tido muita paciência para ler os jornais, mas neste dia vinte, um dia após o aniversário, resolvi dar uma breve olhada neles, para ver as mais recentes bobagens que nossa humanidade metida a besta, resolveu aprontar bem no dia em que completava meio século aqui neste mundo. Infelizmente, nesta perspectiva, não há muito o que comemorar. As notícias que as páginas enfadonhas dos jornais trazem são efetivamente desalentadoras. O mundo parece ter se enfiado em uma galeria de horrores e a violência extrema pauta o noticiário, praticamente da primeira à última página, de cabo a rabo, desde as violências que nos rodeiam mais imediatamente, nas vizinhanças, com as ações dos bandidos pequenos, assaltantes e malfeitores de toda a ordem, até as investidas dos grandes bandidos, transformados em líderes mundiais, autoridades, figuras públicas, presidentes, que nos ameaçam com seus golpes, delírios de poder, bombas e políticas de extermínio, em uma espiral de atrocidades, que não tem fim. O alucinado representante dos estadunidenses, com seu topete gigante de arrogâncias, parece decidido a tocar fogo no mundo. Seus porta-aviões aproximam-se da Coréia do Norte e ameaçam atacá-la, esta por sua vez, disposta ao revide, talvez não se intimide, em utilizar seu arsenal nuclear. Difícil imaginar o que nos aguarda no dia seguinte ao acirramento das hostilidades e à detonação do conflito. Aqui em nosso país, transformado em uma grande pocilga, o banditismo está na ordem do dia. Como se não bastasse ostentar uma das mais altas taxas de criminalidade e homicídios do mundo, onde mata-se por nada, e morre-se na condição de alvo fácil ou vítima de balas perdidas, nossas lideranças políticas entregam-se a tarefa covarde de eliminar, sem qualquer constrangimento ou pudor, de forma indireta e gradativa, sem tréguas, os pobres, os trabalhadores, desempregados, aposentados, miseráveis de toda ordem, no campo e nas cidades, com uma sucessão de golpes, que se sucedem, um após o outro, dia após dia, seja na calada da noite ou sob a luz dos holofotes. Fim da aposentadoria, eliminação de direitos trabalhistas, congelamento por décadas de investimentos em educação e saúde, sucateamento de hospitais, postos de saúde, escolas públicas, fechamento das farmácias populares, esquemas de corrupção em escala dos bilhões de reais, valores que nossa imaginação não consegue dimensionar. Somados a um desastre que se faz completo, assistimos ainda a um crescimento assustador de um fascismo revigorado, entre jovens e velhos, articulados em redes sociais, aliciados por organizações multibilionárias alienígenas, pelo pensamento único, que leva para ruas uma multidão de imbecis, fantasiados de verde e amarelo, que clamam por intervenção militar, levantam bandeiras genocidas, e apregoam um ideal de liberdade, proveniente das incubadoras dos mais reacionários golpistas, raposas da política, agentes de capital financeiro e do neocolonialismo, que atuam à distância, lançam suas pedras e escondem as mãos, sujas de muito sangue, protegidos pelo anonimato que lhes confere a tecnologia digital e pela nossa eterna e reciclada ignorância. Não é pouco, mas somos um país pródigo em falsificações. A grande mídia, ela própria, conluiada em uma rede de tevês, jornais, revistas, através de seus editoriais, programações, novelas e afins, tem como tarefa maior, a arte dos currais, a destruição do pensamento e o fim da política como geradora do bem comum. Aqui se faz a política menor, rasteira, mafiosa, medíocre, fábricas de mentiras que se fazem verdades e verdades que são grandes mentiras. A arte do engano, a indústria da manipulação, onde o jornalismo exibe sua face mais degradada, corrupta e perversa. Não há tréguas nesta guerra, onde os pobres são a única vítima. Diante de uma geração que tem como referências Jair Bolsonaro, Kim Kataguiri e que elege pelo DEM, Fernando Holiday, vereador da cidade de São Paulo, compreende-se o que deveria causar espanto, o fechamento da Escola Municipal Doutor José Queiroz, em Jaboatão dos Guararapes, Pernambuco, após ser invadida por criminosos vinte e cinco vezes em apenas dois anos, símbolo de nossa promiscuidade moral. Após o último assalto, no ano passado, os pais pararam de levar os filhos à escola e os funcionários se recusam a trabalhar. “Foi um episódio muito traumático.(...)trancaram os funcionários em uma sala e roubaram tudo. No final, ainda colocaram fogo em livros e carteiras”, relata o professor da escola, José Eudes Santos. O tema foi manchete em jornais do dia vinte de abril de 2017. Como se vê, não é fácil chegar aos cinquenta anos. Aqui, tenho apenas duas certezas. Como alguém já o disse, sem qualquer sombra de dúvida, tenho agora, muito mais tempo para trás do que para frente e que se não chegamos ainda ao fundo do poço do mundo e do país que temos, é porque ele está muito abaixo do que até ontem imaginávamos. Para comemorar, o fato de ter sobrevivido.

Marcos Vinícius.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

Supremo Caos


O estado de caos e violência que se vê no Espírito Santo nos deixa chocados, atônitos, diante de uma convulsão social que tende, fatalmente, a se agravar. O Espírito Santo somos todos nós. Mais dia, menos dia, viveremos caos semelhante ou pior. Por mais apavorante que possam ser as imagens que pipocam nos jornais, tevês e redes sociais, vamos nos habituando a elas pois, a cada dia, vão ficando mais próximas. A violência generalizada torna-se inevitável em um território, onde a grande política tem como marca principal, o banditismo institucional. De certa forma, os rumos que tomamos, por mais alarmantes que sejam, enquadram-se ainda, dentro do que se é esperado. A violência cotidiana, das ruas aos gabinetes de ouro, é paisagem típica do Brasil. Há muito se sabe. 










não nos permite assustar-nos, quando as páginas de nossa história são escritas com o sangue.



Marcos Vinícius.