quinta-feira, 28 de maio de 2009

O Vôo


O Vôo



Rapidamente adormeceu. Nesta noite, não precisou rolar muito na cama para que o sono lhe dominasse. Encostou a cabeça no travesseiro, deu um longo suspiro, teve ainda algumas vagas e breves lembranças de partes do dia que acabara de viver, abaixou definitivamente as pálpebras, e mergulhou em um sono profundo. Parecia cansado. E dormia tão profundamente, como quem descansava não de um dia apenas, mas de uma vida inteira. O silêncio e a escuridão do quarto protegiam seus sonhos, e nem o ruído distante do relógio da cozinha ou o fraco feixe de luz que por sob a porta passava, poderiam quebrar a sensação, que ali o tempo parara. Naquela noite, dormia sozinho, ninguém que pudesse testemunhar, o quão tranqüilo estava, praticamente não se mexia, as marcas do rosto, que o tempo havia deixado, aparentavam descontração, e os olhos, totalmente fechados, pareciam encontrar o repouso absoluto. As palmas das mãos, descobertas, abertas para o alto, como que a clamar aos céus, ao infinito. A boca fechada, emudecida, aparentemente condenada a um silêncio eterno. De fato, era um sono profundo.


De forma surpreendente, como a ciência ainda não ousou explicar, aquele homem ali deitado, iniciava um longo sobrevôo por sobre o mundo e o tempo. Percorreu em frações de minuto, tempos que foram eternidades. Sentiu a dores de quando veio ao mundo, viveu a sensação de umedecer-se com as lágrimas que primeiro chorou, percorreu os parques da infância, os brinquedos, as gangorras, e as rodas-gigantes. Aprendeu, de uma só vez, as milhares de lições, que lhe foram ensinadas. Adentrou-se pelas fórmulas matemáticas que foi obrigado a decorar. Beijou o primeiro dos beijos, desnudou-se, desfilou por inúmeros corpos, conhecidos e pelos que nunca havia visto ou tocado, sentiu prazer, explodiu-se em orgasmos. Ouviu cânticos. Entoou antigas preces, reviveu velhos pecados. Deleitou-se. Percorreu os caminhos por onde havia passado, as estradas, os campos, as praias, as águas, vagou por sobre o deserto da alma, gemeu pelas dores da carne. Ah... Sobrevoou o mar, quão extenso é o mar. Os montes, os picos, a neblina, os campos abertos, o mato fechado. Sobrevoou as cidades, atravessou oceanos e continentes. Aqueceu-se por aproximar-se excessivamente do sol, tremeu pela proximidade das geleiras.


Bisbilhotou a intimidade dos homens, por sob os milhões de telhados, visitou as moradas dos deuses. Derramou-se pelo sangue, que escorrera das guerras, atirou-se por sobre as culturas, os povos, como a chuva, que traz o alimento, e como os projéteis que levam a morte. Acompanhou a luz, com a velocidade que lhe é própria, a clarear o universo. Incorporou-se em música, adentrou-se pelas nuances da poesia, fez-se imensidão e partícula, percorreu as galáxias, as moléculas e os átomos. Adentrou-se pelo espírito da história. Voava alto, atingia o cume dos céus, depois deixava-se cair, plainando o espaço, e o mundo tornava-se grande, tornava-se pequeno.


Inesperadamente acordou. De súbito. Os olhos se abriram. Tentou levantar as mãos, mas estas não lhe obedeciam. Os olhos, apesar de abrirem-se, pareciam presos às órbitas, e pouco podiam enxergar. Sentia o corpo frio, as pernas geladas. O corpo inteiro não respondia aos comandos e se enrijecia. Uma lágrima salgada escorria pelo rosto e molhava os lábios ressecados. Faltavam-lhe os movimentos, a respiração vinha a parar. Uma sensação diferente porém, lhe percorria os ombros e ele, finalmente, sorria, silenciosamente, timidamente. Das costas, onde a princípio, manifestava-se um ligeiro formigamento, num estalo, rompem-se duas asas enormes, que desvencilham-se da cama, e esticam-se como a testar o vigor e a elasticidade. O corpo se aquece, os músculos se soltam e os pulmões se enchem de ar. As asas se aprumam, e como num passe de mágica, a janela do quarto se abre, e aí então, novamente, se põe a voar.

Marcos Vinícius.

quinta-feira, 14 de maio de 2009

O fim ao princípio.


O fim ao princípio.


Ele estava deitado sobre um vasto colchão de nuvens, e apesar do tamanho gigantesco, enorme, e com todo o peso que seria de se supor, ainda assim, parecia ser mais leve que elas, e elas, por sua vez, pareciam acomodá-lo, proporcionando o conforto, como talvez melhor não lhe pudessem oferecer. Naquele momento, onde o tempo fora o que hoje não podemos conceber, havia um grande silêncio, uma longa escuridão, nada, no entanto, que o impedisse, de a tudo enxergar. E seus olhos, um pouco ainda inchados, de um tempo sem noites ou dias, tardes ou manhãs, vagavam pelo infinito e por sobre a face sem rosto das águas. Parecia abatido, como estas fortalezas de pedras, palácios de bronzes, que a eternidade insiste em corroer. Além dos músculos fortes, dos braços compridos e das longas mãos, que parecia a tudo poder criar ou destruir, havia um indisfarçável sinal de esmorecimento. O grande corpo parecia não estar disposto a se levantar. Os olhos pareciam contemplar, liricamente, o nada, e um rubor nas faces duras, revelavam um profundo estado febril. Os olhos procuravam ainda, um porto, um ponto, onde pudessem repousar, ante as águas profundas e infindas, que estava a contemplar. Com certo esforço, sem resignação, repousou os braços sobre o peito, e suspirou longamente. Parecia tomado de um cansaço, como ainda não havia experimentado. Revelava a imagem de um guerreiro robusto, alimentado pelas inúmeras vitórias, mas com o semblante de quem não mais tem o que conquistar, como se vãs tivessem sido as lutas, como se inúteis houvessem sido todas as duras batalhas. Os olhos esforçam-se para manterem-se abertos, e uma tosse seca, um ligeiro tremor, parecem ameaçar como nunca, sua imortalidade. A febre parece aumentar. Os olhos embaçam. Um suor frio, escorre pelas nucas divinas. Os espírito do mundo, parece querer se soltar.


Mira as águas, mira as trevas. Uma luz no olhar parece revigorar-lhe. Levanta um braço, que estava a pender sobre o abismo, e num movimento único, como um gesto que se faz derradeiro, estala os dedos. Um grande clarão rompe os céus, como se estivesse a parti-lo. A luz excessiva reflete em seus olhos, que parecem faiscar. Num estado de quase entorpecimento, mas com o olhar encantado, admira-se com o que estava a criar. Diante de si, o que nunca havia visto ou imaginado. Inquietava-se, e o suor lhe encharcava os cabelos. Mas parecia feliz. Num ímpeto, criou quase tudo que há. Divertia-se com o que estava a fazer, sorrindo, aliviando as dores e o mal que lhe atormentavam. Fez pois, o que viria a se chamar de luz, os dias, as noites, o céu, o sol, a lua, as estrelas, fez a terra e os mares, e divertia-se mais ainda, às roucas gargalhadas, que vibravam pelos fios do tempo, com a diversidade de tipos e formas, que trazia à vida. A terra, cobria-a de cores, muito verde, todas as cores que possam existir, fez árvores, de todas espécies, frutos de todos os sabores, os que fossem possíveis, e os impossíveis também, plantas, flores, de todas as formas que a matemática da vida permitia, ainda abrindo exceções.Apenas não lhes deu os nomes. Estes viriam depois. Cobriu-se a terra de vida. Todos os seres, os do ar, do mar, da terra, os insetos, as aves, os peixes, os anfíbios, os répteis, os mamíferos. Desde as espécies que viveriam por milhares de anos, aos microorganismos, cujo ciclo de vida, gira em torno de apenas trinta minutos. Assim se fez.


Observava atentamente a obra, já quase concluída, e sentia-se levemente reconfortado. Trazia um sorriso agarrado ao canto da boca, e achava-se surpreso, com o que acabara de realizar. Surpreendeu-se com a obra em si, e consigo mesmo, por descobrir o quanto era genioso e inventivo. Sentia-se vaidoso. Repentinamente, uma dor súbita, percorre todo o seu corpo, da cabeça aos pés. Sente calafrios, e a febre parece aumentar. A tosse está para lhe estourar os pulmões. Afunda-se um pouco mais nas nuvens, que suavemente o embalam. Emite um fraco suspiro. Tem a forte impressão que o tempo que acabara de criar, vem lhe escapar pelas mãos. Vê um trovão cortar o céu, e lamenta por não poder agarrá-lo, está sem forças para tanto. Observa mais uma vez, sua mais recente criação. Enfia a mão pelo barro, e com a visão já um pouco às cegas, como se a obra não estivesse completa, e como se muito, não mais pudesse fazer, manipula o torrão, como se uma forma nova, quisesse lhe dar. Uma dor aguda e profunda atravessa-lhe o peito. Um mal estar incontrolável. Os membros não lhe respondem. Um último suspiro, que em sopro se transforma, faz levantar do pó da terra, uma outra criatura. Nasce o homem, mas Ele, já estaria morto.



Marcos Vinícius.

sábado, 9 de maio de 2009

A breve história dos ladrões pequenos







A breve história dos ladrões pequenos


Ana, como diariamente o fazia, normalmente no horário de almoço, excetuando em seus breves finais de semana, chegava ao ponto de ônibus, que a levaria para mais um turno de trabalho, na periferia da cidade. Era pontual. Sempre o mesmo horário e os mesmos passos rápidos. Vinha com a sensação de missão cumprida, por ter encerrado um dia de trabalho em uma empresa, ao término da manhã, mas já sentia-se ansiosa por um outro turno que ainda estava por iniciar. Na verdade, tinha quase os passos contados, cronometrados, e o ônibus, em que viajava, que a levava de um trabalho para outro, dificilmente se atrasava. Sabia, portanto, o tempo exato, em que ali deveria aguardar, parada. Aquele ponto, sempre lhe causava certa apreensão, o que é justificável, por ser sempre mais vazio, deserto, e à beira de uma rodovia, ainda que sob a luz de quase meio-dia. Locais onde normalmente os gatunos e ladrões tem mais facilidade de ação, dadas as vantagens de fuga, principalmente, diante de vítimas mais frágeis, como pessoas à pé, em pontos de ônibus, mulheres e velhos. Mas ali chegava, mais um dia, à espera do embarque.

A apreensão inicial acabou por se dispersar, quando encontra no ponto do ônibus, também a espera, uma jovem e um senhor, já com idade bem avançada, nitidamente perceptíveis, não só pelos sulcos profundos no rosto, as teias de rugas, os labirintos de pele ressecada, a flacidez das mãos, mas um olhar cansado, meio esgotado, de quem não mais alimenta ilusões. A jovem, sentada ao lado, também aparenta ter mais idade do que de fato tem. Senta-se um pouco curvada, como se parte grande do mundo, pesasse sobre seu ombro. Sua atenção é fixa, parece não perceber a chegada de Ana. Tem os olhos pregados ao chão. Os cabelos estão mal arrumados, está sem maquiagem, sem cosméticos ou perfumes, e parece, estar também a trabalho. As mãos, com as unhas por fazer, seguram firmemente uma bolsa emborrachada, que trás atravessada ao pescoço.

Ana mantém-se de pé. O velho tosse. A jovem parece despertar de um transe profundo. Faltam ainda alguns minutos para o próximo ônibus passar. Ana dá uns passos à frente. Silenciosamente, olham-se, um ao outro, os três a olhar-se, mutuamente. Sem palavras ou gestos. Um quê de desconfiança, pois de estranhos e desconhecidos se trata, um quê de cumplicidade, dadas as condições em comum em que se encontram, o ponto, a espera, e a solidão. Em seguida, movem-se os três, ao mesmo tempo, como se combinado. Ana aperta a pasta ao peito, a jovem, com as mãos de quem carrega urgência, abraça a bolsa sobre o colo, e o velho pigarreia e parece resmungar. Como demora este ônibus, diz a jovem.

Subitamente, quase do nada, surgem dois homens na estrada. Com passos apressados, se aproximam também do ponto. As pernas do velho, parecem revelar um susto, que o resto do corpo, não fez por demonstrar, movem-se rapidamente, como se neste preciso momento, não precisasse do comando de seu dono e senhor, como se misteriosamente, se movimentassem por conta própria. Talvez, num corpo mais jovem, se pusesse a levantar ou a correr. Ana, que já quase se descontraia, repentinamente, retesa o corpo, as mãos parecem enrijecer. A jovem olha para os dois, com olhar de perplexidade, e ao mesmo tempo, de desafio. Agarra-se à bolsa.

Entre tremores e suores, se anuncia o assalto. Olha aí, se não passar o que levam aí de valor, dinheiro, principalmente dinheiro, morre. Ta escutando? Morre, diz o mais novo. Vamos, sem moleza, passa logo a grana. Se não, vou ter que esquentar o cano. Passa logo, grita. A jovem, contrariada, agarra-se a bolsa, ainda uma vez, antes de entregá-la. Ana parece suar por todos os poros, empalidece. Os olhos do velho se embaçam, e as mãos parecem não encontrar os caminhos do bolso, onde levava a carteira. Treme. Os homens desistem dele, não se sabe se por compaixão, ou pela quase certeza que pouco lucrariam com o velho de calças puídas e sandálias gastas, com os pés quase ao chão. Talvez não valesse a pena. Levam apenas as bolsas das duas mulheres. Uma emudece, estarrecida. A outra está por explodir.

Os bandidos, após a bem sucedida operação, atravessam a rodovia, e dirigem-se para o pequeno bairro em frente, como se não estivessem a fugir, mas indo para casa. Como de fato, estavam. Talvez mesmo em função da crise que não perdoa a ninguém, tenham preferido os ladrões assaltarem nas proximidades de casa, por uma questão de economia, ou mesmo, de comodidade. A jovem, ainda inconformada com tudo aquilo, e observando os homens à distância, num ímpeto, desabafa, Sei lidar com vagabundo, não serão estes a me dobrar, ah, não, diz com fúria. Levanta-se como se partisse para a guerra. O coração palpita forte e o sangue corre veloz pelas veias. As faces coram. Os olhos parecem apontar uma única direção, meio vidrados, meio às cegas. O passo é uma marcha, firme, duro, determinado. Estes não me escapam, diz afirmativa. Estes não me escapam.

Em poucos minutos, pergunta pra um, pergunta pra outro, e acaba por chegar à morada dos ladrões. Aciona, nem se sabe como, a ronda policial, e rapidamente, como se dotada de poderes, que talvez nunca tenha imaginado possuir, e numa velocidade espantosa, faz cerco aos bandidos. O assalto, para eles, resultou-se vexatório. As bolsas foram encontradas por sobre o telhado, e os bandidos, escondidos, no guarda-roupa, protagonizam um triste espetáculo na vizinhança. Normalmente, estes flagrantes, despertam a curiosidade de todos, que querem saber, como foi, onde foi, o que ocorreu, quais os envolvidos, enfim, todos se amontoam para assistir o espetáculo da prisão dos vizinhos encurralados. Casais, crianças, até os gatos e cães, se aglomeram de frente a casa, para saber quem de lá vai sair, e como sairá. Todos de olhos esbugalhados, curiosos, atentos, para assistir, sem perder um lance sequer, do que está a ocorrer. Qual será o desfecho? Adolescentes roem as unhas. Uma mulher chora. Os curiosos que beiravam a cena, só não viraram multidão, pois a ação da polícia foi rápida, uma vez, que provavelmente, não se tratava, digamos, de ladrões profissionais. Não houve resistência. Os bandidos saem algemados, cabisbaixos, e qual não é a surpresa dos espectadores, ao confirmarem o que já se suspeitava. Muitos não imaginavam que o vizinho próximo, homem trabalhador, em seu dia de folga, chegasse a tanto.

Os homens são arrastados por uma forte escolta policial. Todos observam imóveis, serem, os dois, atirados às grades; acompanham passo por passo, gesto por gesto, lance por lance, até os carros, com suas luzes e sirenes, darem a partida. Por fim, voltam, pois as costas, e passam a narrar histórias, versões, todos ali terão alguma para contar. Como pode, quem imaginava, eu já sabia, há quem conheça toda a família e também, os caprichos e os credores. A pequena multidão, eufórica, aos poucos se desfaz. Encerrado o caso, finalmente, Ana e a jovem entreolham-se, e trocam as primeiras palavras. Foi Deus, diz Ana. Foi - responde secamente a jovem. Mas o final que não há que negar, é que estes infelizes conhecerão, onde estiverem, o inferno, dos homens, do qual não poderão escapar.


Marcos Vinícius.