João me ligou agora há pouco.
Estava feliz e eufórico. Não era para menos. Acabou de ganhar um disco com as
vinte músicas mais conhecidas de Belchior. Ele diz estar maravilhado com o
presente, pois, como já conhece de cor a letra de todas as músicas, coloca o
som bem alto, e se põe a cantar também. Segundo ele, não há terapia melhor para
aliviar o estresse e o cansaço e que, quanto mais canta, mais tem vontade de
cantar, sentindo-se alegre e revigorado. Na noite passada, ouviu o disco por
diversas vezes e adormeceu ouvindo o canto mágico de Bel. De repente, abriu os
olhos. O dia estava claro e uma revoada de pássaros passou sobre sua cabeça,
enchendo os céus de uma música afinadíssima e alegre. Ao longe, ouvia-se o
ronco de alguma cachoeira. Como havia chovido quase a noite inteira e o sol
despontava radiante, o verde ao redor tornara-se tão intenso, que mais parecia
um cenário de sonhos. Ele caminhava sozinho por uma estreita trilha de terra,
ainda húmida pela chuva da madrugada e, imediatamente, após abaixar-se para
desviar-se de um tronco que se punha no caminho e colocar-se novamente de pé,
quem vê à sua frente? Ninguém menos que Belchior. Surpreso, e sem entender
tamanha coincidência e sorte, cumprimenta o poeta que, também andava só, porém
em sentido oposto ao seu. – Bom dia. Belchior? Não acredito. Nossa, que sorte a
minha. O que faz por aqui? Que felicidade em vê-lo. Agora mesmo, acabo de
ganhar um belíssimo disco seu. Isto é que é presente. Belchior posta-se à sua
frente, a trilha ali ainda é mais estreita, o mato se fecha, e enquanto um
atravessa, o outro tem que aguardar. Belchior observa-o, silenciosamente, e não
dá muita importância aos cumprimentos. João insiste - Belchior, sou o maior fã
que há. Não imagina o prazer que é encontrá-lo por aqui. Está só? Pois eu
também. Posso fazer-lhe companhia? Belchior encara-o, fixamente, olhos nos
olhos, e diz apenas, “O passado é uma roupa que não nos serve mais”. João, curioso, em tom amável e sem dar a
passagem, responde – Amo esta sua música, como amo todas as outras também.
Diga-me, Bel, para onde vai? Eu estou sem horários ou compromissos. Seria uma
honra poder acompanhá-lo. “Saia do meu caminho, eu prefiro andar sozinho,
deixem que eu decida a minha vida”, diz o cantor, que mostrava-se impaciente
com seu interlocutor. João, sem graça, um calor abrasador lhe subia a face a
ponto de enrubescê-la, resolve, porém, não desperdiçar a oportunidade do raro
encontro. Desculpe-me, Belchior - ele disse, abrindo o caminho - De forma
alguma traria incômodos ou inconveniências a quem só me proporcionou alegrias.
Mas diga-me Bel, por onde tem andado? “Se você vier me perguntar por onde andei
no tempo em que você sonhava, de olhos abertos lhe direi, amigo eu me
desesperava”, responde o poeta. Mas está tudo bem com o senhor? Insiste João,
tentando ser amigável. “A minha alucinação é suportar o dia-a-dia, e meu
delírio é a experiência com coisas reais”, diz Belchior, que dá as costas, e
segue pela trilha sem olhar para trás. Mas Belchior - implora João - permita-me
apenas fazer algumas perguntinhas, por favor. Não é necessário chatear-se,
diga-me apenas por onde anda e por que o mau humor? Neste instante, Belchior
interrompe os passos e vira-se para ele com um sorriso amigável e diz – “Eu
sinto tudo na ferida viva do meu coração”. “Meu bem, o meu lugar é onde você
quer que ele seja, não quero o que a cabeça pensa, eu quero o que a alma
deseja”, “Mesmo vivendo assim, não me esqueci de amar...”, “A noite fria me
ensinou a amar mais o meu dia, e pela dor eu descobri o poder da alegria”.
Neste instante, João é tomado de grande alegria e entusiasmo. Outra vez, uma
grande revoada de pássaros enche o céu de cantorias. Um pássaro, maior que os
outros, com o bico preto e afunilado, penas cinzas e peito amarelo, pousa
suavemente sobre os ombros do poeta, que ainda diz – “Meu bem, talvez você
possa compreender a minha solidão, o meu som e a minha fúria e essa pressa de
viver”, “Aparências, nada mais, sustentaram nossas vidas que apesar de mal
vividas têm ainda uma esperança de poder viver”. Belchior abre um sorriso
sincero e amável para João que, tímido e desconcertado, arrisca ainda uma
pergunta – O que tem feito de bom? – “Tenho ouvido muitos discos, conversado
com pessoas, caminhado meu caminho”, “Amar e mudas as coisas me interessa
mais”. Os dois estão em pé, um olhando para o outro. João não consegue
conter-se em entusiasmos e indaga – Tem acompanhado as coisas todas que tem
acontecido no Brasil? Belchior dá um sorriso sem graça, lança um olhar
consternado e diz – “Tenho comigo pensado, Deus é brasileiro e anda do meu
lado, e assim já não posso sofrer no ano passado”. Dá uma piscadela para João e
acrescenta – “Por força deste destino, um tango argentino me vai bem melhor que
um Blues”. Neste minuto, um silêncio se interpõe entre eles, quebrado apenas
por um bando de andorinhas cantadoras que realizam uma coreografia sobre a
cabeça dos dois. Belchior põe-se a andar. João o chama. – Belchior, há saída? –
“Falaremos para a vida: vida, pisa devagar, meu coração, cuidado, é frágil”,
“Você não sente nem vê, meu amigo, que uma nova mudança em breve vai acontecer”
- ele responde. Belchior lhe dá um aceno em despedida, vira-se e segue pela
trilha. No terceiro passo, um muro branco, caiado, aparece à margem esquerda do
caminho. O poeta retira um pincel do bolso, volta-se, mais uma vez para João,
as andorinhas dão-lhe uma rasante, esvoaçando sua cabeleira, e ele diz – “E a
certeza que tenho coisas novas, coisas novas pra dizer”. O poeta banha o pincel
em uma lata de tinta que carregava nas mãos, leva-o até a parede branca e grita
para João – “Sonho e escrevo em letras grandes de novo pelos muros do país”. É
o instante em que João desperta e o disco ainda tocava, era a última faixa. O
fato é que João levantou-se, foi ao banheiro e correu de volta para a cama, na
tentativa de retomar o sonho. Inútil. Dormiu uma noite inteira como uma pedra e
ninguém mais o visitou durante o sono. Agora, me atormenta ao telefone querendo
que o ajude a descobrir o que é que Belchior já ia escrever naquele muro. Tem
como?
Marcos Vinícius.
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