quarta-feira, 5 de setembro de 2018

A saga de Luzia




Luzia, a jovem de rosto largo e olhos arredondados, que vivia pelas matas pré-históricas da região de grutas e cavernas do que um dia seria chamado de Minas Gerais, é uma inigualável testemunha da humanidade que somos. Seus antepassados próximos desbravaram e povoaram as Américas, advindos de uma épica travessia transcontinental, há algumas dezenas de milhares de anos. Por aqui, vivia, muito provavelmente, da caça e da coleta, e talvez tenha sobrevivido a todo tipo de perigos de uma vida selvagem, num mundo povoado por mastodontes, megatérios e gliptodontes. Luzia morreu jovem, vinte e poucos anos. Quis o destino, porém, que seus restos mortais se petrificassem em fósseis e atravessassem o tempo, para que um dia pudesse se revelar e contar para as gerações futuras um pouco de si e de nosso passado comum. Até que fosse descoberta por estudiosos, pesquisadores, e ganhasse vida nova e fama, afinal, além das várias contribuições que sua descoberta proporcionava à ciência, era a brasileira mais antiga que conseguimos encontrar. Seu fóssil sobreviveu a formação de todas as comunidades e civilizações indígenas, ameríndias, à chegada dos europeus das grandes navegações, as guerras de conquista, ao período colonial. Sobreviveu a revoltas, Inconfidências, ao Império e a República. Luzia, inquebrantável, longeva, pré-histórica, testemunha maior da nossa antiguidade e humanidade, atravessou, incólume, a ação devastadora do tempo e das forças históricas. Luzia não sobreviveu, porém, ao Brasil da Era Temer, ao Brasil do golpe. Testemunha de pedra do passado que tivemos, suas cinzas, agora, sua segunda e definitiva morte, são o retrato cruel do despaís que nos tornamos, dos caminhos desconstruídos, em direção ao passado e ao porvir. Adeus, Luzia.


Marcos Vinícius.

sexta-feira, 13 de julho de 2018

Do texto à tela




Foram poucas as vezes que assisti filmes, dos quais já havia lido seus livros originários. Em um esforço de memória, consigo me recordar apenas de meia dúzia deles. Na maioria dos casos, sempre considerei os resultados muito decepcionantes, frustrantes, mesmo. “Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley, assisti há anos, era garoto na ocasião, e pouco me lembro da versão para as telas, apenas uma lembrança bastante corroída pelo tempo, de que, ao fim e ao cabo, empobrecera a obra da qual havia nascido. “Feliz Ano Velho”, de Marcelo Rubens Paiva, também, por motivos que já pouco me recordo, foi um desalento; lembro-me de ter reclamado desta interpretação em várias ocasiões, talvez, pelo padrão global adotado, no esforço de sua adaptação. “1984”, de George Orwell, passou longe das emoções que apenas o livro foi capaz de despertar. “O processo”, de Franz Kafka, deste me recordo bem, foi de uma pobreza inigualável, sofrível; cheguei a assistir uma segunda vez, para verificar, se alguma falta de sensibilidade ou de percepção havia me impedido de admirá-lo da primeira vez que o vi. Não, o filme é ruim mesmo, e já o desaconselhei por mais de uma vez. O livro é uma obra prima. Quanto ao “O perfume”, de Patrick Suskind, não é que seja ruim, o esforço foi louvável, houve muita repercussão à época de seu lançamento, e lotou os cinemas. Ouvi vários elogios. O problema é que fiquei muito encantado e admirado com a leitura desta obra, achei-a, simplesmente, fantástica e a considero uma das maiores pérolas da literatura, que tive a feliz oportunidade de conhecer. Não apenas a história é fascinante, como a narrativa do autor, seu dom literário e o estilo da sua escrita, tornaram sua leitura, inesquecível. Natural que nestas condições, o filme não tenha me deixado em estado de completa satisfação. Já “Cegueira”, da obra de José Saramago, adaptado por Fernando Meirelles, apesar da grande dificuldade que imagino ser, levar para o cinema, qualquer das obras do autor, foi um filme, no mínimo, razoável. O que faz da literatura de Saramago algo fabuloso não são apenas as histórias em si, seu enredo e roteiros, mas a forma como as conta, sua narrativa, as reflexões filosóficas que vai traçando ao longo dos textos. É o que talvez, o torne único, inigualável, somada a riqueza da sua prosa poética. Isto o cinema não tem como explorar. José Saramago, ao longo de sua vida, sempre ofereceu uma dura resistência em permitir que seus livros fossem levados para as telas. Porém, a reação do autor português, dentro do cinema, ao lado de Meirelles, ao acabar de ver a película, tornou-se memorável, Saramago chora, chega ao ponto de enxugar com os dedos, as lágrimas dos olhos, e diz, “Fernando, estou tão feliz por ter visto este filme, como estava quando acabei de escrever o livro”. Dito isto, já não há mais o que acrescentar. Bem, na verdade, teci esta breve recordação para, finalmente, falar sobre o estado de graça em que fiquei ontem, ao assistir o longa-metragem “O amor nos tempos do cólera”. Sou fã incondicional de Gabriel Garcia Márquez, e já li todos os seus romances. Por anos resisti em ver o filme, com o receio de que ele pudesse quebrar a magia e o encanto que me vem à mente, ao rever qualquer uma de suas histórias. Porém, ontem, com ele em mãos, resolvi vê-lo. Belíssimo, maravilhoso. Um grande clássico do cinema. Tudo impecável, atores, fotografia, texto, paisagens, adaptação ao cenário de época, figurino, fidelidade à obra, tudo. É daqueles filmes que a gente tem que assistir sem piscar, para não perder nem um pedacinho. Que bom, nunca havia visto algo assim. Emocionante, de verdade. Além da lindíssima história de amor, poesia e perseverança, no melhor estilo de Garcia Márquez. E como bem disse, Florentino Ariza, seu protagonista, “Depois de 54 anos, sete meses, onze dias e noites, meu coração, finalmente, se realizou. E eu descobri, para a minha alegria, que é a vida, e não a morte, que não tem limites”.


Marcos Vinícius.

quinta-feira, 12 de julho de 2018

Junho de 2018




Roda Viva, semimorta, convoca um bolsominion-ruralista, um aloprado do MBL, fakes de jornalistas, a tropa de choque da direita mais escrota e reacionária que temos por aqui, para triturar a candidata Manuela D`'Avila, ao vivo. Houve um tempo, em que o programa primava pela excelência. Era honesto e inteligente. Hoje, um lixo completo, prestando um grande desserviço ao povo brasileiro. Revela, agora, a face medíocre e decadente de um antijornalismo lambe-botas, baba-ovos e, triunfalmente, babaca. Uma Roda Viva, moribunda e borra bosta. Vai, Brasil. – (27 de junho).




Estas imagens tornam-se umas das testemunhas mais recentes e contundentes de que nosso modelo civilizatório, não apenas nos conduziu a um dramático beco sem saídas, mas também a um escandaloso e sombrio fundo do poço. São retratos do triunfo da imoralidade suprema, da perversão absoluta e quem sabe, mais outro sinal do próprio fim dos tempos. Talvez, o bafejo da besta. – (20 de junho).













É mais sério do que se imagina. Se os fakenews já são uma lástima, sua produção em larguíssima escala, associada ao efeito potencializador das redes digitais, vem criando uma multidão de especialistas naquilo que não compreendem, imagens e conceitos totalmente distorcidos do mundo e da realidade, como se vivêssemos pendurados em nuvens, e uma legião de debatedores contumazes, que defendem, invariavelmente, a ida do nada ao lugar nenhum. Que mundo é esse? – (17 de junho).



Alguém sabe dizer por que a alegria do pobre, quando tem alguma, dura quase nada, e seu pão quando cai, vai ao chão, é sempre com o lado da manteiga virado para baixo? – (17 de junho).



O estrago causado pelo golpe no Brasil foi tão devastador que, além de condenar o país a uma condição quase colonial e o povo brasileiro a uma escravidão reciclada, sofisticada, matou, pasmem, até o espírito futebolístico das Copas do Mundo. Nem a ditadura militar, em seus tempos mais sombrios, foi tão longe. Não imaginei que fosse viver a ponto de ver coisa assim. Onde foram parar as camisas da seleção, as cornetas, bandeiras e chapéus verde-amarelo? Golpistas, paneleiros e coxinhas transformaram nosso espírito cívico, de torcedores entusiasmados e empedernidos, em uma gigantesca bola murcha. Que mico, ops, que pato. – (12 de junho).



Marcos Vinícius.

segunda-feira, 11 de junho de 2018

As cinzas do vulcão.




Desde ontem, a correspondência, preservada dentro do envelope, ficara sobre a mesa de madeira escura e carunchada. Já era quase o final do dia, quando foi enfiada por debaixo da porta. Antônio ouviu o barulho, a casa, àquela hora, estava guardada em silêncios, e o ruído dos papéis envelopados raspando sobre o assoalho empenado da sala, chamou sua atenção de imediato. Ao olhar o envelope amassado, imagina uma infinidade de remetentes, comunicados, avisos, convocatórias, cobranças, propagandas, que dali pode sair. Não era comum que recebesse cartas ou envelopes com aquele aspecto, cheio de selos e carimbos. Não era algo corriqueiro, comum, ali, certamente, haveria alguma dívida esquecida, uma má notícia, ou sabe-se lá o quê. Mesmo à espera de uma indenização, que há anos lhe devia a empresa na qual se aposentara há quase uma década, já não mais contava com ela. Era algo que, com o tempo, tornou-se uma ilusão perdida, um sonho distante ou irrealizável, uma quimera, apenas. Houve épocas, em que a expectativa pelo recebimento da quantia, o fizera sofrer de ansiedades e angústias e, por fim, desesperanças. Acabou por perder a fé, a lei não serve mesmo para os mais pobres, os carentes e necessitados de toda e qualquer natureza. Não seria a primeira nem a última vez que os patrões, em conluio com os que deveriam, por ofício, defender o justo e o legal, dariam o cano nos empregados, sejam os da ativa ou os que já se aposentaram. Estes, então, pobres coitados, distantes do convívio diário com os departamentos e chefias, e fora da empresa, teriam suas pendengas, ações, processos, protelados, recorridos, instanciados, até que o tempo quase as tornassem impossíveis. Em uma sucessão infinita de recursos, questiúnculas jurídicas, pactos espúrios com advogados e tribunais, muitas das vezes, a sentença é dada, quando o reclamante já neste mundo, nem mais está. Não era à toa que ao ver aquele envelope de aspecto formal, no chão da sua sala, resistira em alimentar, uma vez mais, suas ilusões. Não imaginava que um dia, em vida, pudesse usufruir o prometido benefício. Agachou-se, calmamente, para apanhá-lo, procurou manter a calma e relaxar as expectativas, porém, um tremor ligeiro apossou-se de si e, em instantes, intensificara-se, a ponto das mãos, desorientadas e nervosas, quase rasgarem a carta, quando o envelope timbrado foi rompido. Um calafrio repentino lhe subtraiu a precisão dos dedos e o documento quase é danificado. Ao desfazer a última dobradura do papel, Antônio pode, enfim, constatar, que a indenização, por mais incrível que podia lhe parecer, finalmente, seria paga. Ele segura firme o papel, controlando o tremor inicial, pressiona-o, com força, entre os dedos, e o relê umas tantas vezes. Fixa os olhos no documento, examina-o de cima em baixo, de cabo a rabo, cada palavra, os verbos, os substantivos as vírgulas, busca as entrelinhas, verifica os carimbos, os números e a assinatura. Já não lhe restam dúvidas. Amanhã mesmo, ira sacar o dinheiro. Deposita os papéis sobre a mesa, põe um pequeno peso sobre eles, um antigo porta-retratos, e ali os deixa, sem mais pegá-los pelo resto do dia, como um prêmio, sagrados e  intocáveis.  Até o momento de deitar-se, ele quase não teria sossego, um turbilhão de pensamentos invade seus circuitos cerebrais e, então, põe-se a andar de um lado para o outro. Da sala para cozinha, da cozinha para o banheiro, do banheiro para o quarto, repetidas vezes refaz o percurso. Como a casa é pequena, não lhe sobra espaços, entrou e saiu do mesmo cômodo, uma infinidade de vezes. Assim fez, até que se cansasse e, tomado de uma sensação de esgotamento e excitação, adormece. Nos primeiros raios solares do dia, quando a noite ainda não havia se desfeito por completo, ainda bem cedo, mais que o de costume, Antônio desperta. Em um sobressalto, levanta-se da cama e vai até a sala. Lá está o envelope, sobre a mesa velha, guardado pelo porta-retratos. Aproxima-se e passa os dedos sobre ele. É real. Por alguns instantes, repousa os olhos sobre o tampo da mesa e, quase sem piscar, com o corpo inerte e paralisado, põe-se a imaginar o dia que teria pela frente. Não seria um dia qualquer. Resolve que irá, ainda pela manhã, ao escritório da empresa buscar aquilo que lhe devem, afinal, já era tempo de abandonar a eterna espera. Não era uma fortuna, daquelas que poderiam aliviar suas preocupações financeiras até o fim de seus dias, mas como levava uma vida simples, austera e repleta de limitações, e já havia uns dois anos, que se livrara do pagamento de um empréstimo bancário, com juros abusivos e escorchantes, aquele dinheiro extra, poderia lhe trazer, quem sabe, algumas alegrias, uma viagem, uma ida a algum restaurante, daqueles que sempre observou, mas que nunca pode entrar e usufruir, uma dieta mais rica e variada no seu dia a dia, algumas roupas novas, o show de algum cantor de suas preferências, adquirir ingressos para algum campeonato de futebol ou quem sabe até realizar um sonho antigo, como conhecer o mar, ah, o mar, como gostaria de ir ao seu encontro. Queria saber da sensação das ondas quebrando em seus pés, caminhar distâncias sobre a areia molhada, sentir o vento úmido, do outro lado do mundo, experimentar do sal das águas e, mineiro que era, da região das montanhas e alturas, temia apenas, das águas oceânicas, espreitar-se por suas profundezas. Sempre o intrigara o verde e o azul dos mares, além do seu gigantismo, que conhecera apenas pelas fotografias ou televisão.  Um ligeiro sopro do vento balança as persianas da sala e desperta Antônio do pensamento longínquo. Vai até o banheiro, lava as mãos e mira-se no espelho. As marcas do cobertor, gravadas em seu rosto, alonga umas pequenas estrias de rugas que trazia na face. Olheiras rasas eram sintomas mais de algum tédio encarnado do que de cansaço. Os fios de barba esbranquiçada já despontavam, intensificando os sinais de envelhecimento. Em movimentos rápidos, porém, automáticos, ágeis e certeiros, lava o rosto, os olhos, escova os dentes, e arranca a barca insurgente. Um banho morno, quase frio, desperta-lhe os ânimos e revigora suas disposições. Em poucos minutos, ajeita-se, faz o desjejum, um copo de leite e um pão com manteiga e prepara-se para deixar a casa. Como faz todos os dias, antes de sair, confere se as lâmpadas estão apagadas, o gás desligado, as cortinas fechadas, as tomadas desocupadas, e sempre lança um olhar de adeus e esperanças ao retrato do filho, emoldurado e pendurado na parede em frente à porta. Este, que há oito anos, foi-se de casa e nunca mais mandou notícias. Uma ovelha que se desgarrou, sabe-se lá para onde. Uma angústia que lhe corroía a alma e todos os seus espíritos, além das saudades que sentia, era não conhecer seu paradeiro. Para quais terras terá migrado, por quais destinos ou caminhos, andará desamparado, perdido pelas estradas, preso nas masmorras, ou mais um dos ingratos e desgarrados, que estão às boas, de farra com a vida e nada mais lhes importa? Não sabia, sequer tinha sombras fracas, sinais mínimos, uma suspeita, um indício qualquer, de onde pudesse estar, se ainda vivo ou se a morte precoce e implacável, o tivesse levado, sem deixar pistas ou rastros. Todos os dias, ao entrar ou sair de casa, depara-se com a imagem do filho. O retrato, desta vez, lhe parece fora de prumo, ligeiramente torto, inclinado. Ao levantar os braços para colocá-lo na posição original, ajeitando-o, devidamente, na parede, uma dor aguda lhe enverga a coluna. Respira fundo, procura manter a calma, e uma pequena lágrima, aquelas típicas das dores insuportáveis, que saem espremidas por elas, embaçam seus olhos. A dor súbita e a lembrança do filho ausente extraem parte das alegrias que o embalavam nesta manhã. Pouco a pouco, a dor intensa vai dando lugar, a uma dorzinha fina e constante, uma dor menor, mas incômoda, carne dolorida, que o faz arrastar um pouco o passo. Não era recente este desconforto. Ia e vinha, ao longo dos anos. Às vezes, com mais intensidade, outras, menos. Esta foi a herança adquirida em décadas e décadas de trabalho no almoxarifado da empresa, levantando e empilhando caixas, de todos os tamanhos e pesos, desde caixinhas pequenas, miúdas, até os caixotes enormes, pesadíssimos, que tinham que ser distribuídos pelas milhares de prateleiras, das que ficavam ao rés do chão, até as do topo, encostados no teto. Este trabalho contínuo, monótono, repetitivo e pesado lhe custou a saúde da coluna, que em algumas ocasiões, o deixava entrevado em casa, sem condições de arrastar-se pelas ruas. Ao contrário da indenização, que levou uma vida para que pudesse ser paga, estes ossos doloridos do ofício, sempre o acompanharam, desde o primeiro dia, o primeiro sinal, a primeiríssima manifestação, o arrepio primitivo e original, do desconforto inaugural até sempre. Aqui não houve perdão, possibilidade de recursos, contestação e protelamentos, afora uma pequena trégua ou outra; uma condenação da natureza e do mundo do trabalho, onde, mesmo aposentado, até o fim dos seus dias, carregaria a dolorosa sensação do desgaste que o ofício lhe causara, para esta, não haveria, descanso, ações vitoriosas ou aposentadorias. Os médicos dizem ser crônico e não há o que fazer.  Quando a dor aperta, toma algumas doses cavalares de analgésicos e outros tantos comprimidos, e alivia-se do pior. Sorte que, desta vez, ela foi rápida, apesar de fulminante, mas pelo menos, não o impediria do fazer o que, por hoje, tinha de ser feito. Há dias em que, após a passagem do mal súbito, devido a traumas musculares ou das terminações nervosas, sequelas, além de uma dose de ansiedade que vem acompanhada consigo, o que é natural em situações como estas, a perna direita torna-se um pouco mais rígida e os passos temerosos, o que torna sua caminhada em meio torta, envergada, quase rastejante, cambaleante, trazendo perceptíveis problemas de locomoção. Não seria pois, desta vez que ficaria impossibilitado. Fora apenas um susto, mal passageiro. Estava pronto para ir ao escritório. Pela primeira vez, tira o envelope de onde havia colocado, desde quando o recebeu, e lá estava o documento, inviolável, à espera do encaminhamento burocrático, das assinaturas e procedimentos, para que enfim, a tão aguardada soma, pudesse, finalmente, ser depositada em sua conta bancária e, em seguida, transformada em algo útil ou prazeroso para sua humilde e pacata vida. Dá uma dobra no envelope e mete-o no bolso do paletó, bem a altura do peito, onde poderia, a qualquer momento, em um breve toque, certificar-se da sua presença. Já do lado de fora, após dar o último giro da chave na porta, sente o vento frio que varre as ruas e os telhados e observa que o sol ainda estava longe de firmar-se. A manhã estava mais nublada que nos dias anteriores. Antônio anda três quarteirões até chegar ao ponto de ônibus, e dá sorte de encontrar um assento ainda vazio, porque depois desta breve caminhada pelos passeios tortuosos e irregulares da vizinhança, a perna dava sinais de que ira incomodar. Senta-se à espera do lotação. Enquanto aguarda a chegada do veículo que o conduziria até o centro da cidade, observa os transeuntes e o bando de adolescentes reunidos que conversavam e gesticulavam freneticamente, bem ao seu lado. Tinham os cabelos com cortes desenhados, coloridos, brincos e piercings de todos os tipos, perfumes, calças desbotadas e rasgadas, e se esfregavam, se pegavam, alisavam-se todo o tempo, explorando as delícias, os prazeres e o sensualismo de sua juventude. As peles são frescas, os dentes saudáveis, os sorrisos largos e o sexo, latente. A senhora sentada ao lado, já envelhecida e curvada, com os olhos secos, a pele fina e enrugada, observa os jovens com curiosidade e desdém. Finge não observá-los, mas não tira os olhos deles, procura, quase sem sucesso, a discrição, mas o olhar duro e condenatório torna-se perceptível e plenamente visível, até para os menos observadores. Quando seu ônibus para e ela sobe pelas escadas da frente, fita-os, entortando o pescoço, até perdê-los de vista, depois que o motorista dá a partida. O interesse, a curiosidade e o incômodo haviam se apossado da velha. Talvez aqueles garotos reunidos, meninos e meninas com seus hormônios em ebulição permanente, tenham despertado na mulher, sabe-se lá, antigas lembranças de um tempo perdido, um amor que se foi, alguma paixão arrebatadora ou um sexo casual. Ou não, vai ver ocorreram os contrários, um amor não vivido, paixões não reveladas, tesões sufocados e reprimidos. Não sabemos se, afinal, a velha que se fora, por desconhecidos caminhos, sofria de doces recordações e lembranças ou amargas frustações e invejas, reflete, silenciosamente, Antônio. Ao fim e ao cabo, os velhos, naturalmente, terão mesmo alguma inveja dos jovens, seja pela saudade de um tempo, por tê-lo aproveitado em demasia, seja pela angústia, de tê-lo desperdiçado em carências e medos. Quando seu ônibus para, Antônio interrompe os pensamentos. Apesar de alguma dificuldade com a perna direita, consegue subir os degraus sem grandes problemas. Ainda assim, quando o ônibus arranca, nos modos como fez a velha, enverga o pescoço para observar aqueles jovens, até perdê-los de vista. Por sorte, encontra um banco vazio, de onde pode, não apenas observar a viagem pela janela, como esticar sua perna dolorida e um pouco manca. O lotação aquele horário não estava muito cheio, o que não era o costume, pois, na maioria das vezes, como esta linha percorre longas distâncias, e são poucos os carros, normalmente eles passam apinhados, entupidos de gente, no interior do qual, torna-se quase impossível locomover-se. Em determinados horários, a vida nos grandes centros é ainda, mais insuportável e infernal, com ruas e avenidas tomadas de carros, em engarrafamentos quilométricos, que tornam o ir e vir dos cidadãos, da casa ao trabalho e do trabalho à casa, um martírio quase insuperável. Antônio parece ter escolhido o momento exato para sair à rua. O trânsito estava mais tranquilo, sem longos congestionamentos e viajava sentado. Abriu um pouco mais a janela e deixou o vento bater no seu rosto e despentear os seus cabelos grisalhos. Enquanto o ônibus avançava, ia observando, atentamente, a cidade desfilando diante de si. As imagens dos letreiros, dos prédios, casas comerciais, homens e mulheres, alternavam-se rapidamente, à velocidade de cinquenta quilômetros por hora, como um filme em alta rotação, onde muito pouco se podia observar dos detalhes das coisas. Quando parava nos pontos, com seu olhar curioso, observava, um a um, os que, angustiados, esperavam pelo transporte e a viagem. Os pontos de ônibus das regiões mais centrais dos grandes aglomerados urbanos são sempre locais curiosos, pois ali encontramos, todo tipo de gente, de todas as idades, de todas as cores, nacionalidades, credos e opções sexuais. É onde mais se aflora, a olhos vistos, esta baita diversidade da natureza humana, com todas as suas tendências, gerações e tribos. À exceção dos ricos e abastados, que são a minoria, em qualquer dos territórios, a multiplicidade e variedade da nossa espécie, está ali representada, em uma amostragem extremamente democrática e significativa. A viagem até o centro não é demorada, e apenas mais dois ou três pontos à frente, terá chegado bem próximo ao seu destino. Ainda sentado, continua a observar o movimento pelas largas calçadas e avenidas, milhares de pessoas se amontoam nas repartições, nas lojas, estabelecimentos de todos os tipos, nas filas dos bancos, nos mercados populares, em todos os cantos, pendurados nos arranha-céus e enfurnados nos subsolos, nos trabalhos subterrâneos das tubulações hidráulicas e dos cabos de energia. Não há um local qualquer onde não se aviste as pessoas aos montes, com seus passos apressados, multidões que se entrecruzam, por um sem número de esquinas, pelos canteiros centrais, pelas rotatórias, nos semáforos, nas pequenas praças e corredores, nos elevadores e nos grandes centros de compras. É um fluxo contínuo de pessoas, transformando a cidade em um organismo vivo, cujo corpo e espaço, vão além da dimensão geográfica e arvoram-se pelos campos da biologia. Mais que um mapa, ainda que relutem os cartógrafos, a cidade é uma célula, em plena atividade. Antônio gosta de observar este movimento humano, o caos urbano, quando anda de ônibus. Vez ou outra, ao apreciar as mulheres, que velozmente, vão passando à sua frente, encontra alguma, que por um motivo ou outro, um pequenino detalhe, ou um conjunto de grandes coincidências, lhe traz lembranças de sua falecida esposa, Lígia. Esta se fora muito jovem, quando o casamento ainda ia pelas luas de mel, de modo que Antônio, somados os anos, tem mais tempo de viúvo do que teve de casado. As feridas desta fatalidade já haviam cicatrizado em seu coração, neste aspecto, o tempo fora um bom remédio, pois foram tantos os tempos de ausências, que uma vida com a antiga companheira tornara-se algo já, praticamente, inimaginável. O que não significava que, vez ou outra, não viessem à tona, doces e dolorosas recordações. Ela foi uma companheira invejável e ele a amou cheio de paixões, com toda a força e entusiasmos que a juventude lhes permitia e estimulava. A viuvez, a princípio, encheu Antônio de tristezas e depressões, com o tempo, foi resignando-se, viveu alguns casos amorosos, porém, sem compromissos e laços ou qualquer perspectiva de uma nova constituição familiar, mas depois, à medida que envelhecia, foi se fechando e enchendo-se de solidões. Com o desaparecimento do filho, e o aperto econômico, tanto a mulher, quanto o filho, contribuíam com as despesas domésticas, Antônio reduziu, drasticamente, suas saídas de casa, perdeu o gosto pelas festas, bares, rodas de amigos e conversa com os vizinhos. Optou por isolar-se e tornaram-se raríssimas as vezes, em que tinha alguma vida social.  A casa virou o seu mundo e de lá apenas saía quando movido pelas necessidades. Ademais, as dores na coluna, quando atacavam para valer, era praticamente impossível manter o bom humor. Antônio sentia que, de certa forma, esse desconforto lhe antecipara jeitos de velho, pois após as crises mais agudas, era tomado de um abatimento na expressão, como se a vida lhe subtraísse, no mínimo, uns dez anos.

Antes que levantasse o braço para disparar a campainha, uma moça, sentada ao seu lado, o faz, o que, de imediato, lhe causa uma sensação de alívio, poupando-lhe esforços. Estava contente em receber o dinheiro e não queria que estas limitações físicas sequestrassem os seus ânimos. O ônibus para, ele desce as escadas, alcança a calçada e segue em direção ao escritório, a duas quadras dali. Vai sem a pressa daqueles pedestres afobados, que correm de um lado para o outro, sempre preocupados com os atrasos e os horários, a vida de aposentado, mesmo apertada, e repleta de carências materiais, lhe permitiu o luxo de desligar-se dos relógios, na medida da maioria dos mortais. Eram pouquíssimas as consultas que fazia aos aparelhos, marcadores do tempo, ao longo do dia. Nas ocasiões em não tinha a necessidade de sair de casa, sequer olhava para eles. Em comparação ao ritmo dos demais transeuntes, seu passo é lento. Porém, em contrapartida, por dentro, carrega uma dose de ansiedade em ver a operação, o crédito consumado, concluída. Não sabe ainda, qual o valor exato receberia, pois já fazia tempos que não acompanhava as correções monetárias, a aplicação dos juros, a atualização dos valores, a contabilidade da dívida. Sabia que, de qualquer maneira, para mais ou para menos, para o bem ou para o mal, o primeiro contato com estes números, que lhe pertenciam por direito, lhe trariam surpresas. Era necessário controlar as emoções. Sentia o coração apressado, descompassado com o ritmo dos pés e pernas. Para um pouco, antes de dobrar a esquina, encosta-se em um poste de luz, abaixa a gola da camisa, deixando o vento refrescar o seu peito, respira fundo o ar poluído da metrópole, e imagina que a surpresa que o aguarda, em hipótese alguma, será motivo para frustrações, pois, como ocorrera pouquíssimas vezes ao longo de sua vida, em se tratando de dinheiro, não era ele, agora, o devedor. Era uma soma que estava sendo acrescentada, adicionada à sua vida, não sendo subtraída, expropriada, retirada. Qualquer que fosse o valor e o tamanho dos números, estes estariam a seu favor, não contra si, era aquisição, ganho, não operações de débito. Ele anima-se, aperta os passos e, em poucos instantes, está na repartição. É atendido por uma senhora de meia idade, com cabelos presos e óculos grossos. É uma mulher de poucas palavras, quase não tira os olhos dos papéis, demonstra segurança no que faz e é ágil no atendimento. Após recolher meia dúzia de assinaturas de Antônio, verificar seus documentos e carimbar inúmeras folhas e recibos, avisa a seu interlocutor que o dinheiro estará depositado em sua conta bancária em menos de uma hora. Ele agradece com toda a gentileza que podia e retira-se do local. Em seguida, procura um local onde pudesse sentar e iniciar cálculos, previsões, avaliar o significado concreto, real, daquela indenização. Desce um pouco a rua e encontra uma loja fechada, cujo degrau de acesso oferece um bom assento. Fica por ali mesmo. Abre os papéis, passa os olhos e os dedos sobre os números, retira uma folha de jornal do bolso da calça e avalia, aqui não se trata de grandes fortunas, mas em termos absolutos, diria que daria para comprar um carro popular seminovo, enquanto verifica uma propaganda de uma grande loja de veículos usados, na folha amassada do jornal. Pela primeira vez, em sua vida inteira, teve depositado em sua conta um valor destes, suficiente para adquirir um carro. Antônio guardou todos os papéis, já havia dimensionado a proporção dos seus ganhos e põe-se a observar, novamente, o movimento da rua. Verifica o fluxo intenso dos automóveis, a aparência dos cidadãos, as mulheres que vão e vem e o movimento intenso das lojas e comércios. E agora? O que faria? Uma coisa era certa. Em hipótese alguma, compraria um automóvel. Se até hoje não havia precisado de um, não seria agora, que iria adquiri-lo. Além do mais, seriam muitas as despesas que traria, impostos, multas, combustível, manutenção, além do que, não imagina exatamente o que faria com ele, depois que o comprasse. Ideia descartada, provavelmente, reminiscências de velhos sonhos juvenis, pensa. Não é mais tempo para isto. Talvez não fizesse aquisição alguma, não era homem de grandes ambições, pelo contrário, levava uma vida modesta e a pequena casa em que vivia, acreditava, em nada precisava ser melhorada. Não sentia necessidade de uma aquisição material imediata. Depois de pensar, ponderar, colocar nas balanças, concluiu que o mais provável mesmo, fosse deixar o dinheiro no banco, guardado, aplicado, e curtir pequenos luxos que a vida cotidiana poderia lhe oferecer, coisas corriqueiras, banais, como, ir ao cinema, a um espetáculo qualquer, estádios, restaurantes ou sabe-se lá mais aonde. Estas coisas que, ao longo de toda a sua vida, não teve oportunidades de usufruir. Levanta-se e põe-se a andar, descendo a avenida. Entra em uma agência bancária, vai até o caixa eletrônico e retira uma pequena quantia para que pudesse passear pela cidade com algum dinheiro excedente no bolso; era o primeiro excedente considerável de que dispunha. Para em uma lanchonete, pede salgados, sucos naturais e uma farta e saborosa sobremesa, come sem economias ou comedimentos. Dá-se por satisfeito. Ainda na avenida, alguns quarteirões abaixo, entra em uma camisaria e compra duas peças estampadas que estavam em promoção. Sentia-se animado. Vai ziguezagueando pelo grande centro, observando, as pessoas, as mulheres, as vitrines, as ofertas, descontos e promoções. Não queria voltar para a casa ainda. O tempo estava agradável e a cidade apresentava-se convidativa. Entrava e saia das lojas, cruzava ruas, praças e avenidas. As dores estavam adormecidas e as pernas estavam fortes e revigoradas, o que possibilitou um bom tempo de caminhadas. Rodopiou ao ponto de cansar-se. De súbito, pensou em fazer o que não fazia há anos, entrar em um boteco qualquer e tomar uma dose de conhaque. Assim o fez. Encontrou um bar bem no miolo do grande centro, repleto de mesas e cadeiras e um balcão extremamente comprido e por ali se recostou. Pediu ao garçom uma cerveja e uma dose de conhaque, para que pudesse aquecer o sangue, e por ali ficou, quase uma hora. Tantos tempos já se passaram desde que sorveu o último trago, que a experiência tinha gosto de novidade. A cerveja, que, a princípio, lhe pareceu amarga, em seguida, estava saborosa, já o conhaque, desceu queimando-lhe o peito, arrepiando os pelos dos braços e uma lágrima em poças encharcou os seus olhos. Daí a pouco, um sorriso largo e a sensação de relaxamento e descontração lhe tomam a alma. Por ali, portanto, não demoraria, pois, não queria chegar ao ponto de tontear-se, perder de vez, o controle dos passos. Antes de se retirar, olha com compaixão, uma jovem mulher, envelhecida muito precocemente, com rugas profundas rasgando sua juventude, acompanhada de duas crianças pequenas, do outro lado do balcão, em uma cadeira mais ao fundo. Antônio compra uma porção de balas e chocolates e oferece aos garotos. A mãe observa-o, com olhar fugidio, misturado à gratidão e indiferença, um breve contentamento e uma fria resignação. Ele não prolonga as conversas e prepara-se para sair.  Ao despedir-se do local e pagar a conta, deixou uma generosa gorjeta para o garçom. Volte sempre, disse o moço, como uma forma de retribuir o favor e garantir outros para o futuro. Antes de dirigir-se, agora de volta, ao ponto de ônibus, decide dar mais alguns giros pela cidade movimentada. Desce a primeira rua à direita, e tem acesso aos mercados populares, ali, onde a vida fervilha, milhares de pessoas se apertam em grandes galpões e prédios antigos, em busca dos cobiçados preços populares. Um labirinto infinito de corredores estreitos e compridos oferece os mais variados produtos e mercadorias, quinquilharias, supérfluos de todos os tipos, bonecas e brinquedos de plástico, eletrônicos, roupas, calçados, discos, comidas e todos os tipos de serviços. Grande parte dos produtos é proveniente da China, são os antigos e famosos negócios da China, que ainda hoje abarrotam estas feiras, lotadas de pobres e remediados. Os preços dos produtos, geralmente, são bem mais baratos que os similares encontrados nos shoppings tradicionais, mais voltados às classes médias. Normalmente, são falsificações baratas ou mercadorias que percorrem caminhos obscuros e desconhecidos das maiorias, conseguindo safar-se de um sem número de taxas e impostos, que geralmente são cobrados no país. Por lá, do outro lado do mundo, uma gigantesca mão-de-obra barata e disponível, por aqui, as facilidades e conveniências do enorme mercado paralelo. Antônio sente certa sufocação naquele ambiente agitado de vendedores e consumidores apinhados em bancas minúsculas e corredores comprimidos. Volta à largueza das avenidas, para respirar mais aliviado e à vontade, ainda que o ar frio do inverno e o monóxido de carbono, os gases poluentes dos automóveis, que contaminam, insuportavelmente, a atmosfera das cidades, causem algum desconforto ou mal estar. Anda mais algumas quadras, dobra esquinas, e interrompe a marcha ao deparar-se com uma agência de viagens, estas que vendem as quotas no paraíso, que oferecem os mais variados passeios, mares azuis, esverdeados, passeios exóticos, tudo, parcelado em infinitas prestações. Ali, onde se pode ter acesso a lugares inimagináveis, pagando por anos, uma viagem de uma semana, ou uns três ou quatro dias. Antônio corre o olho pelas grandes fotografias estampadas nas vitrines. Até que não seria uma má ideia, pensa, passar alguns dias em uma praia destas. É um caso, que ele, agora sem pressa, resolve considerar. Não é coisa para se decidir de imediato, mas garante que por alguns dias estará analisando as possibilidades. Sempre disse para si mesmo, que ainda chegaria o dia que teria a oportunidade de banhar-se nas águas salgados dos oceanos. Talvez tenha chegado o momento. Decidirá em outra hora, tinha tempo para pensar nisto, conclui. Afasta-se dali o mais rápido que pode, antes que a ligeira excitação provocada pelo álcool lhe faça fechar um negócio, para o qual ainda não tem certeza das reais conveniências. Dá sequência às andanças e já começa a planejar o retorno a casa. Reduz um pouco mais o ritmo dos passos, para retardar a chegada ao ponto de ônibus, afinal, aquele dia estava sendo bastante agradável, não se recordava da última vez, em que pudesse ter usufruído de tais felicidades de fazer planos de compras, comidarias e viagens. Alguns metros abaixo, aproxima-se da região dos hotéis, transformados em prostíbulos, onde mulheres de todas as idades e feições oferecem seus serviços sexuais. Aquele não era o caminho do ponto de ônibus de Antônio, nem era local que tivesse o hábito de frequentar, mas ao cruzar a rua, tão farta destes estabelecimentos, resolve, não apenas atravessá-la, mas se aventurar pelas suas calçadas, atraído pelo perfume que saía de suas portas e janelas. Funcionários dos hotéis são encarregados de espargir aromatizantes em seus corredores e escadarias, para tornar o clima do local mais aprazível e sedutor. O vento, muitas das vezes, ao varrer aquelas ruas, leva o cheiro artificial da lavanda ou das flores do campo, para pontos um pouco mais afastados dali, espalhando por cantos da cidade, as fragrâncias e os segredos do sexo profissional e clandestino. Nas portas dos hotéis das bordas do centro da cidade, onde se oferece o sexo barato, à vista ou no cartão, vendedores, ambulantes, aproveitando-se do grande número de pessoas que o setor movimenta, oferecem todo tipo de mercadorias, camisetas, bermudas, salgados, bebidas, churrasquinhos, carregadores de baterias, capas de celulares, tatuadores, espaço disputado também, por ladrões e malfeitores de toda ordem. Além, óbvio, do grande número de trabalhadores, em seus breves momentos de folga, que sobem as escadas, adentram-se pelos quartos e contratam programas a preços populares e contados aos minutos; valores variáveis conforme o número de posições e serviços sexuais que o cliente esteja disposto a pagar. Ao passar em frente um destes hotéis, Antônio, tomado pelo aroma que descia das escadas e pela curiosidade, mais que por quaisquer outros motivos, retém os passos e estaciona encostado em um ponto de ônibus, como se ali, passasse um dos seus. Não, o lotação que o conduziria de volta a casa, estaria a mais de três quarteirões distantes dali. Ele fica alguns bons minutos observando o entra e sai pela porta, o sobe e desce pelos degraus desgastados das escadarias de acesso. Ele nunca tinha subido estas escadas, obviamente, já conhecia histórias e casos relacionados ao local, mas ele mesmo, nunca havia andado por aqueles corredores do sexo comercial. Um dor fria na coluna, repentina, o assombra e talvez fosse o sinal de que a perna direita pudesse vir, novamente, a se arrastar, obrigando-o, se assim fosse, a abandonar as aventuras e andanças. Mas não, a dor, em poucos segundos, desapareceu. A sensação de alívio se sobrepõe ao susto e o abastece de ânimos. Ele não se distraiu um segundo sequer da atenção que dedicava à entrada do hotel perfumado. Os homens subiam e desciam apressados. Os semblantes dos que sobem, são diferentes dos que descem, constata. Há uma aparente expressão de descontração nos que retornam. A curiosidade começa a perturbá-lo. Ora, por que não subiria para conhecer o local? Indaga-se. Afinal, é um homem desprendido, não há uma esposa, uma noiva ou uma namorada, com quem tivesse um compromisso formal de fidelidade e restrições, estava pelo mundo às soltas, e aqueles a quem deveria dar respostas e satisfações já não mais estavam consigo. Pelo meretrício, saem homens de todas as gerações, sobem e descem os bem jovens, os de idade média e porque não iriam também, os da chamada terceira idade, alguns, inclusive, avançando os degraus, com alguma dificuldade, escorados pelas paredes e corrimãos. Decide, então, ele também, conhecer de perto, o que se passa lá em cima.  Imediatamente, após tomar a decisão, um peso invisível e momentaneamente insuperável abate-se sobre todo o seu corpo. Não consegue se locomover, como se grãos de chumbo agarrados à pele o impedissem de sequer se arrastar. Estava estacado, as pernas imobilizadas, completamente desobedientes as recentes orientações e decisões do cérebro, de onde vinha o comando. Por instantes, imaginou que um castigo do alto, pelo pecado eminente, tivesse lhe transformado em estátua viva ou uma massa de concreto em formato de gente.  Estranha sensação aquela. Rapidamente, porém, retoma as rédeas de si, as tensões se afrouxam, e prepara-se para o primeiro passo. Vence a escadaria. O mal ficara para trás. Lá em cima, a meia luz e a penumbra se misturam aos perfumes que são borrifados pelos corredores. Mulheres seminuas transitam por todos os lados e postam-se, sedutoras, nas portas dos quartos. São todas jovens, bonitas e, na disputa entre os clientes, cada uma, à sua maneira, e de acordo com os dotes que carrega, expõe aos frequentadores da casa, o que considera possuir de mais atrativo, na disputa pelo mercado do sexo. Umas deixam mais à mostra os seios, outras o rosto, as nádegas, ou que quer que lhes ofereça vantagens na hora de atrair o cliente para sua cama. Antônio atreve-se pelos corredores, um a um, bisbilhota quarto por quarto, mulher por mulher. Os quartos têm um modelo padrão, uma cama, ventilador, espelho, cabides e um pequeno banheiro. As mulheres estão todas maquiadas, rostos pintados e corpo despido, muitas com saltos altos, penteados sofisticados, unhas postiças e intimidades à mostra.  Ele estava admirado. Um calor sufocante lhe atravessou o peito e subiu ao pescoço, as mãos, estavam trêmulas. A vida solitária afastara-o, por um tempo razoável, das mulheres e dos prazeres do sexo. A visão de todas aquelas garotas, seminuas, reunidas, à disposição, deixaram-no atordoado. Ainda não sabia o que faria, mas era urgente sair do local, para que pudesse arejar-se, depois retornaria. Ao dirigir-se para a saída, vê uma jovem moça na porta de um quarto, usa um lingerie preto, transparente, curto e rendado. Os cabelos batem nos ombros, castanhos e pouco volumosos, morena clara, os lábios são carnudos, proeminentes, batom vermelho, os olhos amendoados, luminosos e grandes. Ela lhe dirige um sorriso e o convida para os prazeres. Ele diz, O que? Hein? Como? Comigo? Ela responde, com você mesmo, vamos? E sorri, achando graça do desconforto dele. Ele, sem jeito, tentando recompor-se, diz, sim, em seguida, não. A propósito, vamos sim, mas daqui a pouco, ok? Volto logo, beijos. E retira-se apressadamente. Uma forte emoção se abate sobre ele, um misto de desejo e pânico, que torna sua respiração difícil e ofegante, o coração palpita aos pulos. Mas que diabos de desgoverno é este? Pensa. Até parece que nunca vi mulher neste mundo, para me por a tremer desta maneira. Não é possível. Desce as escadas em direção à calçada, com a cabeça assaltada pelos pensamentos. Era necessário andar um pouco, tomar ar e vento, para colocar as ideias no lugar, acomodar as imagens impactantes, que giravam em sua cabeça confusa. Assim que firma-se e a respiração volta ao normal, o pensamento dá voltas e mais voltas. Põe-se a andar, resolve contornar o quarteirão e entrega-se às imaginações. Mas como pode? Tantas garotas, tão belas, tão jovens, tão nuas e oferecidas desta maneira? Por uma bagatela de poucos reais podermos usufruir destes belos, monumentais e sedutores corpos? Antônio tinha a sensação de que os tempos que ficara em casa, após a perda da mulher, a partida do filho e a resistência em interagir com o mundo, tinham lhe condenado a um estado de isolamento e a uma dificuldade em compreender a complexidade da vida e as voltas que ela dá. Além disto, uma visão romântica e ingênua sobre as coisas e as pessoas, muitas das vezes, faziam da sua relação com o mundo real, uma sucessão de impactos e traumas. A imagem atualizada e próxima da prostituição e as silhuetas das mulheres prostradas pelos corredores lhe deixaram transtornado. A lembrança da última garota, a que riu do desconcerto dele, veio à sua mente e, nela grudou-se. O sorriso, a voz, os olhos, as curvas, a pele, os cabelos da jovem garota, minuto por minuto, passo a passo, transformam-se em obsessão ao pensamento de Antônio. Quem seria ela? De onde saíra? Viveria aqui mesmo na cidade, naquele hotel, ou moraria fora? A imagem da garota, um pouco embaçada, devido à penumbra do ambiente, não lhe vinha totalmente às claras, mas era quase um fantasma a acompanha-lo pela rua afora. Ele desejava-a. A vontade de dar meia-volta, passar, novamente, por aquela porta, subir outra vez as escadas e entrar naquele quarto pouco iluminado dominara-o por completo. Ele procura resistir, mas forças interiores, quase incontroláveis, como um imã, insistem que retorne. Antônio reluta. Entra no primeiro bar que encontra pelo caminho, senta-se, pede um conhaque e fica, por alguns minutos, calado e pensativo. Toma a bebida em dois goles e arrepia-se dos pés à cabeça. Levanta-se, paga a conta e sai em direção à rua. Ao lado do bar, uma drogaria anunciava, pelos autofalantes, a preços módicos e populares, as famosas pílulas azuis, as pílulas do amor. Antônio não se faz de rogado, vai até o balcão e pede os famigerados comprimidos mais alguns preservativos. A atendente lhe entrega os pedidos, dá o troco, e lhe deseja uma boa tarde. Ele a observa, um pouco sem graça, e retira-se de imediato. Volta ao bar, pede uma cerveja e mais outro conhaque. Senta-se na última mesa, ao fundo, desembrulha o comprimido e antes que o garçom se aproximasse, já o havia engolido. Desta vez, bebe lentamente o conhaque e a cerveja, desliza os dedos sobre a garrafa gelada, arranca o rótulo umedecido e pica-o em vários pedaços. No mais, enquanto não esvazia todo o seu conteúdo, continua imóvel, sentado, absorto em seus pensamentos. Após o último gole, levanta-se, decidido. Paga a conta, desta vez, sem gorjetas, e volta em direção ao hotel. Não há mais dúvidas. Irá até a garota, a última que havia visto no local. Ao subir as escadas e deparar-se com o corredor, o coração volta a palpitar acelerado. Respira fundo, na tentativa de manter o controle da situação. Em um rápido exercício respiratório e auxiliado pelos efeitos do álcool, em poucos instantes, mantém a calma e controla as exageradas palpitações. Sente-se, agora, mais a vontade. Aproximando-se do quarto da moça escolhida, toma um susto ao constatar que a porta estava fechada. Terá saído ou estará atendendo algum cliente? Indaga-se, perturbado. Assim que dá as costas e continua a aprofundar-se pelos corredores, ouve uma porta se abrindo. Era ela, e de lá saia o cliente, a passos rápidos e cabisbaixo. Ele não retorna de imediato. Vai até o fundo, até a última porta, o último quarto, a última moça. Está decidido, por mais belas e atraentes que sejam todas elas, irá com aquela mesma, se ainda estiver disponível. Na verdade, já a escolhera, desde antes. É bem provável, que tenha retornado ao hotel por ela apenas e por nenhuma outra. Segue em direção a ela, determinado, e pouca atenção presta as outras garotas que estavam pelo caminho. Por mais que se insinuassem para ele, o veredito já fora dado. O seu passo é certeiro, decidido. Aproxima-se, ela o olha, curiosa, ele pergunta sobre o programa, ela dá o seu preço, os dois entram no quarto e ela passa a chave na porta. Iniciam o diálogo. Como é exatamente o programa? Ele pergunta. É o seguinte, amor, você tem vinte minutos e, neste período, estou à sua disposição. Vamos começar? Qual é o seu nome? Me chamo Antônio. Prazer, sou Mirela. Pode ir tirando a roupa, meu querido. Um pouco embaraçado e sem jeito, ele pergunta, Deixa lhe dizer uma coisa, não haveria como ficar um pouco mais, uma hora, e eu lhe pagaria um pouco mais que o dobro? A metade do tempo, os primeiros trinta minutos, se não fosse pedir muito, gostaria que a senhorita pudesse me dedicar conversas, e o tempo restante, a outra meia outra, aí sim, iríamos aos finalmentes? A moça, com a expressão de quem não entendeu muito bem a proposta, com os olhos marejados de dúvidas, indaga, Como assim, exatamente? Ele responde, Lhe pago três vezes o valor que pediu e ficamos por uma hora aqui dentro do quarto. Meia hora de conversas e depois a execução dos apropriados serviços. Ok? Ela, apesar de achar a oferta pouco comum, não vê motivos para recusar, uma vez que o valor pago será maior que o relativo ao tempo dispendido e não via maiores problemas em dialogar com o cliente, desde que este não fosse abusar do expediente, invadindo suas íntimas e pessoais histórias. Ok, meu bem, sem problemas. Aqui estamos. Sentam-se na cama. Ele acaricia suas pernas, com as mãos, de início, pouco titubeantes e desorientadas, mas, que com a acomodação de espíritos e a docilidade da moça, vão adquirindo seguranças, desenvolturas, engenho e destreza. Ela baixa levemente o ombro, a alça da pequena camisola, desliza sobre seus braços, e um dos seios põe-se à mostra.  Ele pousa uma mão sobre eles e acaricia-os, vagarosamente. A moça lança nele um olhar de cumplicidade. Bonito, seu nome, Mirela. Mais parece nome de princesas, diz. Ah, obrigada, mas sabe o que é, Antônio, vou lhe confessar. Na verdade, como você já deve saber, aqui não usamos o nome que temos, o verdadeiro, original, que consta nos documentos e foi escolhido quando do nascimento. Aqui usamos os fictícios, de fantasia. Um disfarce? Ele brinca. Mais que um disfarce, ela responde, levantando-se para ajeitar os cabelos e reforçar o batom. Sim, em primeiro lugar, é um disfarce, obviamente, não queremos nossas identidades reveladas aqui dentro, já estamos muito expostas, não acha? Também não lhe faria muita diferença se o nome fosse outro, Júlia, Poliana, Marcela, Beatriz, não é mesmo? Não foi pelo meu nome que vieste até mim, mesmo porque, você ainda não o conhecia. Mas além do disfarce, desta máscara transparente, que mais revela do que esconde, usamos os de mentira, para poupar-nos a  nós mesmas. Nunca te passou aquele dia em que gostaria de ser outro? Não aquilo que és? Pois então, às vezes, atendemos alguns clientes, que o melhor seria que pudéssemos nos fazer ausentes de quem realmente somos. Que pudéssemos estar  em um outro no lugar. A alcunha que adotamos nos permite algum descanso, na medida, em que o personagem se incorpora em nós e, de alguma forma, nos ausentamos, mesmo estando presentes. A vida é complexa, Antônio. Para ser muito sincera com o senhor, me chamo Maria e, antes de adotar Mirela, experimentei Mariáh, a princípio, por achar bonito e não me distanciar muito do original, talvez fosse até mais fácil de incorporar e me acostumar, pois bastava alterar a entonação da palavra, cuja grafia é quase a mesa, e pronto, resolvido, mas ele acabou por me encher de tédios, pois além dos esforços de adaptação que há que se fazer quando temos um nome novo, ele fazia com que me visse meio que como um reflexo de mim mesma, um eu às avessas, ao contrário, invertido, mas, no fundo, era euzinha ali, sem arredar o pé, uma sombra de mim. Maria, Mariáh, vê como é parecido? E o senhor, gosta do nome que tem? Antônio é pego de surpresas, quando refletia sobre as palavras da moça. Ah, sim, ele nunca me trouxe problemas, e a bem da verdade, sendo muito franco, acredita que nunca pensei no assunto e jamais considerei as possibilidades de ter um outro? Foi minha mãe quem o escolheu, disto me recordo. Pensando nisto, tenho a sensação que já tinha mesmo este nome, antes que desembarcasse neste mundo, tal como ele me soa a antiguidade. E estou aqui a pensar se estas mudanças de nomes não são possíveis apenas quando se é muito jovem, quando ainda não tivemos o tempo suficiente para nos viciarmos, nos acostumarmos, irremediavelmente, com o que nos foi dado, nas origens. Depois de muitos anos, quando iniciamos a envelhecer, já está tão incrustrado, arraigado, com raízes tão profundas, que a impressão que temos, é que não mais viveríamos sem ele, por mais elegante e bonito que fosse seu substituto. Torna-se parte da natureza dos velhos e é impossível subtraí-lo ou trocá-lo. Portanto, não era assunto com que tivesse que se preocupar, pois estas coisas de mudança de nome são fenômenos exclusivos da juventude. Ela, então, sorri, ele se aproxima um pouco mais, leva as mãos nos cabelos dela, afastando-os para trás, descobre sua nuca e beija-a. Ela levanta-se, encara-o com certa ternura, coloca o dedo indicador sobre os lábios dele e diz, E ainda tem nome de santo, hein? Santo Antônio. Sim, e diria mesmo, que este muito me cai bem, como luvas, pois afinal, de acordo com pesquisas que realizei, ele tem raízes muito antigas, provenientes do grego, algo como ‘alimentado de flores’, é o que dizem as enciclopédias. Vê? Talvez, por isto mesmo, em homenagem ao nome ou em decorrência dele, aqui estou, ao teu lado, me alimentando de flor. Mirela solta um sorriso largo e solta os últimos botões que fechavam a blusa transparente. Antônio puxa-a para si, e acaricia suas costas, por baixo do tecido fino que lhe pendia dos ombros. Ela olha para o relógio, ainda não fechou a primeira meia hora. Dá um rodopio ao redor de si mesma e o provoca, estimulando a prosa, Mas, então, de santo mesmo, não tem nada, né?  Vai que o nome não lhe cai tão bem assim, e deu boas gargalhadas, diante do aparente desconcerto de Antônio. Talvez tenha razão, Mirela, ou Maria, já não sei, segundo a história do Santo, ele, após, entregar sua fortuna aos pobres, refugiou-se no deserto e resistiu às investidas do demônio.  Este conjunto de sortes e forças não é para os comuns dos mortais. Pensando melhor, nunca é tão tarde para mudanças. A propósito, Mirela, consegue imaginar um nome que possa me cair bem? Ela se diverte com a história e senta em seu colo, já quase nua, faltando apenas desfazer-se da calcinha. Ele corre seus dedos pelas partes descobertas e ela lhe retribui com um abraço. Ele arrisca uma pergunta, Desculpe-me pelo excesso de curiosidades, mas dá-me o direito de saber um pouco sobre si? Mas como? Responde aflita. Não faça confusão nesta cabecinha, sabes bem, que estás aqui para um programa, é o serviço que estou a prestar. Não vá imaginar que estás a comprar a mim, ofereço algumas horas, mas ainda, não me pus à venda por inteira. Desculpe-me, Mirela, Maria, queria perguntar apenas se vives só, se tem família, de onde és? Ora, por que se preocupa tanto? Mas, tudo bem. Vou lhe dizer. Não tenho família, senhor. Minha única família era minha mãe, que, pobre coitada, sem destinos e esperanças, desapareceu sem deixar notícias. Ainda era uma criança quando ela se foi, quando o mundo ainda era completamente incompreensível para mim. Nunca soube onde ela foi se meter, nunca mais deu sinais de vida. Rapidamente cresci, e como garota crescida, apetitosa, fui sobrevivendo dos afazeres sexuais. Dei sorte, de ter vindo ao mundo, bonita, pois nunca me faltam os serviços. Também não tenho paradas, canso rápido dos lugares, hoje estou por aqui, quanto ao amanhã, não faço ideia de onde possa estar. Não diria que perdi as raízes, pois não cheguei a criá-las, é provável que não tenham nascido em mim. Faço um giro pelos grandes centros, onde o movimento é maior e preservamos nossos anonimatos. Em lugares menores, rapidamente, ficamos conhecidas e somos vítimas de abusos e quiçá, perseguições. Neste grande formigueiro humano, há a enorme vantagem, de ninguém conhecer ninguém. Não sou de fazer amizades, pois hoje acho que elas tornaram-se impossíveis, em tudo, são apenas jogos de interesses, fuxicos e traições. Mas gostei daqui, desta cidade, onde já estou há dois meses, e o melhor, o dinheiro gira. Está vendo aquela caixa fechada de camisinhas sobre a penteadeira? Pois então, até o final de semana, ela, muito provavelmente, já estará vazia. Antônio tenta imaginar quantos preservativos vai ali dentro, mas não tem a coragem de fazer a pergunta. Sabe senhor, hoje posso dizer sem remorsos ou frustrações, que caminho só pelo mundo, e assim, por muito tempo ainda, não tenho lá outras expectativas e o que ganho, tem me garantido sobreviver. Sem luxos, naturalmente, mas também, sem ter que me deparar com as caras feias da fome. Não tenho história, senhor. Vivo apenas o dia de cada vez, não guardo os passados, e o futuro, só o tempo dirá. Mas e o senhor? É sozinho também ou vive em uma família numerosa e cheio de filhos? Antônio olha para o relógio sobre a pequena cômoda e, pelo combinado, ainda lhe sobram cinco minutos de prosas. Uma sensação de calor sobe pelo peito, pescoço e cora sua face, fica ruborizado, os vasos sanguíneos, parecem dilatar-se. Suas mãos, mais uma vez, percorrem o corpo de Maria, aproxima seus lábios do dela, mas não chega a tocá-los. Roça-lhe os seios. Inclina-se sobre o colo da jovem, pelos perfumes e fragrâncias, e o cheiro do sândalo, sobe pelas narinas, entra para dentro de si, tomando-lhe a alma. Antônio prepara-se para a última resposta, raspa a garganta e encaminha-se para o encerramento do primeiro ato. Acelera o ritmo da voz e diz, Sabe, Maria, também estou só nesta vida, em uma solidão diferente da sua, pois não rodo mundos, e meu universo tornou-se a casa que habito. Minha esposa se foi, ainda bem jovem, meu filho, perdeu-se pelos descaminhos do mundo, desapareceu, e o único irmão que tive, acredita se eu lhe disser que nem me lembro da fisionomia que tem? São tantas décadas sem qualquer informação, não sobraram sequer os retratos. Ouvi dizer, e isto já faz anos, que virou classe mérdia, ops, desculpe-me, classe média, comprou carro e mudou-se para o litoral. Dizem as más línguas, que depois que adquiriu casa na praia, decidiu desligar-se por completo dos contatos com as famílias, pois estas, em busca de passeios baratos, econômicos, poderiam transformar-se em problemas, dores de cabeça e visitas indesejáveis. Sabe como é, pobre quando ganha algum dinheiro, quer distância máxima da família, dos que não tiveram a mesma sorte, pois carregam um temor enorme, que estes venham lhe pedir empréstimos, esmolas,  hospedagem em suas casas de verão, ou que tenham que apresentá-los para os amigos e vizinhos, revelando o lado miserável das suas origens, o que com tantos sacrifícios, passaram uma vida, tentando esconder. Já tentei religiões, mas os sermões me enchiam de tédio e, com o tempo, percebi que as igrejas, de modo geral, estavam mais para os campos dos negócios do que para os territórios da fé. Quanto às mulheres, Maria, ah, nos últimos anos, desilude-me, e acabei por me afastar delas, mas como vê, não completamente, pois, fosse o caso, aqui não estaria. Desculpe-me mais uma vez Maria, Mariah, mas acho que exagerei nos falatórios, é que fico muito tempo, dias até, sem possibilidade de diálogos e prosas, além do que, para mim, estas palavras todas que soltamos, os casos que contamos, confesso que me serviram de aquecimento para o segundo ato, deitar-me, enfim, com você. Sabe Maria, só para finalizar, dias destes, vi na televisão uma reportagem sobre um dos maiores pintores da cristandade, da Igreja, um tal de, se não me falha memórias, Caravaggio, que viveu há séculos, em Roma; contratado pelo advogado do papa para retratar a morte da Virgem para a Igreja das Carmelitas, pintou seu maior quadro de altar, porém, o que os padres descobriram, foi que a modelo utilizada pelo pintor, era uma cortesã, uma prostituta. A igreja considerou, naturalmente, a obra ofensiva, desprovida de santidades e a recusou. Hoje a tela está no Museu do Louvre, em Paris. Ela arregala os olhos para Antônio. Sério? Ele, Seríssimo. O profano sempre esteve a espreitar o sagrado e vice-versa, as fés e religiões sempre estão assediando e buscando o controle dos corpos e seus desejos, em sua luta contra as liberdades e o que chamam de pecado. Há muito jogo de cena nisto, sabe? Veja como temos inúmeras lideranças religiosas envolvidas em todos os tipos de orgias, isto quando não entram para as políticas, aprimorando o repertório das mentiras e a arte de enganar o povo. É verdade, Antônio, por aqui mesmo, vemos de padres a pastores, seja fazendo suas panfletagens e campanhas de convencimento e conversão, até os que vêm em busca de nossos serviços e a satisfação das taras e apetites carnais. Estará o mundo de pernas para o ar? Não, Maria, é assim mesmo a ordem das coisas, o mundo não é apenas o que Deus fez, mas também as armadilhas e truques que armamos sobre ele. Os dois olham para o relógio. Meia hora completa. Despem-se. Maria deita-se, Antônio agarra-se a ela. Ela solta-se, relaxa as musculaturas e abre-se como flor em primavera. Dos olhos dele saem um lúmen faiscado, com lampejos e fagulhas clareando o quarto, quase sem luz. Tem a pele em brasa. As veias, dilatadas, carregam o sangue incandescente, combustível e motor daquela tarde embriagada e quente.  As mãos febris percorrem em ritmo, ora suave, ora frenético, toda a extensão da epiderme de Maria, explorando planícies e curvas. Ela entrega-se. Um clima abafado e abrasador alastra-se pelo ambiente. Ele penetra-lhe as carnes, ela geme calafrios em seus ouvidos. Antônio incendeia e se arrebenta em explosões. O som de seus sexos inflamados, em chamas, é vibrante e ardente crepitação. Ele lhe imprime uma sede voraz e calcinante. O mundo inteiro queima nos braços de Antônio, em excitação total. Ao encerrar-se o último minuto dos tempos combinados, ele derrama nela, incendiário, piromaníaco, suas sementes de fogo,  infecundas, e seu gozo em cinzas. Um sorriso luminoso, em labaredas trêmulas, que já se apagam, estanca-se no canto da sua boca esfumaçada. Maria aperta-lhe os ombros em um último abraço. Ele está completamente imóvel, inerte e ausente. Ela assusta-se, e com o corpo ainda frouxo e os braços hesitantes sacode o homem, que não dá sinais. A mulher solta um grito enlouquecido, que atravessa o quarto, rompe as paredes do hotel e faz-se ouvir pela cidade inteira, como um estrondoso relâmpago. Em poucos minutos, a porta seria aberta pelos socorros, vindos de fora. Reforços seriam chamados. Ele, derramado, feito magma derretido e já sem vida. Ela, dura, rocha vulcânica, em estado de choques. Apenas uma fumaça branca e espessa saíra pela porta, quando esta se abriu.



Marcos Vinícius.

sábado, 2 de junho de 2018

Pitacos na rede - abril e maio de 2018




Um país que elege como referência de satisfação e regozijo máximos, as prisões de lideranças políticas, transformadas em um espetáculo, onde potencializamos, em um grande delírio coletivo, nossos desejos mais primitivos de vingança e violência, é um país muito, muito doente. - (23 de maio).



República das Bananas, já não nos basta. Talvez, Das Cascas das Bananas, nos fosse mais apropriado. Um tombo após o outro. Sempre dos grandes. Onde, não apenas, desmontamos um Estado-social mínimo, de forma, aparentemente, irreversível, caímos em um modelo civilizatório, completamente degenerado e, a cada dia, mais subjugados a um tipo de neoimbecialidades, que parece desconhecer quaisquer limites. República Cascas das Bananas do Brasil. Pode ser assim?  - (05 de maio).




Na República dos Coxinhas, estão comemorando o 21 de abril, soltando vivas e fogos à Silvério dos Reis. Dançam sobre o pó e as cinzas de um Brasil esquartejado. (21 de abril).




São inegáveis os danos que o desconhecimento da História podem trazer a um povo; difícil é imaginar o quanto a estupidez coletiva pode nos degradar. Patos infláveis, amarelos, coxinhas tóxicas, apodrecidas, e uma ponte para o futuro, de pernas para o ar, são, não apenas, símbolos de um tempo que se faz presente, mas também, os sinais da desmemória de um passado totalmente ignorado. Então, avante. Para onde mesmo? - (16 de abril).




À Rede Globo não bastou transformar uma parcela do povo brasileiro em uma multidão de tolos, alienados e ignorantes; para implementar seu projeto de poder e domínio, foi necessário transformá-lo também em um exército da intolerância, fanatismo, da vingança e do ódio. A Globo é um câncer a condenar o brasileiro a um processo de autofagia voraz. É uma metástase corrosiva que empurra o país ao abismo e à uma degradação moral sem precedentes. É o Império da corrupção ética, da mentira e do medo; carrega a pretensão do suposto fim da história. A supremacia do caos, da violência e da brasilidade fútil e degenerada. Fora Globo e toda a mídia golpista e hipócrita. Acima de todos os males, venceremos. Já não basta, porém, desligá-la, simplesmente, apertando um botão. Tornou-se urgente, mais do que nunca, extirpá-la, definitivamente, sem concessões, do mapa do Brasil. -  (14 de abril).



Fico imaginando como podem autointitulados cristãos, gente de fé, pronuciarem as palavras amor e perdão, com a baba do ódio lhes empapuçando a língua. - (11 de abril).



Se já é lamentável e desolador vermos amplos setores da direita comemorando a prisão do ex-presidente Lula, pior ainda é quando encontramos militantes do campo da esquerda fazendo o mesmo. Desnecessário dizer que a política conciliatória, sob a benção dos mercados, dos governos Lula e Dilma, não representa a totalidade do pensamento de esquerda e dos movimentos populares no Brasil. Agora, fazer chacota e festejar a prisão de Lula, no contexto do retrocesso político e do avanço do fascismo, que vemos por aqui, é algo, realmente, difícil de compreender e aceitar. Um jogo perigoso, imaturo e arriscado. Além de fazerem coro e misturarem-se às bandeiras da direita, arriscam-se a perder o respeito que ainda tem e, por fim, a própria significância. Uma pena. 
(08 de abril).    






domingo, 8 de abril de 2018

Amanhã será outro dia?



Não falta muito para que Lula seja levado preso pela Polícia Federal e colocado atrás das grades. Como isto irá ocorrer, exatamente, ainda não sabemos. Seja lá como for, e não é preciso gostar do ex-presidente, para perceber que toda esta encenação, com fartas doses de um sadismo coletivo, deixará marcas profundas na história do país e no imaginário popular. A imagem de Lula preso ou sendo levado pelas forças policiais, quer queiramos ou não, causará um estado de comoção no país como, com certeza, nunca se viu, pois não é tradição nossa, colocar ex-presidentes na cadeia, principalmente, um presidente com o potencial carismático que apenas ele tem. Apesar do forte e persistente movimento de ódio que se espalha pelo país, ainda há uma ampla parcela da população brasileira que, antes de ser movida por grandes convicções ou paixões políticas, ainda guarda sentimentos de generosidade e laços de solidariedade. E não é pouco. A carga simbólica da prisão de Lula é fortíssima. O povo brasileiro, por mais manipulável e analfabeto político que seja, não é ignorante a ponto de não perceber que o processo contra Lula não caminha pelos mesmos trâmites que os de outros figurões da República, por mais promíscuas e abusivas que sejam suas relações com o patrimônio e o dinheiro público. Há facções partidárias no país, que mais não são, que braços institucionais do crime organizado. Sabemos que, mesmo impedido de disputar as eleições, o ex-presidente será um cabo eleitoral muito forte. O candidato, que tiver o seu apoio, terá grandes chances de ser alavancado para o segundo turno das presidenciais. Quais, então, as estratégias, que as elites golpistas, as mídias, as corporações, as agências americanas, irão adotar nesta nova fase da história política do Brasil? Ainda não sabemos exatamente. Mas uma coisa é certa e lamentável. O fascismo, a besta monstruosa que vem se levantando tende a se fortalecer. Se por um lado, a imagem do ex-presidente preso será um fantasma a atormentar os golpistas de todas as estirpes, eles, certamente, com todo o poder que dispõem, irão alimentar o monstro com toda a ferocidade que forem capazes. Irão radicalizar as suas investidas, no sentido não apenas de demonizar Lula e o PT, mas qualquer alternativa no campo popular e de esquerda, que tenha alguma viabilidade eleitoral. Se o noticiário e a pauta das grandes corporações midiáticas hoje, já cheiram a corpo putrefato, em breve, poderão transformar o Brasil em um grande esgoto a céu aberto. O discurso do ódio, da intolerância e a violência política, tendem a se radicalizar ainda mais. Há que se pensar as alternativas e é urgente. A serpente já chocou os seus ovos e o monstro caminha a passos largos. Há que se construir alternativas e é urgente. O rolo compressor se aproxima rapidamente. O fascismo é contagiante e a chocadeira está aquecida. Pobres de nós. Ou despertamos a tempo, ou não mais sobrará pedra sobre pedra. Talvez não tenhamos perdido o medo, mas ainda é tempo de ser feliz?



Marcos Vinícius.

(Publicado no Facebook em 06/04/2018 – um dia antes da prisão de Lula)

domingo, 1 de abril de 2018




Quem disse que o tempo nos permite conhecer as pessoas? Coisa nenhuma. O tempo só colabora nesta descoberta do outro, na medida em que, com ele, temos mais ocasiões e circunstâncias. São elas, não o tempo em si, que nos permitem conhecer alguém. E isto pode levar poucos instantes ou uma vida inteira.



Marcos Vinícius.




terça-feira, 13 de março de 2018

A fila




Durante meses, frequentou o mesmo restaurante. Era um estabelecimento grande, com um enorme número de mesas, fregueses e opções de cardápio. Estava sempre cheio, a comida era saborosa e tinha um dos preços mais módicos da região. Era também grande o número de garçons, atendentes e caixas. Três jovens moças sorridentes faziam o atendimento dos caixas, onde se formava uma fila única. Já há algum tempo, observara que, por uma coincidência quase fora do comum, era sempre atendido pela mesma moça. A fila andava e, quando chegava a sua vez, pimba, era ela, mais uma vez, dia após dia. Numa ocasião, iniciou o atendimento com um sorriso um pouco constrangedor. Provavelmente, também ela, já percebera esta brincadeira da sorte e do destino. A partir daí, no dia seguinte, ao entregar o cartão para a mocinha, o comentário foi inevitável. Ele disse: - Poxa, que coisa, hein? Sempre no seu caixa, né? Ela esbanjou um largo sorriso de confirmação, enrubesceu de imediato e disse: - É mesmo. Pensei nisto. E a fila andou. No outro dia, após receber seu troco, já com um ar de cumplicidade, ele sorri e diz para a moça: - Se eu fosse um pouco mais jovem, talvez fosse o caso de pedir sua mão em casamento. Ela sorriu desconcertada, mais vermelha que no dia anterior e fitou-lhe os olhos. Ele nunca mais voltaria ali.



Marcos Vinícius.

Na rede, entre janeiro e março.



Não imaginava que fosse tão difícil encontrar livros de Mario Benedetti nas livrarias de Belo Horizonte. E que me perdoem os moderninhos conselheiros de plantão, mas, livros, ainda gosto de adquiri-los é nas livrarias mesmo. Por mais prático que possa ser a compra pela internet, é insubstituível aquele momento glorioso em que, finalmente, aproximando-se das prateleiras, onde supostamente a obra procurada pudesse estar e, lá está ela, a escolhida, entre milhares e milhares de títulos que põe-se ao seu redor, à sua espera, prontinha para ser folheada, degustada. Impressionante, como o autor latino-americano, uruguaio, é tão pouco conhecido e tão difícil de ser encontrado aqui na cidade. Foi necessário percorrer quatro grandes livrarias para, enfim, encontrar cinco títulos de um autor que já publicou mais de oitenta. Portanto, aos sensibilizados com o problema e que, por ventura, tenham alguma de suas obras, esquecida nas velhas prateleiras, aceito de bom grado a oferta, como doação ou alguma possibilidade de troca ou negócio. Também aconselho a leitura, pois é fascinante e surpreendente. O autor é não apenas admirável, mas, como bem lembrou um crítico, o qual não me recordo o nome, estabelece conosco fortes laços de cumplicidade, pois não é difícil encontrarmos um pouco de cada um de nós, no interior de suas histórias. Apesar de ter lido dois livros apenas, já posso afirmar que, trata-se de uma obra humanamente vibrante. Viva Mario Benedetti.   -   (06 de março)




Os céus, provavelmente, sem graça com o aguaceiro que despejam sobre nós, com todas as suas calamidades, resolvem, em contrapartida, nos fazer um agrado. Nossos horizontes talvez já nem sejam mais tão belos como um dia foram, mas, arco-íris, ah, estes temos aos montes. Mais um fim de tarde arcoirizado em Beagá.  -  (05 de março)



Ei Folha de São Paulo, olá mídia golpista! Agora que o Temer censurou, com o Exército nas ruas, o vampirão da Tuiuti e a exibição das alas dos patos, manifestoches e das carteiras de trabalho, intervindo e proibindo até as alegorias da nossa festa maior, o Carnaval, já podem denominá-lo ditador Michel Temer, ou às estrelas do grande capital e do neoliberalismo, independente de toda a arrogância, abusos e autoritarismo, nunca cabe a denominação? –  (18 de fevereiro)



Se estivéssemos em uma obra, do que conhecemos como realismo mágico ou fantástico, poderíamos imaginar que um estado de exceção, em uma república bananeira qualquer, fora implantado porque se temeu que a revolta popular pudesse vir do carnaval. Ainda bem que, apesar da agenda nacional ser pautada pela Rede Globo, vivemos em um país real e distante do mundo da ficção. Ou não? 
(16 de fevereiro)


Já faz alguns anos que assisti a uma intrigante entrevista com Stephen Hawking. Nela, ele dizia que a ciência, mais cedo ou mais tarde, nos conduziria à invenção da máquina do tempo. A física havia descoberto que o tempo possui um corpo e, bastava que um dia, fossem criadas as condições para que pudéssemos nos deslocar por ele, e aí sim, poderíamos, finalmente, nos aventurarmos pelo passado. O problema é que, segundo ele, apenas nos seria permitido retornar a um tempo em que o equipamento, a parafernália, a máquina, seja lá o que for, já existisse. Então, apenas aos homens do futuro, seriam possíveis as viagens mais longas. Se por um lado, emocionei-me com a possibilidade, por outro, vi-me, também frustrado. Ali se esgotava qualquer chance de que um dia, eu pudesse retornar à Pré-História.  -  ( 01 de fevereiro)




Agenda nacional. Em encontro televisivo, em uma modalidade perversa de um "topa tudo por dinheiro", o homem do baú se diverte com o homem das malas, para afirmar que o brasileiro viverá cento e vinte anos e decretar, de vez, o fim das aposentadorias. O pacto da canalhice em espetáculo, show businnes. Um show de deboche e negócios, entre as grandes ratazanas. A bordo de uma lancha, num paraíso terrestre qualquer, cercada de quatro bombadões, peladões, em vídeo proto-pornô, a indicada para a pasta, que se desministerializou, a do Trabalho, faz um pronunciamento sadomasoquista à nação. Uma esculhambação total, mas é o retrato fiel do Brasil que nos tornamos. 
( 31 de janeiro)


O pobre coitado sempre fora afeito aos vícios e fanatismos de toda ordem. Já fez uso frequente de quase todas as drogas, as conhecidas e as desconhecidas, já decorou cartilhas dos mais variados credos, até dos não catalogados e dos inimagináveis. Recentemente, resolveu libertar-se, adquirir autonomia, personalidade e pensamento próprios. O destino o levou a um curandeiro misterioso, que garantiu que se seguisse a receita que iria lhe prescrever, estaria não apenas livre de todos os cacoetes, como se tornaria um quase intelectual, um pensador nato, capaz não apenas de compreender os meandros e a complexidade do universo, como transformar-se em um grande conselheiro, alguém a ser sempre consultado, além de apropriar-se das mais diversas áreas do conhecimento e de valiosas sabedorias. O velho curandeiro passou, então, a receita, que ele, de pronto, providenciou e tragou em doses cavalares. Foi sugerido então, que colocasse água para ferver e, em seguida, acrescentasse, penas de aves de mau agouro, no mínimo, dois bicos de tucanos, fios de gravata de vampiro, dos grandes, um caldo de páginas das revistas Veja, Época e afins ou de grandes jornais de circulação nacional, como O Globo, o Estadão e a Folha de São Paulo, mais umas pitadas de um pozinho branco, encontrado em helicópteros de políticos mineiros; este, foi o único ingrediente que não foi acrescentado à mistura, não apenas por recusar-se agora às drogas ilícitas, mas, principalmente, devido à impossibilidade de adquiri-lo. Feito isto, deveria ainda, assistir aproximadamente quinhentas horas da programação dos canais abertos de televisão, visitar por sete vezes a Morolândia, decorar quarenta e cinco páginas do novíssimo dicionário português-coxinhol e copiar quinhentas vezes a palavra CIA, sem trocar em momento algum, o C pelo S e, posteriormente, guardar as páginas caligrafradas, em local secretíssimo, bem distante do domínio público. E assim ele fez. Orgulhoso e sentindo-se curado, fez sua primeira publicação no Facebook. O título era nobre. Pensamentos do Dia. Enumerou-os na seguinte ordem. Pensamento número um, Em terra de LULA, quem tem um olho é LULA. Pensamento número dois, LULA o que eu digo, mas não LULA o que eu faço. Pensamento número três, O LULA perguntou ao LULA, qual LULA era mais LULA. O LULA respondeu para o LULA, que o LULA mais LULA, era o LULA-LULA. Para fechar o post, vaidosamente, acrescentou, Água LULA em pedra LULA, tanto bate até que LULA. Até agora há pouco, já havia curtidas e compartilhamentos, o que deixara o pobre coitado feliz e cheio de entusiasmos. Com quantos LULA se faz uma canoa?   

(22 de janeiro de 2018)

domingo, 21 de janeiro de 2018

Do esquecimento



Permanecia de pé, ainda que em ruína, aquela parede grossa, uma imensa coluna cravada no chão. Sabe-se lá de que construção fora criada, templos, palácios, fortalezas, por ali não se tinha notícias. Mas ela resistia em sua frieza úmida, tomada de mofos, trincas irreversíveis, rachaduras profundas. Mantinha-se inerte. Prostrada. Fincada. Ainda não havia ocorrido tempestades, abalos sísmicos ou mísseis, que a abatesse de vez. A especulação imobiliária e as bolhas financeiras não lhe golpearam os alicerces. Na mórbida estampa descascada aflorava a arqueologia das cores, tantas quantas, se pintaram nela. Uma após a outra, suas camadas, já descoloridas, se revelavam ao mundo. Eram tantas e, porém, já não eram cor alguma. O adobe punha-se à mostra. O concreto era parte fóssil, parte farelo. Um lado duro feito rocha, outro oco, e carunchado. Mantinha-se de pé. Testemunha única de um tempo que já se perdeu e uma história que se apagou. Ainda assim, sem perspectiva de restauros. Os fungos já lhe comiam as entranhas, as bactérias lhe corrompiam qualquer concretude e os cupins lhe arrancaram os caibros. Prosseguia, aos pedaços, em desafio à pressa dos calendários e à violência de todas as épocas. De pé, sem que se saiba o quando ou porque, mostrando aos homens, a degeneração lenta e absoluta, os tamanhos do tempo e a fatalidade do esquecimento.


Marcos Vinícius.