quinta-feira, 1 de abril de 2010

O aparelho



O aparelho



Ele morava a poucos quilômetros do centro da cidade, e eram raras às vezes, em que utilizava um veículo, quando tinha que ir a algum local que não fosse muito distante de casa. Ônibus ou táxi só mesmo quando o percurso iria lhe exigir longas caminhadas, ou quando não tivesse tempo suficiente para que pudesse percorrê-lo a pé. Gostava mesmo era de sair por aí andando, pois além de considerar estar proporcionando um grande bem para sua saúde, teria a oportunidade, de conhecer um pouco das intimidades, e algumas particularidades da grande cidade, que os veículos apressados não nos permitem perceber. Observava as fachadas dos prédios, dos novos e dos antigos, como a desvendar o perfil de uma cidade que pouco a pouco ia se revelando, em cada janela entreaberta, porta por porta, esquina por esquina, nas placas, nas praças, nos olhares cruzados pelas ruas e calçadas, nas infinidades de serviços e mercadorias, que procuram seduzir os que passam. Lê os letreiros, as faixas, os destinos dos lotações, para onde vão os que esperam nos pontos, nos números pintados. Lê as ofertas e promoções, os nomes das lojas, os sobrenomes dos profissionais, os panfletos, as propagandas, os cardápios do dia. Admira ver a cidade pulsando, assim de perto, praticamente a tocá-la, em meio ao vento e a poeira, em meio ao ruído dos automóveis, aos gritos dos vendedores, e ao murmúrio das multidões.

Por trabalhar em casa, a vida lhe permite certa flexibilidade nos horários, podendo então, usufruir destas andanças. E é uma das coisas, das quais faz questão de não abrir mão. É daqueles que crêem que muitas das vezes, mais vale as alegrias e tristezas dos caminhos do que o desejo de chegar ao final. Sobe morros, desce ladeiras, atravessa pontes, viadutos e sinais. Conhece como a palma da mão a região central da cidade. Os anos de andanças acabaram lhe proporcionando uma grande habilidade e desenvoltura para percorrer o grande centro. Vibra com a descoberta dos atalhos, das conexões de vias, cruzamentos de ruas, os novos acessos, que às vezes, se abrem diante de seus olhos sempre atentos e observadores. Quase não há endereço que ainda não conheça. Conhece tão bem estes locais, que caso queira refazer alguns destes caminhos mentalmente, em casa, com os olhos fechados, certamente revisitaria cada loja, escritório, porta aberta, porta fechada, sem que nada lhe escapasse à memória. Talvez até mesmo o belo olhar da atendente da casa de salgados e refrescos, o mau-humor do homem da loteria, o sorriso largo da doceira da praça central e o inchaço das mãos do pedinte que sempre o aborda, insistente. Orgulha-se de ser um conhecedor da cidade e adora quando lhe requisitam alguma informação. Quando alguém se aproxima para perguntar onde encontraria tal rua ou endereço, não se apressa ao passar as orientações, sempre muito cheias de detalhes, onde aqueles que perdidos se encontravam, passam a sentirem-se mais seguros de seus próprios passos, quando não conseguem esconder o ar de gratidão, que muitas das vezes se traduz em um generoso sorriso ou um forte aperto de mão. Conhece como ninguém os nomes das ruas, e seus pontos de cruzamentos, onde uma se encontra com a outra, e o que poderia se encontrar em cada uma destas intersecções.

Como já se viu, não eram poucas as coisas lhe despertavam o interesse e a curiosidade, mas ultimamente, talvez mesmo em função de uma vida mais solitária que tem levado nos últimos tempos, prestava uma atenção muito especial às diversas mulheres com as quais cruzava pelo caminho. Impressiona-se não apenas com a beleza e sensualidade que muitas delas esbanjam, mas também com sua rica diversidade. Havia para todos os tipos, tamanhos, gostos e idades. Poucas coisas lhe causavam tanta admiração quanto à variedade de estilos e formatos, resultado de um processo de misturas e miscigenações que ao longo da história foi se configurando. Outra coisa que, muitas das vezes, fazia com que atrasasse seus passos eram as manchetes de jornais, estampadas em várias bancas da cidade. Não era muito afeito à leitura dos jornais, mas os episódios de destaques nas primeiras páginas sempre lhe prendiam a atenção. Fascínios mesmo lhe proporcionavam as lojas de eletrônicos e afins, que lhe ofereciam as novas ferramentas tecnológicas. Ficava às vezes, horas perambulando entre elas, em busca de novidades, tentando desvendar o funcionamento desta gigantesca parafernália que os mercados têm para oferecer, de forma tão abruptamente sedutora. Computadores, portáteis, telefones celulares, aparelhos de áudio, vídeo, e um infinito leque de opções que a ciência e o capital insistem em vender, em prateleiras de luxo, vitrines de luzes, políticas de ofertas, que deixa quase sem escolhas, o encurralado cidadão. Desta maneira, embala seu sonho de consumo. Alguns anos de sua vida encontravam-se já comprometidos em inúmeras prestações, para que não tão perto estivesse, da condição de excluído digital. Havia adquirido um bom computador de mesa, um telefone celular com câmera fotográfica embutida, e mais recentemente, um aparelho de mp4, com os quais consumia uma grande parte de suas horas de folga.

Num sábado pela manhã, durante uma de suas caminhadas matinais, feliz por ter eliminado mais uma de suas prestações, descobre em uma vitrine, um aparelhinho, que ainda não conhecia, uma novidade que muito o intrigou, um GPS, que já traduzido para o português, podemos chamar de Sistema de Posicionamento Global. Sim. Um aparelho através do qual, o seu vasto conhecimento sobre as vias, e a malha urbana, poderia tornar-se menos útil, afinal aquela coisa ali, poderia, desde que bem programada, orientar qualquer um sobre os destinos, e os rumos que deveria seguir em qualquer parte da cidade. Bastava colocar o ponto de partida e o destino final, que a coisa traria pronto o itinerário a ser seguido. Não haveria como perder-se, salvo um caso ou outro, um problema de funcionamento, falhas na atualização dos dados, deficiências que certamente, não demorariam muito para serem superadas, em um contexto onde equipamentos desta natureza, parecem ter vindo mesmo para ficar. Não consegue tirar os olhos daquela coisa. Sua expressão quase congela-se. À primeira vista, é impossível saber se sua reação é fruto de uma tristeza, ao perceber-se substituível, pois agora, mesmo o cidadão que vem pela primeira vez à cidade, poderá se orientar e andar de ponta a ponta, como se milhares de outras vezes já tivesse passado por estas paragens, ou se ao contrário, entusiasma-se por saber que daqui em diante, ficará mais seguro ao se aventurar pelos mais longínquos cantos da cidade, que nunca para de crescer. Lentamente sua fisionomia volta ao normal e seus olhos vão se descolando do objeto. Bruscamente, então, vira-se, e como se voltasse de um lugar distante, do qual não mais se lembrasse, dirige-se ao balcão.

Após uma lenta negociação, segura uma nota entre os dedos, assina os papéis e rapidamente vai ao caixa. Adquire o produto. Vai direto para casa, e desta vez não se preocupa muito com os caminhos. Tem pressa em chegar. Como funcionará esta coisa? Dará mesmo certo? Como pode coisa igual ter sido inventada? Claro. Como não havia pensado? A ciência e a técnica estão sempre a dar saltos de qualidade. Além do mais, já tínhamos os conhecimentos para tanto, faltava juntá-los em uma coisa só, o que parece finalmente ter sido feito. Agarra-se ao objeto. Já em casa, excitado, ainda de pé, rasga a caixa, manuseia o aparelho, vira-o para um lado, para o outro, e incrivelmente, sem lhe tirar o olho, põe-se a ler o manual. Liga-o, e agora parece ter a certeza, de que a coisa, realmente funciona. É tomado de uma agitação que não consegue, de imediato, compreender. Parece ter entendido como operar aquilo e sai novamente. Anda vários quarteirões, não consegue parar, vira à direita, à esquerda, à direita e à esquerda de novo, sobe, desce, acelera os passos, ora os retarda, vai pelos lugares já conhecidos, e pelos bairros distantes, onde ainda não havia passado, atravessa a cidade inteira e conclui que de fato, dá certo. Estava exausto.

Na manhã seguinte, levanta-se da cama em um só salto, como se não tivesse tempo a perder. Vai ao banheiro lava o rosto, pega uns biscoitos na cesta e vai direto em busca no novo brinquedo que muito o havia impressionado e feito caminhar a esmo por uma cidade inteira e por quase toda a noite. Ficava ali admirando a peça, imaginando o quão criativo pode ser o gênio humano, que a cada dia coloca no mercado algumas invenções que deixam muitos de boca aberta. Iria testá-lo mais uma vez, imediatamente. Veste uma roupa às pressas, acopla o aparelho ao corpo, e sai rápido, queria ter aquela sensação outra vez. Liga o aparelho e inicia uma nova marcha, agora, sob as orientações de uma voz metálica, digital, que lhe dita as regras e os rumos do caminho. Ele parece não ouvir outra coisa, sente-se meio hipnotizado. Apalpa o aparelho e tem a sensação de carregar a cidade na palma das mãos, a cidade que agora navega sob seus pés. Quanto mais observa as imagens que o tal Sistema de Posicionamento lhe envia, mais força parece ter nas pernas, e mais ânimo adquire para andar. É tomado de um estado de êxtase que o põe a andar como nunca andou. Atravessa todas as ruas e avenidas do grande centro, entra em uma, sai na outra, anda, volta, apressa-se, como se não quisesse parar. Anda horas e horas, sem mais se preocupar em guardar os caminhos, pois agora, tem todos eles sob o alcance de seus dedos, não apenas aqueles já conhecidos e exaustivamente explorados, mas também aqueles pelos quais nunca passou, e sequer mesmo imaginava que pudessem existir. Quer aproveitar ao máximo a descoberta que acabara de fazer.

A partir daí, este ritual vai se repetir, dia por dia, e todos eles, um atrás do outro, vão levando aquele homem por vias, viadutos, edifícios, rodovias, planaltos e planícies. Os passos firmes, muitas das vezes, aparentemente cronometrados, os ouvidos conectados aos ruídos da coisa, levam-no a rodar pela cidade, aleatoriamente. Por meses e meses, esta maratona se repetiu, diariamente.

Em um destes dias, ao sair de casa, em direção à região central, viu que nuvens escuras e carregadas se aglomeravam no céu. Mas imaginou, porém, que devido ao vento, que naquele momento soprava muito forte, o temporal que se anunciava certamente não iria vingar, e em nada iria comprometer a sua já tradicional volta pela cidade. Saiu despreocupado, e a brisa que em seu rosto batia, despertava-lhe mesmo uma sensação de prazer e sentia-se feliz. Ao se aproximar, porém, no ponto mais central da cidade, raios e trovões cortaram os céus, como se a fúria divina viesse a aniquilar o mundo. Os clarões refletidos nas paredes de concreto, nos vidros dos edifícios e na lataria dos carros, enchiam a cidade de brilhos e sombras, como se a natureza estivesse libertando todos os seus fantasmas. Um longo arrepio correu pelas suas costelas. Neste momento, outro trovão desabou, e a água caiu em peso do céu, numa chuva grossa, torrencial, que em minutos, escorria dos prédios como cascatas, e lavava as ruas em fortes correntezas. Ele procura se esconder, sob uma marquise, mas o esforço é inútil, pois já se encontrava ensopado da cabeça aos pés. Ao perceber a inevitabilidade do acaso, leva desesperadamente às mãos ao aparelho, que estava por afogar-se. Sacode-o, mas não adianta, não funcionaria mais, a tela encharcada e um zumbido baixo e contínuo eram o anúncio do fim. É tomado de tal estado de pânico, que praticamente não percebe quando o tempo se abre, e as nuvens de chuva, seguem a levar tempestades para outras regiões. O sol volta a brilhar intenso, iluminando a cidade. Era chuva forte e passageira. Pela primeira vez, depois que havia adquirido o aparelhinho, estaria então a sós, desacompanhado de sua bússola moderna, da qual não desgrudava os olhos. Deu uns passos à frente, titubeante, parecendo estranhar o que via. Foi e voltou. Manteve-se imóvel, inerte, em meio à larga calçada. Já não sabia para onde ir. Estava completamente perdido.


Marcos Vinícius.