Era uma manhã de inverno, o dia estava
nublado, o céu, cinzento, e um vento frio varria as pedras dos calçamentos,
levantava a poeira do chão e fazia os queixos tremerem. A rua estava
completamente deserta, era um domingo, as poucas lojas estavam fechadas, assim
como as janelas dos apartamentos que havia ao redor. Dentro da taberna, as mesas
estavam vazias e apenas um homem, com perfil angustiado, barbas grandes e
calvo, permanecia sentado, estático e pensativo, acomodado na última mesa dos
fundos. José Saramago, que entrara apenas para tomar um café, esconder-se do
vento gelado e aquecer-se um pouco, assusta-se ao ver aquele homem. Poxa, não é
que o conheço de algum lugar? Olha-o um pouco sem graça e tímido. O homem o
ignora. De repente, uma luz parece se acender, Saramago espanta-se, dá um
sobressalto, aproxima-se do homem e diz, Bom dia, Senhor Dostoiévski? Bom dia,
Sim, mas quem é o senhor? Não o conheço, responde secamente, com ares de quem
não estava muito disposto a render o assunto. Saramago se apresenta e ele
apenas diz, Nunca ouvi falar. Saramago, intrigado e atônito, sem saber o que fazer,
diante do espanto e da inusitada situação, pergunta, O senhor não imagina o
quanto o conheço e admiro. A propósito, o que faz por aqui? F. Dostoiévski olha
para ele, e por alguns instantes, mantem-se calado, em seguida, pega um livro
que deixara sobre a mesa, abre-o, e inicia a leitura, “vinha evitando qualquer
tipo de companhia nos últimos tempos. Agora, porém, alguma coisa o impelira de
repente para o convívio humano. Alguma coisa de aparentemente novo se passava
dentro dele, e ao mesmo tempo ele experimentava certa sede de gente. Estava tão
cansado de todo aquele mês de melancolia consumidora e excitação obscura que
queria passar ao menos um minuto respirando em outro mundo, fosse qual fosse, e
era com satisfação que ia ficando na taberna, apesar de toda a sujeira.” Fecha
o livro, volta-se para seu interlocutor e pergunta, Ouvi dizer que cegaram. O
que lhes ocorreu? Saramago apressa-se em responder, “Por que foi que cegamos?
Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão. Queres que te diga o que
penso? Diz! Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, Cegos que veem,
Cegos que, vendo não veem”. Dostoiévski coloca as duas mãos sobre a mesa, olha
fixamente para Saramago e diz, “O vazio é o espaço da liberdade, a ausência de
certezas. Mas é isso o que tememos: o não ter certezas. Por isso trocamos o voo
por gaiolas. As gaiolas são o lugar onde as certezas moram.” Dostoiévski
interrompe a fala, sem tirar os olhos de Saramago, leva a xícara até a boca, dá
um trago, alisa a barba até as pontas inferiores e volta à carga, “Como passam
rápido os anos! E a gente volta a perguntar a si mesmo: que fizestes de teus
anos? Onde enterrastes o teu tempo? Viveste ao menos? Ou não?” Saramago, ainda
sem conseguir conter a surpresa e o susto, toma o primeiro gole do café, sente
o peito aquecer-se e diz, “Eu talvez tenha um senso fatalista da vida. Mesmo
quando era jovem, eu me dizia que o que era para ser meu a mim viria. Eu não
precisava de ir à busca, bastava estar atento. Se há alguma sabedoria na minha
vida é de saber esperar. Tenho a impressão de que tive a melhor vida possível e
porque não projetei nada e acabei por ter tudo.” Dostoiévski sorve o último
trago que havia na xícara, levanta as mãos em direção ao céu e, em um tom mais
alto, que havia dado a sua voz até então, exclama, “Meu Deus! Um minuto inteiro
de felicidade! Afinal, não basta isso para encher a vida inteira de um homem?”
Saramago dá outro trago no café, faz uma pausa na conversa, solta pelo canto da
boca, um ligeiro sorriso de contentamento, e diz a Dostoiévski, “ponho-me a
imaginar o que mais gostaria de fazer nesta altura da vida (sem ter que perder
nada do que tenho, claro está), e simplesmente descubro que seria perfeito
poder reunir em um só lugar, sem diferença de países, de raças, de credos e de
línguas, todos quantos me lêem, e passar o resto dos meus dias a conversar com
eles.” Trim-trim-trim, o despertador toca, vejo que acordo em meio a uma
pandemia e o celular avisa que há recados, mensagens não lidas e uma nova
publicação no grupo.
Marcos Vinicius.
( Os diálogos entre os dois são
transcrições retiradas de suas obras e publicações e identificadas entre aspas)
– Para o Grupo José Saramago.
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