sexta-feira, 21 de abril de 2017

O dia em que fiz 50 anos




Pode-se dizer que o ano em que nasci, 1967, não foi um ano qualquer, como nenhum outro o é, não apenas porque decididamente pus-me neste mundo, mas por uma série de outros episódios, com certeza, mais relevantes, que marcaram para sempre, esta ocasião em que me foi concedido o benefício do nascimento. Foi nele em que perdemos personagens importantes do mundo contemporâneo, como Ernesto Che Guevara, vítima de uma emboscada na Bolívia e, segundo Jean Paul Sartre, autor de “A Idade da Razão”, “o ser humano mais completo de nossa era”, e o mineiro João Guimarães Rosa, autor de “Sagarana” e “Grande Sertão Veredas”, clássicos da literatura universal. Ainda neste mesmo ano, assumiria a presidência da República do Brasil, o General Costa e Silva, que no ano seguinte, 1968, com a decretação do Ato Institucional Nº5, implantaria em nosso país, um dos períodos mais duros, autoritários, repressivos e sanguinários da história brasileira. Mas como temos, humanos que somos, a habilidade inigualável de sempre nos reinventarmos, dada a nossa persistência em sobrevivermos enquanto espécie, 1967 foi também o ano em que Gabriel Garcia Márquez publicou o memorável e fascinante “Cem anos de solidão”, lançando um olhar inédito e definitivo sobre nossa América Latina, Caetano Veloso e Gilberto Gil gravaram “Alegria, alegria” e “Domingo no parque”, Glauber Rocha estreava nas telas do cinema com “Terra em transe” , as pílulas anticoncepcionais chegavam às farmácias, possibilitando o que se convencionou chamar de Revolução Sexual e na Cidade do Cabo,  África do Sul, foi realizado o primeiro transplante de coração; o órgão, de uma jovem de vinte e cinco anos possibilitou a sobrevida de um homem de cinquenta e cinco. Mas, talvez como uma demonstração de que talvez, não estivéssemos, afinal, com esta bola toda, o transplantado veio a falecer dezoito dias após a cirurgia. Para não prolongar demais em citações e lembranças, citaria por fim, como mais um símbolo de um ano, que agora, me sopra aos ouvidos, o filme que nesta ocasião, levaria o prêmio do Oscar, e que traz um título curioso e sugestivo, “O homem que não vendeu sua alma”. Não é pouca coisa. Mas enfim, no dia dezenove de abril, completei exatos cinquenta anos de existência e vida. Confesso que, ultimamente, não tenho tido muita paciência para ler os jornais, mas neste dia vinte, um dia após o aniversário, resolvi dar uma breve olhada neles, para ver as mais recentes bobagens que nossa humanidade metida a besta, resolveu aprontar bem no dia em que completava meio século aqui neste mundo. Infelizmente, nesta perspectiva, não há muito o que comemorar. As notícias que as páginas enfadonhas dos jornais trazem são efetivamente desalentadoras. O mundo parece ter se enfiado em uma galeria de horrores e a violência extrema pauta o noticiário, praticamente da primeira à última página, de cabo a rabo, desde as violências que nos rodeiam mais imediatamente, nas vizinhanças, com as ações dos bandidos pequenos, assaltantes e malfeitores de toda a ordem, até as investidas dos grandes bandidos, transformados em líderes mundiais, autoridades, figuras públicas, presidentes, que nos ameaçam com seus golpes, delírios de poder, bombas e políticas de extermínio, em uma espiral de atrocidades, que não tem fim. O alucinado representante dos estadunidenses, com seu topete gigante de arrogâncias, parece decidido a tocar fogo no mundo. Seus porta-aviões aproximam-se da Coréia do Norte e ameaçam atacá-la, esta por sua vez, disposta ao revide, talvez não se intimide, em utilizar seu arsenal nuclear. Difícil imaginar o que nos aguarda no dia seguinte ao acirramento das hostilidades e à detonação do conflito. Aqui em nosso país, transformado em uma grande pocilga, o banditismo está na ordem do dia. Como se não bastasse ostentar uma das mais altas taxas de criminalidade e homicídios do mundo, onde mata-se por nada, e morre-se na condição de alvo fácil ou vítima de balas perdidas, nossas lideranças políticas entregam-se a tarefa covarde de eliminar, sem qualquer constrangimento ou pudor, de forma indireta e gradativa, sem tréguas, os pobres, os trabalhadores, desempregados, aposentados, miseráveis de toda ordem, no campo e nas cidades, com uma sucessão de golpes, que se sucedem, um após o outro, dia após dia, seja na calada da noite ou sob a luz dos holofotes. Fim da aposentadoria, eliminação de direitos trabalhistas, congelamento por décadas de investimentos em educação e saúde, sucateamento de hospitais, postos de saúde, escolas públicas, fechamento das farmácias populares, esquemas de corrupção em escala dos bilhões de reais, valores que nossa imaginação não consegue dimensionar. Somados a um desastre que se faz completo, assistimos ainda a um crescimento assustador de um fascismo revigorado, entre jovens e velhos, articulados em redes sociais, aliciados por organizações multibilionárias alienígenas, pelo pensamento único, que leva para ruas uma multidão de imbecis, fantasiados de verde e amarelo, que clamam por intervenção militar, levantam bandeiras genocidas, e apregoam um ideal de liberdade, proveniente das incubadoras dos mais reacionários golpistas, raposas da política, agentes de capital financeiro e do neocolonialismo, que atuam à distância, lançam suas pedras e escondem as mãos, sujas de muito sangue, protegidos pelo anonimato que lhes confere a tecnologia digital e pela nossa eterna e reciclada ignorância. Não é pouco, mas somos um país pródigo em falsificações. A grande mídia, ela própria, conluiada em uma rede de tevês, jornais, revistas, através de seus editoriais, programações, novelas e afins, tem como tarefa maior, a arte dos currais, a destruição do pensamento e o fim da política como geradora do bem comum. Aqui se faz a política menor, rasteira, mafiosa, medíocre, fábricas de mentiras que se fazem verdades e verdades que são grandes mentiras. A arte do engano, a indústria da manipulação, onde o jornalismo exibe sua face mais degradada, corrupta e perversa. Não há tréguas nesta guerra, onde os pobres são a única vítima. Diante de uma geração que tem como referências Jair Bolsonaro, Kim Kataguiri e que elege pelo DEM, Fernando Holiday, vereador da cidade de São Paulo, compreende-se o que deveria causar espanto, o fechamento da Escola Municipal Doutor José Queiroz, em Jaboatão dos Guararapes, Pernambuco, após ser invadida por criminosos vinte e cinco vezes em apenas dois anos, símbolo de nossa promiscuidade moral. Após o último assalto, no ano passado, os pais pararam de levar os filhos à escola e os funcionários se recusam a trabalhar. “Foi um episódio muito traumático.(...)trancaram os funcionários em uma sala e roubaram tudo. No final, ainda colocaram fogo em livros e carteiras”, relata o professor da escola, José Eudes Santos. O tema foi manchete em jornais do dia vinte de abril de 2017. Como se vê, não é fácil chegar aos cinquenta anos. Aqui, tenho apenas duas certezas. Como alguém já o disse, sem qualquer sombra de dúvida, tenho agora, muito mais tempo para trás do que para frente e que se não chegamos ainda ao fundo do poço do mundo e do país que temos, é porque ele está muito abaixo do que até ontem imaginávamos. Para comemorar, o fato de ter sobrevivido.

Marcos Vinícius.