Era uma terça-feira, onze e meia
da manhã. Belmiro, sob o sol luminoso e frio de julho, mantinha-se sentado
sobre a rocha escura que há anos, a se perder de vista e da memória, elegera
como a morada fundamental e dali não se mudava ou arredava pé, mesmo que o céu
desabasse ou a terra rachasse ao meio. Tanto é, que nas poucas vezes que se
levantava, para fazer o que sentado seria impossível, podia-se observar que o
assento de pedra, praticamente, tornara-se um molde perfeito de suas nádegas
magricelas. O que não se sabe, pois não há quem guarde lembrança, é se a pedra
sempre fora assim e, talvez, por este motivo mesmo, ele a tenha escolhido, ou
se por força do tempo, de tanto suportar aquele peso, havia adquirido a forma
do homem. Isto, porém, já não importa. Ele mastigava um caule de capim entre os
dentes, lançava cusparadas ao chão e observava duas formigas que carregavam
folhas enormes, tão grandes, que ele nunca compreendia como podiam suportar
tamanho peso. Belmiro gira alguns poucos graus na pedra, deslizando-se, muda a posição
e o campo de visão, em qualquer uma que estivesse, ela lhe proporcionava
conforto, e não havia mais pontas e ranhuras, que há muito tempo, deixaram de
incomodá-lo. Não se recordava do que pode ter ocorrido com elas. Enfia a mão no
bolso, puxa de dentro um relógio grande e dourado e confere as horas. Exato,
onze horas e trinta minutos, não se deixavam enganar os ponteiros. Belmiro olha
para o mato que havia em frente e diz, Em dois minutos, ele sai dali. Segura o
relógio entre as mãos e fica observando o lento deslizar dos ponteiros e a
brenha do mato que ainda não se mexia. Quando o ponteiro maior, completa a
volta, marcando os exatos dois minutos que Belmiro previra, o mato se abre, e
surge Targino. Com as roupas surradas, tão magro quanto o outro, de olhos
esbugalhados, cabelos desgrenhados e um óculos quadrado, que lhe conferia uma
expressão muito peculiar, grita, antes mesmo de se aproximar, Bom dia, Senhor
Belmiro. Muito bom dia, Senhor Targino. Os dois encaram-se, olhos nos olhos,
fixos, enquanto Targino vai se aproximando. Assim que para em frente a Belmiro,
dá-lhe um sorriso amigável. Belmiro lança outra cusparada sobre o capim, joga
fora a folha que mantinha nos dentes e indaga Targino, Ô seu Targino, venho
pensando comigo, e de tanto pensar, depois destes anos todos, concluo que o
senhor ficou louco. Louco? Mas louco por quê? Targino encara-o com assombro e
sem compreender o amigo. Fecha os botões da camisa, ajeita o cinto das calças,
apruma os óculos sobre o nariz, passa a mão sobre os cabelos, penteando-o com
os dedos e aguarda a resposta de seu interlocutor. Sabe o que é? Fico imaginado
como pode e, confesso, nunca ter visto caso igual. Toda terça-feira, as onze e
trinta e dois da manhã, o senhor me surge daquele mato, aqui fica alguns poucos
minutos, depois, novamente, se põe a andar, e só retorna na próxima
terça-feira, por detrás da mesma moita, exatamente, no mesmo horário, e estas
ocorrências, já se dão há décadas. Décadas, por que foi só o que vivemos,
talvez, se ultrapassássemos os séculos e os milênios, cá estaria o senhor,
repetindo, eternamente, o mesmo feito, o mesmo percurso e a mesma aparição.
Diga-me, Senhor Targino, se isso não é coisa de louco. Ora, Senhor Belmiro, não
tenho culpa do tempo que temos e as medidas que se lhe meteram, além do que,
não fui eu quem me colocou sob os pés os caminhos que ando. Que posso eu fazer,
se o percurso que é necessário percorrer apenas se completa neste tempo em que
cabe a semana? Ora, sinceramente, Senhor Belmiro, que falta de respeito. E
penso mesmo, já tinha estas dúvidas, mas agora sou também obrigado a
confessá-las, pois entrou para o campo das certezas, louco é o senhor. Há anos
passo por aqui, normalmente, em meu habitual caminho, e vejo-o prostrado nesta
pedra, sem tirar a bunda do lugar. Passam anos, décadas e séculos e toda uma
eternidade, se ela vier, e estará aí, plantado, sem rodar pelo mundo. Sabia que
o mundo gira, senhor Belmiro? Não demora, esta pedra sai andando e fica o
senhor, enraizado, fincado para sempre. Quem sabe, não acabe virando, o senhor
mesmo, uma pedra bruta? Ora, tenha paciência. Que ultraje, senhor Targino, que
ultraje. Como se atreve? Que sabe o senhor do mundo? Só porque fica a girar
como peão? Diga-me que maravilhas encontra por aí, em seu percurso de sete
dias. Ofegante como sempre o vejo, não creio que tenha tempo de parar e pensar
ou refletir sobre a realidade do mundo e da vida. A contemplação é a fonte de
toda a sabedoria, Senhor Targino. Ora, Senhor Belmiro, quantas idiotices. Quem
disse ao Senhor e de onde tiraste tal autoridade para afirmar que para se
contemplar o mundo há que estar estacionado? Contempla-se o mundo, andando,
percorrendo-o. O que vejo é que o senhor
parece ter desistido dele. Cala a boca, seu desajustado. Não sabe do que fala.
Daqui do meu campo de observação, tenho certezas sobre o que vejo. Conheço a
fundo a flora e a fauna que me cercam. Já sou íntimo destas forças da natureza.
Vê estas formigas? Já conheço os seus caminhos, suas tocas, suas preferências e
a sua ordem e hierarquia. Vê aqueles pássaros? Já me habituei ao seu canto e
voo. Conheço cada nota da sua cantoria e os galhos preferidos ao pouso. Vê
estas gramíneas? Conheço todo o seu ciclo de vida. Quando brotam e quando
secam. Vê estas árvores? Vejo-as crescer e conto os gomos e os anéis dos seus
troncos. E sei que aquele mato, toda terça-feira, se abre, as onze e trinta e dois,
onde sempre, sem falhar uma terça-feira, anos após ano, me aparece o Senhor,
com estas loucuras de andarilho. Quer saber, Senhor Targino, vou é mandar
prendê-lo. O Senhor é um perturbador da ordem das coisas. Ora, louco é o
Senhor. E eu é que vou trancá-lo em uma cela. Sabe o que faz o mundo girar,
Senhor Belmiro? São os passos das pessoas. Se todos prostrassem como o senhor
aqui está, não haveria conhecimentos, ciência, não haveria histórias, geografias
ou as matemáticas, não haveria as filosofias, não haveria a civilização, Senhor
Belmiro. Não se constrói sobre o desconhecido. Sabe do universo das formigas
depois que elas entram pelos buracos? Sabe para onde vão os pássaros depois de
abandonar as árvores que vê? Pensa que os matos crescem todos da mesma maneira
em diferentes lugares? Quem não anda pelo mundo, Senhor Belmiro, não apenas o
ignora, como não permite que ele se mova. Ora, mas que afronta, Senhor Targino,
sinceramente. Vou já resolver a questão. Belmiro enche os pulmões de ar e grita
com toda a força que tinha, Louco, louco, Socorro, há um louco aqui. Targino,
não pensa duas vezes. Põe-se também a gritar, fazendo coro com o amigo, Louco,
louco, Socorro, há um louco aqui. Louco, louco. Em meio às histéricas
gritarias, surge apressado, um agente das forças de segurança. Mas o que ocorre
por aqui? Que gritarias são estas? Estão perturbando o sossego, se não pararem
agora, meto os dois na cadeia. Os homens reduzem o tom, mas não cessam as
acusações. Louco é você. É você. Não fosse a presença do segurança, certamente,
sairiam aos tapas. O agente, observando a algazarra e ouvindo os argumentos de
um e de outro, embaraça-se em resolver a pendenga. Os homens estavam tão
excitados e eufóricos em sua discussão que o agente imaginou que ali,
realmente, pudesse haver algum sinal de loucura. Decide, então, até porque
ficara curioso em saber quem era o louco e quem tinha a razão, resolver a questão
a sua maneira e grita, Calem-se. Calem-se ou os levo presos já. Os dois. Ele
havia ouvido em algum lugar, apesar de não se lembrar onde, que louco que é
louco rasga notas de cem. O policial tira a carteira do bolso, arranca de lá,
duas notas de cem e as atira ao chão. Os homens entreolham-se, assustados e
curiosos. O policial, confuso e com o suor escorrendo pela testa, sob o sol do
meio dia, aguarda o resultado do teste. Belmiro pega a nota de cem e a enfia no
bolso. Targino repete o gesto, com gosto. Olham um para o outro e passam a
gritar a plenos pulmões. Socorro, socorro, há aqui um louco jogando dinheiro no
chão. Socorro. Socorro.
Marcos Vinícius.
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