quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Sobre a mentira


Sobre a mentira



No dia 18 de setembro de 2008, José Saramago, publicou em seu blog um artigo, onde afirmava que “George Bush expulsou a verdade do mundo para, em seu lugar, fazer frutificar a idade da mentira. (...) honra lhe seja feita ao menos uma vez na vida, há no robô George Bush, presidente dos Estados Unidos, um programa que funciona à perfeição: o da mentira. (...) A sociedade humana actual está contaminada de mentira como da pior das contaminações morais, e ele é um dos principais responsáveis. A mentira circula impunemente por toda a parte, tornou-se já numa espécie de outra verdade. (...) a mentira como arma, a mentira como guarda avançada dos tanques e dos canhões, a mentira sobre as ruínas, sobre os mortos, sobre as míseras e sempre frustradas esperanças da humanidade”.


Após ler estas palavras, voltei a relê-las outras tantas vezes, fiz cópias, distribui entre pessoas mais próximas e colei-as em alguns poucos lugares públicos. Desde então, as palavras não mais me saíram da cabeça. Nunca imaginei poder encontrar definições tão exatas, não apenas sobre a roupagem da qual se traveste a mentira em nossos tempos, mas também como se configuram estes mesmos tempos a partir das mentiras que carregam e são. O autor abre uma perspectiva, fundamental, para que possamos compreender um pouco mais profundamente não apenas o mundo em que vivemos, coabitamos, mas também, a humanidade que somos. O fenômeno da mentira, não das pequenas mentiras, mas das mentiras grandes, aquelas que arrastam povos inteiros, ceifam vidas, criam ódios e guerras, vai se tornando um elemento cada vez mais comum, repetitivo, sistemático das bases de nossa civilização global. As grandes mentiras, se observarmos bem, cercam-nos a todos, em uma tendência mundial.


A mentira, enquanto fenômeno, encontra-se tão disseminada, que por mais que sejamos atentos, estamos sempre a ser enganados. Os veículos das grandes mentiras são muito poderosos e viajam pelo mundo com blindagens indestrutíveis, a serviço de negócios inconfessáveis, geralmente em defesa de interesses de governos ou das grandes corporações privadas, dos setores financeiros, dos oligopólios. A mentira tornou-se estrutural. Jamais poderia imaginar que as brincadeiras de infância, associadas ao inocente primeiro de abril pudessem esconder uma perversidade absoluta, em que poderia a mentira se transformar. Vivemos sob a ditadura da mentira. Quem pode acreditar nos discursos dos governos? Os governantes de plantão, geralmente a serviço do grande capital, transformados em gerentes e marqueteiros, querem nos fazer acreditar que mergulhamos nos melhores dos mundos, quando nos afogamos, populações inteiras, em desempregos e misérias. Querem nos fazer acreditar que não há outras alternativas, que não as deles, ou dos interesses escusos, onde muitos, são testas de ferro. As grandes organizações e organismos multilaterais fundamentam-se sobre princípios de falácias e engodos.


De certa forma, a mentira acaba por criar uma nova estrutura de poder e uma nova cultura também. Tornou-se recurso universal, imprescindível de quem detém algum poder de fato, sejam os poderes maiores, em escala global, sejam nos níveis intermediários, ou nos níveis mais individualizados e próximos, onde um indivíduo está para exercer o poder sobre o outro. É como se a mentira funcionasse como um amplificador de poderes, pois quando estão a mentir, e tem o domínio, a mentira passa a ser a verdade, sobre a qual tem o controle. Os grandes veículos de comunicação mentem o tempo todo, enganam as crianças, enganam a nós, com suas meias verdades, omissões previsíveis, táticas, distorções, deturpações, ilusões fáceis. Querem transformar a todos em dóceis consumidores, nada além de força de trabalho e consumidores de entulhos e supérfluos, não-pensantes. Querem transformar-nos em massa de manobra, currais eleitorais, e compradores da fé. Descobriu-se o quanto pode se lucrar com a mentira e ela fez-se grande, disseminou-se. Há saída? É o que devemos buscar. Talvez um bom começo seja recusando-nos a sermos cúmplices, descosturando a cada dia o manto que caiu sobre nós. É necessário estarmos de olhos abertos, tatearmos nas trevas, para perceber que as maiores mentiras são as que nos apresentam como as únicas verdades ou para descobrir a verdade que há por trás de uma grande mentira. Não dá para cochilar. Obrigado Saramago, por manter a vigília.


Marcos Vinícius.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Breve viagem à Diamantina.




Breve viagem à Diamantina.


Existem ocasiões que exigem ser, de alguma forma, retratadas, seja para que possamos sempre voltar a contemplá-as, seja para guardar alguma memória de nós mesmos, para que possamos, posteriormente, lembrar de quem fomos um dia, ou quem sabe, para que possam lembrar de nós, quando por aqui já não mais estivermos. Existem ocasiões que exigem algo além das fotografias. Não que estas não sirvam para nos trazer as boas ou as más recordações, mas que podem não ser o bastante, quando se pretende recorrer não só às lembranças visuais, mas também aos sentimentos e sensações que se teve, ou pelas quais se foi tomado, quando se conheceu alguma nova localidade. Após a viagem à Diamantina, cravada na Serra do Espinhaço, torna-se irresistivelmente tentador transformar em linhas de palavras, a trilhas percorridas, entre as montanhas, serranias, cursos d’água, rastros do passado, que magicamente vão se abrindo diante de nossos olhos, admirados. É como se não se tivesse sossego, diante dos fatos que não querem se dar por esquecidos, e que exigissem de nós que os registremos além das fotos de nossas câmeras digitais. Escrever sobre uma viagem é não só revivê-la, de forma intensa, mas também recheá-la com novos significados, redescobrindo-a.


Natural, mineiros que somos, que fiquemos, quase todos, maravilhados diante da beleza inigualável do mar e do calor das praias e das cidades litorâneas. É comum, principalmente, em períodos de férias, deslocar-se uma fatia bastante significativa da população do Estado, para as paradisíacas praias que se estendem por todo o litoral brasileiro. A grande peregrinação dos mineiros ocorre no verão. As estradas, vias de acesso ao litoral do Espírito Santo e Bahia, para não se ir mais longe, ficam ininterruptamente entupidas, os acidentes automobilísticos se contam aos montes, resultado não só da imprudência dos motoristas, mas de uma demanda do mercado, com seus carros velocíssimos, e rodovias, completamente entregues aos buracos. É plenamente compreensível, no entanto, o desejo pelo mar, com sua espuma, que nos roça freneticamente os pés, e suas ondas que nos levam ao deleite. Quem não quer estar à beira-mar, curtindo o sol do verão, tomando uma cerveja gelada, ouvindo o quebrar das águas, o canto das sereias, e o rebolado das ninfas, que seminuas, desfilam com suas tatuagens coloridas, os seus piercings, com os cabelos ao sol e ao vento? Mas o que muito me impressiona, é como muitos destes cidadãos, que a cada ano lotam as praias mais próximas e as mais distantes também, morrem sem nunca terem voltado os olhos para o que de tão valioso temos cá guardado pelo imenso coração da antiga Capitania das Minas Gerais. Visitar as serras que se estendem para além da Serra do Cipó, e penetrar pelas pedrarias do Espinhaço, pode ser uma viagem, da qual por mais que a façamos e retornemos, sempre por lá ficará, um pedaço de nós.



Partindo de Belo Horizonte, são muitos os caminhos e roteiros que nos introduzem nos encantos, do que pode ser considerada a única cordilheira do Brasil. A Serra é bastante longa e se estende por mais de 1000 km de extensão, sublevando os territórios de Minas e Bahia, como uma gigantesca flor de pedras, que se levanta com força da Terra, não só proporcionando aos olhos uma imagem inusitada, como se noutro mundo estivéssemos, principalmente para os marinheiros de primeira viagem, tão acostumados aos caminhos do litoral, como nos ofertam com uma infinidade de histórias, que realmente, apenas amplia a nossa condição de viajantes. São muitos os roteiros que nos permitem abordá-la, partindo aqui da região metropolitana. Nossa primeira viagem, dentre outras que virão, tem com destino, Diamantina.


Tem início a viagem. Após um percurso de cerca de 300 km, a cidade se abre, principalmente para os que ainda não a conhecem, como uma alternativa bem desafiadora, como penetrar pelos mistérios do passado, desvendar seus traçados de ruas, com seus becos estreitos, seus imensos casarios, suas pesadas portas e janelas, que tantos segredos guardaram do tempo e dos homens, sentir sua altitude, e o espírito de uma cidade, cravada no meio das pedras. Infelizmente o tempo de que dispunha era bastante exíguo, para explorar sequer uma pequena parte das riquezas que o local oferece. Não foi desta vez que pude conhecer as cachoeiras da Sentinela, do Barão, dos Cristais, da Toca, Batatal, das Fadas, do Telésforo, e também não foi desta vez, que as portas das antigas igrejas dos séculos passados, se abriram para mim. As cachoeiras não puderam ser conhecidas porque o tempo não o permitia, dado o propósito do roteiro já traçado, ambicioso, não só pelo tempo curto, mas também para uma grana contada. Quanto às igrejas, confesso que me senti um pouco frustrado. Antes de seguir viagem fiz uma lista com muitas delas como, Basílica do Sagrado Coração de Jesus, Igreja Matriz de Sant'Ana, Igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo, Igreja de Nossa Senhora das Mercês, Igreja de Nossa Senhora do Amparo, Igreja de Nossa Senhora do Rosário, Igreja de Nosso Senhor do Bonfim dos Militares, Igreja de São Francisco de Assis, Matriz Metropolitana de Santo Antônio. Tinha como objetivo conhecer algumas delas, mas encontrei abertas apenas as portas desta última, que fica no centro da cidade, em frente à antiga morada do inconfidente Padre Rolim, hoje Museu do Diamante, sobre o qual se falará à frente, e a Igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo. A primeira, uma igreja imponente, teve sua construção concluída em 1932, já a segunda, como a maioria delas, data do século XVIII. O interior desta Igreja é realmente de encher os olhos. Todos os cantos do templo dão uma demonstração inequívoca da riqueza e prosperidade da época. Belíssima pintura de teto, trabalhos em talha dourada, esculturas magníficas, quadros, o corpo de Cristo sobre o altar-mor, uma arquitetura plenamente voltada ao sagrado, criam um ambiente em que os fiéis possam sentir não apenas todo o peso da onipresença de Deus, como também o luxo e a faustuosidade que os diamantes proporcionaram, o poder e grandeza, dos quais puderam usufruir alguns poucos homens. Nos fundos, um pequeno cemitério, edificado nas paredes, repletas de gavetas. Gavetas que certamente, guardam os restos, se é que ainda existem, daqueles privilegiados, que puderam comprar um território supostamente eterno, onde pudessem estar infinitamente sob a proteção dos anjos, santos e da casa do Pai. O nome dos mortos gravados nas pedras, nos mármores, são manifestações explícitas do desejo humano de se perpetuar. Os nomes lá estão, praticamente intocáveis, acompanhados das datas de nascimento e morte, com as cinzas do tempo, desafiando a brancura do mármore. São mortos antigos, e o que mais terá restado deles, além dos nomes que lemos?Infelizmente, não pude permanecer tempo suficiente na cidade para descobri-lo. Mas o que desperta mesmo a atenção nesta igreja, provavelmente até mesmo a dos mais desatentos, é a localização da torre sineira, na parte posterior, fenômeno bem original e inusitado. A explicação para o feito possui versões variadas. Uns afirmam, que por ter sido edificada a mando de Chica da Silva, ordenou que assim fosse feito, em função de uma lei que vigorava na época, que negava aos negros irem para “além das torres”. Outros dizem que assim o fez, para que o barulho dos sinos não a perturbasse, pois sua residência era bem próxima do templo. Sendo uma coisa ou outra, o que impressiona mesmo é o poder que tinha esta mulher, não só entre os homens, mas também entre as coisas da fé. Lendo depois sobre esta igreja, uma curiosidade, acaba por fazer obrigatório o retorno a ela um dia. Dizem que José Soares de Araújo, pintor do forro de teto da capela, por não ter recebido o valor combinado pela Irmandade, para a realização do trabalho, acabou por acrescentar à obra desenhos dos irmãos, com cara de ratos. Que falta faz um guia nestas ocasiões.



Um local que certamente muito impressiona todos que por lá passam, é o famoso caminho dos escravos. Na verdade, em Minas, são muitos os caminhos dos escravos. A Capitania se encheu deles quando de suas entranhas e rios, aflorava o tão cobiçado metal, que tantas mortes fez, e tanto poder construiu - o ouro. Eram os escravos, quem com suas foices e enxadas, abriam o caminho na mata, entre as serras, cortando rios, para que a riqueza pudesse circular. Foram os seus caminhos que permitiram a tão disputada corrida do ouro, pois sem os seus mortíferos esforços, como as nobrezas, os agentes da Coroa, poderiam entrar, como as pedras preciosas, ouro e os diamantes poderiam sair? De certo modo, podemos compreender que sem o seu sacrifício, dificilmente o denominado século do ouro poderia ter tanto esplendor. Hoje, no Estado, os caminhos abertos por eles, são ironicamente chamados de Estradas Reais, e apesar de servirem de fato, à época, aos interesses da Coroa, do Rei, possuem, ainda hoje, força, imortalidade e exuberância, provenientes talvez do sangue ao longo delas derramado e do sal e suor, que durante anos e anos, foi se escorrendo caudalosamente dos corpos doloridos e sendo depositados nos veios da terra devassados. Neste sentido, é muito ilustrativa a visita ao caminho dos escravos, em Diamantina, talvez o mais conhecido deles em toda a região. Trata-se de uma estrada enorme, comprida, larga e espessa, que ligava à época, Diamantina a Mendanha, toda feita de pedras, meticulosamente encaixadas umas nas outras, pelas mãos dos escravos, e fincadas numa terra inóspita em meio às montanhas. Uma estrada que mostra aos olhos mais atentos, como foi dado também aos homens, o dom de operar milagres, claro, que não daqueles que se executam com preces, orações ou rituais mágicos, mas como fruto de um trabalho árduo, exaustivo, duríssimo, e sem o recurso da parafernália técnica e das sofisticadas máquinas que temos hoje à nossa disposição quando dos grandes trabalhos de construção. Deviam as autoridades, colocar um anúncio bem à entrada da cidade “Visitem os museus, os monumentos, as igrejas, as obras de arte, mas em hipótese alguma, deixem de conhecer o caminho dos escravos”. Porque ali, naquela estrada toda feita de pedra, e com certeza, muito sangue e suor, não há como não sentir a história pulsar, pois no silêncio do tempo, o vento das montanhas parece trazer os gemidos dos pobres, que enterraram suas vidas, entre as pedras de um caminho, que talvez, sequer soubessem, onde ia dar. A marca do choro nas pedras, parece a todo o momento, em choro, querer outra vez se transformar. Todos que vão à Diamantina, deveriam ir ao local. A visita deveria ser obrigatória, incluída nos currículo de todas as instituições de ensino. Não há lição melhor não só da história local, como da história do mundo. Aqui se percebe e se sente talvez o que já se saiba, mas ainda não tanto. Poderia se dizer, que também nas igrejas monumentais, se vê muito do seu suplício, o que é correto, mas ali, a impressão que se tem é que a obra de Deus ofusca um pouco a obra dos homens. Ante o esplendor das construções e as sombras e luzes divinas, o esforço humano parece ser nada. Enquanto na estrada, os blocos de pedras são menores, interpostos uns sobre os outros, numa grande teia de rochas, com argamassa humana e incrustada no chão, os templos são construções para o alto, edificações, com gigantescos blocos de pedras, empilhados, montados a dar a dimensão dos céus e a grandeza de Deus. Se quiser sentir mais de perto, o quanto pôde ser dura a vida destas pobres bestas humanas, o caminho, além de caminho, é parada obrigatória, pois ali, mais que em qualquer outro lugar, a história parece não querer se tornar o passado. Os espíritos dos mortos parecem querer dialogar. Ao suspirarmos, ficamos à dúvida, se o fizemos nós mesmos, ou se um sussurro do tempo veio a nos contar um segredo.


Os lugares por onde passamos, passam a viver e existir também dentro de nós, mesmo que lá já não mais estejamos. Vão se constituindo em memória e como pequenas pedras de um intrincado mosaico vão formando a imagem reveladora que temos do mundo, e a imagem que temos de nós mesmos. Nunca mais seremos o que fomos, quando uma nova paisagem for descortinada, quando uma nova história for contada ou descoberta. A humanidade vai fazendo das coisas o que são, e vamos sendo quem somos, a partir do que as coisas e os lugares vão fazendo de nós. Assim é cada viagem, assim é cada canto do mundo, quando olhado de frente, à olho nu. Os lugares vão deixando suas impressões, impressionando-nos. É interessante o relato sobre a viagem feita, pois, em última instância, é uma forma de refazê-la, retê-la. Uma maneira de estarmos não-estando, voltar pelos mesmos caminhos, porém com novas possibilidades, o caminho pode então, ser visto do alto, pois visto agora à certa distância, a partir da visão do conjunto que na mente se formou, que não tínhamos quando da primeira vez. O relato acaba por abrir pois, novos caminhos nas fronteiras do nosso entendimento. Claro que nos esquecemos de muito do que se viu, mas também resignificamos o que há muito já poderia ter se esquecido. Arrisco-me a afirmar que os caminhos são não apenas as pedras e o pó que a terra levanta, as cercas esticadas, as matas rasgadas por trilhas, as indicações, as curvas, os buracos e o barro, mas são antes de tudo, o que buscamos por eles. Os caminhos que fazemos acabam por fazer a nós e, geralmente, não tem fim. Quando imaginamos que mais não há, sempre uma trilha escondida reaparece por sob os pés, uma nova direção ou sentido, sempre havendo algum novo lugar para se chegar. Por mais que andemos, nunca andamos tudo, e a Terra parece, nunca terminar.



Mas o passeio desta vez não é longo, três dias apenas, e ainda temos o que andar. Infelizmente, como já foi lamentado acima, o tempo é bem curto em relação ao que se tem por ver. E muita coisa, descobertas que não fizemos, ficará para trás, sem que possamos dimensionar a riqueza que se deixou de conhecer. Sim, em toda viagem, a gente sempre ganha pelo que então se descobriu, e também sempre se perde, por ter deixado irremediavelmente para o campo das nossas ignorâncias, o que de muito importante se colocou pelo nosso caminho, e acabamos, por desviar-nos dele, por nossos próprios passos, passando tão perto. Nunca dá mesmo para se conhecer tudo. Deixemos de lamentos, pois o que se pretende é um relato do que foi visto e sentido, e não do que se furtou ao olhar. Sensação bem peculiar é a que nos é proporcionada pela bela obra arquitetônica do século XIX, o passadiço da Glória, que liga, os dois prédios da Casa da Glória, antigo educandário e orfanato, por sobre a rua, a partir do primeiro andar. Era por onde passavam as internas. Pelo que se conta, o passadiço servia não apenas como meio de facilitar a comunicação entre os prédios, mas também para proteger as moças, dos rapazes que pela rua passassem. Para evitar que pudessem seduzi-las, ou que por elas, fossem seduzidos. Certamente havia suspiros entre os jovens que do passadiço se aproximassem, sejam os rapazes, que vislumbravam as grandes portas e fechaduras de seus possíveis grandes tesouros guardados, a imaginar sabe-se lá o que, ao passar exatamente por baixo, do passadiço onde as virgens, estivessem a sobrevoar como anjos suas cabeças, seja entre as moças, que lá do alto, podiam contemplar sem serem contempladas, e escolher um dos que por baixo de si passasse, para que pudesse ser seu homem, num futuro próximo, ou possuí-la em seus íntimos e guardados pensamentos e delírios noturnos. Sim, havia suspiros pelo passadiço da Glória. Serão os passadiços elevados condenados aos suspiros? O estilo arquitetônico se inspirou na chamada Ponte dos Suspiros, construída na Veneza do século XVII. A ponte tem este nome, porque também ela, tem uma história de suspiros. O nome se deve ao fato da ponte fazer a passagem e ligação entre o antigo Palácio de Governo e a Prisão. Segundo a lenda, os presos ao passarem de um prédio ao outro, dirigindo-se ao cárcere, tinham na ponte sua provável última visão do mundo externo, daí o suspiro. No nosso passadiço, o suspiro que se fez predominar, foi certamente, o suspiro das moças e rapazes, que ardendo-se uns para os outros, não tinham sequer como tocarem-se. Já a ponte deles, testemunha os suspiros de dor e sofrimento, ante a última visão do mundo, que acabou de se perder, que acabou por tornar-se, portanto, intocável. São passagens elevadas, que arquitetonicamente, facilitam o contato, a comunicação, o intercâmbio, mas que na realidade, na sua aplicação prática, ante os métodos da concepção humana, são clausura, encerramento, confinamento e prisão. A genialidade humana parece se manifestar não apenas em sua capacidade de inventar e criar coisas, mas também em sua insistência em sempre querer subvertê-las. A travessia do passadiço foi uma experiência única.


No coração do centro histórico da cidade, faz-se visita obrigatória, o Museu do Diamante, funcionando na casa que pertenceu ao Inconfidente Padre Rolim, considerado um dos mais ricos ativistas do movimento conspiratório. O movimento da Inconfidência é um símbolo da mineiridade, transformando os mineiros em sujeitos da história nacional, proporcionando orgulho em serem os mineiros que são, e aproximando nossas peculiaridades humanas às sagas dos heróis. Mas infelizmente, uma leitura mais cuidadosa dos motivos que de fato levaram nossos ícones rebeldes ao rompimento com a Coroa, reduz um pouco a grandeza do ato. Na maioria dos casos, homens da elite, beneficiários da estrutura escravista, grandes proprietários, viam na autonomia do Estado, não uma forma de construir uma nação nova, com distribuição de riquezas e trabalho livre, mas a possibilidade da construção de um sistema político, onde pudessem tratar diretamente de seus interesses privados mais imediatos, sem a ingerência dos agentes da metrópole. Vê-se que a concepção de liberdade, que tinham nossos inconfidentes, era bem limitada. Na verdade, a Inconfidência, foi um grande movimento ou fato, que de fato, não chegou a acontecer. Os agentes do governo se adiantaram aos rebeldes e estrangularam o movimento. Defendem os historiadores, que o movimento ocorrido na Bahia, pela mesma época, com o mesmo desfecho, a derrota, conhecido com Conjuração Baiana ou Revolta dos Alfaiates, foi um movimento de caráter mais popular, com participação social mais ampla, e com referências à questão da propriedade da terra e o fim da escravidão. Cabeças rolaram por lá também. Enquanto por aqui apenas Tiradentes foi morto, enforcado, na Bahia, alguns anos depois, foram cinco os condenados. Um deles escapou da execução, pois conseguiu fugir e nunca mais foi localizado. Enquanto partes do corpo de Tiradentes, esquartejado, foi fincado em diversas cidades por onde fazia sua propaganda subversiva, as cabeças dos baianos ficaram expostas pelo centro de Salvador por cinco dias, para o terror da população, que teria à prova a inclemência da Coroa com os seus súditos infiéis. Mas não estamos aqui a tratar de uma narrativa histórica, mas apenas de um rápido passeio a que me permiti fazer aqui pelas franjas da serra do Espinhaço, tendo como porta de entrada, Diamantina. Para os padrões nacionais podemos dizer que o Museu dos Diamantes é um grande museu, e maior ainda acabou por ficar, com a entusiasmada orientação de uma guia, que demonstra uma grande satisfação ao contar para os turistas admirados a história da sua terra. Bom são os guias quando nos fazem imaginar que ao dialogarmos com eles, dialogamos diretamente com o passado e a história. Existem guias que podem tornar uma visita a um museu, uma viagem grandiosa e inesquecível. Felizes de nós. No prédio, vemos equipamentos ligados à extração diamantífera, diamantes, balanças, artigos religiosos, armas, correntes para escravos, instrumentos de tortura, mobiliário, máquinas de escrever, privadas, ferros de passar, dentre outros. O que sempre impressiona são os ferros que aprisionavam e torturavam escravos, é como se o sofrimento, as dores, os cortes, o sangue, o suor, que eles haviam causado, os deixassem impregnados de alguma humanidade. Os objetos desta sala, talvez sejam os que mais falem por si mesmos, dentre todos os outros espalhados pelo museu. É a sala onde talvez menos se façam necessárias as palavras, para que se compreenda o que cada uma daquelas peças possa significar. A liteira exposta no maior salão do museu, já bem danificada, nos permite vislumbrar não apenas a suntuosidade em que viviam os que tinham capital e poder, mas a condição mesma em que um ser humano pode literalmente se transformar em um verdadeiro “burro de carga”. As privadas de madeira e gavetões que serviam para o alívio dos proprietários da casa, certamente, aumentavam as condições degradantes de trabalho de quem do ofício deveria cuidar, e transformavam as cidades da época, em centro urbanos não muito aromáticos. O museu é uma ilustração quase viva do que foi Diamantina há alguns poucos séculos atrás.



Como a intenção era conhecer a maior quantidade de coisas e lugares em um tempo sempre próximo do fim, não poderia sair da cidade, sem antes conhecer a curiosa Biribiri. A estrada para o lugarejo é bem diferente de todas as outras estradas que já tive a oportunidade de conhecer. A impressão que temos é de viajar por vários quilômetros sobre uma enorme pedra. O ambiente é árido, a poeira da estrada é branca e o chão repleto de cascalhos. As pedras, de todos os tamanhos, vão se prostrando à nossa frente, por todos os lados, com as mais variadas formações, como que para se afirmarem diante de nós, e mostrarmo-nos que ali são elas quem imperam. Vez ou outra, ouvimos o ruídos das águas e o corpo do córrego se põe à vista. A água é cristalina, e em alguns pontos da estrada, corre bem apressada, perfurando as pedras e oferecendo aos olhos um belo espetáculo. É aparentemente limpa e gelada, principalmente por estarmos no inverno. Neste dia o acesso à Cachoeira dos Cristais estava vedado e uma grossa corrente fechava a passagem. Segundo, pude saber posteriormente, a interdição se deu em função de ataques de ladrões que vinham assaltando os carros dos visitantes. Por mais que já tenhamos visto fotografias de Biribiri, a chegada ao local é uma surpresa. Na chegada, a estrada parece tornar-se mais íngreme e estreita, e a sensação que temos é que um descuido no volante ou um problema técnico qualquer, pode derrubar o automóvel pela serra abaixo. Os que têm medo de altura ou ainda não aprenderam bem a arte de dirigir devem evitar assumir a condução de seus veículos quando estiverem viajando pelas serranias do Espinhaço. Não imagino o que poderia ocorrer a uma estrada destas em períodos de chuva. Mas enfim, o pequeno povoado aparece. Parece uma cidade fantasma, não fossem as reformas pelas quais estava passando para transformar-se em cenário de um novo filme nacional, que irá contar a história de um matador que viveu pela região há muitos anos. O filme, segundo um morador, terá a participação de José Wilker e as filmagens teriam início uns dois meses apenas após a minha visita. O lugarejo foi construído em fins do século XIX para abrigar uma fábrica têxtil e seus operários, viriam a constituir uma das primeiras comunidades fabris do Estado. Sob o controle da Arquidiocese de Diamantina, entre 1876 e 1921, a partir de então, passou para a mão de particulares. O lugar floresceu até o fechamento da fábrica em 1973, e acabou eclipsando-se. Junto com a fábrica, os moradores também se retiraram. O acesso difícil e as longas distâncias dos centros consumidores de seus produtos tornaram o local economicamente inviável. Ao chegarmos, uma placa nos avisa que ingressamos em território privado, o que à primeira vista, soa-nos estranho, por não estarmos acostumados a passarmos por cidades cercadas. A igreja parece ter sido levantada pela iniciativa das operárias que ali viviam e trabalhavam e resiste à ação do tempo. As casas dos antigos moradores hoje são alugadas para os turistas que querem não só o acesso às suas belas águas, mas que pretendem mergulhar no passado, instalando-se num local cuja estrutura física manteve-se aparentemente intocável. Desenvolveu-se, floresceu, depois parece ter perdido a razão de ser, como se vítima de uma morte lenta e inevitável. As casas alugadas possuem certo aspecto de abandono. Ouvi de um morador da região, que o lugarejo estava à venda. Quanto valeria um local como este? Quem o compraria e que destino teria? A conservação e administração de tão rico patrimônio histórico não deveriam estar sob o controle do Estado? A visita a Biribiri, na verdade, trouxe mais perguntas do que respostas e ficamos a imaginar, se nós, simples mortais, teremos ainda acesso a este patrimônio quando ele estiver nas mãos de algum bilionário qualquer. Uma outra questão fica por se saber. Será a denominação do local uma referência à frutinha de mesmo nome? Biribiri, uma frutinha azeda, parente da carambola, da qual pode se fazer suco, doces, picles, temperar carne, tem uma característica interessante e curiosa, suas folhas se abrem ao nascer do sol e fecham-se à noite, para dormir. Como o lugar, que tem hoje suas folhas fechadas, adormece, após o encerramento de suas atividades econômicas, enquanto não chegam os atores, ou não vem os turistas, que não sabemos se poderão despertá-la de um sono que parece eterno. Despeço-me com a esperança de poder voltar um dia, para poder conhecer o que não pode ser visto nestas poucas e rápidas horas em que pude estar por ali. Há lugares que nos obrigam ao retorno. É como se um segredo que tivesse muita necessidade de se revelar não quisesse perder a oportunidade de ter para quem se mostrar, e nós, em nossa pressa humana, insistimos em partir, virando-lhe as costas. Ficamos, às vezes, inconscientemente, com uma dívida com o local, que não pôde se revelar de todo para o viajante apressado. Um dia, terá que se retornar.



Marcos Vinícius.