segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

O sono de Atlas



A respiração havia se alterado e tornara-se mais leve, o ronco profundo do sono total e milenar dava lugar a um suspiro breve e aliviado. As pálpebras cerradas prenunciavam um ligeiro sinal que talvez fossem piscar. A musculatura do rosto duro, pétreo, distendia-se, como se, em breve, fosse possível, um roçar dos lábios, um ranger de dentes, sabe-se lá, um sorriso. O corpo gigante, imóvel, plantado sobre a areia branca, parecia despertar. Um primeiro movimento, mínimo, manifesta-se nas pontas dos dedos, que se arrastam e se afundam um pouco na areia fina. Os minúsculos grãos areníticos deslizam-se levemente uns sobre os outros, antecipando-se às mudanças de posição daquele homem enorme, forte e corpulento que, suavemente, começava a se mexer. Afora uma malha curta, que lhe cobria as partes íntimas, estava a descoberto. Era muito grande, titânico, aparentemente, de uma força descomunal. Tórax, braços e pernas eram músculos proeminentes. A barba estava coberta por uma poeira do tempo que lhe fazia aparentar uma idade mais avançada do que realmente tinha. Num súbito, desloca-se, vira para o lado, inquieta-se. Um estrondo enorme, como um raio a rasgar os céus, quebra o silêncio absoluto que há pouco imperava. Em poucos segundos, arregala os olhos, põe-se sentado e a expressão, deslocando-se do sono à vigília, torna-se atônica e assustada. Havia dormido muito mais do que imaginava ou planejara. Desde que recebera das divindades superiores, a expressa ordem, de carregar sobre  os ombros, a abóboda celeste, fora tomado não apenas por um grande cansaço, como também, por uma forte dor lombar. Sabia dos riscos que havia diante de qualquer tentativa de furtar-se ao castigo que lhe fora imposto e, portanto, jamais imaginou deixar de cumpri-lo. O incômodo, no entanto, tornara-se tal e a fadiga tamanha, que em uma rara oportunidade, resolveu entregar-se a um breve cochilo. O que não imaginava é que pudesse dormir tanto. Não fora a eternidade completa, mas um sono milenar. Sobressalta-se. Pelos deuses ancestrais, como pode ausentar-se do tempo? Com os olhos ainda um pouco embaçados, constata que a imensidão dos céus continua no mesmo lugar que a deixou, antes que a sonolência profunda tomasse conta de si. A enorme estrutura mantinha-se ali, ao seu lado, a espera que algum dia seu suporte divino viesse despertar. Atlas aproxima-se e prepara-se para, mais uma vez, soerguê-la. Antes, porém, detêm a observá-la e percebe que algo por ali parece ter se alterado. O azul celeste ofuscara-se, perdera o brilho, colunas de fumaça rasgavam-lhe ao meio e um cheiro forte, putrefato, substituía o aroma das flores e ervas. Um ruído contínuo e incômodo, um monoruído, como se proveniente de um maquinário maior que o próprio universo, ocupara-se do silêncio musical dos cantos dos bichos e do rufar das cascatas e águas. Preocupado com a possibilidade de um castigo ainda maior sobre seu destino e ombros, talvez em função do descuido e da longa ausência, do acaso em deixar o firmamento à deriva, procura levantá-lo de uma só vez, o mais rápido possível. Em contrapartida, sentia-se revigorado e fortalecido. Por mais danos e prejuízos que a orfandade temporária dos céus possa ter causado, o descanso advindo do sono longínquo, restaura-lhe as energias. Imagina que agora pudesse suportar sua carga por eras a fio. Rapidamente, espreguiça-se esticando todo o corpo, os braços compridos, as pontas dos dedos, dos pés e das mãos, gira lentamente a cabeça sobre o pescoço em colunata, sente o conjunto da musculatura colocar-se em alerta e prontidão e em um esforço sobrenatural, ciclópico, levanta, num arrastão, a abóboda celeste com suas estrelas vivas e as cadentes. A força, porém, fora tanta, colossal, que o globo terrestre colado a ela, depois de milênios, coexistindo grudados, desloca-se e levanta-se também, a reboque. Sobre os ombros divinos, uma esfera grandiosa, imensa, procurava se acomodar. O peso, porém, tornara-se quase insuportável e Atlas começava a afundar-se. No entanto, resiste; retesa todos os músculos, imprime-lhes a força mais hercúlea que possa empreender, dá uma chacoalhada no mundo e levanta-o como que em definitivo. Assim que a imensa esfera posiciona-se exatamente sobre sua cabeça, uma torrente de dejetos despenca sobre seu corpo titânico. A princípio, fere suas costas, o tronco, em seguida, escorre por toda a corpulência, riscando a epiderme. Ele flexiona os braços e dá-lhe mais uma brusca sacudidela, tentando encaixar melhor as órbitas e ondas gravitacionais e livrar-se do caldo que derramava sobre sua pele levemente iluminada. Não se sabe se devido a um mal alinhamento do eixo terrestre, o planeta derretia sobre as espáduas que o soerguiam. Incomodado e desentendido, Atlas procura elevar as estruturas para o mais alto que pode, põe-se sobre as pontas dos pés, gira-a à esquerda e à direita, sacode-a, e nada. O derramamento não se contém. Ao olhar para cima à procura de algum recurso onde pudesse estancar o vazamento, uma ilha de plástico, fedorenta, uma imensa gosma multicolorida, atlântica, despenca sobre seu rosto, como se lhe caísse um tapa. Raspa a barba no peito e a massa compacta transborda pelo dorso, pernas e grudam lhe os dedos dos pés. Gases soltam-se e ocorrem pequenas explosões, rejeitos químicos, nebulosas fétidas, contaminadas, ardem-lhe os olhos e uma lágrima salgada, avinagrada, escorre sobre as narinas irritadas. Não consegue mais olhar para cima. Pensa em atirar tudo pelos ares, mas detém-se. Um suor frio brota por toda sua pele, quando uma chuva ácida e um rio apodrecido despencam-se em cascatas turvas e envenenadas, intoxicando seus poros abertos. Cadáveres, carcaças de peixes, dos seres voadores, dos que vivem nas rochas, entornam-se sobre o corpo atlético, olímpico, que começa a curvar-se. Em seguida, há um contínuo escoamento de sangues, seivas, esgotos e lixos radioativos. Atlas cai de joelhos. O peso vai tornando-se insustentável. Atlas respira fundo, tentando capturar o oxigênio, que poderia reanima-lo, mas uma fumaça escura e densa, tomada de partículas e fuligens, entope lhe os pulmões. Enquanto tenta, ainda, equilibrar-se, uma tosse seca e persistente, mina-lhe resistências e uma lama amarronzada e tóxica, tempestuosa, desaba do alto, cobrindo a totalidade do corpo extenuado. Um manto de metais pesados, alumínio, ferro, arsênio, manganês, chumbo e zinco, envolvem o gigante e dobram lhe a força titânica. O que à primeira vista, lembrava uma chuva de astros, como se a abóbada celeste estivesse a desabar, era na verdade, uma tempestade de bombas que explodiam e queimavam a lama, que endurecia. Atlas petrificava-se. As cinzas das pólvoras grudaram-se na crosta entumecida e o gigante transformara-se numa imensa montanha rochosa e cinzenta. Sobre ela, o mundo e os céus balançavam, em um precário equilíbrio.


Marcos Vinícius.