quinta-feira, 11 de junho de 2020

Era uma vez



Por estes dias, dentro de casa, e sem muito com o que nos ocuparmos, começamos a inventar modas, pensar no que nunca havíamos imaginado, observarmos os cantos, sempre escondidos, das paredes do quarto, os quais, apesar de tão próximos, cotidianamente, nunca nos demos conta deles ou se fizeram tão presentes. O isolamento nos impele a percebermos os detalhes mais colados a nossa volta, os próximos ao toque e aos olhos e, também, nos permite trazermos, outra vez, à vida, lembranças, episódios e histórias do nosso passado, da nossa infância que, talvez, pouco nos recordaríamos em um dia comum, de correria, de falta de tempo, quem dirá, sentarmos a frente do notebook e registrá-las. Navegando por um grupo, em uma rede social, que me trouxe inúmeras imagens e recordações da terra e das ruas da minha infância, lugares por onde não percorro há décadas, um sentimento nostálgico apossou-se de mim. As imagens e as recordações vieram com uma força muito grande e, por alguns dias, fiz um mergulho nas memórias da minha meninice, como não imaginei que um dia pudesse fazer. O fato de ter me ausentado há muitos anos, uma vida inteira, de minha terra natal, sem visitas, passeios ou notícias, acabaram por tornar essas visões e imagens bastante impactantes. O efeito, provavelmente, não seria o mesmo, se estivesse a recordar uma infância distante, porém, em ruas e territórios que nunca se ausentaram. Pois aqui, não apenas o tempo tornou-se distante, mas também o local, o território das lembranças. Então, trata-se de uma distância e um reencontro duplo, com a terra que se diz natal e consigo mesmo, lá trás. As imagens que povoam a minha memória, de quando vivi por lá, são as imagens da minha infância, até aos dez anos de idade, afora, uma lembrança ou outra, mais rarefeita, porém, das poucas vezes em que lá estive, durante a minha adolescência, a passeio. Hoje, me recordei, especialmente, das brincadeiras de rua, que fazíamos na época, das quais, as minhas preferidas eram confeccionar e soltar pipas e papagaios, cheguei a confeccioná-los para vender, fazia papagaios lindos, de variados tamanhos e cores, alguns levavam a logomarca do bloco de carnaval que a família participava, noutros, procurava sempre alguma inovação, para, literalmente, dar asas a imaginação, e atrair alguma freguesia. Daí, os papagaios se transformavam em verdadeiras obras de arte, com rabiolas de tamanhos diversos, combinações inusitadas de cores, cheguei a fazer um papagaio gigante, nunca fizera um tão grande, alaranjado, lindo, que me foi cortado por uma linha de vidro, assim que atingiu as primeiras alturas. Outra brincadeira com a qual muito nos divertíamos, eram os carrinhos de rolimã, estes, apesar de achá-los o máximo, não dominava a técnica de sua produção, mesmo porque, não havia às mãos, as ferramentas e matérias primas, necessárias ao seu fabrico. Além do que, a rua em que morava, e onde os garotos, geralmente, maiores e mais velhos, se esbaldavam em alegrias e entusiasmos com os seus carrinhos, era uma rua bastante íngreme, o que tornava a experiência perigosa e arriscada para os mais novos e para os que não dominavam de todo, o manejo do pequeno automóvel de madeira. Mas assistir aos campeonatos que transformavam alguns condutores em verdadeiros heróis da vizinhança, já proporcionava uma diversão garantida e única. Também caçávamos vaga-lumes e, covardemente, os aprisionávamos em garrafas transparentes, que iluminavam nossas noites de curiosidades, espanto, sonhos e alegrias. Esculpíamos abóboras, com caras de monstros, e iluminávamos seu interior com velas, afixando-as nos barrancos das laterais da rua escura, para que a figura fantasmagórica assustasse os transeuntes mais desavisados. Por algumas vezes, pintei as galinhas brancas de granja das mais variadas cores, tornando o quintal de casa povoado de galináceas multicoloridas, e ainda hoje não sabemos ou dimensionamos o mal que a tinta impregnada em suas penas poderia lhes causar. Amarrei gato pelo pescoço para ver a altura dos pulos que davam, fiz castelos e cidades inteiras de areia, em um bairro em construção, guerras de mamonas e treinamos tiro ao alvo com tuchos de barro em lençóis brancos da vizinha, pendurados no varal, que sempre nos negava as frutas do seu quintal, causamos incêndio de médias proporções em um matagal, fazendo experiências com o fogo no mato seco, o que me rendeu um susto e um pânico tão grande, junto ao meu comparsa, que estávamos dispostos a ficarmos um ano inteiro escondidos debaixo da mesa, se fosse necessário. Um brinquedo inesquecível foi o telefone de lata e barbante. Amarrávamos duas pequenas latas nas pontas de um extenso barbante, que esticávamos de uma ponta a outra da rua e, ali, numa época em que não apenas ainda não existiam os telefones celulares, mas sequer os telefones fixos eram acessíveis a toda a gente. Na ocasião, era coisa de luxo, poucas eram as famílias que possuíam uma linha, que além de caríssima, às vezes, levava tempos intermináveis para que se realizasse uma instalação. Além do quê, era um luxo mantido sempre à distância da criançada. A primeira vez que ouvi a voz do colega através daquela lata de massa de tomate, após atravessar toda a extensão do barbante do tamanho de um quarteirão, fiquei tão impressionado e admirado, que por um bom tempo, aquilo tornou-se meu brinquedo favorito. Leitor voraz de revistas em quadrinhos, tinha um estoque de revistinhas que me permitia fazer um cineminha com caixa de sapato. Recortava a revista em tiras, emendava umas nas outras, geralmente, com o mesmo grude que fazíamos para colar os papagaios, atávamos as pontas das extensas tiras de quadrinhos em canetas sem carga e as acoplávamos as caixas de sapato que perfurávamos. Girávamos a caneta, os quadrinhos iam se sucedendo na tela de papelão e mesmo que a história não fizesse qualquer sentido, pois recortado o gibi, não havia como encaixar os quadrinhos em uma sequência lógica, a diversão era total e, por muito tempo, me dediquei a esta primitiva e inesquecível arte cinematográfica. As nossas infâncias localizam-se em um tempo histórico próprio, definido, e que, obviamente, não se repete. Não há infâncias semelhantes em tempos distintos, também no que diz respeito às brincadeiras. Por mais que resgatemos antigos jogos, brinquedos ou travessuras, o conjunto deles, que de certa forma, nos fez quem somos, só se vê em seu tempo próprio, não há repetições. Aquele conjunto, há muito tempo já se foi. Sequer as bolinhas de gude, que sempre me pareceram um brinquedo eterno, universal e insubstituível, nunca mais as vi rolarem nas mãos dos garotos de hoje. A propósito, fico imaginando, que adultos serão as crianças que perderam o caráter lúdico das brincadeiras que fizemos. Cortávamos papéis, confeccionávamos a cola com a farinha de trigo, criávamos os carretéis e fazíamos voar as pipas, serrávamos a madeira, fazíamos o veículo completo e nele, na velocidade dos rolimãs, nos esfolávamos no asfalto quente e no concreto das calçadas, inventávamos nossas parafernálias de recortes de quadrinhos, nossas telas de caixas de papelão, nossos telefones de barbante. Éramos pequenos, porém, mesmo nas mais corriqueiras das brincadeiras, também fomos gênios inventivos. Quanto às crianças de hoje, fico imaginando que, lá na frente, quando adultos, a pensarem em brincadeiras do passado, talvez não tenham em mente, outra coisa além das telas de seus luminosos smartphones. E grudados como estão em seus aparelhos a todo o momento, ininterruptamente, sem prestar atenção a qualquer coisa à volta, desconfio mesmo, que sequer se recordarão, não apenas de uma infância, propriamente dita, mas também das paisagens mais próximas, despercebidas, e dos caminhos por onde passaram, até os mais costumeiros. Tenho a impressão que muitos garotos que percorrem, em uma grande cidade, certa distancia, diariamente, por um ano, dentro de um carro ou ônibus e sempre grudados ao celular, caso algum dia, tenham que descer pelo meio do caminho, sequer saberão que rumo tomar, pois não tiveram tempo ou a disposição de observarem paisagens e caminhos. E o que é pior, o espírito da infância e a força criadora e redentora dos brinquedos e das brincadeiras de criança, parece, terem sido, tristemente sequestrados pelo jogo nefasto e perverso dos adultos, a que chamam de forças incontroláveis dos mercados. Neste jogo, praticamente, não há infância possível, entre os pobres, a expropriação total e a ausência de territórios livres para os seus corpos desbravadores e inventivos, nega-lhes o pleno exercício da infância, entre as elites, até mesmo seus filhos, perderam-na, pois a submissão completa ao mundo das mercadorias, por mais sofisticadas que estas sejam, os tolhem da ludicidade criativa e solidária de uma infância sem as amarras eletrônicas. Assim é o mundo. Pelo menos, brincamos, enquanto ainda era o tempo.

Marcos Vinícius.

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