segunda-feira, 11 de abril de 2011

A Organização


O ruído que ouvi ao transpor o grande portão metálico, acredito, estará para sempre em minha memória. É um som único. Uma grande chapa de ferro, um metal pálido e cinzento com grades espessas corria quase silenciosamente com suas roldanas pelos trilhos enterrados no concreto do chão. O barulho inolvidável faz-se quando é acionado o mecanismo que coloca a grande estrutura em movimento. Tanto as arrancadas quanto as paradas são bruscas, abruptas, quando é rompido o grande silêncio da serpente de ferro. Quando as duas barras centrais se encontram, e o portão, finalmente, se fecha, a sensação que dá é de termos sido engolidos. E é o que somos. Não há qualquer dispositivo que amorteça o encontro das placas do portão. O som é petrificante. Quando a trava se lacra, dispositivos eletrônicos são acionados, e um jogo de luzes, cores, sons e códigos, vêm nos revelar que estamos em território onde se investe alto nas chamadas tecnologias de segurança máxima. Uma grande parafernália tecnológica possibilita um confinamento total, a reclusão absoluta. Uma ampla sala de comando com telas coloridas, cadeiras giratórias e máquinas possantes, poderia nos fazer imaginar estarmos no melhor dos mundos, não fosse a ciência tão perversa com a humanidade que a criou. Ainda não sei ao certo por que nos era permitida ter a visão desta sala logo à entrada, que por sinal, não a veríamos mais. Talvez fosse um descuido da segurança, uma falha no sistema, ou quem sabe ao contrário, talvez quisessem mesmo nos fazer crer, que para nós, ali não haveria qualquer alternativa. Os novos deuses, a ciência, a técnica, o capital, as armas, estariam a seu favor e serviço. Isto não me custou ver. Assim que fui retirado do veículo blindado em que havia sido capturado, três ou quatro carrascos se aproximam de mim. Não eram destes carrascos que vemos de cabelo em pé,quando dos filmes de terror, mas carrascos que para uma grande parte de população mundial são vistas como heróis. Homens enormes, com braços e peitos de ferro, alguns com tatuagens, estilos descolados, com celulares e laptops, a fazer inveja a muitos galãs do cinema. Ficamos a imaginar se suas mães suspeitariam algum dia das atrocidades que seus filhos amados seriam levados a executar. Com um chute nas costas, de supetão, não pode ver quem me desferia este golpe, fui atirado ao cimento. Foi tão rápido que mal pude levar a mão ao rosto, cortei as pálpebras, e a testa sangrou embaçando os olhos. Na primeira tentativa de me levantar, uma bota pesada desferiu-me um golpe certeiro entre o queixo e o pescoço, desmontando todas as minhas defesas. Não pude tentar novamente.

A água fria, às vezes, faz mesmo milagres. Após dar-me por encharcado, um grande balde d água foi derramado sobre mim, consigo abrir os olhos. Vestia um macacão, peça única, que me cobria da cabeça aos pés. As pernas e as mãos estavam fortemente amarradas, o que limitava exageradamente os meus movimentos. Dois grandes soldados prenderam à corrente que atava meus pés, uma outra corrente, maior, mais comprida. Ali estava completamente subjugado. Os homens arrastaram-me e minhas costelas esfolavam ao chão. Minha única reação possível, um grito doloroso, foi violentamente reprimido por um bofetão que me quebrara dois pares de dentes. Em seguida, ganhei uma corda estrangulada à boca, que além de impedir qualquer tipo de comunicação, impossibilitava qualquer gritaria, que despertasse a ira dos meus algozes. Sorte ser curto o caminho entre o local em que fui amordaçado e a gaiola que estava à minha espera com sua goela aberta. Era meu primeiro dia, a carne sangrava, mas ainda não estaria desossado. A gaiola onde fui encerrado por longas horas, por mais de um dia, não possuía qualquer cobertura que pudesse proteger-me do calor do sol ou do frio da noite. Durante o dia, o macacão cozinhava-me, suava compulsivamente, e à noite, o frio endurecia meus nervos. Era apertadíssima a jaula e não havia como me esticar. Os poucos movimentos que conseguia ainda realizar eram fruto da necessidade extrema que o corpo tinha de mudar de posição para livrar-se de uma dor, e trocá-la por outra. As dores eram intensas. A boca estourada inchava a cada hora um pouco, os dentes arrancados quase à raiz eram um incômodo que tornava meu sofrimento ainda mais insuportável. As costas queimavam, e as escoriações deixadas pelas boas vindas da recepção eram como deitar-me em brasas. As jaulas foram projetadas de modo a mal caber meio indivíduo. Não há posição possível onde possa se descansar um pouco da posição anterior. As pernas têm que contorcer-se. O peso dos ombros, ora esmaga o braço direito, ora o esquerdo. Depois de alguns minutos dentro da coisa, o incômodo e a sensação de fatalidade impõem um sacrifício mórbido sobre o corpo e a alma. Para aliviar as pernas, sacrifica-se o pescoço, ao dar a este último algum descanso, é quando sofrem novamente as pernas ao se equilibrarem em um contorcionismo inédito, fatigante e doloroso. As cordas das mãos, apertadíssimas e secas, cortavam os punhos, como pequenas navalhas em fios, continuar a friccioná-las, talvez resultasse na dilaceração dos punhos. Estava completamente imobilizado.

Era um trapo quando fui retirado dali na segunda noite. Mal conseguia manter-me de pé. Os ombros enrijecidos e os pés esfolados davam-me um aspecto cambaleante. Sentia os ossos se desfazendo, vítima de uma implosão, um desmoronar de si mesmo. O sujeito desmontado. Como não há mal tão ruim que não possa ser piorado, juntam-se ao meu redor um grupo de homens fortemente armados, uniformizados. São grandes, robustos, e não trazem nas faces coradas qualquer sinal de piedade. Todos carregam pesadas armas de fogo, aparentemente desnecessárias diante da fragilidade do suposto inimigo. Bastaria uma única bala, um único golpe, em meia fração de segundo, para ter-me ao chão, perfurado e morto. Mas pouparam-me naquele instante, talvez quisessem algo mais que a minha insignificante vida. Fui levado para uma sala praticamente vazia e escura. Uma única lâmpada iluminava o ambiente. Colocaram-me debaixo dela, amarrado em uma cadeira, onde permaneceria completamente imóvel. Estava exposto, visível, iluminado, com o corpo aberto, esfolado, quem sabe olhavam-me por dentro. Não conseguia distinguir seus rostos, a luz sobre meus olhos e a frágil iluminação do local, permitia-me apenas enxergar seus vultos, que quase não se mexiam. Esforçava-me para entender o que poderia estar a ocorrer. Por longos instantes, não disseram palavra alguma, mantinham-se em silêncio. A ausência de palavras e a rigidez daqueles soldados, aliada a falta de visão que tinha do local, era uma ansiedade a mais, já à beira do pânico, por não conseguir prever até onde iria a perversão alheia. Dois deles seguem em minha direção. Agora sim, posso ver os seus olhos. Um calafrio súbito gela-me a garganta, e o estômago se contrai. Traziam o ódio. Estavam cada vez mais próximos, retiram dos cinturões sintéticos, duas afiadas navalhas, e postam-nas sob os meus olhos. Elas estavam ali, bem diante das minhas retinas e não me tocavam, estacionadas, mas uma dor profunda, invasiva, adiantava-se, cortando-me e perfurando-me. Arregalava-me em desespero. Quando duas lágrimas incontroláveis encharcam as pálpebras, sabe-se lá de onde vêm, pois sentia-me ressecado, os brutamontes abaixam as lâminas em um gesto lento, e cortam as barras da calça e a mangas compridas do camisão. O macacão fora estropiado e restavam-me apenas retalhos do que deixava-me a descoberto o tronco e as pernas. Fazia frio. Sob o sussurro de um deles, apontam as armas para mim. Seria o fim. Mas um deles aproxima-se dos meus ouvidos e grita: quer livrar-se do inferno, ó resto? Vou te dar a última chance para safar-se, vagabundo, do calvário que tens pela frente. Diga-me tudo o que sabes sobre a Organização. Talvez fosse o único a falar a minha língua, os outros, pelos poucos murmúrios que pude ouvir, eram-me completamente incompreensíveis. Um soluço repentino deu-me um nó na laringe e não me saia palavra alguma. Esbocei mais algumas tentativas, mas estavam todas presas dentro de mim. O esforço para dizer algo, sem o conseguir, minava um suor salgado que queimava ainda mais as feridas da boca. Os dentes quebrados doíam intensamente e talvez fosse mesmo impossível me comunicar com as criaturas. O homem insiste: Não queres mesmo salvar a alma, amaldiçoado? Pois vais conhecer o nosso purgatório. Outro homem se aproxima, este não falava minha língua, mas trazia entre as mãos, algo que lhe dispensava qualquer argumento ou razão, uma enorme furadeira, já ligada a uma tomada. Com muito sacrifício, procuro encher os pulmões, tento levar forças dos braços e do abdômen para o peito, de modo a romper a mudez. Respiro fundo, junto as poucas forças todas de uma só vez, e com um som rouco e falho, anuncio, Não sei da Organização. Os homens se irritam, apanham um capuz negro e tampam-me a cabeça. A furadeira é ligada. Podes agora escolher, ou diga o que sabes, e não terá outra chance, ou poderá dizer, por onde quer que se inicie o trabalho de perfuração. Aqui há divisão entre nós. Alguns defendem que se inicie pela língua, pois acreditam que o órgão em pânico, ponha-se a dar com os dentes, e não há o que não diga. Outros defendem que a broca comece por perfurar o crânio, quem sabe o que a língua não diz, possamos encontrar em sinais por algum canto do cérebro? A broca se aproxima dos ouvidos, sobe pelas orelhas e quase encosta-se no parietal. Uma mecha de cabelo, por sob o capuz, arranca-se ante o contato brusco e violento da ferramenta. Um estado de torpor, por alguns instantes, faz-me acreditar que não sentiria qualquer dor. Vêem-me imagens, ilusões, a amortecer-me a carne, nuvens invadem meus olhos e vejo-me vazando por completo. Por um imenso buraco que levo no topo do crânio, começo a escorrer, pedaços de carne, sangue, vísceras, restos, vai tudo saindo por ali, em meio ao amálgama de matéria orgânica e um mundo de palavras e pensamentos. Mas não, a broca ainda não começou a perfurar. Antes, realiza um passeio pelo meu corpo, parte a parte, como a fazer um lento trabalho de reconhecimento, verificar em que território melhor convinha iniciar as suas operações, talvez num ponto onde houvesse um osso mais proeminente, talvez nos tendões, nas mucosas, nas carnes mais musculosas ou nas mais sensíveis. E insistiam que eu falasse - eu poderia escolher. Eu insistia, não sabia da Organização. Eles não acreditavam no que eu dizia, mas desligaram a furadeira. Um silêncio absoluto absorveu-me por poucos segundos, era um silêncio eterno. O som da ferramenta ligada porém, mantinha-se vivo na memória dos meus ouvidos, perfurando-me o que poderia carregar como alma ou espírito. O ruído infernal cortava-me por dentro, antes que minha pele, meu lado exterior, pusesse a triturar-se. Pouparam-me.



A cada negativa que dava diante do interrogatório a que me submetiam, as faces dos homens enrijeciam-se, tornavam-se mais duras e cruéis, mas parecia não quererem me eliminar de vez. Por duas noites, sou privado do sono. Assim que desligam a furadeira elétrica, retiram-me da sala. Imaginei que retornaria para a jaula, mas sou levado em outra direção. Atravesso, amarrado, dois longos corredores. Dois soldados seguem à minha frente, dois seguram-me pelo braço, e dois outros fazem a retaguarda. Sobre uma viga de concreto no final de um dos corredores, um atirador de elite aponta-me uma arma que parece carregar o poder de fogo de uma guarnição inteira. Bem ao lado, rente ao piso, uma portinhola é aberta por um dos homens. Fui empurrado em direção à ela. Não permitiram que entrasse, fizeram questão de me socarem lá dentro. Era um cubículo frio, e muito se assemelhava a um buraco. Estava escuro e não conseguia ver exatamente onde havia sido enfiado, era bem mais apertado que a jaula. Virei-me, ajeitei um pouco as pernas, empurrei o corpo com as mãos nas paredes úmidas e conquistei um pouco mais de espaço. Agora conseguiria respirar melhor. As costas estavam um pouco flexionadas, foi a forma encontrada para que pudesse esticar um pouco mais as pernas e livrar-me das câimbras que me atacavam. Estava trancado ali. Um calafrio percorreu-me o corpo inteiro e passei a suar por todos os poros que trazia comigo. Apesar do frio, sentia-me derreter. Perguntava-me por quanto tempo conseguiria sobreviver naquelas condições. Uma luz é acesa sobre minha cabeça, mas não tenho como ver de onde vem, de que tipo de lâmpada ou fonte de iluminação se trata, mas clareia o local, e vejo-me em uma cápsula branca. Depois, uma outra luz, agora sob os meus pés se acende, movo um pouco minhas pernas, e desta vez, consigo ver de onde vem o foco. Era uma lampadazinha que brilhava ao fundo. A luz sobre minha cabeça apaga-se. Depois, a dos pés. A de cima volta a acender-se, e permanece acesa. O tempo para. Nada mais acontece. O silêncio é total. O som da furadeira vai aos poucos, silenciando-se em minha mente. Não ouço coisa alguma. Nada vejo, além da parede branca, ante a qual me espremo. Ao esticar um dos braços, e empurrar-me pela cápsula, consigo enxergar-me todo até os pés. Um pouco abaixo dos meus joelhos, inicia-se a curvatura das paredes, afunilando o compartimento. Permaneço ali um longo tempo, sem saber se poderia medi-lo em minutos ou horas. Perdera sua noção. Estava exausto e esperava apenas ser esmagado a qualquer momento. Vencido pelo cansaço extremo, pelas já longas horas de privação de sono e pelo silêncio aterrador do local, sem que coisa alguma ocorra, adormeço.




Um enorme estrondo sobre minha cabeça acorda-me bruscamente. Depois outro, como a certificar-se que seria impossível que permanecesse dormindo. Não imagino quanto tempo dormi, poderia ter sido um dia ou um século, não havia como discernir, mas seja lá como for, o sono havia limpado um pouco os olhos. Apenas a lâmpada sobre minha cabeça mantinha-se acesa. Ao virar o rosto e destampar um pouco os ouvidos, ouço um ruído distante, que lentamente, muito lentamente, vinha aproximando-se. Um ruído seco, arrastado, duro. Ao levar os olhos aos pés, vejo um grande número de insetos percorrendo as paredes em minha direção. Eram muitos os tipos, as formas, cores e tamanhos, onde a ciência já catalogou mais de 800 mil espécies diferentes. Era uma multidão deles. Nunca vira tantos juntos. O fundo da cápsula estava repleto, vinham cada vez mais, eram tantos que a estrutura parecia mover-se. Não era ela quem se movia, mas os bichos. Vão ficando cada vez mais próximos. Os que vinham à frente aproximavam-se já da altura dos meus quadris. A pele arrepia-se inteira, a epiderme reivindica para si todas as defesas remotas do organismo, que inicia a desarranjar-se. Sempre tivera certa ojeriza por eles. Já se aproximavam mais do meu campo de visão. Poderia agora ver mais de perto a variedade que se apresentava, uns peludos, outros mais finos, insetos escuros, esverdeados, com longas antenas, garras, asas miúdas, esticadas, uns mais secos, outros úmidos, alguns pequenos, muitos enormes, conhecidos, e aqueles que jamais havia visto. Um deles chamou-me particularmente a atenção, um besouro enorme, que mal caberia na palma da mão. Quando ficou bem próximo de minha boca ferida travou seus passos ante o meu olhar de pavor. Ficou a fitar-me. Eram inúmeros e não paravam de chegar, provavelmente, representando todas as classes que povoam o planeta, entre ortópteros, nevrípteros, arquipteros, tisanurus, hemípeteros, dípteros, lepidópteros, coleópteros, himenópteros. A luz de baixo se acende novamente e a de cima se apaga. Deixo de enxergá-los com a mesma nitidez. Ao contrário, são agora suas sombras, que me vem aos olhos, e eles ampliam-se, tornam-se fantasmagóricos. Alguns adquirem formas gigantescas, com antenas que atravessam a cápsula inteira. Após ocuparem as paredes do compartimento, iniciam a peregrinação pelo meu corpo. Sobem pelas pernas desnudas. Sinto-os sobre meus pelos, escalando-os. Outros, impossibilitados de manterem-se agarrados à superfície branca, dada a disputa por território entre eles, caem ou saltam sobre minha barriga, peito e ombros. Sinto cada uma de suas patas, percorrendo cada ponto de meu corpo paralisado. Imaginava que mexer-me poderia ser pior, pois os artrópodes, ameaçados, atacar-me-iam de vez, de forma fulminante e definitiva. Mantinha-me completamente inerte, evitava piscar, retesava os músculos e prendia a respiração, mas não adiantou de todo, pois começavam a me picar. Por instantes, apagaram as luzes, apenas sentia o milhão de insetos movendo-se sobre meu corpo tomado, dominado, e meu espírito, se é que ainda possuía algum, certamente lutava para livrar-se de vez daquele cárcere impiedoso em que havia se tornado as minhas carnes. A repugnância tornou-se onipotente. Jamais havia tido tanta vontade de desaparecer, largar àqueles bichos o meu cadáver, todo o meu acervo de sangue, ossos, gorduras, nervos, músculos e peles. A liberdade absoluta, sem mosca alguma a subjugar-me. Quando a massa escura e movediça cobre-me por completo, a voz de meu intérprete entre os monstros ecoa por toda a estrutura. E agora desgraçado? Vai ou não colaborar?

O terror havia me invadido por dentro. Sentia que seria devorado antes mesmo que pudesse esboçar qualquer tipo de resposta. Se pudesse, arrancar-me-ia a própria pele para safar-me daquele manto vivo que arrastava-se sobre mim. A voz berrava, Vai nos falar sobre tua Organização? Mudaste de idéia ó morto vivo? Sem revelar o que sabes, sairá das pestes e irá direto aos abutres. Não há outra saída, verás como a humilhação e o escárnio podem ir além do que imaginavas possuir um limite.Fale-nos sobre tua maldita Organização. Na verdade, naquelas circunstâncias falaria qualquer coisa para que os carrascos pudessem me tirar daquela condição. As baratas iam a cobrir-me o rosto. Eu falo. Eu falo, grasnava minha voz, que já não possuía forças para saltar à garganta. Imediatamente, a luz de fora penetra pelo buraco. A portinhola se abre e por uma corda ainda atada à minha cintura, arrastam-me para fora. Dois funcionários com um vassourão cada um, varrem para dentro de meu casulo empesteado, os insetos que me impregnavam a pele. As cerdas duras da vassouras expulsavam os bichos e abriam mais as escoriações que trazia no tronco e nos braços. Sou retirado deitado. Para livrar-me totalmente dos insetos, arrancaram-me os trapos que ainda levava comigo. Ficara completamente nu. Levantam-me em um solavanco e atiram-me à parede. Só aí vou perceber que além de um pequeno grupo de soldados, havia ainda quatro cães enormes que arregalaram seus olhos ao me verem saindo daquele buraco. Os homens deixam-nos à solta, e eles vem ao meu encontro. Os cães posicionam-se circundando todo o meu corpo, mantendo entre um e outro a mesma distância, alinhados em forma de cruz, sou farejado por todos os lados. Sobre suas bocas gigantes que mantinham-se constantemente abertas, focinhos molhados, investigativos, é que me fazem agora a varredura. A carne que servira aos insetos servia agora aos cães. Não te demora a falar, esbraveja o homem. Os cães estão famintos, e verás como podem comportar como lobos, quando fores reduzido ao pó, ao virares ração. Outra vez, uma dor aguda percorre-me por dentro, como se célula por célula houvesse sido afetada, como se um sem número de lanças cortassem-me em pedaços, uma dor paralisante, não consigo mover-me. Tenho todos os músculos tesos, duro como uma estátua, não fosse pela parede que me amparava, já há muito teria ido ao chão. As palavras traiam-me, não me faziam o serviço, afugentavam-se, corriam em direção às profundezas do meu ser e recusavam-se a proporcionar-me defesa. Os cães impacientam-se. Não sabia mesmo da Organização. Não sabia. Mas como fazê-los crer? Ali não havia leis, não havia argumentos, direitos ou tribunais. Ali havia apenas a força bruta, em seu estágio mais selvagem, como outra contradição e ironia da história, quando imaginávamo-nos gozar de um mundo sem peias. Enlouquecia. Não sabia da Organização.

Fui levado dali. Ainda não foi desta vez que faria o banquete dos cães. Saio pelo mesmo corredor em que havia entrado. Porém ao invés de seguir pelo setor que me levaria à jaula, sou levado por uma escada estreita em caracol, em direção oposta, que me leva a um ambiente muito próximo dos laboratórios e salas de cirurgia. As paredes eram altas e brancas. Diante de mim, surgiram duas grandes portas, ao lado de um painel ligado a vários dispositivos eletrônicos. Sou levado por quatro policiais a uma delas. Espantei-me ao adentrar o local, não sabia que tipo de experiência nova me aguardava. Era uma sala ampla, com duas macas de metal, um enorme armário repleto ampolas, frascos de medicamentos e uma mesa larga com vários instrumentos cirúrgicos, tesouras, pinças, bisturis, agulhas e alicates. Ocupando uma parede inteira, e uma parte do teto, havia um equipamento enorme, completamente desconhecido para mim, cheio de botões luminosos, teclas e fios, como um computador gigante, ligado a uma estrutura de metal que mais parecia um misto de aparelhos de raios-x e sofisticadas máquinas de tomografia. Uma das macas encontrava-se exatamente abaixo desta grande peça tecnológica. Estava ligada a ela por um volumoso emaranhado de cabos e fios. Logo que acabo de entrar, surgem dois homens, cujos trajes indicavam serem profissionais da medicina. Usavam roupas brancas, jalecos, aventais, toucas, óculos de proteção e máscaras. Dois soldados agarram-me e levam-me em direção à maca. Minhas pernas enrijecem, ficam duras, e uma força superior parece colar-me ao chão. Mas não resisto aos empurrões e solavancos, e em questão de segundos, estou sobre a lisa placa de metal, amarrado pelos braços e pernas. Estava ligado àquele aparelho. Um dos especialistas aciona alguns botões, ajusta o monitor de vídeo, e em seguida, liga-me a uma máscara nasal, conectada por um longo tubo. Sobre minha cabeça é colocada uma estrutura de vidro que lembra uma poderosa e sofisticada máquina de scanner. Estão todos a me observar. Soldados e médicos. Com métodos distintos servem aos mesmos propósitos. O mais alto dos homens, o responsável pela operação, recebe do segundo homem, seu auxiliar, uma injeção já pronta para ser aplicada. Não fazia idéia do tipo de medicamento que seria injetado em mim. Os dois seguram os meus braços, enfiam-me a agulha, e o remédio vai sendo transferido, rapidamente, para o meu sangue e nervos. Sou tomado de uma fraqueza total, faltam-me forças sequer para mover os pés ou as mãos. Apesar de conseguir pensar e estar consciente, não consigo respirar, a substância aplicada havia paralisado os músculos responsáveis pela minha respiração. Finalmente entendia a finalidade daquela máscara maldita, servia para manter-me vivo por respiração artificial. O scanner sobre minha cabeça era colocado em funcionamento. Uma luz azulada projetava-se para fora, e aí tinha a certeza, queriam radiografar os meus pensamentos. O técnico fixava seus olhos na tela, nos gráficos do monitor, para ver se decifrava meus segredos mais recônditos, minha alma acuada, em algum canto de meu cérebro devastado. Respirava pelo mesmo aparelho que procurava decifrar-me por dentro. O soldado, mais uma vez aproxima dos meus ouvidos e berra, Como é trapo? Estamos esgotando as nossas paciências, apesar de não esgotarmos nossos recursos, verás o que faremos contra tua humanidade. Verás o que é deixar de ser, ainda sendo, morrer permanecendo vivo, conhecerás o inferno que nem o Diabo conseguiu inventar, mas ainda poderá se redimir, ó pária da terra, se desvendar os segredos da tua Organização. Diga infeliz, O que sabes da Organização? Apesar de imóvel, a boca estava livre e conseguia falar. Não sei da Organização. A luz do scanner moveu-se sobre minha testa, alguns segundos se passaram, e o aparelho que me permitia respirar, fora desligado. Não respirava, definitivamente não respirava. Sufoco absoluto. Não me movia, também não respirava. Os pulmões põem-se prontos a explodir, o cérebro é tomado de um zumbido cada vez mais forte e opressor, a furadeira parece ter sido outra vez acionada e agora, vou estourar. Um longo e doloroso zumbido. Sinto o manto da morte a apertar-me o pescoço, estou estrangulado. Não me adianta abrir a boca, que o ar não vem, não há como respirá-lo. Iria me arrebentar. Estava morto. Não. O oxigênio me é devolvido. A máquina outra vez é ligada. Não conhecia nada mais aterrador que a sufocação. Não acreditava, mas ainda estava vivo, e ao retornar à vida, percebo que sou atentamente observado por todos. Os soldados que ocupavam a sala e os dois médicos que executavam a operação olhavam-me atentamente, curiosamente, cada qual à sua maneira, o primeiros, possuíam um olhar feroz de satisfação, por verem sua presa ser abatida, os segundos, um ar de júbilo, ao constatarem o quão inventiva pode ser sua ciência, que pode levar o homem ao limite da morte, e trazê-lo de volta. O pânico ante a possibilidade da sufocação total é enlouquecedor. Um segundo pode ser fatal. Não sei como conseguiram calcular tão sistematicamente, cientificamente, os meus precários limites. O botão foi acionado na hora exata. Um milésimo de segundo a mais talvez fosse suficiente para deixar-me definitivamente no outro mundo, e ele postou-se diante de mim. Os instantes da sufocação, da falta de ar, são um mergulho na eternidade da inexistência. Toquei-a, e reencarnei. Não havia ali um espelho, onde pudesse fitar-me, mas tinha noção da cara que tinha. Meus olhos estavam traumatizados, esbugalhados e duros, tinha medo de fechá-los, mantinha-os bem abertos, estatelados, era o estado de pânico, levado a seu mais alto grau, cientificamente dosado. Os dedos das mãos pareciam não ter percebido que retornaram ao mundo. Estavam enrijecidos, apontados para o nada, sem cor. A propósito, encontrava-me inteiro exageradamente pálido, o sangue escondia-se não se sabe onde. Imaginei que nunca mais fosse levantar daquela placa fria. O médico chega à beira da maca, segura-me pelos tornozelos, e em seguida, leva a mão sobre meu peito, a conferir minhas batidas cardíacas e ajeita-me a máscara. Afasta-se e dá um sinal para o outro, como a confirmar que havia sido bem sucedida a operação, e quase consigo antever, pela forma como manuseiam o equipamento e os fios, que preparam-se para repetir o procedimento. Pensava que desta vez não resistiria. Outra vez, posicionam o scanner sobre minha cabeça, repetiriam a leitura do meu cérebro, utilizando um sofisticado detector de mentiras, que de novo, me vasculharia a alma por ressonância magnética. A lembrança da sufocação paralisava-me novamente. O suor escorria frio e em grande quantidade, a maca ensopava. Não pude me contar, urinava pelas pernas. Neste instante, vem o soldado. Sempre em meus ouvidos. É tua última chance, besta. Fale o que sabe sobre a Organização, se mentires, a ciência saberá, se a luz da mentira piscar sobre teu cérebro, a luz do oxigênio não mais te aliviará. A morte é o fim dos que ousam não colaborar. Pelo menos aqui, a morte é rápida, fulminante, não te derramará em sangue, pior seria se junto aos cães, às navalhas, aos choques ou esfolamentos. É quase o benefício da morte súbita. Vamos aos fatos. O que sabe da Organização? Não sei da Organização, respondia. A luz do scanner por duas vezes clareia o meu rosto. A lembrança do suplício da sufocação estrangulava-me por dentro. Não sei da Organização. Outra vez o scanner se acendia. Os homens, médicos e soldados, olham para a tela. Os dois médicos discutem em linguagem técnica. Os soldados, ignorantes, procuram adivinhar o que se revelam naqueles gráficos coloridos e nos códigos das falas dos homens da ciência. Não desligam minha máscara de ar. Dão-me um medicamento e adormeço.




Dormi uma eternidade, não sei exatamente por quanto tempo, mas me surpreende terem me permitido tanto. Quando abro de vez os olhos, vejo-me em outro cômodo, livre da sala de horrores, onde adormeci. Era um local mais arejado, movimentado, onde além de soldados, reuniam-se funcionários, burocratas, e possivelmente executivos do negócio, do empreendimento. Uma funcionária, fortemente armada, serve-me uma sopa artificial, que sorvo de uma só vez, dado meu estado famélico e põe dois pesados comprimidos em minha boca. Dois homens de gravata e um grupo de soldados discutem o meu destino. Não entendia. Não era em minha língua que falavam. Mas pude compreender quando um deles se referiu a mim como a um engano. Devolveram-me as roupas que haviam me tomado na entrada e os documentos que trazia no bolso. Colocaram-me em um veículo militar, retiraram-me daquelas instalações, e sem qualquer palavra ou explicação, abandonaram-me em um movimentado cruzamento de ruas. Quando dei por mim, vivo e inteiro, após salvar-me, imaginei registrar esta memória, para que dela não se esqueça. Em seguida, outro propósito apenas me move. Quero a Organização.




Marcos Vinícius.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

O Labirinto




O Labirinto



O nome realmente fazia por merecer. O lotação estava tão cheio, que difícil era entender porque o motorista ainda parava nos pontos. Certamente são os ossos do ofício, não se sabe os problemas que o condutor pode ter caso passe direto pelas paradas deixando um sem número de furiosos a praguejar. São os rituais, obrigações da profissão que não podem ser esquecidas, ou quem sabe, ainda, movido por uma sensibilidade moral ou um compromisso ético, de pelo menos provar aos que esperam, que de fato, não cabia mais ninguém ali dentro. Passar pelo corredor do veículo era um sacrifício e um desconforto tal, que só se justificava pela necessidade absoluta de uma hora ter que descer. Sorte é que desta vez vinha sentado, uma senhora que sentava-se justamente próxima de onde se contorcia de pé, levantara-se, e ele sem perder um instante, põe-se, confortavelmente, em seu lugar. Assim ia por já bastante tempo. O ônibus havia praticamente atravessado a cidade, cortado ruas, avenidas e bairros. Ele não estava na janela, mas a observava o tempo todo. Distraía-lhe mais as cenas rápidas que ia vendo do lado de fora, do que com as conversas e os olhares dos que com ele viajava. Observava distraidamente, apreciando o cenário urbano que desfilava sob seus olhos. Os pensamentos moviam-se quase ao ritmo do ônibus e ao compasso de seus sacolejos e curvas. Olhava, olhava, mas seu pensamento, porém, não conseguia fixar-se em ponto algum. Ao cruzar a grande avenida, que corta o centro da cidade, lembra-se que se aproximava o momento da descida. Iria enfim, abandonar aquele carro, livrar-se daqueles corpos apertados, que espremiam-se entre resmungos e sussurros, afagos e empurrões, em um apertado coletivo, onde talvez, os estranhos certamente, nunca ficaram tão próximos.



Levanta-se e com uma das mãos agarra a alça de metal que descia do teto, com a outra, segurava o encosto do banco da frente, preparando o corpo para a difícil travessia. Assim que aprumou-se, fez soar a campainha. Entrar naquele corredor era realmente a parte mais desagradável da viagem. Era praticamente impossível não incomodar alguém, os olhos dos que encontravam-se de pé, arregalavam-se entre a ira de ver mais um a apertar-lhes o corpo, e a cobiça diante da oportunidade de poder, enfim, apropriar-se de um assento. A revolta intensificava-se quando além de levar mais um empurrão e aperto, via outro mais rápido e ágil, roubar-lhe o lugar. Era ato contínuo nestas viagens dos lotações. Finalmente, infiltra-se, estica um braço daqui, levanta outro sobre as cabeças, dá um passo, suspira, toma fôlego, pede licença, dá outro passo, empurra, aperta, ajeita, rebola, avança, recua, arrisca, e enquanto o suor dava sinais, de querer escorrer pela testa, a porta de saída vinha aproximando-se. O desconforto era maior quanto menor fosse o número de passageiros a descer na mesma parada. Quando são muitos os que descem, um fluxo natural de corpos e almas se instala, e os viajantes vão sendo levados, quase naturalmente até a rua. Mas quando são poucos, a luta pela saída é dura e estende-se até a porta, quando se é praticamente empurrado para fora, ou insultado com palavras e cotoveladas.



Depois de muito esforço, pois atravessara quase meio ônibus, depara-se com a porta que bruscamente abre à sua frente. O motorista ainda segurava o pé ao freio. A sensação de desgrudar-se, livrar-se daquele emaranhado de corpos que se contorcem sob o calor da tarde, proporciona-lhe uma invejável sensação de alívio. As pernas e os ombros, libertos, podem agora movimentarem-se em paz. A saída fora tão rápida, que seria de se perguntar, se havia dada um salto, pulando os degraus, para libertar-se definitivamente do povaréu, ou se ao contrário, fora a tripulação estressada que o havia enxotado de vez, para que o aperto se aliviasse, e para que o condutor pudesse iniciar logo a viagem interrompida. O fato é que chegara à calçada um pouco atordoado. Sente-se um pouco zonzo, talvez pelo calor excessivo ou o ruído das ruas, e lembra-se de levar a mão à carteira para conferir o dinheiro e os documentos. Ao puxá-la do bolso, pequenos papéis com anotações de telefones e endereços, que se deixavam à mostra, são apanhados por uma furiosa corrente de vento, e rapidamente se misturavam aos outros papéis e lixos que esvoaçavam por sobre as cabeças. Um redemoinho de folhas, pó e papelões, que despenteava os transeuntes, levava aquelas informações para sempre. O documento de identidade que levara consigo, talvez devido ao peso do plástico, resistira a ação violenta do vento, mas mergulhara-se ao chão. Para azar de seu dono, esborrachava-se em cheio a uma poça que se formara na descontinuidade dos blocos da calçada. Imediatamente, refaz-se do mal estar, agacha-se, apanha o documento, e esfrega-o nas pernas das calças, para tentar recuperá-lo da água suja que quase o desintegrara. O estrago, porém, não fora pequeno. A foto estava intacta, não fora nem tocada pela água. Já os dados do portador, a identificação, os números e registros, escorriam pela ponta plástica, sujando seus dedos com gotas que corriam escuras e velozes. Faz um olhar de desolação. Levanta o documento à altura dos olhos e para sua surpresa, apenas seu primeiro nome ficara registrado. João. O resto do documento, além da fotografia, era um grande borrão. Havia desaparecido todos os dados, sua naturalidade, sobrenome, estado civil ou idade. Nenhum sinal que pudesse traduzir-se em identidade o cidadão. Apenas o primeiro nome, João. Mesmo sabendo que o registro não mais teria valor ou utilidade, pois apenas com uma foto e um nome, sem qualquer carimbo ou sequer outra letra legível, melhor talvez fosse atirá-lo ao lixo, mas por prudência não o fez, pois constatara que aquele era o único que carregara consigo.



Mesmo lamentando a perda de tão importante documento que lhe acompanhava há vários anos, ainda conseguia dar-se por satisfeito, pois o dinheiro que trazia na carteira estava intocável, três notas gordas, que poderiam proporcionar-lhe um dia inteiro sem muitas privações. Põe-se, então, a andar, e ao contrário do que fazia, quando estava dentro do ônibus, olhando para os lados, as lojas e vitrines, volta-se agora, obstinadamente para frente. E vai, quase silenciosamente, murmurando seu nome. João, João. Inexplicavelmente, uma força brusca, que parece desprender de seus músculos e nervos, trava seus passos. Mantem-se inerte no meio da calçada, com as pernas duras. Um pensamento repentino deixa-o totalmente paralisado. João. Mas João de que? Sabia da infinidade de Joões que tem por aí, um universo inteiro, mas que estrela seria a sua? João da Silva, João de Deus, João Aparecido, João das Almas, João Costa, João Penido, João da Cruz, João Alberto, João das Luzes, João das Trevas. Que João seria, afinal? Nenhuma resposta lhe vinda à mente. Um nada. Um buraco negro. Os borrões de sua prejudicada identidade. Forçava-se, procurava concentrar-se, evitava os olhares dos que por ele passavam, necessitava desesperadamente encontrar-se. Era simplesmente, unicamente João. Procura descontrair-se, sabe que não é o primeiro nem será o último a ter lapsos de memória, mas o incomodava profundamente a dimensão do esquecimento. Escapar-lhe o próprio nome. Arrancou o documento do bolso, em desespero, como se para confirmar que aquilo era mesmo real. Uma foto e um nome apenas. Um resto de tinta havia se acumulado no canto inferior do documento, quando as últimas gotas da água suja escorreram pelos panos do bolso. Quantas letras, números, guardariam aquela pequena porção? Quanto de João levará guardado aquela ponta úmida de papel e plástico? Mete novamente o documento na carteira, enfia-a no bolso e resolve seguir seu caminho. Uma hora lembraria.



Anda alguns metros, e em uma loja grande e espaçosa e com pouco movimento, depara-se com um grande espelho, uma parede inteira. Caminha apressadamente em sua direção. Posiciona-se diante dele, quer ver-se por inteiro. Seus olhos percorrem sua imagem refletida dos pés à cabeça, a imagem inteira, cada milímetro, as mãos, as roupas, o sapato, os cabelos, o rosto, tudo, muito rapidamente, procurando dimensionar-se, ir ao encontro de si. Não deixa escapar qualquer detalhe, sequer uma pequena mancha que levava próxima ao botão superior da camisa. Realizava um verdadeiro trabalho de reconhecimento. Leva as mãos ao rosto, tateia a boca, o nariz, as sobrancelhas, e os dedos percorrem lentamente os sulcos e pequenas fendas que iam se abrindo por sob a pequena bolsa que carregava seus olhos. Que idade teria? Outra vez vinha-lhe a mente a sombra da identidade. Que idade teria? Ainda não iria desesperar-se fatalmente, pois a observar bem, era algo que girava em torno dos cinqüenta anos. Não muito mais ou não muito menos. Mas a idade precisa, apesar dos esforços, não lhe vinha à lembrança. Os olhos buscavam na imagem um sinal, um dado qualquer, que pudesse transmitir-lhe qualquer informação a respeito de si mesmo. Não encontrava. Vestia-se sem grandes distinções, mas também não era um maltrapido, era um sujeito comum, que poderia ser encontrado em qualquer ambiente. Não havia um traço que o destacasse ou distinguisse, talvez pudesse mesmo ser um cidadão qualquer de qualquer grande centro do mundo. Cabelos bem penteados, a barba feita, estatura mediana, e peso aparentemente correspondente à altura. Mira seus olhos nos olhos da imagem, procura por dentro, investiga, mergulha, interroga e outra vez sem resposta. Volta à rua.



João retoma a caminhada. Anda por dois quarteirões, atravessando duas ruas estreitas, e chega a um grande cruzamento. Ali uma grande multidão se deslocava. Um ir e vir sem fim, entre um turbilhão de veículos e uma extensa rede de semáforos. Quando aproxima-se da esquina, da beira da calçada, onde a rua corta-se por todos os lados, retém-se, observa os letreiros que há no entorno, as placas, lê-as todas, reflete, observa os números dos ônibus e os caminhos que tomam, mas decididamente, não sabe para onde deslocar-se. O que exatamente faz ele ali naquele local, aquele horário, no meio daquele grande centro, entre milhares de pessoas que certamente sabem para onde vão? Observa atentamente vários dos que por eles passam, e tem a breve sensação que estão todos programados, com uma rota certa, um traçado pré-definido, caminham todos com passos firmes, parece que além dele próprio, ninguém ali tem dúvidas sobre o roteiro a seguir, o rumo a tomar, mesmo por que, a maioria tem pressa. Encosta-se em um poste e vê uma cena que chama sua atenção. De uma porta estreita, em cujas laterais havia duas placas divulgando preços promocionais de sucos e salgados, sai um homem completamente embriagado. Assim que transpõe a porta do pequeno e estreito bar, leva a mão aos olhos, o interior pouco iluminado do local, onde provavelmente permaneceu por um bom tempo, fez com que se desacostumasse com o excesso de luz. O rosto e a boca estavam um pouco inchados, a camisa desfeita, as pernas pareciam querer dar rasteira uma na outra, por pouco, uma ligeira cambaleada e um tropeço, quase o levam ao chão. O homem escora-se, leva as mãos na parede, e prossegue seu caminho. Seu andar era trôpego, mas sabia para onde ia, onde deveria chegar. João ficou a observá-lo até que desaparecesse de seu campo de visão. Aquela cena deixou-o ainda mais atordoado. Para onde iria ele?



Diante mais uma vez da falta de alternativas ou respostas, resolve sentar-se em uma lanchonete para tomar fôlego, e quem sabe, recobrar suas energias, livrar-se do mal estar, aí sim, lembraria novamente, não apenas para onde ir, mas também o seu nome, e quem de fato era. Senta-se, pede um café, um pão quente, e põe-se a comer. Ao pegar a xícara, detém atentamente os olhos sobre suas mãos, quem sabe ali não estaria um vestígio qualquer de sua identidade perdida. Um calo nos dedos, uma marca ou cicatriz, uma pequena mancha, sinais de algum ofício, algum trabalho, mas as mãos não lhe aliviavam a angústia, apressavam-se apenas em levar o café à boca. Sentia fome, a visão das guloseimas que se expunham nas vitrines dos balcões, abria-lhe o apetite, conhecia bem cada um daqueles salgados e doces, não tinha dúvidas quanto a interpretar o cardápio, ler as informações, placas ou letreiros que encontrava diante de si. Mas quanto à pessoa que era, nada ainda, nem um sinal, uma informação, uma pista ou indício. Não iria mais tentar prosseguir, desconhecia o destino, resolve, então, voltar para o ponto de origem, fazer o caminho de volta, retornar ao local de onde viera. Quem sabe assim, seu drama pudesse ser resolvido. Engole a última lasca de pão apressadamente, corre até o caixa para pagar o que deve, e saí com passos largos em direção ao ponto em que descera, que não estava muito distante dali. Em poucos minutos, encontrava-se exatamente naquele local onde desembarcara, a poça ainda estava lá, do mesmo jeito, ocupando o mesmo espaço e com a mesma quantidade de água. Agacha-se sobre ela, e consegue ver o vulto de seu rosto sobre o líquido amarelo, como a desafiá-lo. Um vento que se arrastava rente ao chão desenha ligeiras ondas naquela pequena poça que se alarga, sua imagem refletida amplia-se e parece rir da imagem real. João levanta-se de uma vez. Uma dor súbita atravessa-lhe o peito. Não sabia para onde voltar.



Estranha sensação. Sem saber o que é ou que fora. De onde veio e que rumo deverá tomar. Como faria agora para recuperar a si próprio? É comum que ao longo da vida percamos uma coisa ou outra, ou várias delas. Afinal, não temos como nos agarrar a tudo a que um dia possuímos. Sempre nos lembraremos de um inconveniente de uma chave perdida, um dinheiro qualquer, um amor, um guarda-chuvas, mas perdermos o que somos, é algo que talvez não ocorra lá com muita freqüência. Estava ali de pé, outra vez sem ter como locomover-se. O que faria a partir dali? Talvez nunca mais voltasse a ser quem era. Não recordava-se de um parente, amigo, um endereço, trabalho, onde mora, nada. Se a cidade fosse pequena, talvez, quem sabe, fosse encontrado por algum conhecido, aí lhe pediria ajuda, e este o levaria para casa, junto aos seus, se é que os tinha. E tudo voltaria ao normal. Mas em uma metrópole deste porte, as possibilidades eram mínimas. Quem sabe fosse alguém famoso ou popular, e em questão de horas, fosse logo identificado por algum fã ou simpatizante qualquer. Mas não parecia ser simples assim. O tempo passava, ele não encontrava ninguém, nem era encontrado, não achava um elo qualquer que o ligasse a sua história pessoal.



Compreendia o mundo que via, mas não sabia que vínculo agora possuía com ele. Nada havia mudado na história da humanidade, apenas na sua própria. Da primeira ainda entendia bem, mas da outra, já coisa alguma. As coisas ao redor, lhe faziam sentido, não era um alienado total. Podia andar pela cidade, entendia o que via, tinha a plena noção de como se organiza esta civilização, da qual tem plena consciência fazer parte, apenas não sabe como. Era estranho e desconhecido apenas de sim mesmo. Não havia muito o que fazer. Vai então perambular pela cidade, a esmo, quem a sabe a sorte, possa lhe restaurar a existência. Leva outra vez a mão ao bolso, retira a carteira, certifica-se que o dinheiro que levava poderia cobrir-lhe as necessidades por no máximo uns dois dias, e arranca, violentamente, o documento manchado. Lá estava novamente, uma foto, era a sua, não havia como negar. O espelho que mirara há pouco, acabava por confirmar. E um nome apenas. Agarra-se ao documento, como o doente em seus suspiros últimos quer agarrar-se à vida, com as forças e esperanças que ainda restam. Segura-o firmemente, observa-o, posiciona-o contra a luz, em perspectivas diferentes, mas a água escura havia feito a limpeza completa.Mesmo assim, não jogaria aquele documento fora por nada, era o fio fino que talvez pudesse conectá-lo ao mundo.



Era incrível, mal podia acreditar no que lhe acontecera. Vai andando pelas ruas, olhando para os outros homens e mulheres que cruzavam seu caminho. Esforçava-se por olhá-los um a um, mesmo sabendo da impossibilidade da ação, pois eram inúmeras as pessoas que povoavam aquele hipercentro, porém, era uma forma de manter viva a esperança de que em algum daqueles olhares, daqueles tipos, alguém que lhe fosse próximo, aparecesse em uma esquina, trazendo-lhe a solução. Não tinha dúvidas, que se casso se deparasse com alguém bem conhecido, do seu dia a dia, não lhe iria passar despercebido. Ele mesmo, pensa, o reconheceria de imediato. Afinal, o mundo e a cidade não lhe pareciam tão estranhos. Naquela parte mesmo da cidade em que se encontrava, sabia que já havia passado por ali, incontáveis vezes. O cenário à volta eram-lhe familiares, o que lhe infernizava mais a cada instante, era não saber como se encaixar nele. Que peça seria em meio a este gigantesco quebra-cabeça que tem diante de si? Teria sido a memória que fatalmente falhara ou o seu passado recente, a sua história toda que resolvera escapar-lhe de vez? Seria, pois, um renascimento, a vinda de outro super-homem, um milagre qualquer, ou o simples prenúncio de uma fatalidade, a morte anunciada, a eliminação completa e definitiva? A cidade cheia, movimentada, dinâmica, com suas várias multidões, gestos e apelos, naquele momento, não lhe faziam qualquer sentido. O mundo é real, palpável, vê todas suas cores e formas, mas que significado ele teria dentro dele? Em que medida seria ele parte integrante? As dúvidas se acumulavam. Talvez fosse um simples fantasma, proveniente de gerações passadas, e que aqui acabara de chegar, um extra-terrestre programado para o esquecimento, ou quem sabe ainda, um destes avatares modernos, criados pelos jovens em seus computadores possantes, e agora possíveis de serem soltos por aí? A cabeça já lhe pesava. Abatido por um forte mal estar e um tremor frio que lhe atravessa o corpo, resolve interromper a caminhada, e procurar um local onde pudesse sentar-se um pouco. Atravessa duas avenidas, com os olhos sempre atentos à multidão, e por fim, encontra uma pequena praça, com alguns poucos bancos, cercada por algumas árvores antigas e frondosas, que lhe renderiam uma boa sombra. Seria ali, onde descansaria um pouco, e recuperaria forças para retornar à vida normal.
Havia encontrado um banco em um ponto mais afastado da rua, debaixo de uma grande árvore, e considerava-se com relativa sorte, pois ali poderia refletir um pouco sobre sua nova condição sem que fosse incomodado. Senta-se, estica as pernas, e inclina a cabeça para o alto, observando os longos e sinuosos galhos que sacodem ao vento, o universo de folhas, os pássaros que vão e vem, o movimento da vida. Um tímido vento sopra-lhe ao pescoço e parece aliviar um pouco suas dores. Observa o céu por sobre as árvores. A noite não tardaria a chegar. Uma fresta de luz ilumina seus ombros. Os músculos descontraem-se e seus olhos se fecham.



Acorda repentinamente, assustado. Um solavanco brusco em seus pés, quase lhe arranca do banco. Ao abrir completamente os olhos, vê dois jovens garotos correndo em disparada. Levaram-lhe os sapatos. Era noite alta. Dormira demais e o sono pesado não lhe permitiu perceber a chegada dos garotos. Além de não haver recuperado o que de mais importante havia perdido, ainda perdera os sapatos. Leva a mão ao bolso, outro susto, a carteira havia sido roubada, estava sem dinheiro algum. Apenas o documento estropiado ainda se encontrava com ele, pois estava no bolso inacessível aos ladrões. Agora nem o pouco dinheiro que poderia ainda lhe garantir uma ou outra refeição, a sobrevivência por quem sabe um ou dois dias, tinha mais. Mais que o não-cidadão, os ser que não é, era agora também um despossuído. Um vento frio cortava-lhe os pés descalços e um calafrio agudo fazia tremer seu corpo inteiro. Inclina-se sob o banco, corre os olhos ao chão, para verificar se pelo menos uma nota, não deixaram os garotos para trás, diante fuga apressada. Inútil, nada mais conseguira localizar, além de papéis de bala, uma tampinha de refrigerante e dois tocos de cigarros.



Ao levantar a cabeça, desconsolado, vê dois policiais vindo em sua direção, eram enormes, tinham a farda bem passada, os braços de ferro, uma boina que quase tampava um dos olhos, escondendo um olhar duro, e tinham os dois, o rosto largo, quadrado. A rua estava deserta, os outros bancos estavam todos desocupados. Apenas ele e os dois policiais pareciam povoar a inquietante madrugada. Os policiais aproximam-se e ordena que fique de pé. João se levanta, leva as mãos ao pescoço, enquanto um dos homens faz a revista. A única coisa que encontram é o documento. O policial puxa-o de uma vez, arrancando-o violentamente do bolso. Levanta-o para o alto e chama seu companheiro para ver mais de perto. Não havia nada escrito ali, apenas a foto do homem. Com os olhos fulminantes, impetuosos, e uma voz metálica e rouca indaga a seu dono. O que é isto? Ele não responde. O policial lhe devolve o que sobrara do úmido documento. Mas o que é isto? Pega rapidamente o documento de volta, como que se este fosse sua única tábua de salvação, seus olhos se esbugalham e o coração aperta, quando percebe que a umidade do papel havia se alastrado por todo o documento, e já nem mais um nome restava. Um outro borrão se formara entre o plástico molhado e o papel, era o pouco que havia restado de si. Até a fotografia já apresentava sinais de esmorecimento, uma pedaço rasgara e começa a deslocar-se do lugar. Novamente, um estrondo invade seus ouvidos. O que é isto? Quem é afinal? Esbravejava o gigante de fardas e botas. O pobre homem não conseguia balbuciar palavra alguma, pois elas não lhe vinham à mente. Qual o seu nome? Insistem as policias. Já não mais o sabia. Não se recordava de nome algum que pudesse dar como resposta. Os policiais não perdem mais tempo. Algemam o homem e atiram-no ao carro. O motorista arranca apressado. No meio do caminho, tem suas pernas amarradas. O veículo segue rumo à saída da cidade. Atravessam os bairros periféricos, acessam a grande rodovia, e deslocam-se em direção às montanhas. Quando a madrugada ensaiava findar-se, estacionam à beira de um precipício, e antes que nele chegassem, uma grande fenda sem fim incrustada ao chão, lhes abreviava a missão. Era um grande fosso de pedras de bocas largas e goelas escuras e profundas. Perguntam ao homem, mais uma vez, se este não lhes diria o nome. O silêncio era completo. É empurrado ao fundo.



Marcos Vinícius.