sexta-feira, 10 de abril de 2020

O milagre - Parte 2




Sem qualquer ruído, despertador, ou luz que viesse anunciar a chegada do dia, Alberto abre os olhos às cinco horas em ponto, nem um minuto a mais ou a menos. O sol ainda não havia despontado e a noite ainda enchia de escuridões todos os cantos do quarto. O relógio está programado para tocar as cinco e meia, mas agora não há mais remédios, Alberto está, irreversivelmente, desperto. Ainda tem duas horas para se preparar antes de reunir-se com a equipe e pegar a estrada em direção a Jurupemba. Fica alguns instantes a fitar o teto e, bruscamente, se levanta. Vai direto para o banho, em seguida, faz o desjejum, veste-se com uma roupa mais leve, uma calça bege de moletom, uma blusa de algodão azul cobalto, um tênis leve e confortável, apara alguns pelos excessivos da barba, fecha os últimos zíperes das duas malas, fecha a casa, ajeitando o que ainda estava fora do lugar e, pontualmente, às sete horas, como o combinado, estaciona o carro em frente ao edifício do escritório, onde a equipe já estava reunida lhe aguardando, próximos a uma Van, que os levará ao destino, em previstas oito horas de viagem. Somados ao tempo em que parariam para o almoço, o cálculos indicam que chegarão em Jurupemba ao final da tarde. Não foi difícil montar a equipe, Alberto possui, sob seu comando, um número razoável de profissionais competentes e dedicados, mão de obra qualificada, que foi selecionando ao longo de sua gestão na empresa. Ainda enquanto ouvia o discurso do patrão, no escritório, na semana passada, já havia a lista dos nomes em mente. Rogério, o repórter, que há dois anos o acompanha, e que, impressiona Alberto, com sua voz grave, penetrante, invasiva e convincente, foi um dos primeiros nomes a se lembrar. Alberto costuma dizer que não há quem não acredite em seus relatos. Alberto já lhe dissera, mais de uma vez, que sua voz lhe traz recordações dos antigos filmes que assistia de heróis e profetas, em seus tempos de infância, cujo tom, carrega uma aura de suprema confiabilidade, que fazem das palavras proferidas, uma mensagem do infinito, com ares de verdades absolutas. Outro profissional de destaque, já previamente escalado, em qualquer destas ocasiões de emergência, era Pedro, o cinegrafista, destes que chamamos pau pra toda obra, sempre disponível e entusiasmado, além de possuir um olhar especializado em flagrar os melhores momentos e capturar os melhores ângulos e tomadas de cena. Vão ainda, Carlos e Samuel, dois jovens auxiliares, responsáveis pelo som e iluminação, além do motorista, claro, o veterano na empresa, o senhor Arimatéia. Os cinco estavam apenas aguardando a chegada de Alberto para que dessem a partida, todas as bagagens e os equipamentos necessários já estavam acondicionados nos bagageiros da van. Os outros dois homens, Anthony e Peterson, os tais agentes lá do Império, que Alberto ainda não conhecera, chegariam no dia seguinte à Jurupemba e os encontrariam no hotel, onde todos ficarão hospedados. Alberto e a equipe sairão juntos, mas ele viajará em seu próprio carro, o que lhe garante alguma privacidade, da qual, em raras ocasiões, abre mão, além do que, viajaria mais confortável, teria mais espaço para suas coisas, mobilidade garantida em Jurupemba, e evitaria o desconforto de viajar por horas a fio ao lado de seus empregados, o que ele acredita que, ao fim e ao cabo, levaria a exageradas proximidades e intimidades, que põe sob risco, o ritual do exercício de sua autoridade. Antes de partir, todos dão uma última olhada no mapa, para certificarem-se que, mesmo viajando em veículos diferentes, seguiriam todos a mesma rota. Não havendo mais o que acertar, entram todos em seus respectivos carros e tomam o caminho de Jurupemba. Alberto liga o ar condicionado, ajusta o rádio em um volume mínimo e vai observando a paisagem, esta que vê pela primeira vez. Apesar de gostar de viajar e sempre o faz, seja a passeio ou a trabalho, ainda não havia explorado a região para onde se dirige. São, realmente, caminhos novos, o que lhe proporciona uma sensação de prazer, pois gosta disto, percorrer o inexplorado, desbravar novidades. E pelo que vai observando, à medida que se aproxima de seu destino, aquelas paisagens são, de fato, diferentes de tudo o que já viu. A estrada que, em alguns trechos, estreita-se e afunila-se, a adaptar-se as inconsistências do relevo, de um asfalto escuro, segue cortando extensas montanhas de pedra. Em alguns trechos, o dia escurece, pois a estrada corta elevados paredões de rochas negras, por onde, apenas em algumas poucas horas do dia, o sol encontra permissão para entrar. Em alguns pontos, o caminho torna-se bastante íngreme, o que exige habilidades do motorista, nem sempre postas em prática, dadas as surpresas e as peculiaridades da geografia. Subidas ou descidas muito inclinadas requerem sempre um bom sistema de freios e sorte a sua, pois o carro, antes da viagem, passara por uma detalhada revisão mecânica. As plantas rasteiras e as árvores que se agarram às rochas são de um verde exuberante e farto. As árvores, em sua maioria, são de modestas estaturas, com troncos ligeiramente retorcidos, copas generosas e que, em algumas delas, quase tocam o chão. Vez ou outra, destacam-se na paisagem árvores enormes, cobertas de exóticas flores lilás e iluminadas por um céu exageradamente azul, o que dá ao local, pelas imaginações de Alberto, ares dos cenários dos contos de fadas. É necessário, porém, estar muito atento à velocidade e às curvas, pois uma relação mal calculada e ajustada entre elas, pode resultar em fatalidades. Há curvas exageradamente acentuadas, fechadas, onde, caso o motorista desatento, deixe de colocar o carro em velocidades mínimas, pode se esborrachar penhasco abaixo, de alturas tais, em que torna-se impossível qualquer chance de sobrevivência. A estrada é perigosa, mas de uma beleza única, pensa Alberto. Ele encara aqueles paredões de rocha escura, as longas, estreitas e profundas crateras e fendas que se abrem nas montanhas gigantes de pedra, os filetes de água cristalina que escorrem em leitos duros de cascalhos coloridos e, imagina, Certamente, são destas belezas todas, que hão de arrancar a rica matéria-prima que, no frigir dos ovos, claro, secreta e inconfessavelmente, é o que nos traz a Jurupemba. Ao cruzar uma ponte estreita sobre um pequeno riacho, Alberto observa-o e recorda-se de um comentário que ouviu há alguns anos, dentro de um bar, quando tomava das suas cervejas, Se é verdade que água mole em pedra dura, tanto bate até que fura, também o é que, água mole em pedra dura, tanto bate até que um dia a água acaba. Alberto solta um discreto sorrido sem graça, constrangido, e ao virar a curva, avista ao longe, parte posta em uma planície, parte incrustrada na pedra, Jurupemba. 

Alberto chega meia hora antes de sua equipe e dirige-se diretamente para o hotel, pois tudo o que deseja, de imediato, é tomar um banho, tirar aquelas roupas de viagem, e fazer um lanche. Como o previsto, chegou à cidade ao final do dia. Ele percorreu o trajeto em sete horas e meia, mas sua equipe, na van, gastou, em trânsito, as exatas oito horas, minuciosamente calculadas pelo senhor Arimatéia. Por mais que tenhamos pesquisado mapas, lido sobre o local, visto milhares de fotografias, há coisas que só percebemos quando lá colocamos os pés, qual seja, o espírito do local, com seus ruídos, o sotaque e os trejeitos populares, o clima, o regime dos ventos, os ângulos da incidência do sol sobre as cores nativas, as naturais e as artificiais, a conjugação da vegetação, os cantos dos pássaros, as manias, os traumas, a ginga, as lendas, as histórias dos heróis e da gente comum, seus casos, santos, crendices, e aquilo, sabe-se lá o quê, que todo povo tem e é só seu, o que diríamos,  o que aquela gente tem de mais peculiar. Devido às altitudes, Jurupemba, tem um clima ameno, muitas vezes, frio, o que agrada Alberto que, sempre dorme melhor nas temperaturas mais baixas. Jurupemba é a típica cidade do interior, pequena, provinciana, a localização, entre as montanhas e os paredões de pedra, tamanhas barreiras naturais, certamente lhe proporcionou, ao longo de sua história, algum isolamento e, ainda mais peculiaridades. Lugares assim, geralmente, apresentam sólidas tradições culturais. Além do que, cada lugar, com suas belezas e problemas, é único. A rua principal acompanha o curso de um vale que serpenteia três grandes montanhas, que circundam toda a região central, muitas das ruas adjacentes, embrenham-se pelas serras acima, as casas são baixas, os poucos prédios não ultrapassam quatro a cinco andares, o comércio é modesto, mas movimentado, com feiras de barracas de alimentos e coisas da terra, e a população local, apesar de todos se conhecerem entre si, não é de estranhar a presença de forasteiros, pois com eles já se acostumaram, graças ao fluxo de turistas que, no verão, vem usufruir das águas frias de suas abundantes cachoeiras. O hotel é grande, espaçoso e confortável, ocupa um prédio antigo que passou por muitas reformas, têm largas portas de vidro, as janelas são amplas, as paredes são limpas e ornamentadas com quadros e artesanatos, e o atendimento é sempre bem avaliado.  Alberto e sua equipe já eram esperados na recepção, o que facilitou as acomodações, tanto é, que assim que chegou, apresentou-se e correu para o chuveiro, tomou um banho quente e, quando retornou à sala das recepções, lá estava a sua equipe apresentando-se ao recepcionista e descarregando suas bagagens. A viagem transcorrera sem qualquer infortúnio. Depois de guardarem os equipamentos e malas nos quartos do hotel, os homens se reúnem para um jantar servido pelo restaurante do estabelecimento. Estão todos famintos e cansados depois de oito horas de viagem, o que não impede que conversem animados e elogiem as belezas e o clima da região que, segundo dizem, os havia encantado durante a maior parte do percurso. A mesa é farta, a comida é saborosa, e todos comem de bom grado e gula, e por um bom tempo, houve um silêncio absoluto no local, quando todas as bocas não faziam outra coisa além de mastigar e salivar com os temperos típicos da região. Após a sobremesa, saem todos para a rua, a fim de tomarem um pouco do ar frio da cidade. Uns ficam conversando na calçada, bem em frente à porta de vidro da entrada principal do hotel, enquanto outros saem em busca de aspirina e cigarros. Alberto resolve permanecer no hotel, pois precisa redigir algumas correspondências e preencher relatórios, além, claro, de ligar para Virgínia, para dizer-lhe que foi bem de viagem e procurar, mais uma vez, consolá-la, a despeito do adiamento das comemorações do aniversário. Apesar de compreender as demandas do trabalho de Alberto, e as emergências que, vez ou outra, tem que atender, ela não consegue livrar-se da chateação e do tormento, que é ver seus planos, indo por água abaixo. Ele, então, tranca-se no quarto e liga para ela. Alô, meu amor, como estão as coisas por aí? Por aqui está tudo bem. A viagem foi muito tranquila, sem qualquer transtorno e, por um longo trecho, digamos, a partir da segunda metade da viagem, a estrada estava praticamente vazia. A paisagem é linda e o carro, como bem sabe, é muito confortável e não há melhor para viagens. Tranquilize-se, estou muito bem por aqui, além do que, o hotel é confortável, bem localizado, a comida é maravilhosa, e a equipe, apesar de serem todos muito bons de serviço, são pessoas bacanas e de convívio fácil. Não se martirize, Virgínia, a festa pode esperar. Em dez dias estarei de volta e, então, faremos uma comemoração bem maior ou melhor do que seria esta que não poderá ser. E não acabou, digo que além da festa que faremos, já lhe adianto que pode pensar em preparar malas, pois, depois desta minha empreitada, quando voltar, faremos uma boa e inesquecível viagem para um paraíso qualquer. Já pode ir olhando os mapas, escolhendo destinos e hotéis, aí sim, finalmente, poderemos usufruir de merecidas férias e descanso. Fazemos a festa e, em seguida, viajamos. O que acha, meu bem? Não se desespere, porém, e nem precisa consumir-se em ansiedades, ainda temos um bom tempo pela frente, ao longo da semana, vamos conversando e programando melhor. Descanse, meu amor, que é, também, o que farei agora. Como estão todos por aí? Mande, por favor, meus abraços e saudações. Tchau, beijos. Desliga o telefone, solta um longo suspiro e senta-se na beirada da cama. O telefone pisca, mensagem do senhor Hamilton. O que se lê, Boa noite, senhor Alberto, como vai? Espero que tudo tenha transcorrido bem durante a viagem e que tenha gostado do hotel. Passo para avisar que os agentes Anthony e Peterson, ao contrário do previsto, não chegarão amanhã, vão se atrasar em alguns dias. Quando a data estiver definida, envio mensagem. Boa noite e bom trabalho. Abraço. Alberto olha para o aparelho celular, desliga-o e põe-se a imaginar, Mas o que terá ocorrido? Já estou curioso para conhecer estes dois. Afinal, a tarefa que tem pela frente, é de extrema ousadia. Como farão para realizar com sucesso tal empreitada? Será tão transparente assim o equipamento, a ponto de ninguém percebê-lo? Como farão para instalá-lo, acioná-lo e desmontá-lo à vista de todos? Claro, estando tudo combinado com o candidato, facilitam muito as coisas. No momento exato, o candidato, em discurso, chamará todas as atenções para si, quando então, as mãos habilidosas dos agentes, entrarão em ação. Vou evitar preocupar-me com isso, afinal, o Império não encarregaria de tais ações, gente inexperiente e despreparada. Quanto a mim e a equipe, temos que nos preocupar com os registros e as devidas edições, produzir nosso trabalho jornalístico, as reportagens, e claro, dar cobertura aos agentes, fazer crer que somos todos da mesma equipe de trabalho, técnicos de um jornalismo sério e de qualidade. Alberto levanta-se e vai até a janela. Ao abri-la, a primeira imagem que lhe vem aos olhos é a da estátua do Coronel Jovelino Miranda, robusta, imponente e grandiosa, com a expressão de bronze, observando e dominando toda a praça. Um calafrio percorre os braços de Alberto, passa pelo peito e soca-lhe o estômago, arrepiando-lhe os pelos. Ele mira-a por alguns instantes, intrigado, fecha a janela e resolve deitar-se para dormir. Acomoda-se na cama, mas o sono custa a chegar, vira para um lado e para o outro, diversas vezes, até que o sono venha lhe subtrair as forças. Ao dormir, porém, os sonhos não lhe dão sossego, uma sucessão de imagens, advindas de sua vida real, do seu dia a dia, e de situações absurdas, lhe vem à mente, as paisagens que vira na estrada, Virgínia, a fisionomia onipotente do patrão, os dois agentes, os quais nunca viu, sequer em fotografias, lhe aparecem com os rostos encapuzados, Bianca em toda sua sensualidade, e de repente, aparece o candidato Josemar com as mãos voltadas em sua direção, em forma de ganchos, prontas para estrangulá-lo, e quando prepara o grito de socorro, a estátua do Coronel, tomba sobre si , a esmagar-lhe. Neste momento, Alberto desperta em um salto da cama, tem o corpo, o lençol e o travesseiro ensopados de suor. Levanta-se, toma um copo d’água, vai até o chuveiro, toma um banho rápido, ao voltar, abre a janela, a constatar se Jovelino Miranda se mantém em seu posto, lá está, intocável, e fecha-a rapidamente. Volta para a cama. São quatro horas da madrugada e o sono resolve abandoná-lo. As cinco, levanta-se novamente, abre a agenda com os números dos telefones dos candidatos à Prefeitura de Jurupemba e rascunha, em uma folha de papel, a programação dos trabalhos para os próximos dias. Pontua, em tópicos, os assuntos que ainda hoje, pretende tratar com sua equipe, em reunião, após o café da manhã. Às sete e meia estavam todos reunidos em torno de uma grande mesa, recheada com todo tipo de guloseimas, pães, bolos, cafés, sucos e chás, além de uma considerável variedade de frutas e, mais uma vez, todos degustam em silêncio, à exceção de um comentário ou outro, sobre o sabor das iguarias, e pequenas brincadeiras e piadas de uns com os outros, o que é comum entre colegas de trabalho, nos raros momentos de descontração e lazer. Às oito horas, sentam-se todos ao redor de Alberto, que, valendo-se de sua condição de liderança, expõe as metas e as ações daquele dia. E assim os dias se sucedem em Jurupemba, entre reuniões pela manhã, desjejuns maravilhosos e inesquecíveis, e uma longa rotina de filmagens, entrevistas, pesquisas de opinião, conversas com autoridades, técnicos do governo, levantamento de dados e informações e a produção de um infinito número de imagens. Ao fim da tarde, a equipe se reúne novamente para realizar um balanço da produção do dia. Alberto, às vezes, vara madrugadas, a conferir o material produzido e planejar suas edições. Esta rotina se mantém ao longo dos dias e, em uma semana, já haviam entrevistado todos os candidatos e seus principais assessores. 

A rotina iria se alterar apenas com a chegada dos agentes que, como o senhor Hamilton havia avisado, ocorrerá nesta manhã de quinta-feira, às nove horas, quando a equipe já saiu para seu trabalho de campo, e apenas Alberto os aguarda para fazer as devidas recepções, na véspera do esperado comício do candidato Josemar Miranda aos pés da estátua do avô. Enquanto Alberto aguarda a chegada dos homens, deita-se um pouco na cama, em seu quarto, logo após o café da manhã e a saída de seus funcionários. Mal teve tempo de acomodar-se no leito, a recepcionista, pelo interfone, avisa que Anthony e Peterson acabam de chegar e estão à sua espera. Alberto dá um salto da cama, abre a janela do quarto, guarda a camisa que havia deixado em cima da escrivaninha, ajeita duas cadeiras, olha-se no espelho, ajeita os fios da barba e do cabelo que estavam levemente desalinhados e pede a recepcionista que os encaminhe para o quarto, onde vai recebê-los. Bom dia, senhor Alberto Matias, como vai? Disse Anthony, com sotaque carregado das línguas estrangeiras. Bom dia, senhores, muito prazer. Sentem-se, acomodem-se, aceitam um copo d’água? Necessitam de algo, um lanche, um banho? Afinal, acabam de chegar de uma longa viagem. Não se preocupe, senhor Alberto, respondeu Peterson, estamos bem. Alberto os observa com curiosidade. São jovens, bem vestidos, altos, de pele clara, os dois são parecidos, não ao ponto de assemelharem-se a irmãos ou primos, mas como pertencentes a um grande grupo familiar, como se do mesmo ramo genético, ou no mínimo, como se houvessem sido criados sob os mesmo códigos de condutas e posturas. Eles se parecem, inclusive, observa Alberto, na maneira de se sentarem e de olharem para ele. Nada que lembrasse as aparições em sua noite de pesadelos. Pois, então, senhor Alberto, o senhor já sabe a que viemos, já recebeu as orientações, então, aqui estamos, o senhor não tem muito com o que se preocupar, com relação a nós, o que lhe cabe fazer é integrar-nos a sua equipe, como se dela fizéssemos parte por todo o sempre, pois, amanhã, na hora do evento, teremos que estar entre eles, manipulando os equipamentos de filmagens, com seus pedestais, cabos, tomadas, fios, e luzes, sim, mais que qualquer outra coisa, é importante que tenhamos um holofote em mãos, ele nos ajudará na cena, apenas como mais uma garantia, qual seja, ofuscar um pouco as vistas dos que estiverem mais próximos do ponto zero do milagre, a estátua do Coronel Jovelino. Quanto aos demais detalhes da operação, o senhor não se preocupe, não tem como dar errado, nosso método é bastante eficaz. Estivemos agora pela praça e percebemos que o monumento e suas medidas são exatamente aquilo que temos catalogado em nossos registros e imagens. O candidato está ciente de toda a operação, é coadjuvante, e já nos entendemos com ele, antes mesmo de virmos para cá. No momento em que ele se referir ao avô e repetir suas palavras, gravadas aos pés da estátua, quinze minutos após o início do comício, o milagre ocorrerá. Prepare seus olhos e lentes, senhor Alberto.  Infelizmente, não há como fazer demonstrações prévias, mas o senhor verá o milagre acontecer. Já viu algum, senhor Alberto? Alberto esboça um sorriso sem graça e desajeitado. Vários, senhores, vários, responde. Anthony retira uma folha em dobras do bolso e abre-a sobre a mesa, é uma fotografia da praça do Coronel, quase um mapa, feita por satélites, em alta resolução, onde se pode ver detalhes da imagem, um retrato minucioso do local onde ocorrerá o comício. Os três homens tem os olhos fixos sobre a fotografia. Anthony percorre a imagem com os dedos e vai apontando para Alberto, os pontos exatos, onde cada um deverá se posicionar, para garantir o sucesso da operação. Alguns minutos após terminar sua exposição, acertam ainda um detalhe ou outro e, por fim, Peterson, indaga, Ainda há alguma dúvida, senhor Alberto? Não, está bem entendido. Os homens, então, como se ouvissem uma senha, levantam-se, e Anthony diz, Pois bem, agora, precisamos comer alguma coisa, tomarmos um banho, nos acomodarmos e descansar um pouco. Qualquer coisa, senhor Alberto, estamos no quarto ao lado. Foi um prazer conhecê-lo. Os homens se levantam e estendem as mãos para Alberto. Deixe que eu os acompanho, diz Alberto, procurando oferecer gentilezas. Muito obrigado, senhor Alberto, mas não é necessário. Nos vemos ao final do dia. Até lá, abraços. Os homens saem pela porta e desaparecem como um raio, como se por ali, nunca houvessem passado. Alberto resolve passar o resto da manhã dentro do quarto, revisando parte do material produzido pela equipe ao longo da semana e programando possíveis edições. Liga o computador, espalha algumas folhas pela mesa, muda a caneta de lugar e vai até a janela. Encosta-se no parapeito e passa a observar, detidamente, a estátua do coronel. Fixa os olhos nela e deixa-se levar por um turbilhão de pensamentos, até perder-se no meio deles, e se esquecer do trabalho que havia programado realizar. Quando dá por si, já eram as horas do almoço. Ao final do dia, reúnem-se todos no salão reservado do hotel, Alberto, a equipe e os dois novos agregados, Anthony e Peterson, que são rapidamente apresentados. A equipe esbanja simpatias para os dois novatos, no intuito de melhor integrá-los ao grupo, fazem brincadeiras e o quanto podem em gentilezas para deixá-los à vontade. Os dois, porém, apesar de esbanjarem cordialidades e delicadezas, estabelecendo amistosas relações, são homens de poucas palavras, dão respostas curtas e evitam estender os assuntos. Antes de encerrar o relato que o repórter Rogério fazia sobre o seu trabalho do dia, Anthony e Peterson pedem licença, despedem-se e, desculpam-se pela súbita retirada, alegando a necessidade de dormirem bem, para estarem devidamente descansados e preparados para o exaustivo dia de amanhã. Meia hora depois, todos se despedem e recolhem-se aos seus aposentos.

Como ainda não havia ocorrido desde que chegara a Jurupemba, Alberto dorme, ininterruptamente, mais de oito horas. Quando abre os olhos pela manhã e percebe o sol já bem claro e o dia quente, assusta-se, imaginando que, talvez, houvesse dormido por uns dois dias consecutivos. Sente-se confortável, após uma noite de um sono revigorante, estende levemente os músculos dos braços e das pernas e, rapidamente, pega o relógio, para conferir o adiantado das horas. Ainda é cedo, não há necessidade de correrias, mesmo porque, hoje à noite será o esperado comício do candidato e a equipe não sairia a campo durante o dia, ficariam todos no hotel para ajustar os equipamentos e fechar últimos detalhes da cobertura. E assim se fez. Alberto quase não sai do quarto durante todo o dia, e a equipe aproveita a ocasião para empanturrar-se das guloseimas que o local oferece, comem de tudo, dos salgados aos doces, e o resto do tempo, dedicam-se ao ócio e ao sono. Anthony e Peterson são vistos muito rapidamente, apenas durante o horário do almoço. O comício terá início às oito horas da noite, e tudo já está preparado, organizado, faltando apenas aguardar o momento de iniciar os trabalhos na praça. Enquanto seus funcionários se empenharão em registrar o evento, carregando filmadoras, microfones, lâmpadas, cabos e toda a parafernália própria do ofício, posicionando-se nos mais apropriados ângulos, não apenas para registrar as melhores imagens, mas também para dar as devidas coberturas ao trabalho dos agentes, caberá a Alberto apenas acompanhar todo o trabalho e o desenrolar dos acontecimentos. Fará o papel de observador, ao mesmo tempo em que sua presença impõe o espírito de coordenação e organização do grupo, o mais importante que terá a fazer na ocasião, será tentar perceber, bem de perto, a eficácia da ação dos agentes, tanto no que diz respeito à sua habilidade e presteza, quanto à reação do público presente. Como está programada uma apresentação musical após a fala do candidato, estarão ali, tanto seus eleitores como, certamente, eleitores dos candidatos adversários, uma vez que, muitos são movidos apenas pela promessa da música e pelo movimento que estes eventos, geralmente, proporcionam em uma cidade, normalmente, pacata. A partir das sete horas, mal a noite caíra sobre Jurupemba, e grupos de pessoas, eleitores, curiosos, correligionários de Josemar Miranda começam a chegar, a equipe já se encontra posicionada, ainda esticando e enrolando fios, dando os últimos ajustes em suas lentes, nos controles dos equipamentos, nivelando os tripés, testando áudios e microfones, regulando as luzes e no caso de Rogério, exercitando a voz. O palanque, montado bem ao lado da estátua do coronel, recebe os últimos retoques, técnicos fazem os testes finais em suas aparelhagens e mulheres, jovens e idosas, cuidam da ornamentação do local, com flores, arranjos e material diverso de campanha, entre bandeiras, cartazes, banners e faixas. Aos poucos, o local vai se enchendo. Vem gente de todas as direções. Jovens aos grupos, senhoras, casais de todas as idades, com filhos ou sem eles, crianças, que ao colocarem os pés sobre a calçada da praça, soltam-se das mãos de seus pais e correm apressados ao redor dos canteiros e dos jardins, carros se aglomeram pelas ruas laterais, entre congestionamentos e buzinaços, homens montados em cavalos, vindos da extensa área rural de Jurupemba, representantes de partidos políticos, organizações empresarias e entidades de fazendeiros, com suas siglas, símbolos e logomarcas, pipoqueiros, vendedores de balas, de algodão doce, militantes que distribuem santinhos, chaveiros, panfletos, adesivos, homens e mulheres vestidos com camisetas estampadas com a foto de Josemar, sacodem, efusivamente, bandeiras de plástico com as cores da campanha e do partido do candidato. Anthony e Peterson, estes dois que parecem um, de tão juntos e inseparáveis que são, vestidos com o uniforme de jornalismo da equipe, já estão a postos, bem próximos da estátua do coronel. Eles têm o semblante duro, fechado, por mais que se esforcem em compartilhar simpatias e cumprimentos, seus olhares alternam-se entre o palanque, o monumento ao coronel Jovelino e a multidão ali reunida, ao conjunto dela, suas medidas e dimensão, e ao mesmo tempo, procuram observar um a um dos que a compõem, como a procurar desvendar sua natureza ou intenções, as individuais e as coletivas. De longe, Alberto os observa e pensa consigo mesmo que, pudesse apostar, apesar do pouco que os conhece, diria, sem medo de errar, que ali se trata de um elevado estado de espírito de tensões. Como que para quebrar seu pensamento, ao que chega a assustar-se, uma música alta, executada por uma banda de trompetes e cornetas, irrompe do nada, sem aviso. Os músicos, com suas bochechas de foles, enchem e esvaziam freneticamente os pulmões, e com sopros retumbantes, tomados pelo entusiasmo, e pela potência da laringe e de seus instrumentos, enchem a praça e explodem os espíritos dos cidadãos com sua música milenar. Anunciam a chegada de Josemar Miranda. Uma grande euforia toma conta do lugar. Enquanto sobe ao palanque, a multidão grita seu nome repetidas vezes, soltanto urras, já ganhou, já ganhou, Josemar, Josemar, e é efusivamente aplaudido pela maioria das pessoas que tomavam a praça. O candidato posta-se à frente do microfone, sobre o palanque, ainda em silêncio, com os braços erguidos, acompanhando as manifestações de seus entusiasmados apoiadores. Do alto, o candidato vai cumprimentando os que acenam para ele. O candidato vê Alberto, mesmo porque já sabia onde este estaria posicionado e o cumprimenta com um ligeiro aceno com a mão. Sem graça e visivelmente desconfortável, Alberto retribui o gesto. Por alguns minutos, o candidato ainda ficaria a cumprimentar e apertar as mãos dos que lhe estavam mais próximos. O candidato leva a mão ao microfone e inicia seu discurso. Neste momento, faz-se um silêncio geral na plateia. E Josemar inicia, Boa noite, meus amados cidadãos, conterrâneos e compatriotas. É com muito prazer e satisfação que hoje me dirijo a vocês, aqui, reunidos em praça pública, praça esta, que por tantas vezes podemos nos encontrar, conversarmos e darmos as mãos, nesta local, tão cheio de significados, para mim, em particular, e para todo o povo de Jurupemba, para os que aqui ainda estão e para os que desta já se foram, os da geração passada. Por isto, este nosso encontro, não poderia ocorrer em nenhum outro local. Amigos, Jurupemba não se esquece dos seus antepassados, dos seus heróis, dos que permitiram, lá atrás, que pudéssemos chegar aonde chegamos, com sacrifícios e dificuldades, é claro, mas com o orgulho dignificado, com a honra restabelecida e, mais importante, com a alma lavada. Neste momento, Josemar é interrompido por uma saraivada de palmas. E volta, com a voz mais firme e o punho em riste, Sim, meu povo, nunca nos esqueceremos dos nossos fundadores, dos nossos guerreiros de ontem, mas Jurupemba vislumbra uma era de prosperidades e não tira os olhos do futuro. Precisamos, juntos, construirmos a Jurupemba que queremos, e para isto, preciso de todos vocês, não apenas do seu voto, mas do seu dinamismo e de seu poder de convencimento, para convencer cada cidadão de Jurupemba, o pai indeciso, a mãe que ainda se definiu, o tio que ainda não compreendeu que o nosso governo é o melhor que podemos fazer por esta terra querida. Por isto, amigos de Jurupemba, conclamo todos vocês, nestes dois dias que nos restam, a fazer o possível e o impossível para conquistar o voto que seja, do indeciso, do que pretende abster-se e por que não, dos que pretendem votar no adversário. Sãos momentos decisivos, meus irmãos. É tudo ou nada. Ou vai ou racha. Jurupemba está nas mãos de vocês. Não podemos titubear. Outra vez, Josemar é interrompido por aplausos e gritos de euforia. Viva, Josemar, o homem que vai salvar nossa terra, berra alto, um homem no meio da multidão. Viva, Viva. Josemar volta-se para o homem e agradece, dá-lhe um aceno e retoma, Pois, então, irmãos de Jurupemba, milagres não fazemos, mas prometo, dos fundos da minha alma e do meu coração que de tudo farei, o que estiver ao meu alcance e o que não estiver, lutarei com todas as minhas forças, até o último suspiro, para ver este povo feliz. Jamais medirei meus esforços para levar Jurupemba pelos caminhos do desenvolvimento, da paz e do progresso. Faço esta profissão de fé, não apenas em meu nome ou movido por anseios pessoais, mas em honra ao espírito do meu avô que derramou seu sangue para o bem e a salvação do povo desta terra. Josemar põe as mãos sobre os ombros em bronze do avô. Era a senha. Alberto tem os olhos fixos no candidato e em Anthony e Peterson ao mesmo tempo. Os dois se movimentam de forma suave, quase imperceptíveis, e neste momento, por incrível que pareça, tem um ar de tranquilidade e um comportamento, nitidamente, profissional e movimentam-se, sem dar às vistas. Estes sujeitos estão bem treinados, pensou Alberto. O candidato mantem as mãos pousadas sobre os ombros do avô e proclama, Não terão sido em vão as palavras vivas do meu avô proferidas pouco antes de ser alvejado pelos inimigos cruéis e mortais, “Morrerei na batalha, mas meu sangue e minhas lágrimas inundarão de esperanças e coragem o coração do povo e a terra de Jurupemba”. Neste instante, sem mover o rosto um único milímetro, Peterson dá o primeiro arranque brusco nos braços, em seguida, um segundo solavanco, e sua expressão mantem-se completamente inalterada. Neste momento, o candidato solta um grito de espanto, Ele sangrou, ele sangrou. Josemar leva as mãos até o peito do avô e um sangue vermelho, viscoso e farto, escorre entre seus dedos, dos olhos de Jovelino, lágrimas salgadas correm em pequenas cascatas. Milagre, um milagre, o sangue de Jovelino volta a escorrer, Milagre, milagre, gritava Josemar, com as mãos levantadas para o alto. Assessores mais próximos aproximam-se da estátua para verificar o fenômeno e voltam, nitidamente, embasbacados com o que acabavam de ver. A equipe corria de um lado para o outro, de modo a fotografar o momento sob os mais variados ângulos, Alberto encontra-se paralisado como uma pedra. O povo, alarmado, em alvoroço, solta gemidos, lamentos, alguns ajoelham-se, outros clamam aos céus, entregam-se a cânticos, louvores e orações, o candidato insiste, do alto do palanque, Milagre, milagre, enquanto o sangue do avô lhe escorre pelos braços e ensopa a camisa. É sangue, é sangue. O sangue derramado do peito em bronze de Jovelino escorre por seu corpo, formando uma poça escura sob os pés da estátua. Os flashes das câmeras fotográficas são disparados em todas as direções. Os homens da equipe não tomam fôlego um segundo sequer, procuram capturar com suas máquinas possantes todos os registros possíveis. Anthony e Peterson espalham-se no meio da multidão com naturalidade tal, como se mais não tivessem feito, além da prestação de assessoria técnica à equipe de jornalistas, compram sacos de pipoca e refrigerantes e, em pouco tempo, estariam de volta ao hotel. Em meio ao alvoroço que se instalou, Josemar, com a roupa suja de sangue, pega novamente o microfone e diz, Amigos, irmãos, povo de Jurupemba. E neste instante, todos se calaram, um silêncio absoluto dominou toda a praça e apenas a voz de Josemar se fazia ouvir. Homens, mulheres e crianças, todos o olham com espanto e admiração. Meu povo, confesso que estou sem palavras, peço que tenhamos calma, afinal, é o sangue de Jovelino, é o sangue ancestral de Jurupemba que vem abençoar a nossa terra, o nosso povo e o nosso destino. Não nos alarmemos, pois. Tenho a plena certeza e convicção que o que temos é um sinal de sorte, é o anúncio de um novo tempo em que Jurupemba trilhará pelos caminhos da paz e da abundância. Creio que o melhor que fazemos agora, para evitarmos maiores tumultos, especulações ou confusões, é voltarmos para casa, refletirmos sobre este momento, entregarmo-nos as orações e não nos esquecermos que, depois de amanhã, daqui a dois dias, só temos um caminho, ao que a multidão atônita lhe interrompe e responde aos gritos, Josemar, Josemar, Salvador, Salvador. Alberto permanece de pé, observando o movimento e a reação das pessoas e a praça que, sob os pedidos de Josemar, começa a se esvaziar, não sem antes, em peregrinação, passarem, um a um, ao lado da estátua, para verem o sangue derramado do Coronel, porém, mantendo certa distância, sabe-se lá, por receio, respeito ou veneração. Boa noite, meu povo amado, estamos todos protegidos, até a vitória. Josemar, Josemar, Salvador, Salvador, o povo vai tomando o caminho de casa, cantando pelas ruas, Josemar, Josemar, Salvador, Salvador. O candidato, cercado por seguranças, assessores, curiosos e os fãs mais exaltados, dirige-se rapidamente para o carro e retira-se do local. A praça torna-se, a cada minuto, mais vazia. Enquanto a equipe recolhe e guarda os equipamentos, Alberto observa os últimos movimentos. Impressionante, ele pensa, Não imaginei que fosse viver para presenciar um milagre. Bem, mas como se diz por aí, milagres, realmente, acontecem. Estes de sangue, então, acredito serem os mais eficazes, pois há toda uma sacralidade em torno desta matéria física, deste fluido enigmático, que é o nosso sangue, afinal, é a fonte da vida, da energia, da saúde e, como acreditam muitos, é a fonte da salvação e, para tanto, é necessário jorrar. Faz-me recordar a passagem do livro sagrado, onde se diz que, De fato, segundo a Lei, quase todas as coisas são purificadas com sangue, e sem derramamento de sangue não há perdão, se então é assim, se são certas as palavras, o sangue do avô redimirá o neto e, este, muito, provavelmente, arrancará a vitória das urnas. Afinal, o sangue simboliza muitos dos pactos entre os homens e suas divindades. É símbolo da vida e das paixões, da fertilidade, em seu fluxo contínuo, ou ao contrário, onde também se manifestam seus poderes, nas cenas e no cotidiano da violência e da guerra, no contágio, nas doenças e nos genocídios. O sangue da morte, o sangue da vida. Retrata o fim e o extermínio, mas também, a purificação e a redenção. Enquanto há vida, há sangue, sem ele, é o fim, o nada. Além do que, ele, também, carrega de força as expressões ou as caracterizações humanas ou seus estados de espírito. És um sangue-frio ou ao contrário, é o fogo em chamas que corre por tuas veias? Um sanguinário, sanguinolento ou apenas um sanguessuga? Mais vale uma bala na agulha ou o sangue na veia? Tem sangue nos olhos? É sangue ruim? Sangue de barata? Sangra até a morte? É sangue do teu sangue? O acordo é da boca pra fora ou é um pacto de sangue? A disputa foi pacífica ou derramou-se um mar de sangue? Ah, quanto sangue derramado. A bem da verdade, não apenas a história dos homens está repleta de sangue, mas também, os seus dicionários. Que coisa. Rogério, o repórter, toca o ombro de Alberto, Tudo bem, chefe? Alberto desperta, assustado, a ponto de, mais uma vez, ser tomado pelo calafrio que lhe sobe os braços, irradia-se pelo peito e soca-lhe o estômago. Tudo bem sim, Rogério, tudo bem. Ufa, que dia, hein? Sim, miraculoso, responde Rogério. A propósito, rapazes, venham aqui, e acena para a equipe, chamando-a para junto de si. Pois, então, parabéns pelo trabalho, tenho certeza que temos em mãos um material preciosíssimo, vi bem o empenho de vocês durante todo o tempo. É o seguinte, comentários e avaliações, deixaremos para uma outra ocasião, agora tenho pressa, a noite mal começou, tenho muito trabalho pela madrugada adentro. Vou dar-lhe um tempo, mínimo, uma hora e meia, para que juntem todo o material produzido hoje, organizem, por favor, os arquivos, e me entreguem, em meu quarto, o material bruto, tudo, impreterivelmente, dentro deste prazo. Mãos a obra, garotos. 

Os homens se apressam, enrolam os últimos fios, desligam os últimos botões, e vão para o hotel. Alberto lhes passa mais algumas orientações, antes de dirigir-se ao quarto, e reafirma que os aguarda, ansioso, com o material, pois, ainda esta noite, deverá distribuir parte deles em outras seções e departamentos da empresa. Havia ainda aproximadamente trinta horas até as eleições, era o prazo que tinha, para enviar as imagens e audiovisuais capturados no comício para os responsáveis pela linha editorial e pela construção da propaganda. Uma propaganda agressiva, obviamente, incisiva, imagina Alberto, pois, não há outros caminhos ou estratégias viáveis, quando tão a beira do pleito. De lá, dos escritórios confortáveis da empresa, ainda nesta madrugada, os editores e redatores formatarão todo o material, de modo a encaixá-los nas estratégias de convencimento e persuasão mais eficazes que tem em mãos. Utilizando-se de truques imagináveis e também os inimagináveis, e todos os recursos que a tecnologia lhes oferece, dos quais, a empresa é pioneira e faz usos sem limites, em poucas horas, poderão invadir as telas dos eletrônicos de toda a população de Jurupema, valendo-se dos mais sofisticados códigos, sistemas e meios de transmissão de informação e contrainformação que a humanidade já vislumbrou, com todo o tipo de propaganda, montagens, frases de efeito, imagens sedutoras, enaltecendo o candidato Josemar Miranda e empurrando-o de vez, para as urnas e para a cadeira de prefeito. E o melhor de todos, os ingredientes desta complexa receita, a cereja do bolo, pensa Alberto, quase em voz alta, já sentado a escrivaninha, é este bendito milagre, este sim, talvez, seja a minha tábua de salvação. E sorri com ares de satisfação. Exatamente dentro do prazo estabelecido, os homens batem em sua porta e entregam-lhe as cópias de todos os arquivos. Alberto passa toda a madrugada, debruçado sobre o computador, vendo e revirando tudo quanto fora registrado, fazendo recortes, supressões, anotações, sugestões de estratégias e linhas de abordagens, e em comunicação direta, pelo telefone, com os técnicos, a centenas de quilômetros de distância que, trabalham, sem trégua, até o raiar do dia. Alberto passa a noite às claras, e às sete horas da manhã, para conseguir manter-se acordado, toma um banho e abre as janelas, pois em meia hora, receberá Anthony e Peterson, que estavam de malas prontas para a partida. Às sete e meia em ponto, os dois batem à porta de Alberto. Bom dia, senhor Alberto, como vai? Olá, rapazes, bom dia. Estou bem, felizmente, apesar de, como vocês podem imaginar ou observar, ainda não dormi, deste ontem, agarrado nestes serviços, diz Alberto, apontando para o computador ligado e os papéis espalhados sobre a mesa. Oh, lamentamos, senhor Alberto, nós dormimos como pedra, sabe, aquela sensação de missão cumprida, além do mais, para sermos sinceros, não é qualquer coisa que nos subtrai o sono. Mas não vamos prolongar os assuntos, senhor Alberto, pois já estamos de saída, a estrada é longa, então, estamos um pouco às pressas, diz Anthony, viemos apenas lhe dar as despedidas. Tudo bem, rapazes. Olha, parabéns, é impressionante a atuação de vocês, um trabalho executado com o máximo de destreza e discrição. Incrível, quanta habilidade. É nosso trabalho, senhor. A propósito, o senhor e a equipe ainda ficam muito tempo por aqui? Não, também estamos quase de saída, mas resta-nos ainda, fazermos, amanhã, a cobertura do dia da eleição, depois disso, fechadas as urnas, estamos todos liberados. A equipe sairá na manhã seguinte, segunda-feira, lá pelas sete horas, e eu, um pouco mais tarde que eles, estamos mesmo em carros separados, e pretendo dormir até mais tarde um pouco. Sairei na segunda-feira às nove horas da manhã. Na terça-feira, as oito, tenho compromissos inadiáveis no escritório. Mas, enfim, foi um prazer conhecê-los. Façam uma boa viagem e quem sabe nos encontramos em operações futuras. Um grande abraço para vocês.  Bom dia, senhor Alberto, descanse. Mande outro abraço para a equipe. Felicidades, sucesso. Abraços. Assim que saem, Alberto toma seu café da manhã, rapidamente, volta para o quarto, e dorme, praticamente, todo o dia, saindo apenas para as refeições e para saudar a equipe. No domingo pela manhã, todos se levantam cedo, é o dia que definirá a sorte de Jurupemba, o dia de ir às urnas. A equipe se divide em duas, na tentativa de fazer a cobertura da ida à cabine eleitoral dos principais candidatos que, via de regra, nestas ocasiões, sempre vão acompanhados de suas respectivas famílias e, no mais, registrar o clima eleitoral e o ânimos dos eleitores. Logo pela manhã, já se vê o movimento dos primeiros deles, os mais idosos, estes que, como se fosse combinado, são sempre os primeiros a chegar, inclusive, aglomerando filas em alguns postos de votação. Os mais jovens, na maioria dos casos, deslocam-se para suas seções no período da tarde. Estes preferem aproveitar o feriado do dia para dormirem o quanto podem. Enquanto os mais velhos engrossam as filas pela manhã, no desejo de depositarem logo os seus votos, os mais novos, em função de atrasos, ou outra prioridade qualquer, tumultuam o fechamento das seções, com a chegada aos locais, em cima da hora, às correrias, como se também, neste caso, houvesse alguma combinação prévia. O domingo corre tranquilo, sem qualquer incidente, e a equipe, no início da noite, já está com as malas prontas, para a viagem na manhã seguinte. Faltando alguns minutos para a meia noite, Jurupemba tem o resultado das urnas. Josemar Miranda será o novo Prefeito, sua vitória é confirmada. A cidade está em festa. Foguetes estouram por todos os lados, pequenas aglomerações se formam nas portas das casas, e muitos, entusiasmados e eufóricos, gritam das janelas de suas casas, saudando o candidato vitorioso. Alberto cumprimenta a equipe pelo trabalho, abraça um por um, dentro do hotel e, após uma rápida e discreta comemoração, vão todos para os seus quartos, porque, afinal, no dia seguinte, pela manhã, seria a hora de retornarem para casa. Todos caem em um sono pesado e a cidade, após festejar o resultado, adormece.

São três horas da madrugada. Enquanto a cidade dorme e o silêncio da noite paira absoluto, das sombras, submergem os vultos de Anthony e Peterson, vagueando pelas proximidades do hotel. Caminhando nas pontas dos pés e sem emitirem qualquer ruído, como fantasmas, de tão leves, enfiam uma agulha na fechadura do pequeno portão que dá acesso à garagem do hotel, abrem-no e entram rápido, com passos tão ligeiros e silenciosos, que parecem flutuar. Os dois vão até a Van em que viaja a equipe, enfiam-se por baixo dela, e acoplam em sua estrutura mecânica um minúsculo dispositivo eletrônico, depois, enfiam-se pelo estreito corredor lateral e vão até a cozinha, onde abrem e fecham algumas gavetas e, em seguida, saem as pressas, sem deixar qualquer evidência de sua passagem, qualquer rastro ou sinal, e daí, desaparecem e ninguém mais os vê. Às sete horas, em ponto, a equipe guarda a última mala no bagageiro da Van e o senhor Arimatéia dá a partida no motor. A manhã está luminosa, com um céu aberto e sem nuvens, mas um vento frio e úmido desce das montanhas escarpadas, levantando a poeira do chão e assobiando pelas esquinas das ruas, quando o veículo, com a equipe, deixa a cidade, definitivamente, para trás. São nove horas, quando, ao descer uma das mais íngremes encostas pedregosas da estrada, uma das rodas se solta, abruptamente, os freios arrebentam, e o senhor Arimatéia perde totalmente o controle do veículo, que se atira ao precipício. O impacto da queda é tal que o veículo explode e, em poucos minutos, é consumido pelas chamas. Exatamente às noves horas, Alberto é despertado pelo telefone. Senhor Alberto? Sim, bom dia, quem é? Senhor Alberto, aqui é da gerência do hotel e, imaginando o quanto o senhor deve ter se cansado por estes dias, dados o excessos do trabalho, faremos a cortesia de lhe oferecer um lanche especial nesta manhã, que lhe será servido no quarto. Alberto agradece a gentileza e acomoda-se novamente na cama. Em menos de dois minutos, recebe o lanche na porta. A mesa fica farta, com uma grande variedade de pães, bolos, frutas, doces e sucos. O aroma que vem dali, de imediato, abre o apetite de Alberto que, vai até o banheiro, escova os dentes, e corre, com gula, a devorar as tentadoras guloseimas. Em poucos minutos, ainda deliciando-se das sobremesas, um mal estar súbito lhe abate os ânimos, Alberto mira o espelho à frente e assusta-se com a palidez. Um tremor frio toma conta de si e, quando levanta-se, no intuito de solicitar ajuda e socorro, uma dor dilacerante lhe irrompe o peito, um engasgo medonho lhe torce a garganta, como se uma mão invisível a espremesse a torniquete. No primeiro passo, Alberto vai ao chão. Leva as mãos ao pescoço, na tentativa de desafogar-se, mas perdera, irremediavelmente, as suas forças. Algumas horas depois, é encontrado sem vida. O caso das mortes não teve grandes repercussões nas mídias nacionais e um texto único foi publicado e replicado em todos os veículos da imprensa que deram a notícia, “Laudos técnicos e periciais concluíram que a Van que transportava a equipe de jornalistas, não havia se submetido a reparos e revisões periódicas neste ano e Alberto Matias, o Diretor, traumatizado e impactado com a notícia da tragédia, veio também a óbito, em decorrência de uma parada cardíaca.”

FIM



Marcos Vinícius.

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