sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Imagens do poder




Os jornais do dia 10 de Dezembro trouxeram estampados em sua primeira página fotos da presidenta Dilma ao lado de seus antecessores, Lula, Fernando Henrique, Collor e Sarney, antes de embarcarem para a cerimônia de despedida de Nelson Mandela. Há quem diga que a imagem representa o espírito conciliatório de nossa cultura política, transmite uma sensação de paz e estabilidade institucional, simbolizando um mito do povo brasileiro, capaz de deixar de lado prováveis divergências, em nome do bem comum. Olhando, assim, rapidamente, podemos mesmo nos enganar à primeira vista. Mas se nos detivermos mais atentos sobre o colorido verde e amarelo estampado e permitirmo-nos escarafunchar um pouco nossas tão esquecidas memórias, veremos que a fotografia, a princípio, tão promissora, pode tornar-se um desalento, e certificarmos mais uma vez, de forma quase folclórica, nossa fatalidade histórica. A imagem de Sarney, de óculos escuros, parece retirada da capa do livro do jornalista Palmério Dória, “Honoráveis Bandidos”, que disseca, detalhadamente, as operações mafiosas montadas por sua família durante décadas no Estado do Maranhão, afora os escândalos que pipocaram a torto e à direita, enquanto à frente do nosso país. Alguém ainda se lembra do famoso “Caçador de Marajás”, o grande golpe da Rede Globo, aliada ao mundo das negociatas, onde o salvador da pátria, que vinha nos redimir, acabou não podendo concluir seu mandato devido ao universo de falcatruas com os quais se envolveu? A literatura política nacional e a imprensa investigativa, a cada dia, nos permitem conhecer melhor os subterrâneos dos palácios e os meandros das pocilgas do tucanato. O livro “A Privataria Tucana”, de Amaury Ribeiro Júnior, nos mostra, em trezentas e trinta quatro páginas, como desmontar um país, e fazer da política, um sofisticado balcão de negócios. Os jornais vem nos revelando, a cada dia, com quantas propinas, se monta um ninho tucano.  O ex-presidente Lula, desta vez, faz pose para uma viagem de caráter humanitário, velório do líder sul-africano, ao contrário, do que tanto temos visto por aí, quando tem viajado, quase que exclusivamente a negócios, na maioria das vezes, acompanhado de grandes empreiteiros, representantes de construtoras, empreendedores que vão estendendo para outros países, possibilidades de acordos, contratos e lucros. A bem da verdade, acho que quem ficou bem mesmo na fita, ou na foto, foi Barack Obama, nos jornais do dia seguinte. Apesar da falta de decoro de deixar-se flagrar em fotos alegres junto a outras lideranças em plena cerimônia fúnebre, e da cara de poucos amigos de sua esposa Michelle, acabou roubando a cena, fotografando-se, em total descontração, ao lado de uma beldade elegantíssima, primeira-ministra, da qual pouco nos lembramos, e a população mundial, admirada, sequer tem interesse em saber de quem se trata.


Marcos Vinícius.

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

A enfermeira





Sabe aquela fase da vida em que tudo vai dando errado e parece que os problemas não vão ter fim, sucedendo-se um após o outro? Pois é. Ontem tive que submeter-me a um procedimento médico não muito agradável, uma colonoscopia, qual seja, a introdução de uma grande mangueira no ânus, para que se realize uma vistoria completa no intestino. Estava deitado na maca tomando soro, preparando-me para o exame, quando entrou uma equipe de enfermeiras responsáveis pelos procedimentos. Qual não foi minha surpresa ao constatar que uma delas havia sido minha aluna há anos. Pensei, espero que não seja ela, a responsável por acompanhar-me. Mas como a sorte realmente resolveu me abandonar, era ela mesma quem iria realizar os procedimentos. Ela aproximou-se, mexeu no soro, ajeitou minha manta, olhou para mim umas duas vezes, indiferente, e pensei aliviado – não me reconheceu. Que maravilha. Procurei não encará-la, desviei o olhar, virei-me de lado e imaginei estar livre do constrangimento. Ela realmente não reconheceria, eu estava bem mais velho, com a barba branca, e já não era quem fui. Quando a moça começou a manobrar minha maca para levá-la para a sala dos exames, virou-se para mim de súbito, e perguntou: Você por acaso é professor? Putz, não é possível. Havia sido descoberto. Constrangido, quase gaguejando, respondi que sim. Era tarde. Professor, há quanto tempo, ela disse. De imediato, pus-me a imaginar se já havia tido algum problema com a ex-aluna, notas ruins, algum desentendimento, coisas do gênero. Enquanto ela manipulava frascos, mangueiras e seringas, virei-me para ela e disse: Espero que não a tenha maltratado um dia. Ela esboçou um malicioso e indisfarçável sorriso de satisfação pelo canto da boca, abaixou minhas calças, pediu que me virasse de lado, introduziu-me uma injeção enorme no braço esquerdo e não me lembro de mais nada.


Marcos Vinícius.

sábado, 2 de novembro de 2013

Marina Silva e a canoa furada



Se a tal REDE DE SUSTENTABILIDADE hoje não se sustenta, não é apenas por impedimentos legais, como determinou o TSE, mas porque carece mesmo de consistência programática ou ideológica. Sua idealizadora, Marina Silva, que apregoava como justificativa de sua criação a necessidade da constituição de uma força política renovadora que se contrapusesse ao nosso conservadorismo institucional, filia-se ao PSB de Eduardo Campos, dando uma guinada radical à direita, haja vista a perspectiva de alianças com o PSDB em mais de vinte estados da federação. Como se já não bastasse o falacioso discurso do “desenvolvimento sustentável”, que nos faz crer que é possível preservar destruindo, equilibrar a saúde da Terra com o capitalismo selvagem, a opção de Marina, joga mais uma vez, a plataforma verde, em mais uma canoa furada.



Marcos Vinícius.

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

O Capitalismo Frankenstein





Quem acredita que a civilização contemporânea, capitalista, já produziu tudo que podia em horrores, atrocidades, violências e absurdos, que fique atento ao significado histórico do controle da produção de alimentos pelas grandes multinacionais do setor de transgênicos. A agricultura, que modificou por completo a existência do homem ainda na pré-história, é agora, ela própria, radicalmente modificada, para atender às demandas dos mercados e das grandes corporações. Passados mais de dez mil anos, o agricultor, vem agora, perdendo um dos mais genuínos direitos, responsável, inclusive, pela perpetuação da vida, qual seja, armazenar as sementes da colheita para o próximo plantio. Como se não bastasse arrancar do homem a terra, arrancam-lhe também o acesso à semente. As plantas geneticamente modificadas, ao contrário do que sempre se propagandeou, a cada dia tornam-se dependentes de uma quantidade cada vez maior de venenos e agrotóxicos, dado o aumento da resistência das pragas em relação a eles, tornando nossa alimentação arriscada e perigosa. As empresas lucram em dobro, com a venda das sementes e dos venenos. Se quisermos considerar ainda, uma história de mais longa duração, podemos dizer que a constituição e formação da vida na forma como conhecemos, com uma quase infinita variedade de espécies, é resultado de um processo de milhões de anos, onde a seleção natural e demandas adaptativas deram as caras e as cores do mundo em que vivemos. Alterar a estrutura genética de seres vivos e criar novas espécies em laboratórios significa interromper um fluxo natural de energia que vem se processando desde os tempos mais remotos. Não é possível dimensionar quais seriam os desdobramentos desta prática no longo prazo. O que já sabemos é que em lugares do mundo onde o cultivo de transgênicos já se proliferou, o número de crianças com deformações e a incidência de doenças, como o câncer, vem aumentando assustadoramente. Estará a vida, outra vez imitando a arte, a ficção, quando, sabe-se lá, não teremos em um futuro bem próximo, o capitalismo mais selvagem, revelando sua face Frankenstein?



Marcos Vinícius.

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Tarifa Zero.





O Estado brasileiro arrecada muito, mas gasta mal. A cultura da corrupção é algo tão arraigado em nosso país, que se tivéssemos como listar todos os corruptos e corruptores que por aqui já passaram, creio que teríamos uma lista quilométrica. Os valores dos prejuízos, advindos dos desvios são medidos em trilhões de reais, assim como também o são o valor dos calotes que as grandes empresas e os grandes capitalistas sonegam aos cofres públicos. A sensação é que há muito dinheiro, mas todo ele é dedicado à farra das nossas autoridades, sem qualquer contrapartida para o contribuinte, que se estrangula, dia após dia, para pagar uma infinidade de impostos e tarifas que lhe são cobradas.


O Estado brasileiro, desde a sua origem, sempre foi um instrumento que as elites utilizaram não apenas como um meio de extorquir e usurpar a população, mas para mantê-la sob completa submissão e controle. Enquanto convivemos com um modelo de educação e saúde extremamente precarizados, chuvas de bombas de gás lacrimogênio, cada uma delas custando praticamente o preço de um computador, são despejadas de helicópteros sobre a população, quando resolvem sair às ruas. O sistema fiscal e o sistema repressor, que atuam com elevadíssimo grau de sofisticação, parecem ser um dos poucos setores bem aparelhados do nosso modelo estatal, sistemas estes, diga-se de passagem, que beneficiam os ricos e penalizam as pobres, que são os que, de fato, pagam impostos e as grandes vítimas da violência policial.

É o momento de invertermos prioridades. Tem início em Belo Horizonte, o movimento pela tarifa zero, “TARIFA ZERO É MAIS”. São necessárias 95 mil assinaturas para o encaminhamento de um PROJETO DE LEI, de iniciativa POPULAR, para tramitação na CÂMARA DOS VEREADORES, que garante transporte sem tarifa e de qualidade para a população. O transporte público deve ser público de fato. A gestão da saúde, educação e do transporte público DEFINITIVAMENTE não devem adotar o modelo dos grandes negócios, pois fazem parte do kit básico, mínimo, dos direitos do cidadão. Não podemos permitir que permaneça como mercadoria, fonte de gordos lucros e espúrios negócios, o nosso sagrado direito de ir e vir.

Não é de hoje que avenidas são feitas e refeitas na cidade, obras são executadas e imediatamente destruídas, comprovadas sua inutilidade. Uma verdadeira indústria de viadutos se edificou em Belo Horizonte, que talvez, mereça o título de capital mundial dos viadutos. Alguém conhece alguma outra cidade onde se constroem tantos viadutos? E, no entanto, o trânsito continua parado, caótico, consumindo horas e horas de quem tem que se deslocar de um ponto a outro da cidade. Há quanto tempo é assim? Dentro do modelo atual há alguma perspectiva de se reverter este quadro? Não. As catracas são o grande símbolo da imobilidade de nossas cidades. Elas negam ao pobre, às classe populares, o direito de deslocarem-se livremente no espaço urbano. Além do mais, o preço das passagens é tão abusivo e a qualidade dos ônibus tão ruim, que o cidadão, muitas das vezes, se vê impelido a abandonar o transporte coletivo e fazer largo uso de seu automóvel particular, entupindo ainda mais as ruas e estrangulando de vez o trânsito já caduco. Não basta alargar avenidas, levantar e destruir viadutos, é necessário eliminar as catracas para se garantir um mínimo de mobilidade. Pelo direito à cidade, pelo direito de ir e vir, pela mobilidade urbana, por um mundo sem catracas, “TARIFA ZERO É MAIS”.



Marcos Vinícius.



Até entendo que um setor da classe médica brasileira, elitista, os grandes hospitais e as corporações ligadas à indústria da saúde posicionem-se contra a vinda de médicos cubanos para o país, pois esta política poderá afetar seus interesses corporativos e seus polpudos lucros e negócios. Principalmente, considerando-se que além dos serviços a serem prestados, eles trazem também uma nova concepção de saúde pública, onde o direito à vida sobrepõe-se à lógica perversa do capital. Já causa-me indignação e estranheza ver os pobres mortais das classes populares, historicamente oprimidos e excluídos do acesso aos mais elementares cuidados médico-hospitalares, fazerem coro a uma ideologia, que em última instância, condena-os ao sofrimento e à morte.



Marcos Vinícius.

Leitura Obrigatória: Holocausto Brasileiro, de Daniela Arbex



Por ter passado minha infância na então pacata cidade de Santos Dumont, por inúmeras vezes, ouvia as histórias que caracterizavam a vizinha cidade de Barbacena como a terra dos loucos. Esta imagem sempre esteve acompanhada das lembranças que temos de lá. Estas recordações são rodeadas de uma aura de mistérios. Quem seriam estes loucos? De onde vieram? Por que e como haviam chegado a este grau de loucura? Quais seriam os limites da loucura que levariam homens, mulheres e crianças ao encarceramento, em muitos dos casos, para o resto de suas vidas? Creio que estas questões façam parte do imaginário de muitos que por aquelas bandas viveram. Muitas destas questões foram contempladas no excelente trabalho jornalístico realizado por Daniela Arbex, em seu emocionante livro HOLOCAUSTO BRASILEIRO – GENOCÍDIO: 60 MIL MORTOS NO MAIOR HOSPÍCIO DO BRASIL, recém-lançado, pela editora Geração. Comprei-o assim que vi uma nota no Jornal. O trabalho é impressionante e revelador. Além de muito bem ilustrado, com imagens que nos cortam a alma, a história que vai se mostrando à nossa frente é algo que nem a mais criativa das imaginações teria como conceber. No terreno que fora confiscado, do delator da Inconfidência Mineira, Joaquim Silvério dos Reis, foi construído, no inicio do século XX, o Hospital Colônia. Para lá, durante décadas, milhares indivíduos, de várias partes do Brasil, eram levados, nos chamados “trens de doidos”, expressão imortalizada por João Guimarães Rosa em um de seus contos, muitas das vezes, por motivos fúteis. Era um gigantesco depósito humano, um enorme campo de concentração, onde, indesejáveis de toda ordem, sem diagnóstico de doença mental, “epiléticos, alcóolatras, homossexuais, prostitutas, meninas grávidas pelos patrões, mulheres confinadas pelo marido, moças que haviam perdido a virgindade antes do casamento” eram confinados e tinham o destino selado. Aquilo não era um centro de tratamento, mas um centro de contenção e extermínio. Segundo a autora, havia períodos, em que era registrada, uma média, de 17 mortos por dia, vítimas das mais variadas formas de violência que se possa conceber, como a fome, a exposição ao frio intenso da região, o descaso, negligência, torturas, lobotomias e eletrochoques. Havia dias em que era tão grande a descarga elétrica nos eletrochoques que a cidade ficava sem luz. Entre os anos de 1930 e 1980, teriam sido cerca de sessenta mil mortos. O livro nos permite perceber que expressões como “campos de concentração” e “genocídio” fazem parte de uma história muito próxima e recente, que muitos de nós, testemunhamos e não percebemos. Leitura obrigatória.



Marcos Vinícius.

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

O invento


O invento




As primeiras luzes do dia mal começavam a penetrar pelas frestas das cortinas e as cores do quarto ainda não haviam se definido de vez, quando os olhos de Daniel fixam-se firmemente em um ponto qualquer do teto. Não acordara por completo, mas mantém os olhos arregalados e assim permanece por alguns bons instantes. Um segundo despertar ocorre quando Aurora, com suas mãos macias e quentes, toca o seu peito. O contato com a companheira, desperta-o de vez. Já está acordado, algum pesadelo? Não és de acordar tão cedo, pergunta a mulher. Daniel permanece em silêncio. Ela se mexe na cama. Acho que são devaneios, responde. Estava aqui a pensar, nada importante. Vira-se para ela, alisa suas sobrancelhas finas e penteia com as mãos os cabelos desfeitos, desnudando-lhe o rosto.  A luz, em uma mínima fração de tempo, invade o quarto. Um feixe luminoso clareia-lhe a face e uma faísca salta dos seus olhos negros. Como é? Não vai me contar o que está a pensar? Sabe que o conheço, mais do que possa imaginar. Acordas-te diferente, disso bem pensei. Mas não faz mal, sei que ainda está a avaliar, pesar, comedir, e assim que esta ideia nova firmar-se nesta cabecinha, serei a primeira a saber da novidade. Não é sempre assim? Sabe, mulher, você me surpreende e com certeza, mais do eu posso surpreendê-la. Às vezes penso que poderia devastar meu pensamento se assim o quisesse. Você tem razão, algo novo está a perturbar-me os instintos, mas como bem disse, não é algo que já tenha tomado corpo ou que não demande ainda uma série de considerações e cálculos. Aurora fixa-o nos olhos, ele mantém-se inerte. Cuidado homem, ou estas pesquisas ainda vão te enlouquecer. Sabe-se lá o que te rouba os pensamentos. Mas seja lá como for, procure descansar mais um pouco. Não, desperto como estou, já não durmo mais. Vou é aproveitar a ocasião para usufruir um pouco mais deste dia ensolarado, deixar o carro na garagem e fazer uma caminhada até o trabalho, quem sabe bons ventos não refrescam a alma e consiga finalmente organizar melhor, sistematizar as ideias ainda desconexas que venho arrastando comigo. O escritório anda às turras com a demanda de trabalho, sabe como é, o mercado, a cada dia mais exigente, faz com que as pesquisas tenham que realizarem-se sempre mais velozes. Além do mais, preciso aquecer um pouco o sangue e oxigenar os pulmões, quem sabe o calor e um pouco mais de fôlego, me ajudem a desenrolar melhor, alguns fios que vão se enredando em minha mente. Nossa! Quanto mistério. Desenrola logo, então, esta história, pois já estou ficando curiosa. Não esquenta meu amor. Senta aqui à mesa, venha dividir este pão. A propósito, compartilhar o pão, não é o que, etimologicamente, caracteriza a palavra companheira? E aqui já tenho uma boa companheira, que sabe-se lá, quanto ainda tenhamos que dividir, compartilhar. Trocam um sorriso cúmplice. Sentam-se à mesa, ajeitam os pães, enchem as xícaras com o leite frio e ficam a entreolharem-se por alguns segundos. Ela quebra o silêncio. Hoje também saio mais cedo, provavelmente amanhã ou depois, já dê início ao trabalho de campo. Tenho apenas que fechar alguns pequenos detalhes finais do projeto, e daí, já posso colocar as mãos na massa. Estou empolgada, não é de hoje que esperava por isso. Irei fotografar principalmente nos horários em que a luz do sol me é mais favorável, seja pela manhã, mais cedo, ou mais pelo fim da tarde, quando as cores das coisas, dos objetos e das pessoas, tornam-se mais nítidas e definidas. Afinal, a maioria das imagens que irei capturar está à minha espera a céu aberto. A equipe é pequena e está bem integrada e a julgar pelos ânimos de todos, será um trabalho empolgante. Amo muito o que faço, assim como amo a você, meu querido. Poxa, ainda não havia me avisado que já não era mais prioridade. Ora, seu tolo, talvez as boas ideias não viessem ou vingassem não fosse minha inspiração maior, que é você. Os dois caem às gargalhadas e em seguida, após esticarem-se por sobre as cadeiras e debruçarem-se sobre a mesa, beijam-se ternamente. Após algumas trocas de afetos e declarações de amor, Daniel ajeita-se para sair. É o primeiro a deixar o apartamento.


Ao chegar à rua, Daniel é tomado de um sentimento ambíguo, por um lado, é sempre um pouco doloroso desgrudar-se de Aurora, companheira de primeira hora, pau pra toda obra, a mulher que nos últimos anos, tem deixado seus dias mais felizes, por outro lado, sente-se aliviado, por poder deixar agora, correrem soltas por seu pensamento, as ideias que vieram a roubar-lhe o sono. Havia quase quatro anos que dedicava-se aos laboratórios do Centro de Pesquisas Aplicadas, instituto de pesquisas, repleto de jovens cérebros, vindos de diversas partes do mundo. Era um dos depósitos de gênios que se espalham por vários pontos da capital. Daniel é dedicado, sempre fora muito estudioso e possui um talento nato para a ciência, é muito prático, e dotado de uma inteligência um pouco fora do comum. Os anos de convívio com seus colegas e superiores, lhe renderam algum prestígio no Centro, pois já comprovados sua determinação e entusiasmo, tornou-se um dos pesquisadores mais respeitados e carismáticos do local. Sempre demonstrou interesse e curiosidade por todas as pesquisas que ali se desenvolviam. Tinha influência na instituição e, não raro, fazia um papel de articulador entre os diversos setores que compunham a empresa. Possuía prestígio e quem o conhecia melhor, sabia que teria pela frente, um futuro promissor. Havia acumulado em seu currículo algumas histórias de sucesso, projetos, em que esteve à frente, e que já apresentavam resultados práticos e concretos, inclusive, parafernálias, dispositivos tecnológicos, com inserções nos mercados. Até avistar o Centro, Daniel caminhava sem pressa, soltava os braços, e levantava o rosto para cima, aproveitando um pouco mais, a luz do sol da manhã. Ao virar a última esquina, porém, o brilho e o reflexo das grandes placas de vidro do prédio em que trabalha, aceleram seus passos. Como um inseto em direção ao lúmen, adentra-se apressado pelos corredores do edifício. Como havia previsto, o breve banho de sol lhe fizera bem, sentia-se confiante, e algumas ideias dispersas, a princípio, desconexas, alinhavam-se em seu pensamento.


A fachada do edifício é toda coberta por grandes placas de vidro. Em alguns momentos do dia, dependendo do ângulo em que a luz do sol incide sobre a superfície lisa, torna-se o ponto mais luminoso da avenida e a claridade intensa, vez ou outra, chega a perturbar um ou outro transeunte, quando um feixe brilhoso atravessa suas retinas. O interior do Centro é muito maior do que pode imaginar quem o avista apenas pelo lado de fora. Assim que Daniel atravessa o longo corredor, que tem início na larga porta de entrada, um grande pátio abre-se à sua frente. É uma ampla área, recoberta de concreto e jardins, com alguns poucos bancos e mesas em sua parte central. O pátio é circundado por longos corredores repletos de portas e salas. É em uma destas salas, que passa a maior parte do seus dias. As portas são todas muito parecidas, e quem não está acostumado com o local poderia muito facilmente se confundir e acabar se perdendo, não fossem os códigos gravados à altura dos olhos. Cada porta possui um código de identificação, era a única diferença entre elas. A sala de Daniel fica mais ao fundo, no corredor à direita da entrada do edifício. Até chegar nela, atravessa mais de dez outras portas e salas. Raramente faz todo o percurso, sem antes encontrar um colega ou outro, seja para uma breve saudação, seja para uma conversa um pouco mais demorada, sobre alguma demanda do trabalho. Na maioria das vezes, sempre há alguma informação para passar ou receber, algum documento, relatório, dados novos, correspondências, antes que pudesse chegar até o seu destino, uma sala ampla, repleta de armários, mesas, computadores, frascos, tubos de ensaio, réguas, equipamentos, montes de papéis, cartazes e livros, naquele ambiente que poderia ser denominado tanto como um escritório, uma sala de pesquisas ou um laboratório. Ao fundo, uma grande janela permitia uma privilegiada visão da cidade.


Mais do que em qualquer outro dia, Daniel apresentava certa ansiedade. Não rendeu muita conversa com os interlocutores que o abordaram pelo caminho. Rapidamente entrou e fechou-se na sala. Foi até à mesa, releu algumas folhas que havia deixado sob um volumoso manual, fitou-as pensativo, apertou o queixo, levou a mão até os cabelos, despenteando-se, e em seguida, pegou o telefone utilizado para as ligações internas e transmitiu alguns poucos recados. Levantou-se novamente e foi até a porta conferir se estava, de fato, trancado ali dentro. Vai até o armário que tinha à frente, retira de lá três livros técnicos e, de volta à mesa, abre todos eles ao mesmo tempo. Vasculha-os, um a um. Às vezes lê tão rapidamente, com tanta pressa, que se tem a impressão que a visão não dá conta de acompanhar a velocidade do pensamento. Noutras vezes, pousa os dedos sobre uma frase, palavra ou algoritmo, os dedos roçam a linhas, apertam-nas, como se dali tivessem que extrair algo, como se não houvesse o tempo, como se não houvesse uma página após a outra. Pega o lápis e começa a rascunhar uma folha branca. De início, as mãos estão firmes, seguras, convictas, determinadas e confiantes, e o papel vai se enchendo - riscos, rabiscos, garatujas, vão se interpondo, a palavras, códigos, números e fórmulas. Enche uma folha, outra, para, olha para um lado, para o outro, mantém o grafite preso entre os dedos, que não arrisca a mover-se. Põe uma força tal naquele toco de madeira, que a folha fica prestes a romper-se, furar-se. Em seguida, o grafite volta a rascunhar o papel, agora, porém, as mãos perderam a firmeza anterior, estão trêmulas, mas a lida continua, e por quase toda a manhã, uma pilha de folhas são destinadas ao frenético exercício. Após horas de leituras, consultas e conjecturas, entre um manual e outro, levanta-se e vai até a janela e ali permanece por alguns minutos. Está inerte e tem os olhos fixos no vácuo da paisagem. Parece mirar o invisível, nem um ponto daquela cidade movimentada, colorida e barulhenta, consegue quebrar a rigidez do semblante, a postura pétrea. Num salto, volta-se para a mesa, apanha, apressado, a única folha branca que ainda restava, e com força descomunal, mas com as mãos mais trêmulas que nunca, dá os rabiscos finais. Logo após cravar um ponto desalinhado no papel, dá um vigoroso soco na mesa e outra vez, levanta-se. Vai até o espelho pendurado na parede, mira-se, e abre um largo sorriso. Estava indisfarçavelmente abatido.


Fica a observar-se no espelho, encarando demoradamente a si próprio, cada detalhe do rosto, do suave sulco que marca a pele da face, aos pelos incipientes que começam a despontar sob o queixo. Procura em sua imagem refletida alguma resposta ao olhar de indagação, que com sutil insistência, seu eu real lhe dirigia. Alguma coisa havia de diferente naqueles gestos. Daniel sabia que a partir dali, jamais seria o mesmo. Uma desconfortável euforia toma conta de si, e volta rapidamente em direção à mesa com os papéis. Dá mais uma olhadela nos manuais. Em seguida, apanha algumas das folhas rabiscadas e alinha-as diante do computador. A luz branca que emana da grande tela da máquina deixa seu rosto ainda mais pálido. Os olhos lampejam. Observa cinco ou seis folhas de uma só vez. Abre um programa de sua área de trabalho, e vai cuidadosamente, atentamente, com uma boa dose de perplexidade, como se o mundo, naquele momento, se resumisse apenas as coisas mais imediatas que lhe circundavam, transcrevendo números, códigos e equações, que iam se encaixando em lacunas, espaços em branco, do complexo software que reluzia na tela. Dá alguns cliques, comandos, faz, desfaz, uma operação, outra, gruda os olhos no monitor, e bruscamente, afasta-se, estupefato. Arregala os olhos, diante do que vai revelando-se à frente. Suas mãos soltam o teclado e enfiam-se pela base do couro cabeludo, deixando-o completamente despenteado. Finalmente conseguira. Os cálculos fecharam. Os números estavam corretos. Eureca. Tinha diante de si, os princípios teóricos, os elementos, que lhe permitiriam construir a primeira máquina de teletransporte do mundo. Claro, não iria ainda, em fase inicial, transportar pessoas ou seres vivos, mas era muito provável, que qualquer objeto, coisa inanimada, qualquer bem material, poderia correr o planeta, sem qualquer tipo de fronteira física. Aquilo seria muito mais do que todas as suas pesquisas, descobertas e trabalhos anteriores. Os princípios de uma verdadeira revolução perfilavam-se diante de si. Ofuscava-se agora a pesquisa que há anos vinha desenvolvendo sobre os efeitos curativos de um óleo extraído de espécie de rã, próxima da extinção. Seu novo invento iria incrementar o mundo dos negócios e claro, deixá-lo-ia rico.  Sentia-se recompensado, afinal, já faz um bom tempo, que vinha se dedicando, debruçando-se sofregamente na tentativa de encontrar os meios e caminhos que lhe permitissem o intento.


Afasta a cadeira, estica-se no encosto, e deixa os braços soltos, pendentes, tentando livrar-se da tensão que carrega nos ombros e da euforia e ansiedade, que fazem disparar as batidas cardíacas. Olha para cima, e em seguida, fecha os olhos. Uma série de pensamentos atabalhoados invade seu cérebro. Imagens, sombras, possibilidades e hipóteses, desfilam em sua tumultuada mente. Um mundo novo, onde a matéria pudesse ser teletransportada, de qualquer parte para qualquer lugar. Uma pane completa para as agências de correios, as empresas transportadoras, os carregamentos, os veículos de carga, os trens e caminhões, tudo cairia na obsolescência. Uma mercadoria criada e fabricada do outro lado do mundo estaria em suas mãos em questão de segundos. Montanhas de dinheiro se acumulariam em sua conta bancária, afinal poucas coisas tem tanto valor comercial quanto aquelas que possibilitam a rapidez e a velocidade. Teria fama e prestígio. Aurora morreria de orgulhos. Era jovem, e sabem-se lá quantas portas e oportunidades ainda iriam se abrir pela frente em sua longa e exitosa existência. Um sinal, um pequeno bip emitido pelo computador, faz Daniel despertar de seus devaneios. Abre os olhos de uma só vez, e volta-se, num sobressalto, para frente da máquina, como se ele mesmo, fosse a primeira cobaia de seu mais novo brinquedo, como se ele próprio houvesse sido teletransportado, trazido de seus longínquos  pensamentos. Um ícone vermelho põe-se a piscar no canto direito da tela. Daniel esbraveja. Não é possível. Raios. Não há mesmo perfeição neste mundo. Problemas. A bem da verdade, nada que impedisse o funcionamento da nova máquina, o teletransporte não estaria ameaçado, mas havia um custo ainda não calculado. Sim, o invento apresentava efeitos colaterais.


Como já vinha se tornando costume, chegou novamente tarde em casa. Não conseguiu desgrudar-se dos papéis e anotações, enquanto não se lembrou de que já era hora do Centro começar a esvaziar-se e que Aurora, aquela altura, já estava a preocupar-se com ele. De fato, estes atrasos, sempre a incomodaram um pouco. Mas não era lá de criar casos, pois sabia da dedicação do marido, cuja carreira profissional, vinha se tornando, a olhos vistos, cada dia mais promissora. Seus gestos, porém, não lhe permitiam esconder o desconforto. Acomodada no sofá, os dedos dobravam e desdobravam a ponta inferior da bata, como se estivesse a bordar pensamentos. De súbito, Daniel aparece à porta, aproxima-se, beija seus lábios, e afagam-se ternamente. Ela sorri. Ele rompe o silêncio e diz, As coisas agora começam a caminhar. Mas não é o que me parece. Pela cara de assustado, aposto como o caminho que tens a percorrer ainda é longo. É árduo, meu amor? Ora, meu bem, mesmo que fosse árduo o caminho, tu me darias, como bem sei, o conforto necessário. Deixe-me tomar um banho, pois enquanto não o fizer, não penso em outra coisa. Daniel regula a temperatura do chuveiro e opta por um banho mais quente. Uma inigualável sensação de bem estar toma conta de seu corpo, quando a água lhe escorre pela pele, caindo em cascatas, sobre os ombros doloridos. O contato da água com os músculos endurecidos das costas causa-lhe uma rara sensação de alívio. Terminado o banho, veste uma roupa larga e confortável, destas de se usar em casa, ajeita-se apressadamente e volta para a sala onde Aurora o aguarda. Deita-se no sofá, e repousa a cabeça no colo quente que lhe oferecia a mulher. Ela, com as mãos leves e perfumadas, roça a fronte do companheiro e lhe acaricia os cabelos.


Ao contrário de Aurora, que tem o hábito que falar sempre sobre seu trabalho, Daniel é um pouco mais reservado, não que não seja de comentários, mas prefere falar dos projetos e pesquisas, quando estes já estão em fase adiantada ou já apresentam uma viabilidade concreta. É que muitas das vezes, envolve-se em pesquisas que dão em nada, becos sem saída, ideias geniais que tem que ser engavetadas, pois as condições objetivas da ciência contemporânea tornam-nas irrealizáveis. Como muitas delas traduzem-se em frustrações, prefere guardá-las para si e poupar a mulher de histórias que não se concluem satisfatoriamente. Contar para a mulher detalhes de projetos que lhe fritam o cérebro é algo que aumenta suas angústias. É daqueles que consideram que determinados problemas, incógnitas, relacionados ao dia a dia do trabalho, por lá devem permanecer, até que venha o dia seguinte, para que possam usufruir de um mínimo de descanso e pensarem melhor quando realmente tiverem que fazê-lo. O aconchego da casa e a proximidade de Aurora são momentos de descanso e prazer necessários de serem preservados do stress que é seu cotidiano naquele tumultuado Centro de Pesquisas. Claro que isto não é regra pétrea, e em muitos momentos, falar, expor-se, desabafar, pode ser o melhor remédio.


Aurora estava cheia de entusiasmos. O trabalho que agora começava a realizar era o que há muito tempo planejava fazer. Sempre fora encantada pela arte da fotografia e as causas sociais sempre lhe despertaram a simpatia e a sensibilidade. E na maioria das vezes, fotografar gente, humanos, sempre lhe proporcionou mais satisfação do que fotografar paisagens naturais, ou qualquer outra coisa. Desta vez, teria crianças como foco. Um registro fotográfico das crianças nas cidades, e como a maioria delas vive em áreas degradadas, de risco, na periferia das ilhas da fartura, nos subúrbios, nas ruas, nas terras da escassez, era para estas regiões que Aurora teria que deslocar-se pelos próximos meses. Suas lentes iriam mapear olhares, gestos, indumentárias, brincadeiras e trabalho, os sonhos e o choro, criar um testemunho da infância nos centros urbanos, na contemporaneidade. Pensar ou falar sobre isto deixava-a eufórica. Seus dois olhos negros iluminados, onde a fotografia se constituía, antes que pudesse ser finalizada, congelada, por sua câmera possante e robusta, iluminavam-se. Sabe o que muito me estimula neste novo projeto, Daniel? É que todas as crianças que fotografo saem lindas. É curioso isto. Às vezes, pode ser que peco no ângulo, no foco, na abordagem, mas regra geral, se a câmera está bem posicionada, a fotografia é ganha, o que não é sempre que ocorre quando o objeto a ser fotografado são os adultos. Estes, muitas das vezes, trazem uma fisionomia com feridas irremediáveis, cunhadas pelo tempo, pela miséria ou arrogância, traços da desilusão, belezas irrecuperáveis, almas ressecadas, ao contrário, as crianças, mesmo que sofridas, carentes, não estão prontas, são sementes a aflorar, larvas que ainda não viraram borboletas, não adquiriram asas, ainda não alçaram vôo. Interessantes como seus cabelos ao vento podem constituir-se em retratos do futuro. Enquanto os olhos dos velhos, às vezes, retratam o cansaço do não ter sido, os olhos luminosos das crianças são as fagulhas do vir a ser. As imagens delas são registros de nossa perpetuação enquanto espécie, o segredo dos sonhos ainda não sonhados, a prova de que a humanidade renova-se a cada dia, mesmo confrontando-se com o impossível e o improvável. O retrato do eterno recomeço, de nossa eternidade provisória. O retrato de nossa persistência ousada e rebelde. O retrato da vida se reinventando, mesmo quando parece não haver rotas possíveis. Poxa Aurora, vejo que este trabalho realmente lhe rende inspirações. O que estás a fazer de fato? Um ensaio fotográfico ou um registro filosófico? Ela dá-lhe um largo sorriso e pipoca seu rosto de beijos. Sim, meu amor. Estou empolgada com esta oportunidade, é um grande desafio. Além do que, não é em todas as ocasiões da vida que podemos nos dedicar a um trabalho realmente apaixonante. A fotografia apresenta uma curiosa diferença em relação à pintura. O pintor, diante da tela, dedica-se a transpor de sua imaginação, da abstração de seu pensamento, utilizando-se da habilidade e talento de suas mãos e da acuidade do seu olhar, uma paisagem qualquer, fixando-a, através de sucessivas pinceladas e misturas de cores e tintas. O fotógrafo encontra a imagem já pronta, à sua espera, que mesmo em movimento, lhe faz pose permanente. Cabe a ele, dar o foco preciso, o ângulo mais vibrante, a aproximação necessária. É uma ciência, mas também é uma arte. Mais que a imaginação do pintor, que muitas das vezes, leva à tela, o que não está vendo, mas imaginando apenas, é necessário o olhar de águia, perscrutador, que mesmo ao longe, atem-se aos detalhes, o momento exato, o segundo em que o rápido clique, pode encher-se de significados. Além do mais, os equipamentos que usamos são de última geração e fixam as imagens, os instantes, como se fosse mágica. Deixam-me de queixo caído. Hoje, ao visitar a vila onde faremos as primeiras imagens, tive a oportunidade, sabe como é, não pude resistir, de fotografar algumas meninas, e estou boquiaberta com o resultado destes primeiros ensaios. Veja que imagens fortes. Aurora afasta-se um pouco de Daniel, estica-se sobre o sofá, e pega a câmera fotográfica que estava sobre a mesinha ao lado. Rapidamente, solta-a da bolsinha protetora, aperta-lhe uns botões e luzes coloridas acendem-se pelos cantos da máquina. Em instantes as fotografias aparecem. Ela tinha razão. Eram imagens simples, de crianças pobres, sem qualquer sofisticação ou recurso de edição, mas carregavam uma expressividade incomparável. Destacavam-se duas imagens em especial, a de um garoto pré-adolescente, sisudo, sem sorriso, e uma garotinha mais jovem, que à primeira vista, trazia, no conjunto dos seus traços, algum tipo de encantamento. Aurora detém-se mais uma vez a contemplar as feições daquela menina. Intriga-se. Sentia os olhos da garotinha penetrarem sua alma, seus poros, invadir-lhe a existência. Por instantes, seria impossível desgrudar-se daquela miragem, como havia conseguido congelar um momento assim? A garota, em uma única fração de segundos, parecia interrogar-lhe com milhares de questões, todas que talvez haja no mundo, e ao mesmo tempo, apresentava claros sinais de uma sabedoria precoce, sutilmente revelada, naquele momento exato, em que o clique foi disparado. Aurora detém-se naquela imagem, hipnotizada. Daniel observa-a admirado. Impressionante, ela balbucia. Vira-se de uma vez para ele, e pergunta, Viu como é mágico o meu clique? A garota, de dentro da imagem congelada, continua a interrogá-la e continua a sorrir. Um calafrio percorre todo o corpo de Aurora, da ponta dos pés ao último fio de cabelo. Ela estremece e sacode-se inteira. A garota tem os cabelos pretos, longos e desarranjados, o sorriso espontâneo e um gesto expressivo, interativo, constituem-se em desafios eternos a qualquer observador. A blusa clara, com a gola um pouco tombada de lado, contrasta com o fundo alaranjado de tijolos de uma parede sem reboco. O jogo de luzes ficara perfeito e as cores tinham uma nitidez que impressionava. Em uma das mãos, a menina segura com firmeza, uma pequena boneca velha, assim como ela, um pouco desgrenhada. Daniel mira a fotografia, observa atentamente cada movimento de sua companheira e mantém-se calado.


 Como é homem? Não vai dizer coisa alguma? Daniel vira-se no sofá, volta-se para ela e ainda deitado em seu colo, sente uma suave fragrância de flores invadir suas narinas. Corre a mão por sob o vestido e acaricia lentamente suas pernas, que se soltam às carícias. Beijam-se voluptuosamente. Aurora devolve a câmera fotográfica ao seu local de origem, a mesinha ao lado, e entrega-se aos desejos, os seus próprios e os de seu companheiro. Os dois entrelaçam-se ali mesmo, entre o sofá e o tapete, atirando-se aos jogos da sedução e do amor. Após esfregarem-se a contento, os corpos trêmulos, com o suor e o gozo ainda a escorrer-lhes, soltam-se sobre os pelos macios do tapete, entreolham-se e trocam um último e longo beijo. Aurora enfim, roça os dedos sobre os lábios de Daniel e declara: Eu o amo. Ele sorri com entusiasmo e cumplicidade e dá-lhe um caloroso abraço. Após vestirem-se, Daniel volta ao sofá e vira-se para Aurora. Meu amor, quero lhe contar. Bem sabes que não gosto de meias surpresas, sempre fui mais às surpresas inteiras, completas, mas seja já como for, lá vai. Como você mesma já vinha percebendo, por estes dias, o trabalho lá no Centro, vem me trazendo mais preocupações do que em qualquer outra ocasião. Sabe as pesquisas que venho desenvolvendo sobre a tecnologia de teletransporte? Ela encara-o curiosa. Sim, não foram poucas as noites, em que o vi debruçado sobre o assunto. Pois é, querida. Os esforços não foram em vão. Encontrei um caminho. O quê? Ela indaga assustada. Isto mesmo. Encontrei um caminho. Hoje pela manhã, consegui concluir um cálculo, fechar as contas, que em minha cabeça, quando comecei a pesquisa e o trabalho, não seriam mais que delírio ou fantasia. Qual não foi minha surpresa. Posso lhe dizer agora, com bastante margem de segurança, que o invento tornou-se possível. Claro, o projeto ainda não saiu do papel ou do meu computador, mas o princípio teórico foi construído. Em poucos meses, com o fechamento de um ou outro detalhe, poderemos enfim, vermos a parafernália pronta. O meu mais nobre invento. O mundo inteiro voltará seus olhos para a máquina, que eu, estou a dar-lhe de presente. A história deverá reservar-me uma de suas páginas. Todos os elementos, todas as condições objetivas estão dadas. Resta agora acionar o Departamento das Execuções, para que possamos, enfim, viabilizar o novo equipamento. A partir do momento, em que a coisa entrar no mercado, as vendas tiverem início, será totalmente imprevisível o rumo de nossas vidas. Há uma chance considerável de acumularmos alguma fortuna. Na verdade, o mundo ganhou sim um novo presente, mas terá que pagar por ele. E como bem sabemos, estas novas tecnologias, quando nascem, tem altíssima cotação na economia. Nunca estivemos tão próximos de ficarmos ricos. Aurora mantém-se assustada. Que cara é esta, meu amor? Não parece alegrar-se com a notícia. Os inventos e a tecnologia são obras humanas. O que quis dizer agora há pouco, quando afirmou que ainda não tinha revelado sua mais nova e grandiosa ideia pois não gostava das meias surpresas? Ah, sim, sabe o que é? Para te ser muito sincero, é o que mais me preocupa. Acho que não há neste mundo o que funcione a perfeição. Como assim, Daniel? Após constatar a viabilidade do invento, os cálculos fecharem,  e ter a certeza que a construção da máquina seria plenamente possível, detectei por fim, um grave problema técnico. O equipamento poderá transportar qualquer matéria inorgânica de um ponto a outro do planeta, mas há um problema de funcionamento, quando o objeto a ser transportado ultrapassar determinado tamanho. Objetos acima de uma determinada altura ou peso, ao serem teletransportados,  poderão consumir um porção considerável de energia, em oxigênio, de qualquer parte do planeta, não sendo possível no entanto, medir essa massa perdida, ou onde o fenômeno poderá ocorrer. Meu amor, poderia falar um pouco mais claro? Na prática, o que isto significa? Suponhamos que eu queira teletransportar esta máquina fotográfica aqui, para o outro lado do mundo. Se a operação for bem sucedida e a máquina de fato, realizar a tal televiagem, que tipo de efeito colateral isto poderia ter? Olha querida, a câmera é um objeto relativamente pequeno, e efeitos colaterais nesta proporção, ainda não consegui medir, mensurar. Mas para dizer-te com certeza, se ao invés de transportarmos a câmera, transportássemos a mesa, onde ela se encontra, aí teríamos uma perda em massa de oxigênio, em algum canto da Terra, ainda completamente imprevisível quanto à quantidade ou o local da ocorrência. E o que ocorreria se este fenômeno da massa de oxigênio perdida viesse a ocorrer em uma cidade densamente povoada? Daniel engasga e enrubesce. Sabe Aurora, a ciência não tem resposta para tudo.


Passam-se alguns meses. Aurora estava em casa sozinha, aguardando aflita a hora em que o companheiro iria aparecer na televisão. Daniel era daqueles pesquisadores determinados e não perdeu tempo em colocar em prática sua obstinada ideia. O Centro de Pesquisas agora não sai do noticiário, e nos últimos dias, não se tem falado sobre outra coisa. A imprensa em geral, toda a população quer conhecer a tal novidade. Empresários faziam encomendas, antes mesmo que o primeiro teletransporte fosse testado. E o povo já se perguntava quando é que humanos também poderiam ser transportados. Seria um dia especial, o primeiro teste seria um evento público, televisionado ao vivo, transmissão em tempo real, para que o mundo pudesse testemunhar o ápice do desenvolvimento da inteligência e da sabedoria humana. A cada dia eram maiores os limites e fronteiras derrubadas pela ciência e pelos mercados. Daniel seria a estrela da noite. Aurora se recusara a fotografar o evento diante da insistência de Daniel em tocar seu projeto sabendo dos prováveis inconvenientes e guardar segredo sobre eles. Está na hora. Aurora mal consegue disfarçar a inquietação. As mãos, suando frias, quase escorregam sobre o botão do televisor. O evento seria pontual. Assim que liga o aparelho, tem início a transmissão da solenidade. Daniel aparece sob as câmeras, estava radiante. Aurora angustiava-se e tinha os olhos fundos. Após os discursos, o desfile de autoridades, empresários, banqueiros e políticos, com toda a pompa que a ocasião requer, é chegado o tão esperado momento. Finalmente, era hora da máquina colocar-se a descoberto e ser acionado o botão. Os organizadores do evento haviam decidido que o primeiro objeto a ser teletransportado seria um automóvel, para mostrar à humanidade inteira, como o que ontem era o símbolo da velocidade, tornou-se obsoleto diante da genialidade infinita da espécie. As rodas, que sempre proporcionaram grande mobilidade para o homem, agora eram um nada, diante da potência que tem o novo equipamento, em transportar coisas de um canto a outro da Terra, em questão de segundos. O Presidente posiciona-se para apertar o botão. Todos têm os olhos arregalados. Do outro lado do mundo, outra multidão aglomera-se ante as câmeras, diante de um grande palco, que serviria de pouso para o automóvel, em seu ponto de chegada. Tem início a contagem regressiva. Pronto. Botão apertado. O planeta estoura em foguetes, gritos, cantorias, louvações, clamores, todos estão a festejar o sucesso do invento. Como se de magia se tratasse, o automóvel, mantendo toda a sua perfeição e integridade, viaja entre os hemisférios, deixando uma humanidade inteira boquiaberta, sem entender por completo o que acabara de ver. Era incrível. A multidão estava loucamente admirada. Daniel havia se transformado em herói. Aurora é tomada de grande ansiedade. Num ímpeto, desliga a televisão e apaga as luzes da casa, tenta relaxar um pouco, reduzir a tensão, mas é tomada de tremores e calafrios. Deita-se e mantém-se imóvel na cama por cerca de duas horas até acalmar-se. Em seguida, levanta-se, vai até a geladeira, e toma um copo de leite. Volta a ligar a televisão. Não se falava mais na festa de consagração do companheiro. Uma grande tragédia acabara de ocorrer em um país distante. Equipes de técnicos, especialistas, repórteres, corriam até o local, para entender o que se passara. Imagens começavam a chegar do lugar. Não havia ainda uma explicação para o fenômeno. O mundo estava atônito. Dezenas de pessoas haviam morrido subitamente de forma extremamente misteriosa, em uma pequena cidade nas montanhas. As vítimas morriam asfixiadas, como que estranguladas por uma grande mão invisível. Uma sucessão de imagens do local desfila sob os olhos aterrorizados de Aurora. Uma cena leva-a a apertar o botão do aparelho, congelando-a na tela. Era uma pequena garota, franzina, que tinha o cabelo despenteado, e morrera, com uma boneca velha, presa em uma das mãos. Aurora enxuga uma lágrima volumosa que salga seus lábios, vai até o quarto, coloca algumas peças de roupa na bolsa, pega a máquina fotográfica e sai pela porta. Daniel nunca mais a veria.





Marcos Vinícius.

terça-feira, 10 de setembro de 2013




Uma amiga me perguntou por que perder tempo inventando histórias, que provavelmente, sequer serão lidas, escrevendo contos, enveredando-se pelas agruras de personagens imaginários? A pergunta, confesso, pegou-me de surpresa. O que poderia responder? Talvez, fosse coisa de gente descrente, que na ausência da alma ou de qualquer perspectiva de salvação, quisesse materializar alguma ideia ou pensamento. Coisa de alguém com mania de grandeza, que se acha no direito de reinventar o tempo ou criar outras humanidades. Mas não. Quando criança visitava com frequência as casas das minhas duas avós. Nos fundos dos terreiros de cada uma delas, passava um rio. Não era ainda um rio degradado e fétido como os de nossos dias. Era bonito e curioso de se ver. Muitas das vezes, ficava um bom tempo observando suas águas e imaginando o longo percurso que haviam percorrido e que ainda teriam pela frente. Terras distantes e desconhecidas, numa época em que mal conhecia as dimensões do mundo. Um mistério completo. Desde estes tempos primeiros, sempre me encantou a ideia de colocar mensagens em garrafas fechadas e atirá-las ao rio. Onde chegariam? Jamais saberia. Mas a obsessão em lançá-las, sempre me perseguiu. Talvez por isto mantenha esta persistência em inventar pequenas histórias, que talvez, jamais sejam lidas, e atirá-las ao desconhecido.



Marcos Vinicius.

sábado, 27 de julho de 2013



Assim como há ateus, apartidários, anti-isto, anti-aquilo-outro, eu sou anti-futebol. Sabe aquele sujeito que já nasceu detestando o futebol? Pois é. Sou eu. Nunca me interessei por campeonatos, ligas, times, torcidas, jogos ou qualquer coisa do gênero. Ah... Mas nem a Copa do Mundo, com o Brasil na final? Não. O melhor a fazer neste dia é aproveitar as ruas vazias, andar de bicicleta, sentar no meio da avenida, pular, cantar, mas ficar sentado assistindo a partida? Isto nunca. E muito provavelmente, no dia estarei torcendo pelo país adversário, seja ele qual for. Não suporto a pergunta: Para que time você torce? Atlético ou Cruzeiro? Para nenhum oras, torço contra os dois e qualquer outro que esteja em campo. Para muitos, é um sinal claro e evidente de alguma anormalidade. Há anos, um amigo me sugeriu que respondesse que torcia pelo América, porque era um time, à época, muito pouco em evidência, e aí teria paz, e assim o fiz por muito tempo, até que um dia o time andou classificando-se em campeonatos. Sempre havia quem comentasse. E o seu América hein? Desesperado, então passei a dizer... Enganei a todos vocês, nunca torci para este time ou para qualquer outro, detesto futebol, sou anti-futebol, não me encham a paciência. Não são todos os dias em que estamos com sangue de barata. Mas desde ontem, fui colocado sob tortura intensiva. Não sei que diabo de campeonato é este que ocorreu na cidade ontem, e também não faço a menor questão de saber, onde o Atlético foi o vencedor, quando acabou a minha paz, o meu sossego. A cidade transformou-se em um grande pandemônio. Desde então, buzinas, gritos histéricos e estridentes soam por todos os lados, cortando a madrugada adentro. Vizinhos berrando como estivessem à morte, estouros, bombas e rojões, como se já não bastassem as bombas de gás lacrimogêneo, que agora conhecemos tão bem, lançados a torto e à direita, pela polícia durante todo o mês de junho. Imagina que incrível seria se o brasileiro mobilizasse toda esta força e energia para manifestar-se por um país mais justo e igualitário. Hoje cedo, já pela manhã, o buzinaço continuava, hinos do clube ressoavam em todos os automóveis, parcela da população mantém-se hipnotizada. Um inferno. A televisão, o rádio, as ruas, o facebook, em todos os cantos, não se fala outra coisa. Acabo de ver que a Praça Sete está tomada de torcedores fanáticos, com suas bandeiras em preto e branco, descoloridas, festejando uma vitória, que em última instância, não é sua. Quase enlouqueço. Ainda agora, quando escrevo este desabafo, um alto falante potente, estrondoso, com a mesma gritaria, acaba de cruzar a minha rua. Por fim, cansado, já irritado com o ruído que não cessa nunca, resolvo ir até um restaurante mais isolado, onde talvez pudesse livrar-me deste vandalismo futebolístico. Andei quilômetros, consegui enfim, um canto sossegado, vazio, um restaurante, onde além de mim, apenas um senhor tomava sua cerveja na mesa ao lado, quieto e reflexivo. Maravilha, era tudo o que eu queria. Finalmente, relaxei, e descontraído e feliz, aparentemente livre da euforia infernal, sem perceber, depois de pedir o almoço para a garçonete, sorri para o senhor, meu vizinho de mesa, pois a tranquilidade voltara a reinar e eu respirava aliviado. Foi a senha. Ele se levantou, saiu de onde estava, e do alto da sua experiência, já com mais de cinquenta anos de idade, aproximou-se para me contar, enquanto eu almoçava, sua longa história de torcedor, para enfim, tentar me convencer do quanto estava feliz e o do dom que tem o futebol de aproximar as pessoas.


Marcos Vinícius.

terça-feira, 23 de julho de 2013

Para onde?



Há quem diga que o século XXI e o Terceiro Milênio só se iniciaram de fato, do ponto de vista dos tempos históricos, com os ataques à Nova York em 2001. Sim, quando as explosões e as mortes ocorreram em solo americano, o mundo assistiu estupefato ao que poderíamos chamar de sinal dos novos tempos. Todos ficaram surpresos, atônitos, com um ataque que, gostemos ou não, foi espetacular. Não há quem se esqueça daquelas trágicas imagens. Sim, uma nova era se descortinava. Outra vez, a história nos pega de surpresa. Quem poderia imaginar, até bem pouco tempo atrás, que as massas se levantariam, como vem ocorrendo em todo o planeta? Milhões de homens e mulheres ocupando ruas, avenidas, praças e palácios, manifestando-se contra os desmandos dos poderes, lutando contra a opressão imposta pelos paladinos da chamada democracia, que mais não é que um desgastado jogo de cena. O modelo econômico que hoje nos rege levou suas contradições intrínsecas à radicalidade. O mundo nunca foi tão injusto e tão desigual. O fosso entre os de cima e os de baixo nunca foi tão profundo e as diferenças nunca foram tão colossais. Os chamados noventa e nove por cento resolveram gritar, o povo indignou-se, o gigante acordou. O sistema, ao levar suas contradições aos extremos, escancarou-se. O rei ficou nu. As mídias digitais, as novas tecnologias de informação e comunicação, tornaram o mundo menor, mais auto-perceptível, com fronteiras mais porosas, possibilitando não apenas a troca de informações, mas também de ideias e sensações. Em todos os lugares, o povo se levantou. Nos países árabes, em toda a Europa. Os estudantes chilenos quase reinventaram a política, onde parecia não mais haver alternativas. O Brasil convulsionou-se. Povos de todas as cores e nomes, num turbilhão de vozes e cantos em cada canto do planeta. Trabalhadores, estudantes, desempregados, vítimas sociais, Anonymus, Black Blocks, explorados e excluídos de toda ordem. E agora? Até a pouco tempo atrás, imaginávamos, que caso houvesse uma revolução popular um dia, esta teria à frente algum partido político, ou algo do gênero, mas hoje, não é bem isto o que vem dizendo uma parcela significativa de jovens que ocupam as ruas. Surge a ideia da horizontalidade. Referências à organização partidária, muitas das vezes, podem ser alvo de hostilidades. O que fazer? Que caminhos devemos trilhar para que o potencial e o sangue das ruas não seja desperdiçado e que possam levar a humanidade à um salto de qualidade no sentido da justiça social, distribuição de renda, uma democracia real e à um mundo, como diriam os zapatistas, “onde caibam vários outros mundos”? Se não quisermos desperdiçar esta grande oportunidade histórica, a grande porta que se apresenta aberta, teremos que pensar seriamente nas formas de organização e formação popular, mantermos viva a chama, para que tenhamos motivos para celebrar, agora sim, uma triunfal entrada no Terceiro Milênio.

Marcos Vinícius.

segunda-feira, 15 de julho de 2013

O achado

O achado



 Alice tamborilava seus dedos sobre a mesa, assim que terminou o último horário de aula antes do recreio. Assim que o sinal soou, as colegas correram para o pátio enquanto ela ficava ali ainda a pensar sobre o que o professor acabara de dizer. Naquele instante, não possuía pressa. A mão avançou sobre o lápis, abriu uma folha branca no final do caderno, e pôs-se a arriscar alguns versos. Imediatamente seus dedos corriam ligeiros sobre o papel, e uma estrutura modelada de palavras, em grafite, tomava forma, enquanto Alice repetia-as em voz alta para si mesma, para que pudesse perceber melhor sua sonoridade. Ainda criança, os versos já lhe encantavam. Escreveu uma estrofe atrás da outra, e elas lhe saíam espontâneas, repentinas, com pressa de chegar, aparentemente já prontas dentro da autora, que mais não fazia do que registrá-las no papel. Lia outra vez, e gostava do que ouvia. Em poucos minutos, o texto ficara pronto. Arranca a folha do caderno, dobra-a e a enfia no bolso. Não era para ficar ali exposta sobre a carteira à vista de algum colega mais curioso. Era uma aluna aplicada, gostava das aulas de literatura, ciências e geografia. Não apenas por haver ali os professores de sua preferência, mas porque eram as matérias que mais lhe traziam admiração. Gostava de ler os poetas e vibrava ao descobrir quão grande era o mundo, com suas ilhas, continentes, rios, oceanos e estrelas, ah, como amava admirar as estrelas. Como outras garotas da sua idade, onde o brilho das cidades e metrópoles ainda não as embaçara de vez, e podiam sempre mirá-las, viam nelas sinais dos amores prometidos, das paixões que ainda desfrutariam e das fortunas que lhes proveriam o caminho. Nas aulas de ciências, maravilhava-se com a grande diversidade da vida, que se espalhava pelo mundo e pelos tempos afora. Vivia distante da cidade em um pequeno povoado, e via nas leituras, mesmo ainda em tenra idade, uma grande janela para os lugares e épocas onde nunca pudera ir. Era sonhadora, generosa e tinha planos. Queria tornar-se uma grande cientista, não apenas para desvendar os grandes mistérios do universo, que os homens ainda não conseguiram decifrar, como usar seus conhecimentos para melhorar o mundo e salvar as pessoas. Era sincera em seus sentimentos e convicções e, além do mais, achava-se apaixonada. Não era um sentimento que já havia experimentado, não naquela intensidade. Alguns garotos já lhe despertaram a atenção, achara-os bonitos e carismáticos, mas nada que lhe fizesse o coração saltar aos pulos, como diante dos olhos daquele rapaz. Era algo novo e as maçãs do rosto lhe coravam quando o via passar ou ele se aproximava. A soma de todas as sensações e vivências faziam de Alice uma garota feliz.


Já era tardezinha quando Alice desgruda-se de suas amigas após as aulas e segue para casa. Vai andando sozinha, e uma série de lembranças vem se descortinando à frente, as falas dos mestres, o namorico da amiga que senta ao lado e as fofocas entre as colegas de sala já do lado de fora da escola. Vai sorrindo quando lembra-se mais uma vez do garoto e dos versos que levava no bolso. Senta-se sobre a raiz de uma árvore frondosa que se colocava ao caminho e, afoitamente, desdobra o papel que já segurava entre as mãos. Outra vez lê aqueles versos, primeiro silenciosamente, depois em voz alta para certificar-se de vez da musicalidade do texto. Assim que termina a leitura da última estrofe, um pássaro enorme do peito azulado pousa sobre um dos galhos da árvore e canta para ela. Apesar de viver já há um bom tempo naquela região, ainda não ouvira canto assim. Era um canto forte, alto, lindo, e a sensação que tivera era que cantava não apenas para si, mas para o planeta inteiro, e sentia que o pássaro lhe dera canção aos versos, como se a leitura do poema e a música daquela ave fossem uma coisa só. O peito se enchia de alegrias. Imaginava que onde quer que estivesse, ao ler novamente aquela última estrofe, aqueles sons lhe viriam à mente. O pássaro olha para Alice e passa a observá-la. Tem os olhos fixos, grandes. Em seguida, estica o pescoço, sacode-se, e estica suas duas compridas asas. Alice espanta-se e o pássaro põe-se a voar. Sobrevoa o local, quase em círculo e pousa novamente, agora em outra árvore, em frente, e continua a observá-la. Alice entrega-se outra vez aos seus pensamentos. O sol escondia-se atrás dos montes e uma sombra escura escorria sobre o povoado. A noite havia chegado. Quase prestes a se levantar, Alice pega do chão um galho seco, espalha com ele as folhas próximas de seus pés, e prepara-se para gravar ali uma idéia em palavras que lhe havia ocorrido, um último gesto, antes de abandonar o local. Fricciona o graveto ao chão e começa a arranhar as primeiras letras. Eram letras bem desenhadas, e ali mais valia a arte da caligrafia do que o conteúdo que pretendia gravar, que se resumiam nas iniciais de seu nome e o nome do amado, o que não havia feito no pedaço de papel. Esta superfície de terra era mais apropriada para o feito, pois podia exagerar no tamanho dos caracteres, dar-lhes formas novas e, ao despedir-se dali, poderia apagá-los com os pés, para que não ficassem vestígios do amor não declarado, uma vez que não tinha pretensões de tornar público os sinais de uma estimulante paixão ainda não correspondida. Após riscar as duas letras no chão, amarra-as com um grande coração, envolto de folhas secas e torrões de terra. As letras são gravadas com força, com profundidade, Alice desejava que a Terra fosse testemunha do seu amor, a grande mãe, que não iria traí-la, nem zombar de seu sensível coração. Ao levantar-se, os últimos feixes de luz solar já haviam desaparecido por completo, (ofuscando o desenho). Leva os pés sobre ele, para apagá-lo. Ao esfregar a terra com as pontas dos dedos, uma faísca luminosa, azulada, desponta sob suas sandálias. Teria a Terra ouvido seus apelos, seria uma resposta, a benção divina que consagraria aquele desejo? Alice fica eufórica. O mundo, provavelmente, conspirava a seu favor, e o manto do planeta havia se tornado cúmplice. Agacha-se para ver mais de perto e o brilho intenso que vinha do chão faz arder os seus olhos. Era um azul maravilhoso, uma coisa mágica, um pó fluorescente, que deixou Alice em êxtase. Apalpou-o, espalhou-o sobre os vestígios de suas iniciais que ainda não haviam se apagado, e se enche de esperanças. Que luz seria aquela? Põe-se de pé, e fica de boca aberta, observando, sem palavras, as duas iniciais que brilhavam no chão.


Após certificar-se que não havia ficado qualquer sinal de seus nomes, e nem das tortuosas linhas do coração, Alice volta a lhe esfregar os pés e observa que apenas a luz azul continuava a se desprender do solo. Resolve, então, mostrar a novidade para as amigas mais próximas para que, juntas, pudessem resolver o que fazer com aquilo e, quem sabe, poderiam também testar as possibilidades amorosas de cada uma delas, sugerindo que riscassem também seus nomes no chão, para ver qual dos amores traria um brilho mais intenso, se é que todos eles contassem com a mesma sorte. Na idade que tinham, todas elas levavam a arder alguma paixão no peito. Corre até a casa, seus pais ainda não haviam chegado, toma um banho rápido, pega um pedaço de pão que havia sobre a mesa da cozinha e posta-se diante do espelho. Estava mais bonita naquele dia. Fica alguns minutos a se contemplar. Tinha os olhos cheios. Olha-se de frente, vira-se, observa cada detalhe das formas. Retira os cabelos do rosto, enrola-o, contorce-o, e prende-o sobre a cabeça, tem o rosto totalmente descoberto. A conjunção dos olhos e a boca, mais o vermelho das faces, proporcionava-lhe uma beleza única. Solta novamente os cabelos, e ali se revela a mulher quase pronta que nasceria dela. Mas a meninice ainda não havia lhe deixado de vez.


Antes de que os pais chegassem e colocassem algum impedimento à sua saída, corre em disparada para as casas das garotas, para mostrar-lhes a novidade. Em poucos minutos, reúne um pequeno grupo delas e leva-o até a árvore frondosa, sob a qual uma luz azulada que irradiava do chão quebrava a monotonia da noite, deixando em segundo plano o brilho das estrelas, no coração daquelas meninas. Ficaram todas admiradas com o que viam, e como ver só já não lhes bastasse, após rabiscarem seus nomes e os de seus pretendentes sobre o pó brilhante, escavam mais a terra, para arrancar-lhe mais luz. Estavam em festa, e brincavam. Jogavam o pó umas sobre as outras, esfregavam-se nele, era um encontro radiante. Sem qualquer explicação sobre a descoberta, as garotas começam a especular, sobre como a novidade poderia alterar os seus destinos. Uma delas dizia: Acho que mais que muito amadas, nos tornaremos belas princesas, pois quem sabe não encontramos uma fonte inesgotável de riquezas que possa lá valer mais que o ouro? Já até me vejo em castelos, com jóias de todas as cores e brilhos, e não haverá no mundo mulheres mais cobiçadas que nós. Outra afirma: Ora, mesmo que não cheguemos a tanto, pelo menos, quem sabe, algum conforto poderemos proporcionar para as nossas famílias, pois uma coisa é certa, de alguma preciosidade se trata.Nunca vi tamanho brilho irradiando em farelos. A menor delas, que ouvia calada, desafia: Mesmo que não tenha valor algum esta coisa, uma certeza podemos ter - se jogarmos este pó por sobre nossas casas, teremos, para reconhecimento internacional, a aldeia mais bonita do mundo. Acho que já não é pouco. As meninas riam da inocência manifesta da caçula. E ficam ali conversando, especulando, brincando, sonhando, com riquezas, amores, com o futuro promissor que teriam. Ali permanecem em transe, até que uma delas lembrava às outras de que há muito havia passado a hora de irem para a casa, era tarde da noite. E seguem todas para seus lares, carregando consigo uma euforia indisfarçável e uma sombra azulada.


Em um vilarejo daquele tamanho, segredos desta natureza não eram para ficar guardados por muito tempo. Indagados pelos parentes porque naquela noite haviam demorado tanto para chegar à casa, os filhos foram contando a história, que foi se propagando de família em família, até que um grupo de homens resolve ir conferir o caso contado pelas crianças. Que luz misteriosa seria aquela. Alguns vizinhos passam chamando uns aos outros para irem até o local. À medida que iam chegando, ficavam paralisados, boquiabertos com a luz azul radiante, aproximavam-se, apalpavam os grãos luminosos, e olhavam uns para os outros, para ver se alguém podia explicar melhor o que seria aquilo. Havia em quantidade suficiente para que todos pudessem apanhar um bocado para si. Houve quem juntasse pequenos montículos e os levassem para a casa, para que todos pudessem ver a luz misteriosa que acabara de chegar aos moradores da vila. Era o assunto em quase todas as casas. A notícia se espalhou muito rapidamente. Durante a madrugada, crianças e adultos brincavam com o pó na intimidade dos seus lares. Quem sabe estivesse ali a redenção daquela gente, era o que muitos pensavam.


Na manhã seguinte, uma pequena multidão se aglomerou no local, todos queriam ver de perto a intrigante fonte luminosa. Os adultos e crianças disputavam a cotoveladas uma vaga mais próxima dos grãos azuis. Mas, naquele horário, com o sol espraiando sobre o vale, os pequenos grãos haviam perdido sua luz e o desalento era geral. Teriam tido um sonho, um delírio coletivo, a substância fora roubada enquanto dormiam, ou a luz havia se recolhido apenas temporariamente em respeito à luminosidade absoluta do sol que tudo clareia? Deveriam aguardar, então, a chegada da noite, para que pudessem certificar-se do que havia acontecido, se o sonho azul da noite passada haveria ou não de se repetir. Voltam todos a seus afazeres, e combinam retornarem juntos, quando o sol começasse a se esconder. Assim foi feito. Quando o dia vai a escurecer e as primeiras nuances da noite vem a assombrar-lhe o lume, a multidão outra vez de aglomera e ficam todos, atentos, atônitos, observando a luz que vai ficando a cada instante mais forte. Quando o véu da noite cobre o povoado, os seus moradores reúnem-se em torno da luz que lhes chegara, acreditavam, das profundezas da Terra. Todos queriam saber de Alice como fora a descoberta.


De início, a garota gostava de relatar o caso, contar sua história, omitindo, claro, os amores secretos, os corações e os nomes que haviam, por fim, revelado aquele fenômeno. Dizia apenas que esfregava, aleatoriamente, o graveto ao chão, quando a luz se fez. Contava que já havia lido sobre os minérios e os metais, mas que não conhecia imagem que pudesse se associar àquilo que viam. Todos queriam saber diretamente da garota, ouvi-la, como teria chegado àquelas pedras mágicas, iluminadas. Por fim, como eram muitas as pessoas que se aproximavam, todos fazendo as mesmas perguntas, com a mesma insistência, Alice começou a se cansar. Naquele dia, relatou o mesmo caso inúmeras vezes e certo esmorecimento já se esboçava em seu rosto fatigado. A euforia da noite passada já lhe perturbara o sono e esta noite não seria diferente.


Os homens, após muito observarem, tocarem, banharem-se naquele pó, começam a imaginar o que a sorte lhes proporcionaria dali para frente. Formavam um grande círculo em volta dos feixes azuis, onde debatiam suas expectativas e demandas e, sem que percebessem, o pássaro do dia anterior volta a pousar sobre a árvore, antes que o sol se escondesse de todo. Alice o vê assim que se aproxima. Os demais estavam muito preocupados em suas conversações e não deram por ele. Ele, do alto, com o pescoço erguido, observava a todos, mas estacionava seus olhos nos olhos de Alice. Ela mirava-o, interrogativa. Percebendo que a noite havia fatalmente chegado, o pássaro levanta voo, não sem antes inclinar por duas vezes a cabeça para mirar melhor a garota. Desta vez, não houve versos, e o pássaro foi-se, silenciosamente. Embaixo, os homens não paravam de falar. Alguém teve que organizar os debates, pois todos queriam expor seu pontos de vista ao mesmo tempo. Havia ali uma grande ansiedade. Alice chateava-se ainda mais. Por instantes, arrependera-se de anunciar a descoberta. Antes tivesse guardado apenas para si, feito segredo. Não teria passado por tanto interrogatório, nem causado tanta celeuma. Sabia, porém, que há segredos que não se guardam, principalmente quando se trata destes grandes mistérios que rodeiam a humanidade, onde não há como não compartilhar as dúvidas, curiosidades e anseios. Os raios azuis iluminavam aqueles rostos especulativos, enquanto emitiam suas mais variadas e díspares opiniões. O homem que agachava-se, próximo à luz, levantava o pó nas mãos, deixava-o escorrer entre os dedos e dizia: Nós somos um povo de sorte Iluminados. Este achado nos trará muita fortuna, penso que fomos eleitos. Muito não enriqueceram os homens, quando no passado descobriam o ouro? Muito nos enriqueceremos agora, com o ouro azul que brota por sob os nossos pés. Outro, empolgado, procura complementar o entusiasmo e a fala do homem: Sim, e como sabemos todos, fortuna traz também poder. Imaginem livrar-nos da condição de vila, e este pequeno povoado que somos transformar-se em um grande Império, de onde poderíamos conquistar o mundo. Faríamos todos parte de uma mesma elite imperial e do quase nada que somos tornaríamo-nos celebridades, e as portas da história se escancarariam para nós. Não é nada mal. Duas mulheres levantam-se e dizem que deveriam ter alguma cautela, pois como consideravam valiosa a descoberta, poderia também de nada valer. Era necessário relativizar as coisas, para que posteriormente não amargassem muita desilusão e frustrações. Não queriam ver depois os homens lamentarem por uma eternidade a enorme oportunidade perdida. Melhor talvez fosse chamar as autoridades para que, estas sim, em contato quase direto com as coisas da ciência, pudessem entender melhor, tentar traduzir o que por ali se passava.




Na terceira noite, quando as autoridades, prefeitos e o governador chegam ao local, encontram o povoado inteiro, todos os seus moradores ao redor da luz misteriosa. Não conseguiam desgrudar dali. O Secretário das Finanças é o primeiro a abrir a falação. Diz alegrar-se com o espírito empreendedor daquela gente, e afirma que logo depois que a substância fosse identificada, tivesse início sua exploração e comércio, e os lucros começassem a confluir aos cofres do governo e das grandes empresas, a população teria finalmente sua recompensa. O prefeito elogia a presteza daquele povo em informar-lhes da descoberta assim que esta é feita, e o governador promete mundos e fundos para aquela população agraciada que tivera a graça de receber o milagre à porta de suas casas. Uma mulher mais velha, com a pele enrugada e com grandes papas sob os olhos, agita freneticamente os braços e grita: Somos iluminados, os eleitos, os eleitos. Foi Deus. Foi Deus. Os homens entreolham-se, crédulos. O governador promete retornar o mais rápido possível, assim que estivesse concluído o laudo a partir das amostras que levariam. Antes de partir, porém, queria ouvir Alice. Esta encontrava-se abatida, os olhos estavam irritados, vermelhos, e a sensação de um cansaço incontrolável abatia-lhe o corpo. Alice fizera vômitos e não pode atendê-lo. Atrás do séquito das autoridades, ia aos tropeços, um bando de bajuladores, que disputavam espaço entre si, e rogavam benefícios e piedades. A partir daquela noite, enquanto aguardavam o resultado da análise que era realizada pelos técnicos, a comunidade inteira reunia-se em torno do seu tesouro azulado. Alice não apareceria mais ali, adoecera irremediavelmente. Em três dias, a comunidade recebera o laudo encomendado pelo governo. Não eram boas as notícias. Haviam colocado a descoberto o césio radioativo.


Marcos Vinícius.