As primeiras luzes do dia mal
começavam a penetrar pelas frestas das cortinas e as cores do quarto ainda não
haviam se definido de vez, quando os olhos de Daniel fixam-se firmemente em um
ponto qualquer do teto. Não acordara por completo, mas mantém os olhos
arregalados e assim permanece por alguns bons instantes. Um segundo despertar
ocorre quando Aurora, com suas mãos macias e quentes, toca o seu peito. O
contato com a companheira, desperta-o de vez. Já está acordado, algum pesadelo?
Não és de acordar tão cedo, pergunta a mulher. Daniel permanece em silêncio.
Ela se mexe na cama. Acho que são devaneios, responde. Estava aqui a pensar,
nada importante. Vira-se para ela, alisa suas sobrancelhas finas e penteia com
as mãos os cabelos desfeitos, desnudando-lhe o rosto. A luz, em uma mínima fração de tempo, invade
o quarto. Um feixe luminoso clareia-lhe a face e uma faísca salta dos seus olhos
negros. Como é? Não vai me contar o que está a pensar? Sabe que o conheço, mais
do que possa imaginar. Acordas-te diferente, disso bem pensei. Mas não faz mal,
sei que ainda está a avaliar, pesar, comedir, e assim que esta ideia nova
firmar-se nesta cabecinha, serei a primeira a saber da novidade. Não é sempre
assim? Sabe, mulher, você me surpreende e com certeza, mais do eu posso
surpreendê-la. Às vezes penso que poderia devastar meu pensamento se assim o
quisesse. Você tem razão, algo novo está a perturbar-me os instintos, mas como
bem disse, não é algo que já tenha tomado corpo ou que não demande ainda uma
série de considerações e cálculos. Aurora fixa-o nos olhos, ele mantém-se inerte.
Cuidado homem, ou estas pesquisas ainda vão te enlouquecer. Sabe-se lá o que te
rouba os pensamentos. Mas seja lá como for, procure descansar mais um pouco.
Não, desperto como estou, já não durmo mais. Vou é aproveitar a ocasião para
usufruir um pouco mais deste dia ensolarado, deixar o carro na garagem e fazer
uma caminhada até o trabalho, quem sabe bons ventos não refrescam a alma e
consiga finalmente organizar melhor, sistematizar as ideias ainda desconexas
que venho arrastando comigo. O escritório anda às turras com a demanda de
trabalho, sabe como é, o mercado, a cada dia mais exigente, faz com que as
pesquisas tenham que realizarem-se sempre mais velozes. Além do mais, preciso
aquecer um pouco o sangue e oxigenar os pulmões, quem sabe o calor e um pouco
mais de fôlego, me ajudem a desenrolar melhor, alguns fios que vão se enredando
em minha mente. Nossa! Quanto mistério. Desenrola logo, então, esta história,
pois já estou ficando curiosa. Não esquenta meu amor. Senta aqui à mesa, venha
dividir este pão. A propósito, compartilhar o pão, não é o que,
etimologicamente, caracteriza a palavra companheira? E aqui já tenho uma boa
companheira, que sabe-se lá, quanto ainda tenhamos que dividir, compartilhar.
Trocam um sorriso cúmplice. Sentam-se à mesa, ajeitam os pães, enchem as
xícaras com o leite frio e ficam a entreolharem-se por alguns segundos. Ela
quebra o silêncio. Hoje também saio mais cedo, provavelmente amanhã ou depois,
já dê início ao trabalho de campo. Tenho apenas que fechar alguns pequenos
detalhes finais do projeto, e daí, já posso colocar as mãos na massa. Estou
empolgada, não é de hoje que esperava por isso. Irei fotografar principalmente
nos horários em que a luz do sol me é mais favorável, seja pela manhã, mais
cedo, ou mais pelo fim da tarde, quando as cores das coisas, dos objetos e das
pessoas, tornam-se mais nítidas e definidas. Afinal, a maioria das imagens que
irei capturar está à minha espera a céu aberto. A equipe é pequena e está bem
integrada e a julgar pelos ânimos de todos, será um trabalho empolgante. Amo muito
o que faço, assim como amo a você, meu querido. Poxa, ainda não havia me
avisado que já não era mais prioridade. Ora, seu tolo, talvez as boas ideias
não viessem ou vingassem não fosse minha inspiração maior, que é você. Os dois
caem às gargalhadas e em seguida, após esticarem-se por sobre as cadeiras e
debruçarem-se sobre a mesa, beijam-se ternamente. Após algumas trocas de afetos
e declarações de amor, Daniel ajeita-se para sair. É o primeiro a deixar o
apartamento.
Ao chegar à rua, Daniel é tomado
de um sentimento ambíguo, por um lado, é sempre um pouco doloroso desgrudar-se
de Aurora, companheira de primeira hora, pau pra toda obra, a mulher que nos
últimos anos, tem deixado seus dias mais felizes, por outro lado, sente-se
aliviado, por poder deixar agora, correrem soltas por seu pensamento, as ideias
que vieram a roubar-lhe o sono. Havia quase quatro anos que dedicava-se aos
laboratórios do Centro de Pesquisas Aplicadas, instituto de pesquisas, repleto
de jovens cérebros, vindos de diversas partes do mundo. Era um dos depósitos de
gênios que se espalham por vários pontos da capital. Daniel é dedicado, sempre
fora muito estudioso e possui um talento nato para a ciência, é muito prático,
e dotado de uma inteligência um pouco fora do comum. Os anos de convívio com
seus colegas e superiores, lhe renderam algum prestígio no Centro, pois já comprovados
sua determinação e entusiasmo, tornou-se um dos pesquisadores mais respeitados
e carismáticos do local. Sempre demonstrou interesse e curiosidade por todas as
pesquisas que ali se desenvolviam. Tinha influência na instituição e, não raro,
fazia um papel de articulador entre os diversos setores que compunham a
empresa. Possuía prestígio e quem o conhecia melhor, sabia que teria pela
frente, um futuro promissor. Havia acumulado em seu currículo algumas histórias
de sucesso, projetos, em que esteve à frente, e que já apresentavam resultados
práticos e concretos, inclusive, parafernálias, dispositivos tecnológicos, com
inserções nos mercados. Até avistar o Centro, Daniel caminhava sem pressa,
soltava os braços, e levantava o rosto para cima, aproveitando um pouco mais, a
luz do sol da manhã. Ao virar a última esquina, porém, o brilho e o reflexo das
grandes placas de vidro do prédio em que trabalha, aceleram seus passos. Como um
inseto em direção ao lúmen, adentra-se apressado pelos corredores do edifício. Como
havia previsto, o breve banho de sol lhe fizera bem, sentia-se confiante, e
algumas ideias dispersas, a princípio, desconexas, alinhavam-se em seu
pensamento.
A fachada do edifício é toda
coberta por grandes placas de vidro. Em alguns momentos do dia, dependendo do
ângulo em que a luz do sol incide sobre a superfície lisa, torna-se o ponto
mais luminoso da avenida e a claridade intensa, vez ou outra, chega a perturbar
um ou outro transeunte, quando um feixe brilhoso atravessa suas retinas. O
interior do Centro é muito maior do que pode imaginar quem o avista apenas pelo
lado de fora. Assim que Daniel atravessa o longo corredor, que tem início na
larga porta de entrada, um grande pátio abre-se à sua frente. É uma ampla área,
recoberta de concreto e jardins, com alguns poucos bancos e mesas em sua parte
central. O pátio é circundado por longos corredores repletos de portas e salas.
É em uma destas salas, que passa a maior parte do seus dias. As portas são
todas muito parecidas, e quem não está acostumado com o local poderia muito
facilmente se confundir e acabar se perdendo, não fossem os códigos gravados à
altura dos olhos. Cada porta possui um código de identificação, era a única
diferença entre elas. A sala de Daniel fica mais ao fundo, no corredor à
direita da entrada do edifício. Até chegar nela, atravessa mais de dez outras
portas e salas. Raramente faz todo o percurso, sem antes encontrar um colega ou
outro, seja para uma breve saudação, seja para uma conversa um pouco mais
demorada, sobre alguma demanda do trabalho. Na maioria das vezes, sempre há alguma
informação para passar ou receber, algum documento, relatório, dados novos,
correspondências, antes que pudesse chegar até o seu destino, uma sala ampla,
repleta de armários, mesas, computadores, frascos, tubos de ensaio, réguas,
equipamentos, montes de papéis, cartazes e livros, naquele ambiente que poderia
ser denominado tanto como um escritório, uma sala de pesquisas ou um
laboratório. Ao fundo, uma grande janela permitia uma privilegiada visão da
cidade.
Mais do que em qualquer outro
dia, Daniel apresentava certa ansiedade. Não rendeu muita conversa com os
interlocutores que o abordaram pelo caminho. Rapidamente entrou e fechou-se na
sala. Foi até à mesa, releu algumas folhas que havia deixado sob um volumoso
manual, fitou-as pensativo, apertou o queixo, levou a mão até os cabelos, despenteando-se,
e em seguida, pegou o telefone utilizado para as ligações internas e transmitiu
alguns poucos recados. Levantou-se novamente e foi até a porta conferir se
estava, de fato, trancado ali dentro. Vai até o armário que tinha à frente,
retira de lá três livros técnicos e, de volta à mesa, abre todos eles ao mesmo
tempo. Vasculha-os, um a um. Às vezes lê tão rapidamente, com tanta pressa, que
se tem a impressão que a visão não dá conta de acompanhar a velocidade do
pensamento. Noutras vezes, pousa os dedos sobre uma frase, palavra ou algoritmo,
os dedos roçam a linhas, apertam-nas, como se dali tivessem que extrair algo,
como se não houvesse o tempo, como se não houvesse uma página após a outra.
Pega o lápis e começa a rascunhar uma folha branca. De início, as mãos estão
firmes, seguras, convictas, determinadas e confiantes, e o papel vai se
enchendo - riscos, rabiscos, garatujas, vão se interpondo, a palavras, códigos,
números e fórmulas. Enche uma folha, outra, para, olha para um lado, para o
outro, mantém o grafite preso entre os dedos, que não arrisca a mover-se. Põe
uma força tal naquele toco de madeira, que a folha fica prestes a romper-se,
furar-se. Em seguida, o grafite volta a rascunhar o papel, agora, porém, as
mãos perderam a firmeza anterior, estão trêmulas, mas a lida continua, e por
quase toda a manhã, uma pilha de folhas são destinadas ao frenético exercício. Após
horas de leituras, consultas e conjecturas, entre um manual e outro, levanta-se
e vai até a janela e ali permanece por alguns minutos. Está inerte e tem os olhos
fixos no vácuo da paisagem. Parece mirar o invisível, nem um ponto daquela
cidade movimentada, colorida e barulhenta, consegue quebrar a rigidez do
semblante, a postura pétrea. Num salto, volta-se para a mesa, apanha,
apressado, a única folha branca que ainda restava, e com força descomunal, mas
com as mãos mais trêmulas que nunca, dá os rabiscos finais. Logo após cravar um
ponto desalinhado no papel, dá um vigoroso soco na mesa e outra vez,
levanta-se. Vai até o espelho pendurado na parede, mira-se, e abre um largo
sorriso. Estava indisfarçavelmente abatido.
Fica a observar-se no espelho,
encarando demoradamente a si próprio, cada detalhe do rosto, do suave sulco que
marca a pele da face, aos pelos incipientes que começam a despontar sob o
queixo. Procura em sua imagem refletida alguma resposta ao olhar de indagação,
que com sutil insistência, seu eu real lhe dirigia. Alguma coisa havia de
diferente naqueles gestos. Daniel sabia que a partir dali, jamais seria o
mesmo. Uma desconfortável euforia toma conta de si, e volta rapidamente em direção à mesa com os papéis. Dá mais
uma olhadela nos manuais. Em seguida, apanha algumas das folhas rabiscadas e
alinha-as diante do computador. A luz branca que emana da grande tela da
máquina deixa seu rosto ainda mais pálido. Os olhos lampejam. Observa cinco ou
seis folhas de uma só vez. Abre um programa de sua área de trabalho, e vai cuidadosamente,
atentamente, com uma boa dose de perplexidade, como se o mundo, naquele
momento, se resumisse apenas as coisas mais imediatas que lhe circundavam,
transcrevendo números, códigos e equações, que iam se encaixando em lacunas,
espaços em branco, do complexo software que reluzia na tela. Dá alguns cliques,
comandos, faz, desfaz, uma operação, outra, gruda os olhos no monitor, e bruscamente, afasta-se, estupefato. Arregala os
olhos, diante do que vai revelando-se à frente. Suas mãos soltam o teclado e
enfiam-se pela base do couro cabeludo, deixando-o completamente despenteado.
Finalmente conseguira. Os cálculos fecharam. Os números estavam corretos.
Eureca. Tinha diante de si, os princípios teóricos, os elementos, que lhe
permitiriam construir a primeira máquina de teletransporte do mundo. Claro, não
iria ainda, em fase inicial, transportar pessoas ou seres vivos, mas era muito
provável, que qualquer objeto, coisa inanimada, qualquer bem material, poderia
correr o planeta, sem qualquer tipo de fronteira física. Aquilo seria muito
mais do que todas as suas pesquisas, descobertas e trabalhos anteriores. Os
princípios de uma verdadeira revolução perfilavam-se diante de si. Ofuscava-se
agora a pesquisa que há anos vinha desenvolvendo sobre os efeitos curativos de
um óleo extraído de espécie de rã, próxima da extinção. Seu novo invento iria
incrementar o mundo dos negócios e claro, deixá-lo-ia rico. Sentia-se recompensado, afinal, já faz um bom
tempo, que vinha se dedicando, debruçando-se sofregamente na tentativa de
encontrar os meios e caminhos que lhe permitissem o intento.
Afasta a cadeira, estica-se no
encosto, e deixa os braços soltos, pendentes, tentando livrar-se da tensão que
carrega nos ombros e da euforia e ansiedade, que fazem disparar as batidas
cardíacas. Olha para cima, e em seguida, fecha os olhos. Uma série de
pensamentos atabalhoados invade seu cérebro. Imagens, sombras, possibilidades e
hipóteses, desfilam em sua tumultuada mente. Um mundo novo, onde a matéria
pudesse ser teletransportada, de qualquer parte para qualquer lugar. Uma pane
completa para as agências de correios, as empresas transportadoras, os
carregamentos, os veículos de carga, os trens e caminhões, tudo cairia na
obsolescência. Uma mercadoria criada e fabricada do outro lado do mundo estaria
em suas mãos em questão de segundos. Montanhas de dinheiro se acumulariam em
sua conta bancária, afinal poucas coisas tem tanto valor comercial quanto
aquelas que possibilitam a rapidez e a velocidade. Teria fama e prestígio.
Aurora morreria de orgulhos. Era jovem, e sabem-se lá quantas portas e
oportunidades ainda iriam se abrir pela frente em sua longa e exitosa
existência. Um sinal, um pequeno bip emitido pelo computador, faz Daniel
despertar de seus devaneios. Abre os olhos de uma só vez, e volta-se, num
sobressalto, para frente da máquina, como se ele mesmo, fosse a primeira cobaia
de seu mais novo brinquedo, como se ele próprio houvesse sido teletransportado,
trazido de seus longínquos pensamentos.
Um ícone vermelho põe-se a piscar no canto direito da tela. Daniel esbraveja.
Não é possível. Raios. Não há mesmo perfeição neste mundo. Problemas. A bem da
verdade, nada que impedisse o funcionamento da nova máquina, o teletransporte
não estaria ameaçado, mas havia um custo ainda não calculado. Sim, o invento
apresentava efeitos colaterais.
Como já vinha se tornando
costume, chegou novamente tarde em
casa. Não conseguiu desgrudar-se dos papéis e anotações,
enquanto não se lembrou de que já era hora do Centro começar a esvaziar-se e
que Aurora, aquela altura, já estava a preocupar-se com ele. De fato, estes
atrasos, sempre a incomodaram um pouco. Mas não era lá de criar casos, pois
sabia da dedicação do marido, cuja carreira profissional, vinha se tornando, a
olhos vistos, cada dia mais promissora. Seus gestos, porém, não lhe permitiam
esconder o desconforto. Acomodada no sofá, os dedos dobravam e desdobravam a
ponta inferior da bata, como se estivesse a bordar pensamentos. De súbito, Daniel
aparece à porta, aproxima-se, beija seus lábios, e afagam-se ternamente. Ela
sorri. Ele rompe o silêncio e diz, As coisas agora começam a caminhar. Mas não
é o que me parece. Pela cara de assustado, aposto como o caminho que tens a
percorrer ainda é longo. É árduo, meu amor? Ora, meu bem, mesmo que fosse árduo
o caminho, tu me darias, como bem sei, o conforto necessário. Deixe-me tomar um
banho, pois enquanto não o fizer, não penso em outra coisa. Daniel regula a
temperatura do chuveiro e opta por um banho mais quente. Uma inigualável sensação
de bem estar toma conta de seu corpo, quando a água lhe escorre pela pele,
caindo em cascatas, sobre os ombros doloridos. O contato da água com os
músculos endurecidos das costas causa-lhe uma rara sensação de alívio.
Terminado o banho, veste uma roupa larga e confortável, destas de se usar em
casa, ajeita-se apressadamente e volta para a sala onde Aurora o aguarda. Deita-se
no sofá, e repousa a cabeça no colo quente que lhe oferecia a mulher. Ela, com
as mãos leves e perfumadas, roça a fronte do companheiro e lhe acaricia os
cabelos.
Ao contrário de Aurora, que tem o
hábito que falar sempre sobre seu trabalho, Daniel é um pouco mais reservado,
não que não seja de comentários, mas prefere falar dos projetos e pesquisas, quando
estes já estão em fase adiantada ou já apresentam uma viabilidade concreta. É
que muitas das vezes, envolve-se em pesquisas que dão em nada, becos sem saída,
ideias geniais que tem que ser engavetadas, pois as condições objetivas da
ciência contemporânea tornam-nas irrealizáveis. Como muitas delas traduzem-se
em frustrações, prefere guardá-las para si e poupar a mulher de histórias que
não se concluem satisfatoriamente. Contar para a mulher detalhes de projetos
que lhe fritam o cérebro é algo que aumenta suas angústias. É daqueles que
consideram que determinados problemas, incógnitas, relacionados ao dia a dia do
trabalho, por lá devem permanecer, até que venha o dia seguinte, para que possam
usufruir de um mínimo de descanso e pensarem melhor quando realmente tiverem
que fazê-lo. O aconchego da casa e a proximidade de Aurora são momentos de
descanso e prazer necessários de serem preservados do stress que é seu
cotidiano naquele tumultuado Centro de Pesquisas. Claro que isto não é regra pétrea,
e em muitos momentos, falar, expor-se, desabafar, pode ser o melhor remédio.
Aurora estava cheia de
entusiasmos. O trabalho que agora começava a realizar era o que há muito tempo
planejava fazer. Sempre fora encantada pela arte da fotografia e as causas
sociais sempre lhe despertaram a simpatia e a sensibilidade. E na maioria das
vezes, fotografar gente, humanos, sempre lhe proporcionou mais satisfação do
que fotografar paisagens naturais, ou qualquer outra coisa. Desta vez, teria
crianças como foco. Um registro fotográfico das crianças nas cidades, e como a
maioria delas vive em áreas degradadas, de risco, na periferia das ilhas da
fartura, nos subúrbios, nas ruas, nas terras da escassez, era para estas
regiões que Aurora teria que deslocar-se pelos próximos meses. Suas lentes
iriam mapear olhares, gestos, indumentárias, brincadeiras e trabalho, os sonhos
e o choro, criar um testemunho da infância nos centros urbanos, na
contemporaneidade. Pensar ou falar sobre isto deixava-a eufórica. Seus dois
olhos negros iluminados, onde a fotografia se constituía, antes que pudesse ser
finalizada, congelada, por sua câmera possante e robusta, iluminavam-se. Sabe o
que muito me estimula neste novo projeto, Daniel? É que todas as crianças que
fotografo saem lindas. É curioso isto. Às vezes, pode ser que peco no ângulo,
no foco, na abordagem, mas regra geral, se a câmera está bem posicionada, a
fotografia é ganha, o que não é sempre que ocorre quando o objeto a ser
fotografado são os adultos. Estes, muitas das vezes, trazem uma fisionomia com
feridas irremediáveis, cunhadas pelo tempo, pela miséria ou arrogância, traços
da desilusão, belezas irrecuperáveis, almas ressecadas, ao contrário, as
crianças, mesmo que sofridas, carentes, não estão prontas, são sementes a
aflorar, larvas que ainda não viraram borboletas, não adquiriram asas, ainda
não alçaram vôo. Interessantes como seus cabelos ao vento podem constituir-se
em retratos do futuro. Enquanto os olhos dos velhos, às vezes, retratam o
cansaço do não ter sido, os olhos luminosos das crianças são as fagulhas do vir
a ser. As imagens delas são registros de nossa perpetuação enquanto espécie, o
segredo dos sonhos ainda não sonhados, a prova de que a humanidade renova-se a
cada dia, mesmo confrontando-se com o impossível e o improvável. O retrato do
eterno recomeço, de nossa eternidade provisória. O retrato de nossa
persistência ousada e rebelde. O retrato da vida se reinventando, mesmo quando
parece não haver rotas possíveis. Poxa Aurora, vejo que este trabalho realmente
lhe rende inspirações. O que estás a fazer de fato? Um ensaio fotográfico ou um
registro filosófico? Ela dá-lhe um largo sorriso e pipoca seu rosto de beijos.
Sim, meu amor. Estou empolgada com esta oportunidade, é um grande desafio. Além
do que, não é em todas as ocasiões da vida que podemos nos dedicar a um
trabalho realmente apaixonante. A fotografia apresenta uma curiosa diferença em
relação à pintura. O pintor, diante da tela, dedica-se a transpor de sua
imaginação, da abstração de seu pensamento, utilizando-se da habilidade e
talento de suas mãos e da acuidade do seu olhar, uma paisagem qualquer,
fixando-a, através de sucessivas pinceladas e misturas de cores e tintas. O
fotógrafo encontra a imagem já pronta, à sua espera, que mesmo em movimento,
lhe faz pose permanente. Cabe a ele, dar o foco preciso, o ângulo mais
vibrante, a aproximação necessária. É uma ciência, mas também é uma arte. Mais
que a imaginação do pintor, que muitas das vezes, leva à tela, o que não está
vendo, mas imaginando apenas, é necessário o olhar de águia, perscrutador, que
mesmo ao longe, atem-se aos detalhes, o momento exato, o segundo em que o
rápido clique, pode encher-se de significados. Além do mais, os equipamentos
que usamos são de última geração e fixam as imagens, os instantes, como se
fosse mágica. Deixam-me de queixo caído. Hoje, ao visitar a vila onde faremos
as primeiras imagens, tive a oportunidade, sabe como é, não pude resistir, de
fotografar algumas meninas, e estou boquiaberta com o resultado destes
primeiros ensaios. Veja que imagens fortes. Aurora afasta-se um pouco de
Daniel, estica-se sobre o sofá, e pega a câmera fotográfica que estava sobre a
mesinha ao lado. Rapidamente, solta-a da bolsinha protetora, aperta-lhe uns
botões e luzes coloridas acendem-se pelos cantos da máquina. Em instantes as
fotografias aparecem. Ela tinha razão. Eram imagens simples, de crianças
pobres, sem qualquer sofisticação ou recurso de edição, mas carregavam uma
expressividade incomparável. Destacavam-se duas imagens em especial, a de um
garoto pré-adolescente, sisudo, sem sorriso, e uma garotinha mais jovem, que à
primeira vista, trazia, no conjunto dos seus traços, algum tipo de encantamento.
Aurora detém-se mais uma vez a contemplar as feições daquela menina.
Intriga-se. Sentia os olhos da garotinha penetrarem sua alma, seus poros,
invadir-lhe a existência. Por instantes, seria impossível desgrudar-se daquela
miragem, como havia conseguido congelar um momento assim? A garota, em uma única
fração de segundos, parecia interrogar-lhe com milhares de questões, todas que
talvez haja no mundo, e ao mesmo tempo, apresentava claros sinais de uma
sabedoria precoce, sutilmente revelada, naquele momento exato, em que o clique
foi disparado. Aurora detém-se naquela imagem, hipnotizada. Daniel observa-a
admirado. Impressionante, ela balbucia. Vira-se de uma vez para ele, e
pergunta, Viu como é mágico o meu clique? A garota, de dentro da imagem
congelada, continua a interrogá-la e continua a sorrir. Um calafrio percorre
todo o corpo de Aurora, da ponta dos pés ao último fio de cabelo. Ela estremece
e sacode-se inteira. A garota tem os cabelos pretos, longos e desarranjados, o
sorriso espontâneo e um gesto expressivo, interativo, constituem-se em desafios
eternos a qualquer observador. A blusa clara, com a gola um pouco tombada de
lado, contrasta com o fundo alaranjado de tijolos de uma parede sem reboco. O
jogo de luzes ficara perfeito e as cores tinham uma nitidez que impressionava.
Em uma das mãos, a menina segura com firmeza, uma pequena boneca velha, assim
como ela, um pouco desgrenhada. Daniel mira a fotografia, observa atentamente
cada movimento de sua companheira e mantém-se calado.
Como é homem? Não vai dizer coisa alguma?
Daniel vira-se no sofá, volta-se para ela e ainda deitado em seu colo, sente uma
suave fragrância de flores invadir suas narinas. Corre a mão por sob o vestido
e acaricia lentamente suas pernas, que se soltam às carícias. Beijam-se
voluptuosamente. Aurora devolve a câmera fotográfica ao seu local de origem, a
mesinha ao lado, e entrega-se aos desejos, os seus próprios e os de seu
companheiro. Os dois entrelaçam-se ali mesmo, entre o sofá e o tapete, atirando-se
aos jogos da sedução e do amor. Após esfregarem-se a contento, os corpos
trêmulos, com o suor e o gozo ainda a escorrer-lhes, soltam-se sobre os pelos
macios do tapete, entreolham-se e trocam um último e longo beijo. Aurora
enfim, roça os dedos sobre os lábios de Daniel e declara: Eu o amo. Ele sorri
com entusiasmo e cumplicidade e dá-lhe um caloroso abraço. Após vestirem-se,
Daniel volta ao sofá e vira-se para Aurora. Meu amor, quero lhe contar. Bem
sabes que não gosto de meias surpresas, sempre fui mais às surpresas inteiras,
completas, mas seja já como for, lá vai. Como você mesma já vinha percebendo, por
estes dias, o trabalho lá no Centro, vem me trazendo mais preocupações do que em
qualquer outra ocasião. Sabe as pesquisas que venho desenvolvendo sobre a
tecnologia de teletransporte? Ela encara-o curiosa. Sim, não foram poucas as
noites, em que o vi debruçado sobre o assunto. Pois é, querida. Os esforços não
foram em vão. Encontrei
um caminho. O quê? Ela indaga assustada. Isto mesmo. Encontrei um caminho. Hoje
pela manhã, consegui concluir um cálculo, fechar as contas, que em minha
cabeça, quando comecei a pesquisa e o trabalho, não seriam mais que delírio ou
fantasia. Qual não foi minha surpresa. Posso lhe dizer agora, com bastante
margem de segurança, que o invento tornou-se possível. Claro, o projeto ainda
não saiu do papel ou do meu computador, mas o princípio teórico foi construído.
Em poucos meses, com o fechamento de um ou outro detalhe, poderemos enfim,
vermos a parafernália pronta. O meu mais nobre invento. O mundo inteiro voltará
seus olhos para a máquina, que eu, estou a dar-lhe de presente. A história
deverá reservar-me uma de suas páginas. Todos os elementos, todas as condições
objetivas estão dadas. Resta agora acionar o Departamento das Execuções, para
que possamos, enfim, viabilizar o novo equipamento. A partir do momento, em que
a coisa entrar no mercado, as vendas tiverem início, será totalmente
imprevisível o rumo de nossas vidas. Há uma chance considerável de acumularmos
alguma fortuna. Na verdade, o mundo ganhou sim um novo presente, mas terá que
pagar por ele. E como bem sabemos, estas novas tecnologias, quando nascem, tem
altíssima cotação na economia. Nunca estivemos tão próximos de ficarmos ricos.
Aurora mantém-se assustada. Que cara é esta, meu amor? Não parece alegrar-se
com a notícia. Os inventos e a tecnologia são obras humanas. O que quis dizer
agora há pouco, quando afirmou que ainda não tinha revelado sua mais nova e
grandiosa ideia pois não gostava das meias surpresas? Ah, sim, sabe o que é?
Para te ser muito sincero, é o que mais me preocupa. Acho que não há neste
mundo o que funcione a perfeição. Como assim, Daniel? Após constatar a
viabilidade do invento, os cálculos fecharem,
e ter a certeza que a construção da máquina seria plenamente possível,
detectei por fim, um grave problema técnico. O equipamento poderá transportar
qualquer matéria inorgânica de um ponto a outro do planeta, mas há um problema
de funcionamento, quando o objeto a ser transportado ultrapassar determinado
tamanho. Objetos acima de uma determinada altura ou peso, ao serem
teletransportados, poderão consumir um
porção considerável de energia, em oxigênio, de qualquer parte do planeta, não
sendo possível no entanto, medir essa massa perdida, ou onde o fenômeno poderá
ocorrer. Meu amor, poderia falar um pouco mais claro? Na prática, o que isto
significa? Suponhamos que eu queira teletransportar esta máquina fotográfica
aqui, para o outro lado do mundo. Se a operação for bem sucedida e a máquina de
fato, realizar a tal televiagem, que tipo de efeito colateral isto poderia ter?
Olha querida, a câmera é um objeto relativamente pequeno, e efeitos colaterais
nesta proporção, ainda não consegui medir, mensurar. Mas para dizer-te com
certeza, se ao invés de transportarmos a câmera, transportássemos a mesa, onde
ela se encontra, aí teríamos uma perda em massa de oxigênio, em algum canto da
Terra, ainda completamente imprevisível quanto à quantidade ou o local da
ocorrência. E o que ocorreria se este fenômeno da massa de oxigênio perdida
viesse a ocorrer em uma cidade densamente povoada? Daniel engasga e enrubesce.
Sabe Aurora, a ciência não tem resposta para tudo.
Passam-se alguns meses. Aurora
estava em casa sozinha, aguardando aflita a hora em que o companheiro iria
aparecer na televisão. Daniel era daqueles pesquisadores determinados e não
perdeu tempo em colocar em prática sua obstinada ideia. O Centro de Pesquisas
agora não sai do noticiário, e nos últimos dias, não se tem falado sobre outra
coisa. A imprensa em geral, toda a população quer conhecer a tal novidade.
Empresários faziam encomendas, antes mesmo que o primeiro teletransporte fosse
testado. E o povo já se perguntava quando é que humanos também poderiam ser
transportados. Seria um dia especial, o primeiro teste seria um evento público,
televisionado ao vivo, transmissão em tempo real, para que o mundo pudesse
testemunhar o ápice do desenvolvimento da inteligência e da sabedoria humana. A
cada dia eram maiores os limites e fronteiras derrubadas pela ciência e pelos
mercados. Daniel seria a estrela da noite. Aurora se recusara a fotografar o
evento diante da insistência de Daniel em tocar seu projeto sabendo dos
prováveis inconvenientes e guardar segredo sobre eles. Está na hora. Aurora mal
consegue disfarçar a inquietação. As mãos, suando frias, quase escorregam sobre
o botão do televisor. O evento seria pontual. Assim que liga o aparelho, tem
início a transmissão da solenidade. Daniel aparece sob as câmeras, estava
radiante. Aurora angustiava-se e tinha os olhos fundos. Após os discursos, o
desfile de autoridades, empresários, banqueiros e políticos, com toda a pompa
que a ocasião requer, é chegado o tão esperado momento. Finalmente, era hora da
máquina colocar-se a descoberto e ser acionado o botão. Os organizadores do
evento haviam decidido que o primeiro objeto a ser teletransportado seria um
automóvel, para mostrar à humanidade inteira, como o que ontem era o símbolo da
velocidade, tornou-se obsoleto diante da genialidade infinita da espécie. As
rodas, que sempre proporcionaram grande mobilidade para o homem, agora eram um
nada, diante da potência que tem o novo equipamento, em transportar coisas de
um canto a outro da Terra, em questão de segundos. O Presidente posiciona-se
para apertar o botão. Todos têm os olhos arregalados. Do outro lado do mundo,
outra multidão aglomera-se ante as câmeras, diante de um grande palco, que
serviria de pouso para o automóvel, em seu ponto de chegada. Tem início a
contagem regressiva. Pronto. Botão apertado. O planeta estoura em foguetes,
gritos, cantorias, louvações, clamores, todos estão a festejar o sucesso do
invento. Como se de magia se tratasse, o automóvel, mantendo toda a sua
perfeição e integridade, viaja entre os hemisférios, deixando uma humanidade
inteira boquiaberta, sem entender por completo o que acabara de ver. Era
incrível. A multidão estava loucamente admirada. Daniel havia se transformado em herói. Aurora é
tomada de grande ansiedade. Num ímpeto, desliga a televisão e apaga as luzes da
casa, tenta relaxar um pouco, reduzir a tensão, mas é tomada de tremores e
calafrios. Deita-se e mantém-se imóvel na cama por cerca de duas horas até
acalmar-se. Em seguida, levanta-se, vai até a geladeira, e toma um copo de
leite. Volta a ligar a televisão. Não se falava mais na festa de consagração do
companheiro. Uma grande tragédia acabara de ocorrer em um país distante.
Equipes de técnicos, especialistas, repórteres, corriam até o local, para
entender o que se passara. Imagens começavam a chegar do lugar. Não havia ainda
uma explicação para o fenômeno. O mundo estava atônito. Dezenas de pessoas
haviam morrido subitamente de forma extremamente misteriosa, em uma pequena
cidade nas montanhas. As vítimas morriam asfixiadas, como que estranguladas por
uma grande mão invisível. Uma sucessão de imagens do local desfila sob os olhos
aterrorizados de Aurora. Uma cena leva-a a apertar o botão do aparelho, congelando-a na tela. Era uma pequena garota, franzina, que tinha o cabelo
despenteado, e morrera, com uma boneca velha, presa em uma das mãos. Aurora
enxuga uma lágrima volumosa que salga seus lábios, vai até o quarto, coloca
algumas peças de roupa na bolsa, pega a máquina fotográfica e sai pela porta.
Daniel nunca mais a veria.
Marcos Vinícius.
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