quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

Peleja


Não há quem não tenha assistido a uma grande produção cinematográfica, campeã de bilheterias, no campo da ficção científica, onde trava-se uma luta mortal entre as forças que representam a humanidade e sua salvação e as forças demolidoras do fim dos tempos. Imagine o já tradicional enredo em que tramas malignas são postas em ação, por personagens fantasiosos que destacam-se pela crueldade e pelo desejo mórbido de verem destruídas a humanidade e sua civilização. O cinema soube explorar, com espetaculares efeitos especiais, as imagens destas grandes pelejas. O mundo em chamas, rachaduras e fendas gigantes abrindo-se na terra e engolindo os homens, grandes explosões, abalos sísmicos, bombas, tiros e desabamento de cidades inteiras. Não foram poucos os filmes em que estas forças poderosas e nefastas lutaram contra os defensores da humanidade por algum código, segredo, alguma substância mágica, que pudesse, enfim, salvá-la ou exterminá-la de vez. Muitas das vezes, o filme inteiro é isto. Uma guerra fantástica e grandiosa entre as forças que procuram preservar a espécie e as que ressurgem das trevas e dos subterrâneos para condená-la ao fim. As disputas travam-se pelo domínio de alguma chave, alguma fórmula, um mapa, uma poção encantada, que possa selar os destinos dos homens. Vendo, nos últimos meses, as poderosas forças que governam o país utilizando-se dos mais impressionantes e cruéis meios para aumentar as estatísticas e os números da morte, e ainda agora, as imagens das vacinas, que nunca chegam até nós, tenho a trágica sensação de um mundo ruindo sob os pés, como se houvesse acordado dentro de um filme destes. E acho que é isto mesmo, acordei dentro de uma destas ficções mirabolantes, de péssimo gosto, e terrivelmente devastadoras. No momento em que escrevo, já ultrapassamos as duzentas mil mortes e ainda são as mesmas forças a apertarem os botões.

 

Marcos Vinícius.



sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

Asas e antenas

 


Nunca tive uma relação amistosa com os insetos, principalmente, se estão dentro de casa. Coloco-os para fora, espanto-os ou até mesmo, em último caso, acabo por matá-los, quando são ameaçadores como os pernilongos, muriçocas e congêneres. Há ainda aqueles grandes, volumosos e pesados que, causam certa repugnância e melhor seria se permanecessem nas copas das árvores, em meio as folhas e arbustos, de onde, certamente, saíram, e ainda há um mundo assim à disposição deles. Se os encontro dentro do quarto então, não durmo enquanto não me livro das incômodas presenças, a exceção de mosquitinhos menores ou as pequenas mariposas. Quando são muitos, em enxame, e não dão sossego, não penso duas vezes antes de borrifá-los com o inseticida, livrando-me do desconforto. Mas como a vida é uma caixa de surpresas, hoje vivi uma situação inédita e interessante com um deles. Aproximei-me da mesa branca que tenho nos fundos de casa e, acima dela, um inseto bem pequenino tentava, sem sucesso, alçar vôo. Ele levantava-se, rodopiava no ar e caía novamente, tentava repetidas vezes, sem conseguir engrenar um vôo que o tirasse dali. Aparentemente, de forma involuntária, voava em círculos, sem livrar-se da mesma órbita. Tentou várias vezes e a trajetória era sempre a mesma. Girava, girava, girava, e não saía do lugar. Depois de um tempo, certamente, cansado das infrutíferas tentativas, permaneceu em repouso sobre a mesa. Aí pude observá-lo de perto e atentamente. Nunca havia visto uma espécie assim. É um inseto bem pequenino, com asas longas, arredondadas, compridas e transparentes. Tem duas antenas enormes, finíssimas, cada uma delas infinitas vezes maior que o conjunto dos demais membros do corpo do minúsculo invertebrado. É realmente impressionante a extensão das antenas, e fico imaginando como deve ser viver com uma estrutura assim. Ao aproximar-me ainda mais do quase invisível ser, observo que as duas antenas estavam presas uma na outra por um pequeníssimo fiapo embolado entre elas. Neste momento, resolvi realizar uma boa ação voltada a um inseto. É muito comum vermos imagens de pessoas salvando cães, gatos, pássaros, mamíferos, em geral, mas, salvar, desta forma, a vida de um inseto, imagino que seja algo incomum, a ponto de merecer registro. Pois então. Peguei um pequeno graveto do chão, arranquei-lhe duas lascas e, com uma delas, com o máximo de delicadeza possível, prendi, levemente, as antenas na mesa e, com a outra lasquinha, em uma minuciosa operação, arranquei o fiapo embaraçante que amarrava uma antena à outra. No instante em que soltei o bichinho, ele esticou os dois articulados apêndices, como a conferir se tudo já se encontrava em ordem e, rapidamente, levantou um vôo certeiro, em linha reta e em direção ao céu. Não mais o vi. Talvez tenha mudado, a partir do episódio, a minha relação com estes seres tão estranhos a nós, ainda há que se confirmar, mas o certo é que arranquei o pequeno fio, realizando uma minúscula boa ação e, mesmo que, quase invisível, ainda assim, proporcionou o encanto e a alegria de fazer voar.

Marcos Vinícius.

terça-feira, 12 de janeiro de 2021

Morte!

 


Já passava da meia noite, quando ela se aproximou. As ruas estavam vazias e escuras. Um vento forte nas encruzilhadas levantava a poeira do chão e varria as folhas secas do asfalto, soltando um assobio longo e fino que, em seguida, trazia o silêncio total. Vez ou outra, um uivo insone de um cão solitário, propagava-se pelo mundo, não se sabe de onde. A lua buscava abrir brechas nas nuvens escuras e densas que pairavam sobre os telhados adormecidos, enchendo a noite de breus e sombras. Fazia frio e as poucas lâmpadas acesas tinham o lume fraco e instável e apenas se via o vulto das coisas. A rua estava completamente deserta, a madrugada avançava, e apenas um gato cinzento, de pelo rajado e olhos luminosos, passava pela calçada, quando a tampa do esgoto se levantou. O pequeno felino, arrepiado da ponta do rabo às orelhas, num salto gigante, como se tivesse asas, desaparece entre o topo dos edifícios, sem soltar um único miado. Ela põe-se de pé. Ajeita-se no vestido negro, abaixa ainda mais o capuz, de modo a deixar às escondidas sua face branca e cadavérica. Os olhos estão invisíveis dentro das órbitas largas, profundas e escuras. As mãos ossudas, de unhas grandes e sujas, seguram firme, apesar de trêmulas, o cabo da foice, com o qual, como um cajado, dá batidas no chão, como um sinal. Atrás de si, um séquito fantasmagórico de almas penadas e errantes, grita em um coro uníssono - Morte! Morte! Morte! - Ela volta-se para eles, solta-lhes um sorriso raivoso de desprezo, levanta o cabo da foice e ordena – Avante, seus desamparados! E as almas, novamente – Morte! Morte! Morte! - Ela, então, arrasta-se pela avenida. Algumas assombrações bajuladoras mais próximas levantam-lhe as correntes, que ainda assim, rastejam pela calçada, enchendo a noite do barulho dos ferros e de um cheiro de ferrugem. - Vamos seus frouxos, rápido com isto. Temos muito o que fazer - E põe-se a caminho do Palácio. Alta madrugada, os morcegos aproveitam-se da densa escuridão e sobrevoam as torres dos edifícios do alto escalão do governo nacional. Por fim, com seu manto invisível dentro do breu da noite, e com a foice em punho, acompanhada de seu séquito de espectros subservientes e aos gemidos de Morte! Morte! Morte! transpõem os portões e muros do Palácio e ocupam o trono máximo do Governo Nacional. Pronto – ela diz – Ocupem os seus postos, há muito trabalho pela frente - Ela dá um salto, fica de pé sobre a enorme mesa do Governo, onde são tomadas todas as medidas e decisões de âmbito nacional, bate repetidas vezes com o cabo da foice sobre a madeira envernizada e proclama – Pois já chega de enviar intermediários, estes só me trazem dores de cabeças e não resolvem de vez minhas demandas, cansei-me dos paliativos, agora, mais que nunca, é necessário resolver os problemas à raiz. Até entendo que os incompetentes tenham se esforçado o quanto puderam, mas ao fim e ao cabo, foram mal sucedidos. Realizaram massacres, carnificinas, genocídios de toda a ordem, e os povos e os países estão aí, ainda todos de pé. Quando das conquistas dos continentes e da escravização em massa, nos aproximamos como nunca das metas, mas ainda era pouco, fizeram anos de guerras totais, mundiais, levantaram os campos de extermínio, as câmaras de gás, os paredões, as bombas atômicas, inventaram a fome crônica, as pestes, tocaram fogo em hospitais, incendiaram cidades inteiras, inventaram as armas químicas, transformaram os rios em esgotões, afinal sem água não há vida, não é assim? De nada adiantou. O mundo continua girando na mesma órbita e a espécie põe-se, com tudo, a proliferar. Basta! - Irritada e resoluta, mete outra vez o cajado sobre o tampo da mesa. As almas gemem – Morte! Morte! Morte! – Ao trabalho, espíritos putrefatos. Já disse que há muito o que fazer. Chega das poucas coisas e das obras pequenas, chega de misericórdias e pequenez. Viemos para a obra fatal e grandiosa. Este mundo que é grande, ainda assim, não é para todos, há gente demais a consumir os recursos e há quem deles, necessite esbanjar, além do que, acabou-se o tempo da política e a era das supostas resoluções das coisas, da era dos paliativos e de se tampar sol com as peneiras. A terra está cansada e faminta. Enfim, basta de intermediários, Eu mesma, fiz-me governo. Eu mesma executarei o que tiver de ser. Eu mesma darei de comer à terra. Ao trabalho! Daqui mesmo, deste amplo gabinete, já sairemos com o ministério formado. E lembrem-se, flores aqui, nem para os que morrem, cansei-me dos ornamentos. Será um Ministério enxuto, não há necessidade de muitas pastas, pois o trabalho não é dos mais difíceis e o executarei com prazer, além do que, será rápido. Basta de delongas, lengalengas. A terra tem fome, o mercado tem urgência, e eu sim, tenho muita pressa. Não é mais o tempo de se perder tempo -  Ela pousa os ossos da mão sobre o encosto da cadeira, apoia-se, e curva-se até uma das grandes gavetas da mesa, abrindo-a. Tira da lá uma pasta cheia de papéis e documentos. Levanta uma folha de papel até a altura da cavidade dos olhos e lê em voz alta e jocosa - Ministério de Agricultura? Mais que diabos é isto? Não entendo como ainda gira o mundo com tamanhas incompetências. De agora em diante, chamar-se-á Ministério da Fome e do Desabastecimento. Aliás, pelo que vejo, haverá uma mudança radical na formação e nas estruturas do meu novo e mórbido Ministério. - Então, suas almas perdidas, degeneradas, ouçam os nomes das novas pastas, para ver em quais delas se encaixam. Ministério da Guerra à Ciência, Ministério da Deseducação, Ministério das Explosões e Dinamites, Ministério das Armas, da Injustiça, da Devastação e do Desplanejamento, ah, e o Ministério das Pestes. Penso que é um bom começo. Façamos aqui nossas mortíferas experiências e apostas, e caso se dê como nos planos, em breve, tomaremos também outros países, outras praças, esgotos abertos pelo mundo não há de faltar, disso sabemos. O dia do triunfo chegará. Por aqui, temos um bom laboratório e a história não nos permitirá falhar. Por fim, abriremos uma cova enorme, gigantesca, monumental, para enfiarmos quase um país inteiro. Monumental, disto se trata. Não fizeram os antigos, nos primórdios da civilização, obras monumentais, faraônicas, para guardarem os seus mortos? Sim. A coisa não funcionou? Hoje construiremos uma sepultura que será um país inteiro, um cemitério fortaleza, não para proteger os mortos, mas para atirar-lhes os vivos. Já não se trata mais do nascimento de uma civilização, mas do seu fim. Afinal, hoje sou em quem mando. Chegou a minha vez. Que se componha, de imediato, o Ministério das Demolições e cavem, cavem, até quase o outro lado do mundo, a maior das covas já vistas. A cova suprema. Depois, enchem-na até a boca e por fim, terra e concreto por cima de todos. Eufórico, o coro é retomado - Morte! Morte! Morte! - E a Morte se fez.


Marcos Vinícius.

quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Olá, Belchior

 


João me ligou agora há pouco. Estava feliz e eufórico. Não era para menos. Acabou de ganhar um disco com as vinte músicas mais conhecidas de Belchior. Ele diz estar maravilhado com o presente, pois, como já conhece de cor a letra de todas as músicas, coloca o som bem alto, e se põe a cantar também. Segundo ele, não há terapia melhor para aliviar o estresse e o cansaço e que, quanto mais canta, mais tem vontade de cantar, sentindo-se alegre e revigorado. Na noite passada, ouviu o disco por diversas vezes e adormeceu ouvindo o canto mágico de Bel. De repente, abriu os olhos. O dia estava claro e uma revoada de pássaros passou sobre sua cabeça, enchendo os céus de uma música afinadíssima e alegre. Ao longe, ouvia-se o ronco de alguma cachoeira. Como havia chovido quase a noite inteira e o sol despontava radiante, o verde ao redor tornara-se tão intenso, que mais parecia um cenário de sonhos. Ele caminhava sozinho por uma estreita trilha de terra, ainda húmida pela chuva da madrugada e, imediatamente, após abaixar-se para desviar-se de um tronco que se punha no caminho e colocar-se novamente de pé, quem vê à sua frente? Ninguém menos que Belchior. Surpreso, e sem entender tamanha coincidência e sorte, cumprimenta o poeta que, também andava só, porém em sentido oposto ao seu. – Bom dia. Belchior? Não acredito. Nossa, que sorte a minha. O que faz por aqui? Que felicidade em vê-lo. Agora mesmo, acabo de ganhar um belíssimo disco seu. Isto é que é presente. Belchior posta-se à sua frente, a trilha ali ainda é mais estreita, o mato se fecha, e enquanto um atravessa, o outro tem que aguardar. Belchior observa-o, silenciosamente, e não dá muita importância aos cumprimentos. João insiste - Belchior, sou o maior fã que há. Não imagina o prazer que é encontrá-lo por aqui. Está só? Pois eu também. Posso fazer-lhe companhia? Belchior encara-o, fixamente, olhos nos olhos, e diz apenas, “O passado é uma roupa que não nos serve mais”.  João, curioso, em tom amável e sem dar a passagem, responde – Amo esta sua música, como amo todas as outras também. Diga-me, Bel, para onde vai? Eu estou sem horários ou compromissos. Seria uma honra poder acompanhá-lo. “Saia do meu caminho, eu prefiro andar sozinho, deixem que eu decida a minha vida”, diz o cantor, que mostrava-se impaciente com seu interlocutor. João, sem graça, um calor abrasador lhe subia a face a ponto de enrubescê-la, resolve, porém, não desperdiçar a oportunidade do raro encontro. Desculpe-me, Belchior - ele disse, abrindo o caminho - De forma alguma traria incômodos ou inconveniências a quem só me proporcionou alegrias. Mas diga-me Bel, por onde tem andado? “Se você vier me perguntar por onde andei no tempo em que você sonhava, de olhos abertos lhe direi, amigo eu me desesperava”, responde o poeta. Mas está tudo bem com o senhor? Insiste João, tentando ser amigável. “A minha alucinação é suportar o dia-a-dia, e meu delírio é a experiência com coisas reais”, diz Belchior, que dá as costas, e segue pela trilha sem olhar para trás. Mas Belchior - implora João - permita-me apenas fazer algumas perguntinhas, por favor. Não é necessário chatear-se, diga-me apenas por onde anda e por que o mau humor? Neste instante, Belchior interrompe os passos e vira-se para ele com um sorriso amigável e diz – “Eu sinto tudo na ferida viva do meu coração”. “Meu bem, o meu lugar é onde você quer que ele seja, não quero o que a cabeça pensa, eu quero o que a alma deseja”, “Mesmo vivendo assim, não me esqueci de amar...”, “A noite fria me ensinou a amar mais o meu dia, e pela dor eu descobri o poder da alegria”. Neste instante, João é tomado de grande alegria e entusiasmo. Outra vez, uma grande revoada de pássaros enche o céu de cantorias. Um pássaro, maior que os outros, com o bico preto e afunilado, penas cinzas e peito amarelo, pousa suavemente sobre os ombros do poeta, que ainda diz – “Meu bem, talvez você possa compreender a minha solidão, o meu som e a minha fúria e essa pressa de viver”, “Aparências, nada mais, sustentaram nossas vidas que apesar de mal vividas têm ainda uma esperança de poder viver”. Belchior abre um sorriso sincero e amável para João que, tímido e desconcertado, arrisca ainda uma pergunta – O que tem feito de bom? – “Tenho ouvido muitos discos, conversado com pessoas, caminhado meu caminho”, “Amar e mudas as coisas me interessa mais”. Os dois estão em pé, um olhando para o outro. João não consegue conter-se em entusiasmos e indaga – Tem acompanhado as coisas todas que tem acontecido no Brasil? Belchior dá um sorriso sem graça, lança um olhar consternado e diz – “Tenho comigo pensado, Deus é brasileiro e anda do meu lado, e assim já não posso sofrer no ano passado”. Dá uma piscadela para João e acrescenta – “Por força deste destino, um tango argentino me vai bem melhor que um Blues”. Neste minuto, um silêncio se interpõe entre eles, quebrado apenas por um bando de andorinhas cantadoras que realizam uma coreografia sobre a cabeça dos dois. Belchior põe-se a andar. João o chama. – Belchior, há saída? – “Falaremos para a vida: vida, pisa devagar, meu coração, cuidado, é frágil”, “Você não sente nem vê, meu amigo, que uma nova mudança em breve vai acontecer” - ele responde. Belchior lhe dá um aceno em despedida, vira-se e segue pela trilha. No terceiro passo, um muro branco, caiado, aparece à margem esquerda do caminho. O poeta retira um pincel do bolso, volta-se, mais uma vez para João, as andorinhas dão-lhe uma rasante, esvoaçando sua cabeleira, e ele diz – “E a certeza que tenho coisas novas, coisas novas pra dizer”. O poeta banha o pincel em uma lata de tinta que carregava nas mãos, leva-o até a parede branca e grita para João – “Sonho e escrevo em letras grandes de novo pelos muros do país”. É o instante em que João desperta e o disco ainda tocava, era a última faixa. O fato é que João levantou-se, foi ao banheiro e correu de volta para a cama, na tentativa de retomar o sonho. Inútil. Dormiu uma noite inteira como uma pedra e ninguém mais o visitou durante o sono. Agora, me atormenta ao telefone querendo que o ajude a descobrir o que é que Belchior já ia escrever naquele muro. Tem como?

 

Marcos Vinícius.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

Raskólnikov

 


Neste ano, finalmente, pude ler Crime e Castigo, de Dostoiévski. Esta obra monumental e intrigante, tem como protagonista, Raskolnikov, um jovem estudante, que resolve assassinar uma velha agiota, e assim o faz, de forma fria e calculada. Após o assassinato brutal, Raskolnikov é assolado por um tormento tal que o adoece a ponto de, por fim, confessar a sua culpa. Ainda que na conturbada mente de um assassino confesso, o autor assoma uma dimensão ética à condição humana, onde o próprio assassino, não vê alternativas possíveis, além do sofrimento, a prisão e o castigo. Raskolnikov é uma metáfora as avessas do que se tornou uma parte do Brasil. Quais foram as barreiras éticas demolidas para que agentes do crime organizado transformem-se em símbolos de salvação nacional? Quais foram os limites que tivemos que transgredir para que autodenominados cristãos, substituam a dimensão do sagrado pela violência da pólvora? Onde perdemos a compaixão? O que terá ocorrido pelo meio do caminho para que um pedaço da sociedade brasileira eleja como mito, quem adota políticas genocidas, como recusar-se a imunizar o país, deixando uma população inteira refém de um vírus demolidor, além de desdenhar das centenas de milhares de mortes alheias? Lembra-se que as metas iniciais eram uns trinta mil? A quantas andam as contabilidades dos genocidas que nunca dormem? Onde foi que nos tornamos isto? Talvez, lá das brumas e névoas da São Petersburgo do século XIX, Raskolnikov  nos observe, atônito e assustado, de ver como por aqui, fazemos da morte, espetáculo, redenção e glória, em uma terra sem leis, onde o crime, sequer merece o castigo. E com indiferença, fria e mórbida, não enxergamos os mortos.

 

Marcos Vinícius.

sábado, 26 de dezembro de 2020

Palavra em transe

 


Não faz muito tempo, a palavra todos meteu-se em encrencas. Se alguém se dirige ao público e diz, todos aqui estão convidados ou todos os presentes deverão comparecer, logo aparecerá quem dirá que uma fala destas, traz conotações carregadas de discriminação de gênero, pois afinal, ali, estariam reunidos não apenas homens, mas também as mulheres. A partir desta descoberta, creio que é uma descoberta deste século, não são poucas as reuniões ou encontros em que agora ouvimos, todos e todas estão convidados e convidadas ou todos e todas deverão usar trajes esportivos. Não sou conhecedor das artes gramaticais, mas a primeira vista, ou aos primeiros ouvidos, a impressão que tenho, é de ser algo desnecessário, redundante, onde o discurso parece abrir-se já enfadonho e duvido mesmo que alguém que preze pelas boas literaturas assinaria um texto com esta inovação. Porém, se um dia me convencer que a nova prática poderá, de alguma forma, de fato, resolver problemas de gênero, ponho-me de acordo. Ocorre que agora, mais recentemente, a palavra todos meteu-se em encrencas ainda maiores. Como se já não bastasse o enjoado todos e todas, há agora uma nova vanguarda de militantes que resolveram que todos ou todas já não bastam, é necessário uma nova variação, e eis que surgem as expressões todes e todxs, para abarcar todos os gêneros possíveis, e só não sei ainda se a palavra todos ainda continuaria valendo. Como miséria pouca é bobagem e nisto somos especialistas, vem agora o gênio-mor-semianalfabeto, vereadore Carluxo, e apresenta na câmara municipal do Rio de janeiro, um projeto de lei proibindo “terminantemente’ o uso destas expressões inovadoras, para evitar “perversões e alterações maliciosas e progressistas” no uso da Língua, podendo, inclusive, suspender os alvarás das escolas que violarem a norma. Alguém deve ter soprado para o energúmeno, que esta dinâmica da língua é resultado de alguma conspiração comunista e aí resolve-se o problema com a ditadura da palavra, o engessamento e a perseguição, os remédios mais apropriados para conterem as perversões destes corrompidos que aprendem o português nas cartilhas impressas em Cuba, na Venezuela, sabe-se lá, na China. Além dos males todos que dividimos, nunca perdemos o hábito de criarmos outros tantos, afinal, filhos de um tempo onde tudo já parece ter sido inventado e dito, é necessário então, criarmos outras modalidades de chatices, pedantismos e autoritarismos. E neste aspecto, somos vocacionados, não é a toa que uma figura destas, que imagina ser capaz de conter a dinâmica viva da língua em um projeto de lei, sem pé nem cabeça, tenha sido o segundo mais votado para a câmara da cidade do Rio de Janeiro.

 

Marcos Vinícius.

sábado, 14 de novembro de 2020

Às urnas

 


Amanhã é dia de retornarmos às urnas. Já são dois anos que o fizemos pela última vez e os estragos são, não apenas explicitamente visíveis, como a maioria da população brasileira já sente na pele, muitos no estômago, a dimensão da irresponsabilidade que a cada dois anos deposita nas urnas. Amanhã vou até a urna com um sentimento de apreensão, não apenas pelos excessos de precauções sanitárias que há que se tomar até o momento do voto, mas pelos resultados que colheremos de nossas novas escolhas. Obviamente, não podemos nos largar das esperanças, pois sem elas, o que nos resta? Porém, ao observarmos um pouco atentamente o Brasil que vai às urnas, não nos faltará motivos para preocupações. O Brasil que vai às urnas é um país doente, não apenas pela pandemia que já matou mais de cento e sessenta mil brasileiros e pelos milhões de infectados, mas por possuir um eleitorado de uma irresponsabilidade tal que, pode alçar aos cargos de controle e aos governos, loucos, perversos, sádicos, assassinos, malfeitores de toda a ordem, da noite para o dia. Nos últimos anos, o festival de ignorância e de absurdos que temos visto, por parte de uma ampla parcela do eleitorado, realmente, é de fazer cair o queixo e arrepiar os cabelos. O Brasil que vai às urnas amanhã é um país que desconhece seu passado, ainda cai nas mesmas armadilhas de sempre, a cada eleição, mais sofisticadas, um país que mitifica bandidos e sádicos, e especializou-se na arte de atirar nos próprios pés. O Brasil que vai às urnas amanhã ainda carrega quem defenda torturas, ditaduras, genocídios, extermínios em massa e a senzala. O Brasil que vai às urnas amanhã é o país que lota templos suntuosos, supostamente cristãos, onde fiéis louvam a deus fazendo arminhas com a mão. É um país de desigualdades profundas. O Brasil que vai às urnas amanhã é o país da impunidade, da fake news, do império da mentira, que aplaude a retirada de direitos, a pena de morte, a subserviência e o entreguismo. O Brasil que vai às urnas amanhã é o país do dedo duro, do puxa saco, do lambe botas, dos sem noção, da não ciência, que queima livros, apaga a poesia, desconstrói conhecimentos, culturas e saberes. O Brasil que vai às urnas amanhã é o Brasil sem saúde, sem educação, sem políticas públicas, sem criatividade política, é o país que nega cidadanias e a própria vida. O Brasil que vai às urnas amanhã é o Brasil que estaciona sobre o meio fio, fura filas, avança os sinais, que atropela sem olhar para trás, do golpe fácil, da mentira deslavada. É o país onde há quem defenda que a Terra é plana, que é contra vacinas, e que diante da economia e do capital, a vida é nada. O Brasil que vai às urnas amanhã é o Brasil, onde morrem mil pessoas a cada dia, vítimas do novo coronavírus e da ignorância em sua modalidade mais mortífera e assustadora. O Brasil, onde se enterram mil a cada dia, mortos pela pandemia, é o Brasil que programa festas, comemorações, churrascos, reuniões familiares, enche os bares, visita parentes, amigos, vizinhos, onde se tosse uns sobre os outros. É o Brasil que mata o segurança do supermercado, ao ser cobrado sobre cuidados mínimos. O Brasil que vai às urnas amanhã é um pobre doente, trocou os sonhos pelo engano, e aglomera-se com a máscara no pescoço. São mais de quinhentos mil candidatos na disputa em todo o país. O que sairá daí? Ouço muitos candidatos dizendo que há que se votar com a esperança, pois o voto do ódio já nos trouxe estragos demais. Que assim seja. Um bom voto para todos.

 

Marcos Vinícius.

sexta-feira, 13 de novembro de 2020

Novembro

 




Nos últimos dias, em São Paulo, no Brasil e nas vizinhanças, temos vivido momentos de euforia e entusiasmo entre as forças democráticas, progressistas e de esquerda, apesar de tantos absurdos e retrocessos. A vitória das forças populares no Chile que, em plebiscito, disseram não a constituição de Pinochet, a expulsão dos golpistas do governo da Bolívia, a derrota de Trump e a ascensão da candidatura de Guilherme Boulos, em São Paulo, reacenderam esperanças, como há muito não se via aqui entre nós. O governo Bolsonaro vai se enveredando por tortuosos caminhos de contradições e embaraços, perversidades e psicopatias, a ponto de tornar-se, a cada dia, mais difícil até mesmo para seus mais fiéis e fanáticos seguidores, armar-se de qualquer defesa, dentro de qualquer razoabilidade. A ameaça de guerra aos EUA, pois, é disso que se trata quando se fala em pólvora, lança o bolsonarismo na esfera do ridículo, de forma ainda mais radical e com repercussões globais, para muito além dos terraplanismos. Talvez Bolsonaro tenha dado, com o episódio, um dos maiores tiros no pé, pois os gigantes de lá, por mais que briguem entre si, não demora, as forças se ajeitam e o mercado da política se acomoda, mas, geralmente, são intolerantes e implacáveis com a traição e a insubordinação de seus capachos, do lado de fora. As perspectivas para a famílicia já não são as melhores. Em São Paulo, a campanha de Boulos é uma das mais bonitas do país, há nela um entusiasmo, um carisma, emoção, interatividade, criatividade e engajamento, que parecem revitalizar as forças de esquerda e o ânimo dos setores populares organizados. Pelas últimas pesquisas, Boulos teria ultrapassado Russomano e, portanto, ocupa o segundo lugar na disputa, credenciando-se ao segundo turno. São Paulo é o epicentro da disputa política nacional, senão latino-americana, ao longo desta semana. A vitória de Guilherme Boulos é uma amarga derrota para os tucanos paulistas, que há anos fazem do Estado, seu ninho privilegiado, e uma pancada no bolsonarismo, representado na patética figura de Celso Russomano. Situação dramática vive também o PT. Seu candidato não decola e sequer foi convidado a participar do debate promovido pela UOL e Folha de São Paulo, pois apenas os quatro primeiros colocados compuseram a mesa. Incômodo ainda maior para o partido ocorrerá se Boulos perder a vaga no segundo turno, pela falta dos votos que foram para o candidato petista. Aí teremos uma disputa entre Bruno Covas e Celso Russomano. Para Lula, talvez não haja cenário pior. Se saiu grande da apertada cela de Curitiba, sairá menor, diante dos olhos do mundo, atentos à entusiasmada campanha, de ampla mobilização popular, que se construiu para combater o fascismo e a direita, a partir da cidade de São Paulo. A uma hora destas, o ronco do motor da Kombi do Boulos está tirando o sono de muito gente. Porém, o que se tira desta história toda, é o fato da gente ainda ter alguma esperança.

 

Marcos Vinícius.

quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Sabiás

 


O pequeno mico saltou de uma árvore para outra, da árvore para os ferros da grade, para outra árvore, e por fim, atravessou a rua, equilibrando-se sobre um fio que conectava dois postes elétricos, sem que fosse poupado um segundo sequer dos ataques de furiosos sabiás que lhe deram fortes e, certamente, dolorosas bicadas. A perseguição foi implacável, vários deles, por um bom tempo e longo percurso atacaram o pequeno primata, sem qualquer trégua ou piedade. Não sei o que fez o macaquinho para merecer tão contundente ataque e parece ter se safado, graças a uma inigualável habilidade em deslocar-se entre árvores, postes e muros. Talvez tenha importunado os pássaros marrons, de bicos finos e avantajados em seus ninhos, alimentando-se de seus ovos, ou ameaçando filhotes, isto não é possível saber. Hoje, tenho sabiás como vizinhos bem próximos, convivemos e trocamos olhares. Possuem um ninho enorme, vistoso, do qual, devem orgulhar seus arquitetos, sobre uma passagem por onde transito. Na maioria das vezes, quando me aproximo, voam em debandada, noutras, porém, posicionam-se bem à minha frente, como, se desta vez, enfim, fossem me impedir a passagem. Encaram-me fixamente, olhos bem abertos, sem piscar, como a medir-me dos pés a cabeça, e permanecem completamente imóveis, inertes, onde até as mais finas penas, resistem aos movimentos do vento. Neste momento, ponho-me a imaginar quantos metros a menos eu precisaria ter para, assim como o pequeno mico que fugia apavorado, ser, também eu, alvo das tão incisivas bicadas. O jeito é torcer para que a altura, peso e volume, de fato, inibam ações mais agressivas das aves guerreiras ou que sejam elas, assim como eu, adeptas das políticas das boas vizinhanças.

 

Marcos Vinicius.

quinta-feira, 24 de setembro de 2020

Paisagem

 


Quando, após dobrar uma curva, deparei -me  com esta paisagem, não pensei duas vezes, saquei o telefone do bolso e, de imediato, tirei a fotografia. Assim que disparei o clique, de dentro do casebre, saiu um senhor, de chapéu de palha, chinelos remendados, uma indumentária esfarrapada e cara de poucos amigos. Encarou-me com o semblante duro, fechado, e com um olhar de pedra. Não respondeu aos meus insistentes cumprimentos, passou sem alterar a expressão, não olhou para trás e logo, desapareceu no caminho. Por um bom tempo, a imagem da fotografia fixou-se também em meus pensamentos e por várias vezes, coloquei-me a contemplá-la detalhadamente.  Mas afinal, o que encontrei de tão curioso e familiar nesta paisagem? Diante de tantos cenários e visões, por que  esta impressionou-me e apenas ela, inspirou-me a fotografia? Pensando no assunto, que agarrou-me aos calcanhares, descubro que, hoje, esta imagem é praticamente um retrato em metáfora de mim mesmo. Solitário no meio da paisagem, mantenho-me de pé, observando o tempo e os escombros que despencam pelo meu interior. O telhado mantém plenamente aberto o abrigo que as portas e as janelas há muito tempo trancaram. As cercas não guardam territórios e já não há proteção ou marcos de propriedade. Ao fundo, o lago vazio e o leito seco, são áreas de pastagens. A terra à frente é vermelha. O dia, porém, é luminoso e o ar é leve. As nuvens carregadas são promessas de chuva e vida, quem sabe um dia, a ponto de transbordar o lago. Por trás da fotografia, os pássaros fazem acrobacias no céu e enchem o mundo com o seu canto efusivo e arrebatador, as flores das redondezas são espetáculos de cores e exuberâncias. E é  por estas e outras, que insisto pelos bons dias e um sorriso breve, nestes lábios enrugados e quebradiços, do velho de semblante duro e olhos de pedra que sai, carrancudo, da paisagem que sou.

 

Marcos Vinicius.

Fotografia: Sumidouro, 22 de setembro de 2020.

quarta-feira, 23 de setembro de 2020

Entre julho e setembro



Á saída da reunião ministerial, Damares, Paulo Guedes, o Conde Drácula, Frankstein, e a liderança do grupo, o boneco Chuky, anunciaram, em rápida coletiva, que, finalmente,  'foi resolvido o problema com o quilo do arroz, e não se fala mais nisto, pois o valioso produto, será a partir de agora, vendido, não mais no peso, mas aos grãos'. Além do que, arroz com feijão é coisa de comunista. Dos elevados platôs morais da terra plana, é lançado o novo prato do dia, do Brasil sem corrupção, do desgoverno Bozo e os irmãos metralha: o novo prato verde e amarelo, macarrão com feijão. Fartem-se, enquanto podem, daqui a pouco chamam o Dória para prescrever a ração. Hi-hó, hi-hó. (10 de setembro).

 

A foto do inominável, o único sem máscaras, em meio a várias autoridades e, mesmo os puxa-sacos de sempre, todos com suas máscaras brancas, devidamente colocadas, em pleno Sete de Setembro, faz-me ver que, além do atoleiro movediço em que nos metemos, acabamos de perder o terrível e cruel desafio que a história nos colocou, frente a frente, qual seja, uma imensa roleta-russa, onde, prontamente, apertamos o gatilho, no justo momento, em que ajusta-se à mira, a pesada bala de chumbo. O mito da independência, enfim, dobra-se à mitificação do absurdo, a uma autofagia pseudopatriótica e à infalível roleta-russa do capitão. Corre o Sete de Setembro de 2020. (07 de setembro).

 

A vitória da morte, pelas vias da política, faz-se tão decisiva, que sequer percebemos, quando desinventaram o luto. O país do mito é uma nação de zumbis, não pelos que já se foram, pois estes, jazem sepultos, mas por estes que fazem da morte, objeto de culto e veneração, vagam carregando as bandeiras da tirania e da tortura, ornados com correntes de ossos, profanando cadáveres e disseminando o ódio. Estes mesmos que, orgulhosos, aprenderam a fazer arminha com a mão, símbolo da conquista de uma cidadania ensandecida, em um país em estado de putrefação, a louvar e eleger demônios e atirar nos próprios pés. O Brasil, sempre tão adormecido, acordou do sono profundo, como um gigante imbecil, que mete a testa ao espelho, pois prefere sangrar, a ver o quanto pode ser feio. (06 de setembro).

 

A covardia e a perversão caminham juntas, lado a lado. O desgoverno que temos, nas excrementíssimas  pessoas do execrável merdatário, e seus entes, doentes, mais próximos, é o retrato acabado, em altíssima resolução, da união de todas as sandices e maldades que a desnatureza humana pôde conceber. A esta altura do campeonato, quem ainda se põe a lamber deste esgoto, é tão mortífero como os piores dos vírus. São putrefatamente escrotos estes canalhas. (03 de agosto)

 

O mesmo primitivismo do pensamento, embotamento da razão, que, por ter fora de seu campo de visão, as curvaturas da Terra, proclama que ela é plana, empunha a bandeira do há que se ver para crer, como das mais confiáveis e preciosas. Diante de um agente patológico mortífero e invisível, que impõe cuidados, consigo mesmo e com os outros, teremos que fazer as contas, a verificar qual vetor apresenta maior letalidade, o vírus, por si só, ou o fundamentalismo da ignorância, a negação plena da sapiência que, a duras penas, nossos mais remotos ancestrais nos deixaram como legado, para que sobrevivéssemos como espécie. Estaremos  à altura de tamanho empreendimento e desafio? (24 de julho).


Marcos Vinícius.


terça-feira, 21 de julho de 2020

Formigas



Não há quem não se admire com a incrível capacidade das formigas em carregar, em seus minúsculos e quase invisíveis tentáculos, pesos mais de cem vezes maiores que o seu. Percorrem longas distâncias transportando, enfileiradas, paus, folhas, insetos, o que quer que possa ser-lhes útil e servir de alimento nas profundezas subterrâneas dos enormes formigueiros. Observando o fluxo intenso de caminhões pesados pela rodovia, me lembrei delas. Nas enormes carrocerias destas máquinas de ferro e aço, transportamos pesos, também, infinitamente maiores que os nossos próprios, em escalas e proporções, maiores mesmos, que os das pequeninas formigas, principalmente, se levamos em conta, os imensos aviões e navios de carga, que atravessam o mundo de uma ponta a outra, se é que tem pontas o mundo. E há mesmo quem diga, que bastaria uma alavanca e um ponto de apoio, para deslocá-lo de sua órbita. Diante disto, alguém poderia dizer, Ah, pois, então, veja como as superamos e realizamos proezas ainda maiores. Penso que não há engano maior. As pequenas o fazem com as forças próprias, sem recorrerem a motores ou ferramentas. Sim, nós carregamos a tal inteligência criadora que nos possibilita realizações que também impressionam. O que tem que se levar em conta, é que, a depender dos recursos, o empenho e o trabalho hercúleo das formigas, creio que, milhões de anos poderão se passar e o mundo permanecerá vivo e saudável, girando em sua órbita própria, em uma infinita sucessão de estações, já quanto a nós, o uso desenfreado da inteligência que nos permitiu carregar pesos incalculáveis, também poderá levar o planeta inteiro a um estado de devastação irreversível, onde sequer a vida das pequenas formigas será possível. Aí sucumbiremos todos, sob o peso das ilusões que jogamos sobre os ombros.

Marcos Vinicius.