Marcos Vinícius.
Marcos Vinícius
Contos e Crônicas
quinta-feira, 28 de janeiro de 2021
Peleja
sexta-feira, 22 de janeiro de 2021
Asas e antenas
Nunca tive uma relação amistosa
com os insetos, principalmente, se estão dentro de casa. Coloco-os para fora,
espanto-os ou até mesmo, em último caso, acabo por matá-los, quando são
ameaçadores como os pernilongos, muriçocas e congêneres. Há ainda aqueles grandes,
volumosos e pesados que, causam certa repugnância e melhor seria se
permanecessem nas copas das árvores, em meio as folhas e arbustos, de onde,
certamente, saíram, e ainda há um mundo assim à disposição deles. Se os
encontro dentro do quarto então, não durmo enquanto não me livro das incômodas
presenças, a exceção de mosquitinhos menores ou as pequenas mariposas. Quando
são muitos, em enxame, e não dão sossego, não penso duas vezes antes de
borrifá-los com o inseticida, livrando-me do desconforto. Mas como a vida é uma
caixa de surpresas, hoje vivi uma situação inédita e interessante com um deles.
Aproximei-me da mesa branca que tenho nos fundos de casa e, acima dela, um
inseto bem pequenino tentava, sem sucesso, alçar vôo. Ele levantava-se, rodopiava
no ar e caía novamente, tentava repetidas vezes, sem conseguir engrenar um vôo
que o tirasse dali. Aparentemente, de forma involuntária, voava em círculos,
sem livrar-se da mesma órbita. Tentou várias vezes e a trajetória era sempre a
mesma. Girava, girava, girava, e não saía do lugar. Depois de um tempo,
certamente, cansado das infrutíferas tentativas, permaneceu em repouso sobre a
mesa. Aí pude observá-lo de perto e atentamente. Nunca havia visto uma espécie
assim. É um inseto bem pequenino, com asas longas, arredondadas, compridas e
transparentes. Tem duas antenas enormes, finíssimas, cada uma delas infinitas
vezes maior que o conjunto dos demais membros do corpo do minúsculo
invertebrado. É realmente impressionante a extensão das antenas, e fico imaginando
como deve ser viver com uma estrutura assim. Ao aproximar-me ainda mais do
quase invisível ser, observo que as duas antenas estavam presas uma na outra
por um pequeníssimo fiapo embolado entre elas. Neste momento, resolvi realizar
uma boa ação voltada a um inseto. É muito comum vermos imagens de pessoas
salvando cães, gatos, pássaros, mamíferos, em geral, mas, salvar, desta forma,
a vida de um inseto, imagino que seja algo incomum, a ponto de merecer
registro. Pois então. Peguei um pequeno graveto do chão, arranquei-lhe duas
lascas e, com uma delas, com o máximo de delicadeza possível, prendi,
levemente, as antenas na mesa e, com a outra lasquinha, em uma minuciosa
operação, arranquei o fiapo embaraçante que amarrava uma antena à outra. No
instante em que soltei o bichinho, ele esticou os dois articulados apêndices,
como a conferir se tudo já se encontrava em ordem e, rapidamente, levantou um
vôo certeiro, em linha reta e em direção ao céu. Não mais o vi. Talvez tenha
mudado, a partir do episódio, a minha relação com estes seres tão estranhos a
nós, ainda há que se confirmar, mas o certo é que arranquei o pequeno fio,
realizando uma minúscula boa ação e, mesmo que, quase invisível, ainda assim,
proporcionou o encanto e a alegria de fazer voar.
Marcos Vinícius.
terça-feira, 12 de janeiro de 2021
Morte!
Já passava da meia noite, quando
ela se aproximou. As ruas estavam vazias e escuras. Um vento forte nas
encruzilhadas levantava a poeira do chão e varria as folhas secas do asfalto,
soltando um assobio longo e fino que, em seguida, trazia o silêncio total. Vez
ou outra, um uivo insone de um cão solitário, propagava-se pelo mundo, não se
sabe de onde. A lua buscava abrir brechas nas nuvens escuras e densas que
pairavam sobre os telhados adormecidos, enchendo a noite de breus e sombras.
Fazia frio e as poucas lâmpadas acesas tinham o lume fraco e instável e apenas
se via o vulto das coisas. A rua estava completamente deserta, a madrugada
avançava, e apenas um gato cinzento, de pelo rajado e olhos luminosos, passava
pela calçada, quando a tampa do esgoto se levantou. O pequeno felino, arrepiado
da ponta do rabo às orelhas, num salto gigante, como se tivesse asas,
desaparece entre o topo dos edifícios, sem soltar um único miado. Ela põe-se de
pé. Ajeita-se no vestido negro, abaixa ainda mais o capuz, de modo a deixar às
escondidas sua face branca e cadavérica. Os olhos estão invisíveis dentro das
órbitas largas, profundas e escuras. As mãos ossudas, de unhas grandes e sujas,
seguram firme, apesar de trêmulas, o cabo da foice, com o qual, como um cajado,
dá batidas no chão, como um sinal. Atrás de si, um séquito fantasmagórico de
almas penadas e errantes, grita em um coro uníssono - Morte! Morte! Morte! -
Ela volta-se para eles, solta-lhes um sorriso raivoso de desprezo, levanta o
cabo da foice e ordena – Avante, seus desamparados! E as almas, novamente –
Morte! Morte! Morte! - Ela, então, arrasta-se pela avenida. Algumas
assombrações bajuladoras mais próximas levantam-lhe as correntes, que ainda
assim, rastejam pela calçada, enchendo a noite do barulho dos ferros e de um
cheiro de ferrugem. - Vamos seus frouxos, rápido com isto. Temos muito o que
fazer - E põe-se a caminho do Palácio. Alta madrugada, os morcegos
aproveitam-se da densa escuridão e sobrevoam as torres dos edifícios do alto
escalão do governo nacional. Por fim, com seu manto invisível dentro do breu da
noite, e com a foice em punho, acompanhada de seu séquito de espectros
subservientes e aos gemidos de Morte! Morte! Morte! transpõem os portões e
muros do Palácio e ocupam o trono máximo do Governo Nacional. Pronto – ela diz
– Ocupem os seus postos, há muito trabalho pela frente - Ela dá um salto, fica
de pé sobre a enorme mesa do Governo, onde são tomadas todas as medidas e
decisões de âmbito nacional, bate repetidas vezes com o cabo da foice sobre a
madeira envernizada e proclama – Pois já chega de enviar intermediários, estes
só me trazem dores de cabeças e não resolvem de vez minhas demandas, cansei-me
dos paliativos, agora, mais que nunca, é necessário resolver os problemas à
raiz. Até entendo que os incompetentes tenham se esforçado o quanto puderam,
mas ao fim e ao cabo, foram mal sucedidos. Realizaram massacres, carnificinas,
genocídios de toda a ordem, e os povos e os países estão aí, ainda todos de pé.
Quando das conquistas dos continentes e da escravização em massa, nos
aproximamos como nunca das metas, mas ainda era pouco, fizeram anos de guerras
totais, mundiais, levantaram os campos de extermínio, as câmaras de gás, os
paredões, as bombas atômicas, inventaram a fome crônica, as pestes, tocaram fogo
em hospitais, incendiaram cidades inteiras, inventaram as armas químicas,
transformaram os rios em esgotões, afinal sem água não há vida, não é assim? De
nada adiantou. O mundo continua girando na mesma órbita e a espécie põe-se, com
tudo, a proliferar. Basta! - Irritada e resoluta, mete outra vez o cajado sobre
o tampo da mesa. As almas gemem – Morte! Morte! Morte! – Ao trabalho, espíritos
putrefatos. Já disse que há muito o que fazer. Chega das poucas coisas e das
obras pequenas, chega de misericórdias e pequenez. Viemos para a obra fatal e
grandiosa. Este mundo que é grande, ainda assim, não é para todos, há gente
demais a consumir os recursos e há quem deles, necessite esbanjar, além do que,
acabou-se o tempo da política e a era das supostas resoluções das coisas, da
era dos paliativos e de se tampar sol com as peneiras. A terra está cansada e
faminta. Enfim, basta de intermediários, Eu mesma, fiz-me governo. Eu mesma
executarei o que tiver de ser. Eu mesma darei de comer à terra. Ao trabalho!
Daqui mesmo, deste amplo gabinete, já sairemos com o ministério formado. E
lembrem-se, flores aqui, nem para os que morrem, cansei-me dos ornamentos. Será
um Ministério enxuto, não há necessidade de muitas pastas, pois o trabalho não
é dos mais difíceis e o executarei com prazer, além do que, será rápido. Basta
de delongas, lengalengas. A terra tem fome, o mercado tem urgência, e eu sim,
tenho muita pressa. Não é mais o tempo de se perder tempo - Ela pousa os ossos da mão sobre o encosto da
cadeira, apoia-se, e curva-se até uma das grandes gavetas da mesa, abrindo-a.
Tira da lá uma pasta cheia de papéis e documentos. Levanta uma folha de papel
até a altura da cavidade dos olhos e lê em voz alta e jocosa - Ministério de
Agricultura? Mais que diabos é isto? Não entendo como ainda gira o mundo com
tamanhas incompetências. De agora em diante, chamar-se-á Ministério da Fome e
do Desabastecimento. Aliás, pelo que vejo, haverá uma mudança radical na
formação e nas estruturas do meu novo e mórbido Ministério. - Então, suas almas
perdidas, degeneradas, ouçam os nomes das novas pastas, para ver em quais delas
se encaixam. Ministério da Guerra à Ciência, Ministério da Deseducação,
Ministério das Explosões e Dinamites, Ministério das Armas, da Injustiça, da
Devastação e do Desplanejamento, ah, e o Ministério das Pestes. Penso que é um
bom começo. Façamos aqui nossas mortíferas experiências e apostas, e caso se dê
como nos planos, em breve, tomaremos também outros países, outras praças,
esgotos abertos pelo mundo não há de faltar, disso sabemos. O dia do triunfo
chegará. Por aqui, temos um bom laboratório e a história não nos permitirá
falhar. Por fim, abriremos uma cova enorme, gigantesca, monumental, para
enfiarmos quase um país inteiro. Monumental, disto se trata. Não fizeram os
antigos, nos primórdios da civilização, obras monumentais, faraônicas, para
guardarem os seus mortos? Sim. A coisa não funcionou? Hoje construiremos uma
sepultura que será um país inteiro, um cemitério fortaleza, não para proteger
os mortos, mas para atirar-lhes os vivos. Já não se trata mais do nascimento de
uma civilização, mas do seu fim. Afinal, hoje sou em quem mando. Chegou a minha
vez. Que se componha, de imediato, o Ministério das Demolições e cavem, cavem,
até quase o outro lado do mundo, a maior das covas já vistas. A cova suprema.
Depois, enchem-na até a boca e por fim, terra e concreto por cima de todos.
Eufórico, o coro é retomado - Morte! Morte! Morte! - E a Morte se fez.
Marcos Vinícius.
quarta-feira, 30 de dezembro de 2020
Olá, Belchior
João me ligou agora há pouco.
Estava feliz e eufórico. Não era para menos. Acabou de ganhar um disco com as
vinte músicas mais conhecidas de Belchior. Ele diz estar maravilhado com o
presente, pois, como já conhece de cor a letra de todas as músicas, coloca o
som bem alto, e se põe a cantar também. Segundo ele, não há terapia melhor para
aliviar o estresse e o cansaço e que, quanto mais canta, mais tem vontade de
cantar, sentindo-se alegre e revigorado. Na noite passada, ouviu o disco por
diversas vezes e adormeceu ouvindo o canto mágico de Bel. De repente, abriu os
olhos. O dia estava claro e uma revoada de pássaros passou sobre sua cabeça,
enchendo os céus de uma música afinadíssima e alegre. Ao longe, ouvia-se o
ronco de alguma cachoeira. Como havia chovido quase a noite inteira e o sol
despontava radiante, o verde ao redor tornara-se tão intenso, que mais parecia
um cenário de sonhos. Ele caminhava sozinho por uma estreita trilha de terra,
ainda húmida pela chuva da madrugada e, imediatamente, após abaixar-se para
desviar-se de um tronco que se punha no caminho e colocar-se novamente de pé,
quem vê à sua frente? Ninguém menos que Belchior. Surpreso, e sem entender
tamanha coincidência e sorte, cumprimenta o poeta que, também andava só, porém
em sentido oposto ao seu. – Bom dia. Belchior? Não acredito. Nossa, que sorte a
minha. O que faz por aqui? Que felicidade em vê-lo. Agora mesmo, acabo de
ganhar um belíssimo disco seu. Isto é que é presente. Belchior posta-se à sua
frente, a trilha ali ainda é mais estreita, o mato se fecha, e enquanto um
atravessa, o outro tem que aguardar. Belchior observa-o, silenciosamente, e não
dá muita importância aos cumprimentos. João insiste - Belchior, sou o maior fã
que há. Não imagina o prazer que é encontrá-lo por aqui. Está só? Pois eu
também. Posso fazer-lhe companhia? Belchior encara-o, fixamente, olhos nos
olhos, e diz apenas, “O passado é uma roupa que não nos serve mais”. João, curioso, em tom amável e sem dar a
passagem, responde – Amo esta sua música, como amo todas as outras também.
Diga-me, Bel, para onde vai? Eu estou sem horários ou compromissos. Seria uma
honra poder acompanhá-lo. “Saia do meu caminho, eu prefiro andar sozinho,
deixem que eu decida a minha vida”, diz o cantor, que mostrava-se impaciente
com seu interlocutor. João, sem graça, um calor abrasador lhe subia a face a
ponto de enrubescê-la, resolve, porém, não desperdiçar a oportunidade do raro
encontro. Desculpe-me, Belchior - ele disse, abrindo o caminho - De forma
alguma traria incômodos ou inconveniências a quem só me proporcionou alegrias.
Mas diga-me Bel, por onde tem andado? “Se você vier me perguntar por onde andei
no tempo em que você sonhava, de olhos abertos lhe direi, amigo eu me
desesperava”, responde o poeta. Mas está tudo bem com o senhor? Insiste João,
tentando ser amigável. “A minha alucinação é suportar o dia-a-dia, e meu
delírio é a experiência com coisas reais”, diz Belchior, que dá as costas, e
segue pela trilha sem olhar para trás. Mas Belchior - implora João - permita-me
apenas fazer algumas perguntinhas, por favor. Não é necessário chatear-se,
diga-me apenas por onde anda e por que o mau humor? Neste instante, Belchior
interrompe os passos e vira-se para ele com um sorriso amigável e diz – “Eu
sinto tudo na ferida viva do meu coração”. “Meu bem, o meu lugar é onde você
quer que ele seja, não quero o que a cabeça pensa, eu quero o que a alma
deseja”, “Mesmo vivendo assim, não me esqueci de amar...”, “A noite fria me
ensinou a amar mais o meu dia, e pela dor eu descobri o poder da alegria”.
Neste instante, João é tomado de grande alegria e entusiasmo. Outra vez, uma
grande revoada de pássaros enche o céu de cantorias. Um pássaro, maior que os
outros, com o bico preto e afunilado, penas cinzas e peito amarelo, pousa
suavemente sobre os ombros do poeta, que ainda diz – “Meu bem, talvez você
possa compreender a minha solidão, o meu som e a minha fúria e essa pressa de
viver”, “Aparências, nada mais, sustentaram nossas vidas que apesar de mal
vividas têm ainda uma esperança de poder viver”. Belchior abre um sorriso
sincero e amável para João que, tímido e desconcertado, arrisca ainda uma
pergunta – O que tem feito de bom? – “Tenho ouvido muitos discos, conversado
com pessoas, caminhado meu caminho”, “Amar e mudas as coisas me interessa
mais”. Os dois estão em pé, um olhando para o outro. João não consegue
conter-se em entusiasmos e indaga – Tem acompanhado as coisas todas que tem
acontecido no Brasil? Belchior dá um sorriso sem graça, lança um olhar
consternado e diz – “Tenho comigo pensado, Deus é brasileiro e anda do meu
lado, e assim já não posso sofrer no ano passado”. Dá uma piscadela para João e
acrescenta – “Por força deste destino, um tango argentino me vai bem melhor que
um Blues”. Neste minuto, um silêncio se interpõe entre eles, quebrado apenas
por um bando de andorinhas cantadoras que realizam uma coreografia sobre a
cabeça dos dois. Belchior põe-se a andar. João o chama. – Belchior, há saída? –
“Falaremos para a vida: vida, pisa devagar, meu coração, cuidado, é frágil”,
“Você não sente nem vê, meu amigo, que uma nova mudança em breve vai acontecer”
- ele responde. Belchior lhe dá um aceno em despedida, vira-se e segue pela
trilha. No terceiro passo, um muro branco, caiado, aparece à margem esquerda do
caminho. O poeta retira um pincel do bolso, volta-se, mais uma vez para João,
as andorinhas dão-lhe uma rasante, esvoaçando sua cabeleira, e ele diz – “E a
certeza que tenho coisas novas, coisas novas pra dizer”. O poeta banha o pincel
em uma lata de tinta que carregava nas mãos, leva-o até a parede branca e grita
para João – “Sonho e escrevo em letras grandes de novo pelos muros do país”. É
o instante em que João desperta e o disco ainda tocava, era a última faixa. O
fato é que João levantou-se, foi ao banheiro e correu de volta para a cama, na
tentativa de retomar o sonho. Inútil. Dormiu uma noite inteira como uma pedra e
ninguém mais o visitou durante o sono. Agora, me atormenta ao telefone querendo
que o ajude a descobrir o que é que Belchior já ia escrever naquele muro. Tem
como?
Marcos Vinícius.
segunda-feira, 28 de dezembro de 2020
Raskólnikov
Neste ano, finalmente, pude ler
Crime e Castigo, de Dostoiévski. Esta obra monumental e intrigante, tem como
protagonista, Raskolnikov, um jovem estudante, que resolve assassinar uma velha
agiota, e assim o faz, de forma fria e calculada. Após o assassinato brutal,
Raskolnikov é assolado por um tormento tal que o adoece a ponto de, por fim,
confessar a sua culpa. Ainda que na conturbada mente de um assassino confesso,
o autor assoma uma dimensão ética à condição humana, onde o próprio assassino,
não vê alternativas possíveis, além do sofrimento, a prisão e o castigo.
Raskolnikov é uma metáfora as avessas do que se tornou uma parte do Brasil.
Quais foram as barreiras éticas demolidas para que agentes do crime organizado
transformem-se em símbolos de salvação nacional? Quais foram os limites que
tivemos que transgredir para que autodenominados cristãos, substituam a
dimensão do sagrado pela violência da pólvora? Onde perdemos a compaixão? O que
terá ocorrido pelo meio do caminho para que um pedaço da sociedade brasileira
eleja como mito, quem adota políticas genocidas, como recusar-se a imunizar o
país, deixando uma população inteira refém de um vírus demolidor, além de
desdenhar das centenas de milhares de mortes alheias? Lembra-se que as metas
iniciais eram uns trinta mil? A quantas andam as contabilidades dos genocidas
que nunca dormem? Onde foi que nos tornamos isto? Talvez, lá das brumas e
névoas da São Petersburgo do século XIX, Raskolnikov nos observe, atônito e assustado, de ver como
por aqui, fazemos da morte, espetáculo, redenção e glória, em uma terra sem
leis, onde o crime, sequer merece o castigo. E com indiferença, fria e mórbida,
não enxergamos os mortos.
Marcos Vinícius.
sábado, 26 de dezembro de 2020
Palavra em transe
Não faz muito tempo, a palavra
todos meteu-se em encrencas. Se alguém se dirige ao público e diz, todos aqui
estão convidados ou todos os presentes deverão comparecer, logo aparecerá quem
dirá que uma fala destas, traz conotações carregadas de discriminação de
gênero, pois afinal, ali, estariam reunidos não apenas homens, mas também as
mulheres. A partir desta descoberta, creio que é uma descoberta deste século,
não são poucas as reuniões ou encontros em que agora ouvimos, todos e todas
estão convidados e convidadas ou todos e todas deverão usar trajes esportivos.
Não sou conhecedor das artes gramaticais, mas a primeira vista, ou aos
primeiros ouvidos, a impressão que tenho, é de ser algo desnecessário,
redundante, onde o discurso parece abrir-se já enfadonho e duvido mesmo que
alguém que preze pelas boas literaturas assinaria um texto com esta inovação.
Porém, se um dia me convencer que a nova prática poderá, de alguma forma, de
fato, resolver problemas de gênero, ponho-me de acordo. Ocorre que agora, mais
recentemente, a palavra todos meteu-se em encrencas ainda maiores. Como se já
não bastasse o enjoado todos e todas, há agora uma nova vanguarda de militantes
que resolveram que todos ou todas já não bastam, é necessário uma nova
variação, e eis que surgem as expressões todes e todxs, para abarcar todos os
gêneros possíveis, e só não sei ainda se a palavra todos ainda continuaria
valendo. Como miséria pouca é bobagem e nisto somos especialistas, vem agora o
gênio-mor-semianalfabeto, vereadore Carluxo, e apresenta na câmara municipal do
Rio de janeiro, um projeto de lei proibindo “terminantemente’ o uso destas
expressões inovadoras, para evitar “perversões e alterações maliciosas e
progressistas” no uso da Língua, podendo, inclusive, suspender os alvarás das
escolas que violarem a norma. Alguém deve ter soprado para o energúmeno, que
esta dinâmica da língua é resultado de alguma conspiração comunista e aí
resolve-se o problema com a ditadura da palavra, o engessamento e a
perseguição, os remédios mais apropriados para conterem as perversões destes
corrompidos que aprendem o português nas cartilhas impressas em Cuba, na
Venezuela, sabe-se lá, na China. Além dos males todos que dividimos, nunca
perdemos o hábito de criarmos outros tantos, afinal, filhos de um tempo onde
tudo já parece ter sido inventado e dito, é necessário então, criarmos outras
modalidades de chatices, pedantismos e autoritarismos. E neste aspecto, somos
vocacionados, não é a toa que uma figura destas, que imagina ser capaz de
conter a dinâmica viva da língua em um projeto de lei, sem pé nem cabeça, tenha
sido o segundo mais votado para a câmara da cidade do Rio de Janeiro.
Marcos Vinícius.
sábado, 14 de novembro de 2020
Às urnas
Amanhã é dia de retornarmos às
urnas. Já são dois anos que o fizemos pela última vez e os estragos são, não
apenas explicitamente visíveis, como a maioria da população brasileira já sente
na pele, muitos no estômago, a dimensão da irresponsabilidade que a cada dois
anos deposita nas urnas. Amanhã vou até a urna com um sentimento de apreensão,
não apenas pelos excessos de precauções sanitárias que há que se tomar até o
momento do voto, mas pelos resultados que colheremos de nossas novas escolhas.
Obviamente, não podemos nos largar das esperanças, pois sem elas, o que nos
resta? Porém, ao observarmos um pouco atentamente o Brasil que vai às urnas,
não nos faltará motivos para preocupações. O Brasil que vai às urnas é um país
doente, não apenas pela pandemia que já matou mais de cento e sessenta mil
brasileiros e pelos milhões de infectados, mas por possuir um eleitorado de uma
irresponsabilidade tal que, pode alçar aos cargos de controle e aos governos,
loucos, perversos, sádicos, assassinos, malfeitores de toda a ordem, da noite
para o dia. Nos últimos anos, o festival de ignorância e de absurdos que temos
visto, por parte de uma ampla parcela do eleitorado, realmente, é de fazer cair
o queixo e arrepiar os cabelos. O Brasil que vai às urnas amanhã é um país que
desconhece seu passado, ainda cai nas mesmas armadilhas de sempre, a cada
eleição, mais sofisticadas, um país que mitifica bandidos e sádicos, e
especializou-se na arte de atirar nos próprios pés. O Brasil que vai às urnas
amanhã ainda carrega quem defenda torturas, ditaduras, genocídios, extermínios
em massa e a senzala. O Brasil que vai às urnas amanhã é o país que lota
templos suntuosos, supostamente cristãos, onde fiéis louvam a deus fazendo
arminhas com a mão. É um país de desigualdades profundas. O Brasil que vai às
urnas amanhã é o país da impunidade, da fake news, do império da mentira, que
aplaude a retirada de direitos, a pena de morte, a subserviência e o
entreguismo. O Brasil que vai às urnas amanhã é o país do dedo duro, do puxa
saco, do lambe botas, dos sem noção, da não ciência, que queima livros, apaga a
poesia, desconstrói conhecimentos, culturas e saberes. O Brasil que vai às
urnas amanhã é o Brasil sem saúde, sem educação, sem políticas públicas, sem
criatividade política, é o país que nega cidadanias e a própria vida. O Brasil
que vai às urnas amanhã é o Brasil que estaciona sobre o meio fio, fura filas,
avança os sinais, que atropela sem olhar para trás, do golpe fácil, da mentira
deslavada. É o país onde há quem defenda que a Terra é plana, que é contra
vacinas, e que diante da economia e do capital, a vida é nada. O Brasil que vai
às urnas amanhã é o Brasil, onde morrem mil pessoas a cada dia, vítimas do novo
coronavírus e da ignorância em sua modalidade mais mortífera e assustadora. O
Brasil, onde se enterram mil a cada dia, mortos pela pandemia, é o Brasil que
programa festas, comemorações, churrascos, reuniões familiares, enche os bares,
visita parentes, amigos, vizinhos, onde se tosse uns sobre os outros. É o
Brasil que mata o segurança do supermercado, ao ser cobrado sobre cuidados
mínimos. O Brasil que vai às urnas amanhã é um pobre doente, trocou os sonhos
pelo engano, e aglomera-se com a máscara no pescoço. São mais de quinhentos mil
candidatos na disputa em todo o país. O que sairá daí? Ouço muitos candidatos
dizendo que há que se votar com a esperança, pois o voto do ódio já nos trouxe
estragos demais. Que assim seja. Um bom voto para todos.
Marcos Vinícius.
sexta-feira, 13 de novembro de 2020
Novembro
Nos últimos dias, em São Paulo,
no Brasil e nas vizinhanças, temos vivido momentos de euforia e entusiasmo
entre as forças democráticas, progressistas e de esquerda, apesar de tantos
absurdos e retrocessos. A vitória das forças populares no Chile que, em
plebiscito, disseram não a constituição de Pinochet, a expulsão dos golpistas
do governo da Bolívia, a derrota de Trump e a ascensão da candidatura de
Guilherme Boulos, em São Paulo, reacenderam esperanças, como há muito não se
via aqui entre nós. O governo Bolsonaro vai se enveredando por tortuosos
caminhos de contradições e embaraços, perversidades e psicopatias, a ponto de
tornar-se, a cada dia, mais difícil até mesmo para seus mais fiéis e fanáticos
seguidores, armar-se de qualquer defesa, dentro de qualquer razoabilidade. A
ameaça de guerra aos EUA, pois, é disso que se trata quando se fala em pólvora,
lança o bolsonarismo na esfera do ridículo, de forma ainda mais radical e com
repercussões globais, para muito além dos terraplanismos. Talvez Bolsonaro
tenha dado, com o episódio, um dos maiores tiros no pé, pois os gigantes de lá,
por mais que briguem entre si, não demora, as forças se ajeitam e o mercado da
política se acomoda, mas, geralmente, são intolerantes e implacáveis com a
traição e a insubordinação de seus capachos, do lado de fora. As perspectivas
para a famílicia já não são as melhores. Em São Paulo, a campanha de Boulos é
uma das mais bonitas do país, há nela um entusiasmo, um carisma, emoção,
interatividade, criatividade e engajamento, que parecem revitalizar as forças
de esquerda e o ânimo dos setores populares organizados. Pelas últimas
pesquisas, Boulos teria ultrapassado Russomano e, portanto, ocupa o segundo
lugar na disputa, credenciando-se ao segundo turno. São Paulo é o epicentro da
disputa política nacional, senão latino-americana, ao longo desta semana. A
vitória de Guilherme Boulos é uma amarga derrota para os tucanos paulistas, que
há anos fazem do Estado, seu ninho privilegiado, e uma pancada no bolsonarismo,
representado na patética figura de Celso Russomano. Situação dramática vive
também o PT. Seu candidato não decola e sequer foi convidado a participar do
debate promovido pela UOL e Folha de São Paulo, pois apenas os quatro primeiros
colocados compuseram a mesa. Incômodo ainda maior para o partido ocorrerá se
Boulos perder a vaga no segundo turno, pela falta dos votos que foram para o
candidato petista. Aí teremos uma disputa entre Bruno Covas e Celso Russomano.
Para Lula, talvez não haja cenário pior. Se saiu grande da apertada cela de
Curitiba, sairá menor, diante dos olhos do mundo, atentos à entusiasmada
campanha, de ampla mobilização popular, que se construiu para combater o
fascismo e a direita, a partir da cidade de São Paulo. A uma hora destas, o
ronco do motor da Kombi do Boulos está tirando o sono de muito gente. Porém, o
que se tira desta história toda, é o fato da gente ainda ter alguma esperança.
Marcos Vinícius.
quarta-feira, 11 de novembro de 2020
Sabiás
O pequeno mico saltou de uma
árvore para outra, da árvore para os ferros da grade, para outra árvore, e por
fim, atravessou a rua, equilibrando-se sobre um fio que conectava dois postes
elétricos, sem que fosse poupado um segundo sequer dos ataques de furiosos
sabiás que lhe deram fortes e, certamente, dolorosas bicadas. A perseguição foi
implacável, vários deles, por um bom tempo e longo percurso atacaram o pequeno
primata, sem qualquer trégua ou piedade. Não sei o que fez o macaquinho para
merecer tão contundente ataque e parece ter se safado, graças a uma inigualável
habilidade em deslocar-se entre árvores, postes e muros. Talvez tenha
importunado os pássaros marrons, de bicos finos e avantajados em seus ninhos,
alimentando-se de seus ovos, ou ameaçando filhotes, isto não é possível saber.
Hoje, tenho sabiás como vizinhos bem próximos, convivemos e trocamos olhares.
Possuem um ninho enorme, vistoso, do qual, devem orgulhar seus arquitetos,
sobre uma passagem por onde transito. Na maioria das vezes, quando me aproximo,
voam em debandada, noutras, porém, posicionam-se bem à minha frente, como, se
desta vez, enfim, fossem me impedir a passagem. Encaram-me fixamente, olhos bem
abertos, sem piscar, como a medir-me dos pés a cabeça, e permanecem
completamente imóveis, inertes, onde até as mais finas penas, resistem aos
movimentos do vento. Neste momento, ponho-me a imaginar quantos metros a menos
eu precisaria ter para, assim como o pequeno mico que fugia apavorado, ser,
também eu, alvo das tão incisivas bicadas. O jeito é torcer para que a altura,
peso e volume, de fato, inibam ações mais agressivas das aves guerreiras ou que
sejam elas, assim como eu, adeptas das políticas das boas vizinhanças.
Marcos Vinicius.
quinta-feira, 24 de setembro de 2020
Paisagem
Quando, após dobrar uma curva,
deparei -me com esta paisagem, não
pensei duas vezes, saquei o telefone do bolso e, de imediato, tirei a
fotografia. Assim que disparei o clique, de dentro do casebre, saiu um senhor,
de chapéu de palha, chinelos remendados, uma indumentária esfarrapada e cara de
poucos amigos. Encarou-me com o semblante duro, fechado, e com um olhar de
pedra. Não respondeu aos meus insistentes cumprimentos, passou sem alterar a
expressão, não olhou para trás e logo, desapareceu no caminho. Por um bom
tempo, a imagem da fotografia fixou-se também em meus pensamentos e por várias
vezes, coloquei-me a contemplá-la detalhadamente. Mas afinal, o que encontrei de tão curioso e
familiar nesta paisagem? Diante de tantos cenários e visões, por que esta impressionou-me e apenas ela, inspirou-me
a fotografia? Pensando no assunto, que agarrou-me aos calcanhares, descubro
que, hoje, esta imagem é praticamente um retrato em metáfora de mim mesmo.
Solitário no meio da paisagem, mantenho-me de pé, observando o tempo e os
escombros que despencam pelo meu interior. O telhado mantém plenamente aberto o
abrigo que as portas e as janelas há muito tempo trancaram. As cercas não
guardam territórios e já não há proteção ou marcos de propriedade. Ao fundo, o
lago vazio e o leito seco, são áreas de pastagens. A terra à frente é vermelha.
O dia, porém, é luminoso e o ar é leve. As nuvens carregadas são promessas de
chuva e vida, quem sabe um dia, a ponto de transbordar o lago. Por trás da
fotografia, os pássaros fazem acrobacias no céu e enchem o mundo com o seu
canto efusivo e arrebatador, as flores das redondezas são espetáculos de cores
e exuberâncias. E é por estas e outras,
que insisto pelos bons dias e um sorriso breve, nestes lábios enrugados e
quebradiços, do velho de semblante duro e olhos de pedra que sai, carrancudo,
da paisagem que sou.
Marcos Vinicius.
Fotografia: Sumidouro, 22 de
setembro de 2020.
quarta-feira, 23 de setembro de 2020
Entre julho e setembro
Á saída da reunião
ministerial, Damares, Paulo Guedes, o Conde Drácula, Frankstein, e a liderança
do grupo, o boneco Chuky, anunciaram, em rápida coletiva, que, finalmente, 'foi resolvido o problema com o quilo do arroz,
e não se fala mais nisto, pois o valioso produto, será a partir de agora,
vendido, não mais no peso, mas aos grãos'. Além do que, arroz com feijão é
coisa de comunista. Dos elevados platôs morais da terra plana, é lançado o novo
prato do dia, do Brasil sem corrupção, do desgoverno Bozo e os irmãos metralha:
o novo prato verde e amarelo, macarrão com feijão. Fartem-se, enquanto podem,
daqui a pouco chamam o Dória para prescrever a ração. Hi-hó, hi-hó. (10 de
setembro).
A foto do inominável, o
único sem máscaras, em meio a várias autoridades e, mesmo os puxa-sacos de
sempre, todos com suas máscaras brancas, devidamente colocadas, em pleno Sete
de Setembro, faz-me ver que, além do atoleiro movediço em que nos metemos,
acabamos de perder o terrível e cruel desafio que a história nos colocou,
frente a frente, qual seja, uma imensa roleta-russa, onde, prontamente,
apertamos o gatilho, no justo momento, em que ajusta-se à mira, a pesada bala
de chumbo. O mito da independência, enfim, dobra-se à mitificação do absurdo, a
uma autofagia pseudopatriótica e à infalível roleta-russa do capitão. Corre o
Sete de Setembro de 2020. (07 de setembro).
A vitória da morte, pelas
vias da política, faz-se tão decisiva, que sequer percebemos, quando
desinventaram o luto. O país do mito é uma nação de zumbis, não pelos que já se
foram, pois estes, jazem sepultos, mas por estes que fazem da morte,
objeto de culto e veneração, vagam carregando as bandeiras da tirania e da
tortura, ornados com correntes de ossos, profanando cadáveres e disseminando o
ódio. Estes mesmos que, orgulhosos, aprenderam a fazer arminha com a mão,
símbolo da conquista de uma cidadania ensandecida, em um país em estado de
putrefação, a louvar e eleger demônios e atirar nos próprios pés. O Brasil,
sempre tão adormecido, acordou do sono profundo, como um gigante imbecil, que
mete a testa ao espelho, pois prefere sangrar, a ver o quanto pode ser feio.
(06 de setembro).
A covardia e a perversão
caminham juntas, lado a lado. O desgoverno que temos, nas excrementíssimas pessoas do execrável merdatário, e seus
entes, doentes, mais próximos, é o retrato acabado, em altíssima resolução, da
união de todas as sandices e maldades que a desnatureza humana pôde conceber. A
esta altura do campeonato, quem ainda se põe a lamber deste esgoto, é tão
mortífero como os piores dos vírus. São putrefatamente escrotos estes canalhas.
(03 de agosto)
O mesmo primitivismo do
pensamento, embotamento da razão, que, por ter fora de seu campo de visão, as
curvaturas da Terra, proclama que ela é plana, empunha a bandeira do há que se
ver para crer, como das mais confiáveis e preciosas. Diante de um agente patológico
mortífero e invisível, que impõe cuidados, consigo mesmo e com os outros,
teremos que fazer as contas, a verificar qual vetor apresenta maior letalidade,
o vírus, por si só, ou o fundamentalismo da ignorância, a negação plena da
sapiência que, a duras penas, nossos mais remotos ancestrais nos deixaram como
legado, para que sobrevivéssemos como espécie. Estaremos à altura de tamanho empreendimento e desafio?
(24 de julho).
Marcos Vinícius.