A viagem de Pedro
Pedro era de uma família de lavradores, e pelo que se tem notícia, das mais antigas daquele grotão. Pelo que se conta, do que os familiares muito se orgulham, seus antepassados já cultivavam aquela terra, aquele mesmo solo, há dezenas de gerações; coisa que se diz de boca em boca, à boca miúda, mas que nem a ciência, com todos os seus métodos e experimentações, poderá um dia, de fato, provar. A considerar o espírito dos costumes locais, tão arraigado em cada trejeito ou palavra desta humilde família de agricultores, e o domínio quase mágico do maneio da terra, como se cada grão, fosse ao mesmo tempo todos os outros grãos por ali já cultivados, torna-se difícil duvidar que esta pobre gente esteja aí já plantada há menos de uma dezena de séculos. As gerações foram se sucedendo, uma a uma, cada qual no seu tempo próprio, tempo devido. As crianças prevendo nos velhos, o futuro, que lhes aguarda. Os velhos buscando na imagem das crianças, o espelho perdido, o passado que se apagou. Assim transcorre o tempo, naquele vale distante, sepultando os homens na terra cultivada por eles, gerando outros homens do ventre de quem a terra cultiva. Pedro é então, mais um filho do tempo e da terra, terra esta que nunca lhes foi prometida. Desta terra fecunda, que leva nas entranhas o suor do trabalho de todos os seus ancestrais. Terra quase sem fim ou fronteiras, terra quase infinita de tão grande, que como se costuma dizer por ali, sempre pertenceu ao senhor coronel. Esse senhor coronel que não tem idade, uma entidade, que sempre esteve ali. Onipresente, onipotente. Que cá, entre nós, sempre fez a família de Pedro, desde seus mais remotos antepassados, comer, literalmente, o pão que o diabo amassou. Não imaginem que a família ignora que muitos dos seus, já se foram pelas balas de muitas das armas de fogo que pela casa grande do coronel já passaram. É óbvio que depois de tantos anos, tantas gerações, muitos conflitos violentos, já opuseram, de um lado, antepassados das famílias dos camponeses, e do outro, antepassados da família do coronel. A diferenciação social que se estabeleceu naquele lugar, que o tempo parece, às vezes, ter esquecido, corre pelas veias dos homens; são além do mais, diferenças sanguíneas. Mas em nome da ordem local, da produção de grãos, e da capela, que sempre apazigua os ânimos de seus fiéis, nos últimos anos, o lugarejo tem vivido dias de paz relativa, e tem até gozado, de certa prosperidade. A produção anda em alta, o mercado está favorável, e o proprietário anda com certo bom humor. O que não significa que haja nestes casos, uma lógica natural de causa e efeito, em que os lavradores, possam, finalmente, comer melhor.
O patrão sempre se simpatizou muito com Pedro, por ser um trabalhador produtivo, forte e por nunca estar a reclamar do trabalho. A impressão, inclusive, que a todos passa, é que ele, de fato, gosta muito do que faz. Sente um grande prazer no trabalho com a terra, e chega, em certas ocasiões, louvar seu ofício em versos e trovas. Seu conhecimento nato, no trato com os grãos, já levou lucros ao patrão É um exímio trabalhador da fazenda. Destas coisas da terra, ele realmente entende. E isto, de certa forma, faz com que o coronel, tenha algum orgulho dele. Tanto é, que ao ouvir do filho, que veio lá da capital, que conheceu um Instituto Agropecuário que vem preparando tecnicamente e profissionalizando trabalhadores rurais, o patrão, resolveu, então, mandar Pedro, por uma semana, aos estudos. Quem sabe este moleque, com a inteligência que lhe é própria, não aprende por lá umas novidades, que possam aumentar os nossos rendimentos familiares? Pedro, a princípio, achou que era uma bobagem, algo desnecessário, uma vez, que para ele, não havia qualquer segredo ou mistério, que do ventre da terra, não pudesse desvendar. Sabia que apesar de jovem, era um lavrador extremamente experiente. É como se já tivesse nascido sabendo; sim, e quem garante já não o soubesse antes mesmo de nascer? Não sabemos ainda ao certo, o quanto de informações os genes podem transmitir pela cadeia das gerações. A verdade, é que ninguém mesmo se lembra, quando foi que aprendeu as primeiras artes do ofício, ou quem foi que lhe ensinou. Apesar de apresentar, de início, certa resistência em ir para a capital, acabou mudando de idéia diante da insistência do patrão, e com a possibilidade de fazer um curso voltado mais para a pecuária do que para a agricultura. Sim, afinal, poderia enfim, conhecer um pouco mais sobre o fabuloso reino animal. Sabemos todos, que dos animais, sempre temos muito a conhecer; inclusive, a variedade de espécies conhecida por Pedro é realmente pequena, até porque, ele nunca saiu dali. Pedro, em plena juventude, não conhece mais que os dois vilarejos vizinhos, onde vai de vez em quando, realizar algum comércio para o coronel. Pedro não conhece o mar. Talvez, seja esta, pois, a única chance de conhecer a cidade, e também, finalmente, um pouco mais sobre os animais; conhecer mais sobre os que já têm algum conhecimento, e quem sabe, conhecer também aqueles, os quais nunca viu ou ouviu falar. Afinal, poderá desvendar os mistérios da pecuária e especializar-se no trato com as criações da fazenda. Na prática, sabe muita coisa, mas é oportunidade para ampliar seus conhecimentos técnicos, numa área, que na verdade, já é sua vida. Resolveu o jovem lavrador, enfrentar o desafio. Afinal, teria ainda, uma longa jornada de trabalhos pela frente. E quem sabe um pouco mais de conhecimento não poderia lhe melhorar a sorte?
O patrão não era homem de muita conversa. Tinha fama de implacável, mas também de decidido. Gostava de ver suas idéias executadas. Achava-se um empreendedor, e queria agora, experimentar. Fora os desejos sutis, que são inconfessáveis, mas que fazem parte do imaginário dos que eternamente exercem o poder; principalmente daqueles, que tem a pretensão de exercer o poder absoluto, supremo, inconteste. O controle das vidas. As vidas como peças, como jogo. O destino de outras vidas nas próprias mãos. O poder de vida e de morte. O poder eternamente eterno. O poder do arbítrio sobre a escolha do outro. O poder que pretensamente transforma os homens em deuses, ou simplesmente, os aproxima deles. Que assim se faça. E assim se fez. Pedro desembarca na rodoviária da capital, sozinho. Fica realmente atordoado, nunca viu tanta luz, tanta gente, tantas ruas, tanto ruído. Pedro começa a se apavorar. Passa as mãos pelo rosto e sente o suor que escorre entre os olhos e o nariz, não sabe agora ao certo, se é suor, ou se são lágrimas. Não sabe ainda que alegria é esta que faz chorar ou suar de medo. É Pedro. Na cidade de pedra, de concreto, de asfalto. Ao desembarcar, fica alguns minutos imóvel. Como pode ser Deus tão criativo, para criar tantas faces diferentes? Para onde olham todos os olhos? Para onde olho eu em meio a tantos olhares? Quantos somos? Mas como tantos iguais? Como tantos tão diferentes? Pedro sente-se atordoado. É para ele um fenômeno novo, o fenômeno da multidão. Respira fundo, procura manter o autocontrole, e procura por si em meio aos outros. Tem a sensação de ter perdido um pedaço de si próprio. Parece que falta uma parte. Não tem mais a certeza se é de fato ele mesmo, quem ali está. Respira fundo mais uma vez. Dá dois passos, e finalmente, recupera o equilíbrio. Segue pela larga avenida que se abre em frente ao terminal rodoviário. Por sorte, rapidamente, ao cruzar duas longas avenidas, encontra hospedagem. Na verdade, acabou por entrar na primeira porta, que trazia pendurada numa chapa de bronze, a palavra pensão. Não era um grande leitor, como já pode se imaginar, mas havia tido a oportunidade, na infância, de cursar as duas séries iniciais do ensino fundamental. E as notas, contas e recibos do comércio do patrão haviam feito dele, digamos, um dos poucos semi-alfabetizados das redondezas; a quase totalidade dos lavradores vivia ainda, na pré-história das palavras. Entra pela porta. Uma porta estreita, a partir da qual se abria um ainda mais estreito e comprido corredor; um corredor que parecia não ter fim. Uma boca por onde adentrava Pedro, curioso, e um pouco amedrontado. Seria então, finalmente devorado? Aproxima-se do balcão, um velho balcão de madeira, já bastante comprometido com os cupins; o solo range, parece que toda a estrutura está a desabar. Sim, a ação dos cupins é praticamente fatal. Vai corroendo, corroendo, e muitas das vezes, sequer são percebidos, pois não estão nas superfícies, estão nos subsolos, nos porões, nas vigas e arrimos. Nos sistemas internos, invisíveis, imperceptíveis. Em muitos casos, quando sua presença é notada, já pode ser tarde demais. O organismo está por todo, comprometido. A ação corrosiva dos cupins não é silenciosa, o ato de triturar a madeira é bastante ruidoso, porém não o é para a nossa limitada capacidade auditiva. Mas estão ali, aparentemente sem pressa, corroendo milimetricamente o seio das estruturas, bem debaixo do nosso nariz. Muitas das vezes, nem os percebemos, mesmo quando agem aos milhares. Se uma fenda se abre, uma ripa se parte, pronto, podemos, pela ação lenta, e progressiva dos cupins, virmos abaixo, por sob os escombros. O mundo pode desabar. Pedro se assusta quando se aproxima o atendente. O dinheiro que traz no bolso é mínimo, a conta de alimentar-se e instalar-se em acomodações bem modestas. O patrão já havia, inclusive, sugerido que se hospedasse nas proximidades da rodoviária. Era, pois, uma forma, de estar mais próximo de casa. Assim Pedro o fez. Ora, além de mais próxima de casa, o que é uma meia verdade, se é que isto existe, não era o que de fato havia pesado na escolha do coronel. Como já se sabia, era onde iria encontrar os preços mais modestos. Claro está que se tratando de uma relação entre patrão e empregado, o critério da redução de custos, a qualquer preço, é critério sagrado e, portanto, critério primeiro. Afinal de contas, o Instituto Agropecuário não fica muito distante dali.
Pedro finalmente acomoda-se em um quarto bem modesto. Uma cama estreita, com um colchão que poderia ser um pouco menos fino, um armário antigo, também já herdado aos cupins, e um quadro pendurado, retratando o mar. Tinha ainda, por sorte, uma visão privilegiada, dentro do que pode ser considerado privilégio, em condições já tão precárias. Uma janelinha de madeira, na parte superior da parede lateral, no alto. O que significa que usufruir deste privilégio demandava certo trabalho, na medida em que era necessário subir em um enferrujado banquinho de metal que ficava ao lado da cama, para poder finalmente, apreciar um pedaço, também modesto, da paisagem urbana. Foi o que naquele momento, mais atraiu a atenção de Pedro. Agora, pode se acalmar. Estaria protegido ali. Subiu no banco e ficou inerte. Tudo era novidade. Uma pena não poder enxergar a rua num ângulo maior. O campo de visão era estreito, bem limitado, mas ia satisfazendo em doses homeopáticas a curiosidade do hóspede. Seria ali, por alguns dias, o seu quartel-general, o seu refúgio, de onde poderia observar, sem ser observado, o movimento dos homens da cidade. Dos homens e das mulheres. É o que começa a intrigá-lo. Pelo que se recorda, nunca havia visto tantas mulheres, tão diferentes. Impressionante. Na verdade, praticamente não tinha experiência com elas. Era ainda muito novo e o local onde morava, não ajudava muito. As moças, na sua terra, eram sempre muito vigiadas pelos pais, e os encontros amorosos entre os mais jovens eram sempre cheios de obstáculos. Mas aquela paisagem da janela era uma verdadeira revelação. Havia uma variedade enorme de fêmeas. Loiras, morenas, ruivas, negras, mulatas, índias, estrangeiras, altas, baixas, feias, bonitas, para todo o gosto, de todos os tipos. Mudava, pois, o tom das batidas do coração de Pedro. Coração que pulsa assustado, temeroso, pulsa frenético, em êxtase. As pernas de Pedro tremem por sobre o banco enferrujado. E continua a observar, não consegue tirar os olhos daquela rua movimentada, com milhares de transeuntes cruzando de um lado ao outro, o seu campo de visão. Mas uma porta aberta do outro lado da rua, para a qual Pedro passa a observar obsessivamente, acaba por deixar seu coração aos saltos. O local é um bar onde entra um número bem considerável de mulheres. E do ponto onde são observadas, parecem ser, todas elas, muito belas. E talvez, por ser verão, as mulheres, nesta noite quente, acabam se vestindo com economia de roupas. Pedro continua inerte. Não pisca. As pernas novamente tremem e parecem enviar impulsos elétricos ao seu cérebro viril que por instantes se atordoa, diante de uma série de imagens que invadem, sem sequer pedir licença, seu pensamento. São sombras de mulheres, de todas elas, que dançam, se agitam, cantam, são fantasmas femininos, despidos, são gemidos, sussurros, nos ouvidos de Pedro. Desce do banco. Sobe, rapidamente, outra vez. Decide-se. Vai ao bar. Mas como fazer? O dinheiro é contado. E como se comportar neste ambiente tão diferente e estranho? Mas a imagens das mulheres que entram e saem, cada uma à sua maneira, com sua beleza própria, com suas fragrâncias, aromas, tornam-se sombras, espectros, que invadem o quarto da pensão e são inalados pelos poros de Pedro. Está possuído de sensações. Avalanche de desejos contidos, talvez mesmo, não revelados, que se rebentam sem qualquer possibilidade de contenção. Não há volta.
Nesta primeira noite na cidade, antes mesmo de conhecer o Instituto Agropecuário, onde certamente, irá se aprofundar na técnica da lida com os animais, resolve, então, Pedro, se aventurar por aquela porta iluminada, onde entram as mulheres mais belas que certamente já viu em toda sua vida. Veste a roupa com a qual tinha reservado para se apresentar na manhã seguinte à escola, guarda o dinheiro debaixo do colchão, e com passos certeiros, sem titubear um minuto sequer, como se estivesse a fazer aquilo que há muito tempo já havia planejado, vai ao seu destino. Atravessa a rua com tanta firmeza e convicção, que quem o observasse com um mínimo de atenção, poderia jurar que sempre tinha vivido ali, naquela cidade, naquela pensão. Parecia que se dirigia ao bar, como sempre o fez, numa vida inteira. Existem coisas, para as quais realmente não existe explicação, e se tentarmos explicar, podemos nos enveredar por um caminho, onde mais perdidos ainda ficaremos. O fato é que entra bastante seguro no bar, não há dúvida na decisão de Pedro. Senta-se na terceira mesa, após o fundo do balcão, e pede ao garçom um copo de vinho. Talvez fosse a primeira vez, que experimentasse desta bebida, mas isto não se sabe ao certo. Dá o primeiro trago e seu peito inflama, o coração da um sobressalto, as faces coram, são duas rosáceas, e suas mãos se aquecem. Os olhos se embaçam, e ao recuperarem a nitidez, miram a mesa da frente onde estão a conversar as duas mais belas mulheres, que talvez já tenham visto. Dá o segundo trago. Os olhos que desta vez, não embaçam, saem afoitos à caça dos olhos da mulher que tem à frente. E confirma, é realmente bela. Os olhos observados observam que o são, e passam, pois, a observar também. Pedro, por um segundo, sente o sol da noite irradiar dentro de si, e seus olhos traem seus desejos, ao soltarem faíscas, lampejos, para os olhos da mulher de vestido vermelho, que resolve se aproximar. A mulher, realmente belíssima, deixa suas companheiras à mesa, e vai ao encontro do homem que a trouxe com os olhos incandescentes. Senta-se. Nossos personagens são de poucas palavras, cada um por suas próprias razões. Mas o fato é que em determinadas ocasiões, o excesso de palavras, com seus verbos, adjetivos, sujeitos, tornam-se mesmo desnecessários. Ele, movido por uma febre, que talvez, todo o corpo fale por si. Ela, por entender bem o recado, substitui a palavra pelo toque, onde parece mesmo que não tem tempo a perder. Pousa lentamente suas mãos sobre a toalha da mesa, que em seguida, avançam sobre as mãos de Pedro, que dá o terceiro trago. Os olhos de Pedro percorrem todo o corpo que se esconde por baixo do curto tecido vermelho. Seus olhos vagueiam, farejam, mergulham pelas falhas da costura, pelas frestas das rendas, tateiam no escuro das partes vestidas, deslizam suaves sobre as curvas dos seios à mostra. Os cabelos são cheios, negros, floresta escura, onde os dedos de Pedro querem se perder; os seios fartos são horizontes abertos para se percorrer. Os olhos são grandes, profundos, são pontes. As mãos suaves, as unhas bem feitas, as pernas jovens, roliças, a pele branca, as pontas dos seios rosados. É o paraíso prostrado na fantasia de Pedro.
Pedro dá o último trago. A mulher se levanta e ele a acompanha. Ela segura sua mão, e o leva-o para fora. Ele paga o copo de vinho e sai de mãos dadas com ela entrecruzando avenidas. Ela dobra a primeira à direita, anda dois quarteirões, depois entra à esquerda e caminha até o primeiro sinal. Ele caminha pelas nuvens, o bafejo das ruas, são suspiros divinos, os faróis dos automóveis, estrelas pulsantes que sacralizam os caminhos, o ruído da cidade é música para os ouvidos ébrios do nosso andarilho urbano. A última gota do vinho escorre pela garganta. A atmosfera se enche de nuvens coloridas. Pedro dá um longo suspiro. Sente o sangue correr pelas veias, como nunca havia sentido em toda sua vida. O perfume que exala daquele corpo, misturado ao gosto adocicado do vinho em sua boca, proporciona-lhe uma sensação de êxtase que deixa sua alma em suspensão. Precisava possuir aquela mulher, que na verdade, nem sabia quem era. Mas que lhe enchia os olhos, e despertava-lhe desejos. A voz daquela mulher, que pouco falava, mas que quando dizia qualquer coisa, que ele, por sinal, quase não entendia, enchia de música o ar. Seu próprio corpo tornava-se sonoro, ritmado aos embalos daquelas poucas palavras. Pedro já não via a cidade que lhe levava, pelas ruas, avenidas e becos. Finalmente, a mulher leva-o para dentro de um quarto, que mal sabe Pedro de onde surgiu. Ao abrir a porta, Pedro sente-se à entrada do paraíso. O aroma que sobe dos lençóis e os travesseiros por sob as colchas, mais o afago daquela mulher, transformam seu sexo em vulcão.Ele imagina que sonha. Já não deseja qualquer outra coisa na vida, que aquele breve e eterno momento. Por ele, entregava-se assim, naquele instante; era muita emoção para um coração tão jovem. A mulher pousa os braços sobre seus ombros e puxa-lhe de vez. Com pressa e uma fúria estranha, que ele ainda não conhecera, arrancam suas roupas, sabe-se lá como, tão rapidamente, e colam-se um no outro, como os selos são colados pela saliva, ou pelo suor e sal, o são os corpos. Em um último pensamento, ele ainda se pergunta se é isso o amor, ao se entregar definitivamente aos braços e ao ventre daquela mulher. Alma de lavrador sobrevoa os campos, sem saber se é o plantio, ou se já é a colheita. Pela fresta da porta, entram os perfumes das flores do campo, daquelas flores que Pedro viu a vida inteira, mas só agora, parecem revelar seus perfumes, seus segredos. Os trovões que trazem as chuvas e o húmus vivificante arrebentam em seus peito como foguetes ou rojões. Seus olhos são sementes que se rompem, os desejos cascas que se abrem. Suas mãos estão a arar aquele corpo como a fazer primavera ou mesmo todas as estações. Pedro escorre como água sobre os seixos daquela pele, a arrebentar-se em cascata. Sua castidade é rompida, no coração da cidade. Goza Pedro do mundo, que não mais lhe assusta lá fora.
Ato consumado, a mulher levanta-se e acende a luz. Pedro assusta-se. Não se sabe ao certo, se pelo cenário do seu primeiro amor, até então muito pouco iluminado, que fica agora às claras, se devido à alguma vergonha dos corpos agora completamente nus, ou de poder ver, frente a frente, outra vez, os olhos daquela mulher, que acabou agora de possuir ou ser possuído. Ele ainda não sabe. A mulher pega suas roupas e veste-se rapidamente, poderia se dizer, que tão rapidamente como antes se desnudou, parecia um ato automatizado, corriqueiro, do dia-a-dia, profissional. Senta-se à beira da cama e estende uma mão. Pedro vê no gesto uma última carícia como a finalizar uma noite de amor e pousa suas duas mãos sobre a mão estendida de forma quase fraternal, talvez gesto derradeiro, talvez sutilezas das paixões.
Num movimento brusco, a mulher puxa suas mãos, e volta a estendê-las com ira. Pedro parece finalmente entender, que tal gesto não mais é que um gesto de cobrança. De súbito, seu paraíso se desfaz. A aura colorida de encantos que fez arco-íris em sua primeira noite na capital se transforma em nuvens gigantes que prenunciam tempestades que devastam plantações. Ele sente-se nu, mas não uma nudeza qualquer, é uma nudeza única, completa, arrasadora. A mulher exige o pagamento, o dinheiro que Pedro não tem. Um calafrio percorre-lhe as espinhas, congela a alma, treme, não sabe se pelo frio, pelo pânico, ou pelo ridículo, mas treme como certamente nunca tremeu. Volta-lhe o medo que havia perdido ao atravessar aquela rua, que sequer sabe o nome, daquela velha pensão dos cupins, com uma pequena janela na parede lateral.
Após certificar-se que de fato, seria impossível receber a quantia devida, a mulher vai até a janela, escancara as cortinas e solta dois longos assobios. Abre a porta, e coloca o inadimplente para fora. Ao sair atordoado, antes que pudesse enxergar onde estava, dois homens fortes o seguram pelo braço. Era impossível resistir, e Pedro não oferece qualquer resistência. Os homens fazem então, mais uma tentativa, por sinal, rápida, de receber o preço devido. Mas não havia como fazê-lo. Um dos homens, muito mais furioso que o outro, não possui qualquer sinal de condescendência, de paciência, tolerância. Levanta um porrete que trazia em uma das mãos e desfere em Pedro um golpe fatal. Pedro cai e sua face branca repousa sobre a poça de sangue da calçada. Pedro não conheceu o amor. Pedro não conheceu o Instituto Agropecuário. Não conheceu o que queria sobre os animais.
Marcos Vinícius.