domingo, 21 de setembro de 2008

Sobre os homens e as aves de rapina


Sobre os homens e as aves de rapina (2003)

Folheando jornais velhos de passado recente, detive-me diante de uma foto de um senhor iraquiano. Por alguns instantes fiquei a observá-lo. Repentinamente tive a sensação de olhar para uma imagem bastante familiar. Durante vários dias, a partir do momento que as ameaças feitas pelos EUA aos iraquianos começaram a se tornar realidade, já se aproximando a tragédia do ‘choque e pavor’, construída no ritual macabro dos falcões norte-americanos, não perdi mais de vista os rostos, os olhares e a dor das vítimas inocentes. Nunca havia imaginado que o Iraque pudesse ser tão próximo. O mundo conheceu a barbárie globalizada. Viu bem de perto o flagelo imposto aos descendentes da velha Mesopotâmia, pelos novos donos do globo. As manifestações anti-guerra que explodiram em cada canto do planeta, lembram a reação do organismo ante o corpo enfermo. A humanidade, temerosa, assistiu estupefata, ao advento da morte tecnológica e industrial. Começamos a nos acostumar com os rostos marcados pela penúria e a desolação dos irmãos iraquianos que freqüentaram (e ainda freqüentam) diariamente nossos lares, nossas conversas, nossas preocupações.

Diferentemente da primeira guerra do Golfo, onde as imagens veiculadas pelos meios de comunicação mais lembravam um jogo virtual cheio de luzes e sem vítimas, essa última invasão das forças anglo-americanas trouxe até nós o sangue e as mutilações. O olhar do senhor iraquiano no jornal redescoberto, deixou-me realmente intrigado. Parecia querer cobrar de todos nós a lucidez e a sanidade perdidas. Vamos, às vezes, nos familiarizando tanto com algumas imagens, que sem perceber, dialogamos com elas.

Durante vários dias nos aproximamos do povo do Iraque e nos solidarizamos com ele. Como não se sensibilizar diante da face do desespero, do rosto do medo e do pânico, das imagens das crianças ensangüentadas, aleijadas? Como não chorar o choro da terra arrasada? A brutalidade levada a cabo deixou feridas abertas, não só no solo da região da Mesopotâmia, mas uma veia cortada no coração do mundo. Já nos acostumamos com as guerras, nascemos com elas, e sabemos que estas existem desde os primórdios da história humana, mas a carnificina tecnológica deste início de milênio, o abrupto desenvolvimento das armas de destruição em massa, produzidas em solo americano, deixou parte da humanidade estarrecida. Os protestos que pipocaram pelo mundo afora, tinham a marca da indignação.

As imagens dos bombardeios, o clarão e a fumaça, ao lado dos mortos e feridos são o símbolo da arrogância, da prepotência e da bestialidade. O sangue derramado pelo petróleo a ser saqueado traz uma nova dimensão à natureza do mamífero sapiens. Certamente, sabemos hoje, que somos muito mais cruéis do que até ontem imaginávamos ser. Será possível construir a democracia e edificar a liberdade sobre a agonia dos mutilados? Que regime se constituirá a partir do silêncio dos barbaramente assassinados? Que paz semeará as forças de invasão e ocupação? Os olhares dos iraquianos nas páginas dos jornais são muitas das vezes inquietantes, como o são os olhares e as palavras dos poderosos de plantão. Os falcões, os mais rápidos das aves de rapina, emprestam seu nome para os novos caçadores de gente, que agem de forma fulminante e voraz, quando se trata de satisfazer seu apetite por território e pilhagens.

Depois de muitos anos, podemos entender melhor a propaganda da direita envaidecida sobre o suposto ‘fim da história’. Na perspectiva dos que detêm o poder econômico e principalmente militar, não há alternativa para os povos, não há saída para o modelo único de civilização imposto pelas superpotências. Ou curva-se diante as exigências do deus-mercado, sob as rédeas dos multimilionários ocidentais, ou transforma-se em cinzas pela potência das bombas inteligentes. A subordinação é a lei. A humilhação dos povos e a destruição de suas culturas são os capítulos finais da história escrita pelos poderosos globalizados.

A falácia do ‘fim da história’ ironicamente se reflete nos olhos atônitos dos homens e mulheres, antigos guardiões, dos ricos tesouros de um dos grandes berços da civilização humana. A imagem dos museus saqueados e dos sítios arqueológicos bombardeados é devastadora. O ‘fim da história’ como tragédia e devastação. O símbolo maior da estupidez, da selvageria e da ignorância. Na lógica dos acontecimentos, além de ser necessário matar, tornou-se necessário também, eliminar a memória e a identidade. Assistimos ao assassínio de uma parte muito substancial da história da antiga Mesopotâmia, um crime inafiançável contra o patrimônio cultural da humanidade.

Onde foram parar os antigos tesouros? Em que mãos foram parar os vasos da cidade suméria de Uruk, cerâmicas e estátuas do império assírio, a porta de madeira do palácio de Sargão segundo, a harpa de ouro de Ur e as tabuinhas de argila com os primeiros registros escritos? Em qual porto seguro, certamente desembarcarão as relíquias dos museus e bibliotecas de Mossul, Basra, Tikrit, Bagdá? De acordo com a arqueóloga Eleanor Robson, da Escola Britânica de Arqueologia no Iraque (Universidade de Oxford), entre 70% e 90% das mais de 250 mil peças do Museu Nacional de Bagdá foram destruídas ou roubadas. As imagens da destruição do museu são chocantes. Apavoram a inteligência, a sensibilidade e arrepiam a alma. Quão profundos são os efeitos das bombas e mísseis inteligentes? Os norte-americanos conseguiram dar uma insuspeita demonstração de suas ‘intervenções cirúrgicas’. Enquanto o marines protegiam o Ministério do Petróleo, que permaneceu incólume, durante toda a tomada de Bagdá, as preciosas antiguidades foram todas saqueadas, sistematicamente.

Convém nos recordarmos de alguns episódios. De acordo com Ken Matsumoto, arqueólogo da Universidade de Kokushickan, no Japão, “depois da Guerra do Golfo, em 1991, dez museus foram destruídos e 4000 peças sumiram do Iraque”. Formou-se nos EUA um lobby pelo relaxamento da Lei de Antiguidade do Iraque. O Conselho Americano de Política Cultural, que congrega colecionadores e comerciantes de arte se reuniu com o Pentágono antes da invasão. Em uma entrevista à revista “Science”, em janeiro, o tesoureiro do Conselho, William Pearlstein, diz que espera uma “administração cultural pós-Saddam sensível”, que “certifique alguns objetos para exportação”. Os fatos acima são reveladores e ilustrativos sobre as diversas ramificações do massacre mafioso. Segundo o jornal Folha de São Paulo, em 12/04/2003, vizinhos do museu de Bagdá, disseram a uma repórter da France Presse, que viram soldados americanos levarem peças em caixas de madeira, logo após a sua entrada na cidade. Coincidentemente, os EUA não ratificaram um acordo da UNESCO, de 1954, que regulamenta a proteção do legado cultural em guerras. Quanto lucrarão os corsários, com o sangue na baioneta, os despojos, as relíquias nos porões e os falcões agarrados nos ombros?

As grandes corporações assanham-se. O elixir negro do Iraque, com suas fabulosas reservas pode alimentar por várias décadas os motores do mundo e o tráfego das ruas de Washington, Nova York e Londres. As possibilidades abertas às grandes empresas de construção e engenharia norte-americanas geram negócios, contratos bilionários, para a reconstrução da infra-estrutura do país totalmente arrasado. A máquina da guerra, uma vez acionada, parece que ganha vida própria e não pode mais parar. O que fazer com os estoques de armas, de bombas e mísseis de todos os tipos, cuja produção é contínua? O que fazer com a inúmeras bases militares espalhadas pelo globo? O que fazer com a experiência acumulada com a produção de armas biológicas, com a utilização de armas químicas, como o napalm no Vietnã e com a oportunidade dos testes com as bombas atômicas despejadas sobre o Japão, a base de urânio em Hiroxima e plutônio em Nagasaki? A indústria da morte e das minas terrestres espalhadas pelo mundo não pode quebrar, o ritmo da sua produção é alucinante. Basta consultar as estatísticas. Quantos corpos insepultos? Os ataques não cessam. Quando cessarão as ofensivas no Afeganistão e no Iraque? Quais serão os próximos alvos? As imagens dos iraquianos, na página dos jornais, vão ficando cada vez mais próximas de nós. Seus olhos, sempre mais reveladores. Na proximidade nos tornamos cúmplices. Cumplicidade dos homens. Cumplicidade da história. Mas a história? Ora, a história. Os homens? Ora, os homens.
Marcos Vinícius.



HISTÓRIAS- Agosto de 2002/Dezembro de 2003 – Boletim do Laboratório e Arquivo de Memória Histórica – LAMH - Newton Paiva.

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