terça-feira, 21 de julho de 2020

Formigas



Não há quem não se admire com a incrível capacidade das formigas em carregar, em seus minúsculos e quase invisíveis tentáculos, pesos mais de cem vezes maiores que o seu. Percorrem longas distâncias transportando, enfileiradas, paus, folhas, insetos, o que quer que possa ser-lhes útil e servir de alimento nas profundezas subterrâneas dos enormes formigueiros. Observando o fluxo intenso de caminhões pesados pela rodovia, me lembrei delas. Nas enormes carrocerias destas máquinas de ferro e aço, transportamos pesos, também, infinitamente maiores que os nossos próprios, em escalas e proporções, maiores mesmos, que os das pequeninas formigas, principalmente, se levamos em conta, os imensos aviões e navios de carga, que atravessam o mundo de uma ponta a outra, se é que tem pontas o mundo. E há mesmo quem diga, que bastaria uma alavanca e um ponto de apoio, para deslocá-lo de sua órbita. Diante disto, alguém poderia dizer, Ah, pois, então, veja como as superamos e realizamos proezas ainda maiores. Penso que não há engano maior. As pequenas o fazem com as forças próprias, sem recorrerem a motores ou ferramentas. Sim, nós carregamos a tal inteligência criadora que nos possibilita realizações que também impressionam. O que tem que se levar em conta, é que, a depender dos recursos, o empenho e o trabalho hercúleo das formigas, creio que, milhões de anos poderão se passar e o mundo permanecerá vivo e saudável, girando em sua órbita própria, em uma infinita sucessão de estações, já quanto a nós, o uso desenfreado da inteligência que nos permitiu carregar pesos incalculáveis, também poderá levar o planeta inteiro a um estado de devastação irreversível, onde sequer a vida das pequenas formigas será possível. Aí sucumbiremos todos, sob o peso das ilusões que jogamos sobre os ombros.

Marcos Vinicius.

segunda-feira, 20 de julho de 2020

Labaredas



Fazia um calor abrasador, as placas de ferro derretiam-se em fornalhas e labaredas. Era tudo de um vermelho intenso e avassalador, escaldante. Dos abismos enfumaçados exalava o fedor do enxofre.  Ainda o vermelho. De fogo e sangue. Por detrás das caldeiras fumegantes, a besta, entre grunhidos, solta um hálito quente e fétido. Distraída, mal percebe quando se aproxima a fera, montada em seu cavalo morto. Fera, você por aqui? Sim, besta, afinal, nos encontraríamos uma hora, não é assim? E o que faremos nós, ó demônio das terras chamuscadas, dos paraísos carbonizados? Ora, que pergunta. Só mesmo uma besta. O que fazemos de melhor? Não é a morte? Isto, façamos, pois, uma pestezinha, afinal, juntos, dezenas de milhares são nada. Ela deverá contar-se aos milhões. Feito. Eu crio o princípio letal, você faz as oferendas em carnes, ossos e vidas. Juntos, festejaremos sobre as covas dos homens. Very well? Taoquei, porra.


Marcos Vinícius.

domingo, 19 de julho de 2020

Na Venda Nova de 1916



A foto é um recorte do jornal O Movimento, do dia 13 de fevereiro de 1916.

Mais que justa a reivindicação dos habitantes de Venda Nova, afinal já corria o ano de 1916 e não faltavam promessas que a Cidade Jardim seria também, a Cidade do Futuro. Remédios não faltavam, para todas as dores e sofrimentos. Desde o Elixir do Nogueira, considerado um grande depurativo do sangue e encontrado em todas as Pharmacias, o Remédio Vegetariano de Orhmann, que prometia milagres contra a tuberculose e as doenças pulmonares, o Mororo, outro depurativo do sangue, voltado, principalmente, para a cura de cancros venéreos, a Canhyra, contra as moléstias do figado e as doencas do aparelho digestivo, o Vegetalino, para os reumatismos, a Parentana, para os rins, o Phyllantus, para as cólicas uterinas, a Yerobina, contra acidez estomacal e os excessos de gases, além, de tonificar o intestino, o Yucaty, para a cura da gonorréia ao Elixir de Inhame Goulart, que prometia a cura das moléstias nos olhos, causadas pela sífilis. Muitos outros, certamente, sequer foram catalogados. Segundo o Jornal O Movimento, do dia 06 de fevereiro de 1916, uma jovem de Belo Horizonte teria sido curada pelo propagandeado Elixir de Inhame Goulart , como por um encanto. "Em Bello Horizonte, à rua Aymores, mora a menina Irene, curada de uma moléstia nos olhos. Irene foi tratada não só em Bello Horizonte como no Rio de Janeiro  e operada na Santa Casa desta última cidade sem o menor resultado. Segundo o pai, o incômodo começou a se manifestar há 6 anos mais ou menos com uma purgação e inflamação que lhe privava da vista e, desenganado, resolveu experimentar o Elixir de Inhame Goulart, vendo no fim de alguns dias, a moléstia desaparecer como por encanto e hoje frequenta o Collegio Santa Maria, em Bello Horizonte, completamente curada". Sobre o Elixir de Nogueira, o mesmo jornal, no mesmo dia, trouxe o seguinte  depoimento "Declaro que estando sofrendo há oito mezes de uma syphilis rebelde, tendo-me apparecido uma erupção rebelde por todo o corpo, rosto e mãos, usei de grande quantidade de remédios a conselho de diversos médicos, tudo em vão, nem sequer apresentava melhora. (após ler) diversas declarações sobre o Elixir de Nogueira, resolvi experimentá-lo, e só com dois vidros fiquei completamente são!"  Tudo isto era o que diziam os jornais daquele tempo. Resta, no entanto, saber se, de fato, foram assim, tão milagrosos tais medicamentos, como divulgava a imprensa e o mercado à época.  Seja lá como for, qualquer alívio da dor, será sempre melhor que remédio nenhum. De uma forma ou de outra, os que com estes elixires se remediaram, já não estão mais entre nós, para darem o seu testemunho. A reivindicação dos antigos moradores de Venda Nova já tem mais de cem anos. Felizmente, a medicina, de lá para cá, evoluiu de forma impressionante. Infelizmente, no entanto, os frutos e resultados desta evolução, no que diz respeito a exames, procedimentos e remédios, não são para todos. A maioria de nós, morre de enfermidades que o dinheiro, certamente, salvaria. Ainda há muito o que reivindicar. Por agora, mais de imediato,  já seria um bom sinal se, no mínimo, não nos negássemos a ouvir os conselhos e a sabedoria da ciência, usássemos máscaras, quando em público, e levássemos a sério a necessidade e urgência de algum distanciamento social em meio ao alastramento da pestilência. Ainda não temos a cura, nem remédios milagrosos. Pequenos gestos ou a ausência deles, podem significar a trágica escolha entre a vida ou a morte. Lamentável que ainda exista quem a isto resiste na Belo Horizonte de 2020.

Marcos Vinicius.

terça-feira, 7 de julho de 2020

Belmiro e Targino




Era uma terça-feira, onze e meia da manhã. Belmiro, sob o sol luminoso e frio de julho, mantinha-se sentado sobre a rocha escura que há anos, a se perder de vista e da memória, elegera como a morada fundamental e dali não se mudava ou arredava pé, mesmo que o céu desabasse ou a terra rachasse ao meio. Tanto é, que nas poucas vezes que se levantava, para fazer o que sentado seria impossível, podia-se observar que o assento de pedra, praticamente, tornara-se um molde perfeito de suas nádegas magricelas. O que não se sabe, pois não há quem guarde lembrança, é se a pedra sempre fora assim e, talvez, por este motivo mesmo, ele a tenha escolhido, ou se por força do tempo, de tanto suportar aquele peso, havia adquirido a forma do homem. Isto, porém, já não importa. Ele mastigava um caule de capim entre os dentes, lançava cusparadas ao chão e observava duas formigas que carregavam folhas enormes, tão grandes, que ele nunca compreendia como podiam suportar tamanho peso. Belmiro gira alguns poucos graus na pedra, deslizando-se, muda a posição e o campo de visão, em qualquer uma que estivesse, ela lhe proporcionava conforto, e não havia mais pontas e ranhuras, que há muito tempo, deixaram de incomodá-lo. Não se recordava do que pode ter ocorrido com elas. Enfia a mão no bolso, puxa de dentro um relógio grande e dourado e confere as horas. Exato, onze horas e trinta minutos, não se deixavam enganar os ponteiros. Belmiro olha para o mato que havia em frente e diz, Em dois minutos, ele sai dali. Segura o relógio entre as mãos e fica observando o lento deslizar dos ponteiros e a brenha do mato que ainda não se mexia. Quando o ponteiro maior, completa a volta, marcando os exatos dois minutos que Belmiro previra, o mato se abre, e surge Targino. Com as roupas surradas, tão magro quanto o outro, de olhos esbugalhados, cabelos desgrenhados e um óculos quadrado, que lhe conferia uma expressão muito peculiar, grita, antes mesmo de se aproximar, Bom dia, Senhor Belmiro. Muito bom dia, Senhor Targino. Os dois encaram-se, olhos nos olhos, fixos, enquanto Targino vai se aproximando. Assim que para em frente a Belmiro, dá-lhe um sorriso amigável. Belmiro lança outra cusparada sobre o capim, joga fora a folha que mantinha nos dentes e indaga Targino, Ô seu Targino, venho pensando comigo, e de tanto pensar, depois destes anos todos, concluo que o senhor ficou louco. Louco? Mas louco por quê? Targino encara-o com assombro e sem compreender o amigo. Fecha os botões da camisa, ajeita o cinto das calças, apruma os óculos sobre o nariz, passa a mão sobre os cabelos, penteando-o com os dedos e aguarda a resposta de seu interlocutor. Sabe o que é? Fico imaginado como pode e, confesso, nunca ter visto caso igual. Toda terça-feira, as onze e trinta e dois da manhã, o senhor me surge daquele mato, aqui fica alguns poucos minutos, depois, novamente, se põe a andar, e só retorna na próxima terça-feira, por detrás da mesma moita, exatamente, no mesmo horário, e estas ocorrências, já se dão há décadas. Décadas, por que foi só o que vivemos, talvez, se ultrapassássemos os séculos e os milênios, cá estaria o senhor, repetindo, eternamente, o mesmo feito, o mesmo percurso e a mesma aparição. Diga-me, Senhor Targino, se isso não é coisa de louco. Ora, Senhor Belmiro, não tenho culpa do tempo que temos e as medidas que se lhe meteram, além do que, não fui eu quem me colocou sob os pés os caminhos que ando. Que posso eu fazer, se o percurso que é necessário percorrer apenas se completa neste tempo em que cabe a semana? Ora, sinceramente, Senhor Belmiro, que falta de respeito. E penso mesmo, já tinha estas dúvidas, mas agora sou também obrigado a confessá-las, pois entrou para o campo das certezas, louco é o senhor. Há anos passo por aqui, normalmente, em meu habitual caminho, e vejo-o prostrado nesta pedra, sem tirar a bunda do lugar. Passam anos, décadas e séculos e toda uma eternidade, se ela vier, e estará aí, plantado, sem rodar pelo mundo. Sabia que o mundo gira, senhor Belmiro? Não demora, esta pedra sai andando e fica o senhor, enraizado, fincado para sempre. Quem sabe, não acabe virando, o senhor mesmo, uma pedra bruta? Ora, tenha paciência. Que ultraje, senhor Targino, que ultraje. Como se atreve? Que sabe o senhor do mundo? Só porque fica a girar como peão? Diga-me que maravilhas encontra por aí, em seu percurso de sete dias. Ofegante como sempre o vejo, não creio que tenha tempo de parar e pensar ou refletir sobre a realidade do mundo e da vida. A contemplação é a fonte de toda a sabedoria, Senhor Targino. Ora, Senhor Belmiro, quantas idiotices. Quem disse ao Senhor e de onde tiraste tal autoridade para afirmar que para se contemplar o mundo há que estar estacionado? Contempla-se o mundo, andando, percorrendo-o.  O que vejo é que o senhor parece ter desistido dele. Cala a boca, seu desajustado. Não sabe do que fala. Daqui do meu campo de observação, tenho certezas sobre o que vejo. Conheço a fundo a flora e a fauna que me cercam. Já sou íntimo destas forças da natureza. Vê estas formigas? Já conheço os seus caminhos, suas tocas, suas preferências e a sua ordem e hierarquia. Vê aqueles pássaros? Já me habituei ao seu canto e voo. Conheço cada nota da sua cantoria e os galhos preferidos ao pouso. Vê estas gramíneas? Conheço todo o seu ciclo de vida. Quando brotam e quando secam. Vê estas árvores? Vejo-as crescer e conto os gomos e os anéis dos seus troncos. E sei que aquele mato, toda terça-feira, se abre, as onze e trinta e dois, onde sempre, sem falhar uma terça-feira, anos após ano, me aparece o Senhor, com estas loucuras de andarilho. Quer saber, Senhor Targino, vou é mandar prendê-lo. O Senhor é um perturbador da ordem das coisas. Ora, louco é o Senhor. E eu é que vou trancá-lo em uma cela. Sabe o que faz o mundo girar, Senhor Belmiro? São os passos das pessoas. Se todos prostrassem como o senhor aqui está, não haveria conhecimentos, ciência, não haveria histórias, geografias ou as matemáticas, não haveria as filosofias, não haveria a civilização, Senhor Belmiro. Não se constrói sobre o desconhecido. Sabe do universo das formigas depois que elas entram pelos buracos? Sabe para onde vão os pássaros depois de abandonar as árvores que vê? Pensa que os matos crescem todos da mesma maneira em diferentes lugares? Quem não anda pelo mundo, Senhor Belmiro, não apenas o ignora, como não permite que ele se mova. Ora, mas que afronta, Senhor Targino, sinceramente. Vou já resolver a questão. Belmiro enche os pulmões de ar e grita com toda a força que tinha, Louco, louco, Socorro, há um louco aqui. Targino, não pensa duas vezes. Põe-se também a gritar, fazendo coro com o amigo, Louco, louco, Socorro, há um louco aqui. Louco, louco. Em meio às histéricas gritarias, surge apressado, um agente das forças de segurança. Mas o que ocorre por aqui? Que gritarias são estas? Estão perturbando o sossego, se não pararem agora, meto os dois na cadeia. Os homens reduzem o tom, mas não cessam as acusações. Louco é você. É você. Não fosse a presença do segurança, certamente, sairiam aos tapas. O agente, observando a algazarra e ouvindo os argumentos de um e de outro, embaraça-se em resolver a pendenga. Os homens estavam tão excitados e eufóricos em sua discussão que o agente imaginou que ali, realmente, pudesse haver algum sinal de loucura. Decide, então, até porque ficara curioso em saber quem era o louco e quem tinha a razão, resolver a questão a sua maneira e grita, Calem-se. Calem-se ou os levo presos já. Os dois. Ele havia ouvido em algum lugar, apesar de não se lembrar onde, que louco que é louco rasga notas de cem. O policial tira a carteira do bolso, arranca de lá, duas notas de cem e as atira ao chão. Os homens entreolham-se, assustados e curiosos. O policial, confuso e com o suor escorrendo pela testa, sob o sol do meio dia, aguarda o resultado do teste. Belmiro pega a nota de cem e a enfia no bolso. Targino repete o gesto, com gosto. Olham um para o outro e passam a gritar a plenos pulmões. Socorro, socorro, há aqui um louco jogando dinheiro no chão. Socorro. Socorro.



Marcos Vinícius.

segunda-feira, 6 de julho de 2020

Baús



Coisa impressionante é o estudo da história.  Entendiado, nestes tempos de isolamento, venho vasculhando os seus velhos e os novos baús, na tentativa de conhecer um pouco mais sobre os primeiros tempos de Belo Horizonte. Antes, porém, fiz e refiz algumas leituras sobre o século XIX, este tumultuado e dinâmico século, onde Beagá foi concebida e, finalmente, inaugurada em 1897. Passei por alguns romances de Dostoiévski e sua São Petersburgo e, mesmo que, na distante Rússia, o século se abre diante de nós. Agora, releio o historiador inglês, Eric Hobsbawm, e sua Era do Capital, sobre a história do mundo, entre os anos 1848 e 1875. O complexo xadrez do cenário mundial, mais uma vez se mostra revelador e, detalhes que, a primeira vista, passam despercebidos, sempre se apresentam em uma segunda leitura. De volta a Belo Horizonte, a descoberta e o levantamento de um acervo fabuloso de fotografias antigas, traz a cidade, em seus primeiros tempos, para um diálogo inédito, com seus cenários de época, as vestimentas e os hábitos dos primeiros moradores, costumes esquecidos, avenidas sendo abertas e prédios levantados, os bondes que já não circulam, o verde que já foi devastado, os rios, hoje esgotos canalizados, que corriam limpos, fartos, e em cachoeiras. As imagens em preto e branco nos proporcionam um grande salto rumo ao passado. Como se não bastasse, encontro, pelo caminho,  um inesgotável arquivo de jornais do país inteiro, inclusive, de Minas e Belo Horizonte, referentes ao período. Aí foi que a aventura tornou-se, de vez, assombrosa e impactante. Milhares de vozes saltaram dali, rompendo o longo silêncio do tempo, ansiosas para contarem suas histórias há tanto tempo guardadas. Estou a ouví-las e é surpreendente, além do que, não há tédio que resista.

Marcos Vinicius.