Luzia, a jovem de rosto largo e olhos arredondados, que
vivia pelas matas pré-históricas da região de grutas e cavernas do que um dia
seria chamado de Minas Gerais, é uma inigualável testemunha da humanidade que
somos. Seus antepassados próximos desbravaram e povoaram as Américas, advindos
de uma épica travessia transcontinental, há algumas dezenas de milhares de
anos. Por aqui, vivia, muito provavelmente, da caça e da coleta, e talvez tenha
sobrevivido a todo tipo de perigos de uma vida selvagem, num mundo povoado por mastodontes,
megatérios e gliptodontes. Luzia morreu jovem, vinte e poucos anos. Quis o
destino, porém, que seus restos mortais se petrificassem em fósseis e
atravessassem o tempo, para que um dia pudesse se revelar e contar para as
gerações futuras um pouco de si e de nosso passado comum. Até que fosse
descoberta por estudiosos, pesquisadores, e ganhasse vida nova e fama, afinal,
além das várias contribuições que sua descoberta proporcionava à ciência, era a
brasileira mais antiga que conseguimos encontrar. Seu fóssil sobreviveu a
formação de todas as comunidades e civilizações indígenas, ameríndias, à
chegada dos europeus das grandes navegações, as guerras de conquista, ao
período colonial. Sobreviveu a revoltas, Inconfidências, ao Império e a
República. Luzia, inquebrantável, longeva, pré-histórica, testemunha maior da
nossa antiguidade e humanidade, atravessou, incólume, a ação devastadora do
tempo e das forças históricas. Luzia não sobreviveu, porém, ao Brasil da Era
Temer, ao Brasil do golpe. Testemunha de pedra do passado que tivemos, suas
cinzas, agora, sua segunda e definitiva morte, são o retrato cruel do despaís
que nos tornamos, dos caminhos desconstruídos, em direção ao passado e ao
porvir. Adeus, Luzia.
Marcos Vinícius.
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