sábado, 7 de março de 2020

Abril de 1985




Era 24 de abril de 1985, e eu acabava de completar 18 anos. Naquela época, não me chocara tanto a morte do presidente, pois, além de já ser esperada, dados os longos dias em que se arrastou a agonia de Tancredo, já naquela época, não nutria muitas ilusões ou expectativas em relação a um governo, advindo de uma eleição indireta, entre apenas dois candidatos, os permitidos pelo regime, e por ser mais um dos inúmeros pactos e acordos realizados pelos de cima, pelas elites políticas e econômicas, para a manutenção de sua ordem e esquemas, o que é marca, praticamente, inquebrantável da História do Brasil. Vinha eu, pela Avenida Afonso Pena, esquina com Avenida Álvares Cabral, quando encontro um velho amigo de escola, que não via há anos, e então, como os dois tinham algum tempo disponível, aproveitamos a ocasião para colocarmos a conversa em dia, o que se deu por ali mesmo, plantados, bem no cruzamento das avenidas. Por mais incrível que hoje possa parecer, não nos lembramos, de imediato, que aquele estrondoso ruído que se fazia ouvir ao longe, se tratasse do cortejo do presidente morto, que se aproximava. Estávamos realmente distraídos. Porém, de uma hora para outra, repentinamente, assim, quase do nada, uma multidão em estado de plena comoção, veio correndo em nossa direção. Foi tudo muito rápido. Um mar de gente vinha se formando desde o Aeroporto da Pampulha, havia percorrido toda a Avenida Antônio Carlos, e chegava ao centro a passos rápidos, em correrias e atropelos. Era uma onda gigantesca. Um pouco perplexos e assustados no meio daquela multidão e, como nunca, nem eu ou ele, havíamos visto tanta gente junta, resolvemos acompanhar aquela inigualável massa humana, e subimos a Avenida João Pinheiro, em direção ao Palácio da Liberdade. O problema é que não dimensionávamos o número de pessoas que se arrastavam atrás de nós, pois, pegamos o cortejo em sua ponta inicial, o caminhão com o corpo de Tancredo, passava bem à nossa frente. Com passos aceleradíssimos, quase correndo, subimos em meio à turba e, confesso, que sem sequer entender, exatamente, o que fazia ali, rapidamente, chegaríamos à Praça da Liberdade, onde já se encontrava um outro mar de gentes à nossa espera. Havia uma corrente de energias humanas passando entre nós, que não nos permitia desgarrarmo-nos daquele rebanho. É a partir daí, já na Praça da Liberdade, que tem o início a parte exaustiva, quase dramática, deste fatídico e já distante dia. Quando estávamos bem no centro da Praça, constatamos uma realidade difícil, inusitada, não havia como enxergar os limites, onde terminava aquele mar de corpos amontoados, que se esfregavam, apertavam, acotovelavam, todos tendo como único destino os grandes portões do Palácio da Liberdade, por trás dos quais, o corpo seria velado. Todos os olhos, forças e passos, orientavam-se em um único sentido. Não havia como nos desvencilharmos daquela imensa massa de corpos, a menos que seguíssemos todos, no mesmo sentido. Não havia como desistir ou voltar atrás, pegar o rumo das ruas laterais ou dirigir-se para as traseiras do Palácio, todas estavam abarrotadas, entupidas de gente. Estávamos, literalmente, encurralados. Aquilo tornou-se uma prisão. Confesso que foi assustador. Movíamos não mais com nossos pés e pernas, mas, principalmente, com os ombros, aonde íamos abrindo caminhos na aglomeração. Uma senhora idosa, mais baixa, que estava ao meu lado e pedia ajuda, não havia como fazê-lo, não tinha como colocar os pés no chão e movia-se arrastada. Foram momentos de agonia e aflição e só depois de muitos esfregões, sufocos, e muito tempo, que hoje não sei dizer quanto, é que finalmente, com muito custo, consegui me livrar dali. Não havia opções, só consegui sair depois de transpor os portões e passar pelos jardins do Palácio. Ali me perdi do amigo e nunca mais o vi. Não acompanhei o velório, sequer me aproximei do féretro. Muitas pessoas passaram mal no local, portões se romperam, e por muito pouco, ali não ocorreu uma tragédia. Foi um dia de luto nacional. E como tristeza pouca é bobagem, assumiria, então, a Presidência, José Sarney, advindo da Arena, partido de sustentação da Ditadura que se implantara no país em 1964, a qual, muitos estavam ansiosos em ver o fim. Havia, na ocasião, um forte anseio popular pela instauração de uma democracia no país. Trinta e cinco anos se passaram e como foi rápido. É bom, vez ou outra, puxarmos os fios da memória, esta que às vezes nos trai, mas também nos ajuda a aproximar-nos, pela lembrança, das tragédias passadas e evitá-las à frente. Triste também é, porém, após trinta e cinco anos de história, após tantos sonhos de democracia, assistirmos, de Belo Horizonte, greves de professores e carnavais populares sendo criminalizados pelos agentes do poder e, no plano nacional, milhões de brasileiros elegendo os que defendem o fim das liberdades democráticas, o retorno dos sombrios tempos das ditaduras, com suas práticas autoritárias, violentas, e fortes ataques à arte, à cultura, ao conhecimento e à ciência. Enquanto finalizo estas linhas, ouço também soar na memória, o canto de Zé Ramalho, com o qual me despeço destas recordações: “O povo foge da ignorância/Apesar de viver tão perto dela/E sonham com melhores tempos idos/Contemplam essa vida numa cela/Esperam nova possibilidade/De verem esse mundo se acabar/A Arca de Noé, o dirigível/Não voam, nem se pode flutuar”.



Marcos Vinícius, em Causos e Histórias de BH e Fotos Antigas de Belo Horizonte.

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