É final do dia, há muito
movimento pelas ruas, carros vão e vem para todos os lados, alguns em ritmo
frenético e veloz, denunciam a pressa de seus condutores para chegarem logo em
casa, outros amontoam-se em engarrafamentos, nos cruzamentos, e de dentro deles,
motoristas esbravejam, xingam impropérios, como se desta maneira, pudessem se
livrar das irremediáveis complicações do trânsito, principalmente, por estas
horas, em que milhares saem de seus locais de trabalho e a noite já se avizinha,
com os primeiros sinais da penumbra e da escuridão. Nas grandes cidades, é
justamente nos períodos da manhã, quando a claridade do dia começa a se firmar,
e depois, quando esta vem se esconder, é que os transeuntes mostram-se mais
apressados. Os que, por um motivo ou outro, prostram-se pelas calçadas das
grandes avenidas das regiões centrais, ou precisam afrouxar os passos, são, na
maioria das vezes, atropelados por gente apressada, que vai não vai, passam por
cima, dão solavancos, cotoveladas e empurrões. Os que deslocam-se de carro,
apesar dos congestionamentos e do estresse que é estar ao volante nestas horas,
em meio ao caos, pretensamente ordenado pelas placas e luminosos, encontram-se
ainda em condição de conforto e privilégio, se comparados às multidões que se
espremem nas filas dos pontos e no interior das lotações, expostos a todo tipo
de odores, esfregões, quiçá, contágios e doenças. Alberto Matias, diariamente,
atravessa a cidade, e pertence à categoria dos que, apesar de enfrentarem as
longas distâncias para deslocarem-se da casa para o escritório, do escritório
para a casa, possuem em suas garagens, veículos de última geração, e se tem
algo, do qual sempre faz questão de se gabar, é que com este tipo de conforto e
luxo, nunca se preocupa em economizar, afinal, ele acredita que é para isto que
trabalha e dedica os esforços que faz na vida. Dia sim, dia não, vez ou outra,
dia sim e o outro também, a depender da ocasião, não vai para a casa, sem antes
tomar algumas cervejas, em algum boteco pelo caminho.
É quase noite quando Alberto
Matias estaciona o carro. Ao descer do veículo, dá alguns passos, cumprimenta
dois homens que bebem na calçada e entra para os fundos do bar. Senta-se
encostado ao balcão, saúda o garçom, desativa algumas funções do aparelho
celular e pede uma cerveja gelada. O primeiro copo, bebe de uma só vez, num
único trago. Seu rosto se avermelha, um suor fino escorre da testa às têmporas,
leva os dedos à sobrancelha, alisando-as, retira o sal das bochechas e respira
aliviado. Abre os primeiros botões da camisa, esfrega as mãos e solta um sopro
abafado e quente pelos ares. Passa os olhos, rápido e atentamente, em todos os
cantos do estabelecimento. O bar é pequeno e em poucos instantes, o passa em
revista. Naquele horário, as poucas mesas ainda estão vazias e o ambiente é
silencioso, afora uma música, que toca baixinho, vinda, provavelmente, dos
fundos da cozinha, quase um ruído, indistinguível. A cada minuto, o silêncio é
entrecortado pelo barulho dos ônibus e caminhões que forçam seus motores para subir
a rua, acentuadamente inclinada. Já no terceiro copo, Alberto relaxa o
alinhamento, com o qual entrara no bar. A gola da camisa se entortara, as
mangas se levantaram para além dos punhos e, depois de alisar e coçar os
cabelos, estes de desgrenharam um pouco, e um pequeno e inusitado topete,
levantara-se do conjunto, sem que ele o percebesse. Afora isso, mantém uma
inquebrantável altivez, a pele, já pela casa das cinco décadas, é estampa de gente
bem alimentada, nutrida, rodeada de cuidados, sabe-se lá, cremes, hidratantes e
perfumes. A barba grisalha, sempre bem feita, de corte impecável, e os olhos
úmidos e brilhantes fazem dele, um homem elegante, admirável. O sorriso
simpático, quase amável, lhe dá a aura de boa gente, em quem, talvez, se possa
depositar alguma confiança. Esvazia a primeira cerveja, vai até a rua, acende um
cigarro e fuma-o inteiro, rapidamente, observando os movimentos dos carros e
das pessoas. Em seguida, retorna ao balcão e pede ao garçom uma segunda
garrafa. Enche o copo, observa, atentamente, as bolhas e espumas que se formam
sobre o líquido amarelado, antes de levá-lo à boca, quando o telefone toca. Alô,
Virgínia, meu amor, tudo bem? Ainda não cheguei em casa, estou aqui dentro do
mercado, comprando algumas coisinhas que estão me faltando, apenas fazendo
algumas reposições ligeiras. Não passasse por aqui, sequer teria um pão amanhã
pela manhã. Poxa, como foi corrida a semana. Acho que, por estes dias, não
vamos nos ver, o trabalho no escritório anda apertadíssimo, sinto-me um pouco
cansado e dormi tão mal esta noite que, provavelmente, vou precisar de mais
umas duas noites, no mínimo, para me restabelecer. Marcamos, então, para o
final de semana? Sim, sei que está preocupada com a festa, mas ainda faltam
muitos dias, acalme-se. Além do mais, fazemos aniversários todos os anos, se
formos nos preocupar com eles com tantas antecedências, passaremos uma vida
inteira, sem pensar em outra coisa. Já fez a lista? Sugiro que este ano,
façamos algo mais modesto, vamos restringir os amigos e fazer um encontro mais
familiar, combinado? Mas não se esqueça de incluir todos eles, mesmo aqueles
com os quais não nos damos muito bem, os chatos e inconvenientes de sempre, não
os deixaremos de fora, afinal, tratando-se de nossas famílias, já sabemos que o
melhor mesmo, é a política das boas vizinhanças. Sossega, meu amor,
garanto-lhe, aos finais, tudo se ajeita. Descanse, sem preocupações. Sabe que,
mais uma vez, será um sucesso. A propósito, já pode, para este final de semana,
providenciar um horário no salão, para embelezares ainda mais. É bem provável,
que nos encontremos com o pessoal da Redação. Beijos, amor, e uma boa noite.
Desliga o telefone e, imediatamente, dá uma golada grande na cerveja,
praticamente, esvaziando o copo. Uma sensação de calor lhe invade o corpo, abre
mais um botão da camisa, leva a mão ao peito, retirando o excesso do suor, e
toma outro copo de cerveja. Por alguns instantes, volta a olhar cada canto do
estabelecimento, o rosto do garçom que lá vai limpar as mesas, um quadro de
paisagem pendurado sobre o freezer, já transformado em depósito de dejetos de
moscas, algumas plantas penduradas na parede do fundo, e dois pôsteres de times
de futebol, colados ao lado da velha máquina registradora. Lá fora, a noite cobre
de breu e escuridões os passos apressados dos que vão pelas calçadas e enchem
de sombras os olhos fixos dos motoristas, orientados pelas luzes fortes e, as
vezes, ofuscante, dos faróis. Alberto pega, novamente, o telefone, as luzes do
aparelho revelam as linhas e o desenho de sua expressão e um sorriso leve e
crescente se esboça a partir do canto direito de sua boca entreaberta. Suas
faces estão rubras. Abre a agenda, e vai olhando nome por nome, rola a tela de
cima para baixo e de baixo para cima. Verifica os nomes que se iniciam com a
letra A. Ali estão Adriano, Álvaro, Andrea, Angelina, Ataíde, Augusto, e tantos
outros, em uma listagem quase sem fim. Passa pela letra B, vem a Bárbara, a
Beatriz e a Bianca. Sim, a Bianca. Por um rápido instante, tira os olhos da
tela, olha para a rua lá fora, e volta à Bianca. Abre o campo das mensagens e
escreve, Boa noite, Podemos nos ver esta noite? Ao que ela responde, É claro
amor, Que horas pretende? Às 23h, Ok? Combinado, nos encontramos, então, no
mesmo local. Combinado. Beijos e até lá. Alberto desliga o telefone, toma mais
um copo e outro e, por fim, pede a conta ao garçom. A partir daí, ele se
apressa um pouco, despede-se dos poucos que ainda se encontram do lado de fora
do bar e caminha em direção ao veículo estacionado à frente. Pelas vezes que já
passou por ali, sua fisionomia já se tornara conhecida, ele mesmo, no entanto,
não, pois apesar de nunca se demorar demais, também não é muito dado aos
assuntos com os poucos que, geralmente, ali bebem naquele horário. O bar é
distante de sua casa, o que lhe garantia certo conforto, relaxamento, e
principalmente, anonimato. Tem que se apressar, o tempo que lhe resta, até a
hora de ir ao encontrar com Bianca, é o suficiente para que chegue em casa,
tome um banho, faça um abreviado lanche e desloque-se até o local combinado.
Assim fez.
São vinte e três horas em ponto,
quando Alberto estaciona o carro em frente a uma pequena lanchonete, onde
Bianca o aguarda. Ele a vira muito antes de se aproximar. Ela usa uma roupa
clara, uma blusa curta lilás e um short branco que, as vistas dele, são
perceptíveis a mais de duas quadras de distância. Ele a enxerga de tão longe
que, às vezes, chega a imaginar que se trata de alguma miragem ou alucinação,
mas não, é sempre ela mesma. Ele não se recorda de identificar alguém desta
forma, há tantos metros distante. É assim todas as vezes. Ela entra no carro e
uma nuvem de perfumes acomoda-se no interior do veículo. Solta-lhe um sorriso
largo, dá-lhe um beijo breve e encara-o com olhos de fogo. Sua pele clara reluz
sob a incandescência do poste que ilumina a rua e seus pelos curtos arrepiam-se
sob as mãos pesadas de Alberto. É uma bela jovem e, bem feitas as contas, sua
idade talvez não se aproxime da metade dos anos que ele tem. Antes de ligar,
novamente, o motor e dar a partida, Alberto a fita-a de cima em baixo e, pelas
linhas de sua expressão é de se crer que, ele gosta muito do que vê.
Acostumou-se a dizer a ela que, a cada dia que a encontra, está sempre mais
bela e atraente que da vez anterior. O elogio lhe arranca um sorriso doce. Em
menos de quinze minutos, estão à porta do motel. A recepcionista pede apenas o
documento dela, ele, com um simples gesto amistoso com as mãos, um breve aceno,
resolve a necessidade de identificação, ou sabe-se lá, a camareira já o
conhecesse de outras ocasiões. O quarto é espaçoso e aconchegante. A cama é
redonda, há espelhos pelas paredes e no teto e a iluminação é regulável através
de um sofisticado sistema de interruptores e botões. Há as opções de penumbra,
claridade total, alternância de cores, ou pisca-pisca, como nas boates. À
disposição dos amantes, uma série de fragrâncias à venda, perfumes para cada
tipo de fantasias, das catalogadas e das incatalogáveis, e um freezer farto de
bebidas e guloseimas. Para atender aos mais variados gostos e opções, o
estabelecimento oferece um enorme cardápio, com todos os tipos de acessórios e
brinquedinhos. Bianca, após lavar suas mãos, vai até o frigobar, de lá retira
uma garrafa de vinho, abre-a, enche duas taças e põe-se a brindar. Por todo o
tempo, ela persegue os olhos de Alberto, sabe o poder sedutor que carrega no
olhar, entrelaça seus braços aos dele, amarrados um ao outro, e com a taça em
punho, celebram o primeiro gole. Um fogo, de imediato, se acende dentro dela e
seus olhos faíscam. Alberto sente a volúpia do sangue acelerar-se por dentro das
veias. Ela levanta-se, escolhe uma música no rádio e dança para ele,
despindo-se, lentamente, peça por peça, até que fica completamente nua e se
atira em seus braços. É alta madrugada, quando os corpos úmidos de Alberto e
Bianca se desgrudam e, já exaustos, devido às demandas e emergências do amor e
do sexo, põem seus músculos ainda quentes a relaxar sobre a cama macia. Ela
passa os dedos, então, suavemente, sobre seus lábios e, depois, repete o
movimento sobre os lábios dele. Ele alisa as pernas de Bianca, levemente, do
quadril ao joelho, dá-lhe uma piscadela, levanta-se, bebe mais um gole do
vinho, observa o corpo bem desenhado e atraente de Bianca, por um feixe de luz
que atravessa a fresta da cortina, e deita-se novamente. Ela se agarra a ele
que, está deitado olhando, agora, para o teto, e o abraça em concha, dobra sua
perna sobre as dele, encosta a cabeça sobre o seu peito e lhe acaricia os pelos.
Alberto repousa suas mãos sobre os ombros delgados e aveludados da amante. Como
você está? Há tanto tempo não o via. Pensei que já nem mais se lembrasse de
mim. Veja se não me abandona desta forma, podemos combinar assim? Ela pergunta.
Claro, meu amor. Você bem sabe que sou um sujeito sem tempos, o trabalho no
escritório, aperta-se a cada dia, e ultimamente, quase não tenho ido à minha
própria casa, e você sabe que não é alguém que se esqueça ou abandone com
facilidade. Não conseguiria. Vamos combinar de nos vermos com mais frequência,
uma vez pela semana, o que acha? Ótimo, mas diga-me, que trabalho é este que te
toma tanto tempo? Alberto silencia-se, mira fixamente o teto, inclina-se, levemente,
para dar mais um trago no vinho e, rapidamente, volta à posição anterior,
enlaçado pelo corpo leve e pela cabeça de Bianca em seu tórax. Você é
misterioso, ela diz. Nunca fala às claras sobre o ofício que tem. Não há
segredos, meu bem, como já lhe disse, sou jornalista. Mais da metade de minha
vida enfurnado nas redações de jornais, já fiz todo tipo de jornalismo,
policial, político, esportivo, sensacionalista, e já passei por várias
empresas, das pequenas às grandes, hoje, depois de muitos sacrifícios e muitos
socos em pontas de facas, consegui me posicionar um pouco melhor, e diria que
sou um Diretor Editorial. Nossa, que chique, ela exclama. Então, você pode me
dizer o nome do jornal em que trabalha atualmente? Você me parece ser uma
pessoa importante, porém, não se revela. Certamente, deve ter os seus motivos,
mas confesso que, às vezes, fico curiosa. Mas tudo bem. Diga apenas o que puder
ou se sentir a vontade em dizê-lo, o que me importa mesmo é que você não
desapareça, seu fujão. Ele sorri e leva os dedos entre os cabelos dela,
massageando o seu couro cabeludo. Ela o aperta, aconchegando-o mais de perto.
Sabe o que é? Diz ele, A bem da verdade, nos últimos anos, não presto serviço a
um jornal apenas, como fiz na maior parte da minha vida, mas coordeno uma rede
de entidades e jornalistas que produzem artigos, matérias, editoriais que são
destinados a diversos órgãos de imprensa espalhados por todo o país, entre
jornais, revistas, até televisão, para ser muito sincero e, principalmente,
produzimos material para muitos sites, blogs e redes sociais. O jornalismo já
não é mais como foi a uns anos atrás. Hoje em dia, ou nos sofisticamos ou
ficamos para trás e somos engolidos pelo rápido avanço da ciência e da
tecnologia. Poxa, senhor Alberto, Alberto o quê, mesmo? Ah, sim, me lembrei,
Senhor Alberto Matias, minhas intuições não falham, sabia que lidava com gente
importante, diz ela. Não é bem assim, meu amor, o mercado é muito competitivo,
revolto como um mar tempestuoso, com suas ondas gigantes e demolidoras, ora
surfamos pelo alto, ora somos destroçados nas arrebentações. E ouso dizer que
se a maré não está boa para os peixes, também não está para muitos
aventureiros, que acabam se afogando em suas águas intranquilas. Felizmente,
posso dizer que, por enquanto, surfo bem e os ventos tem sido favoráveis. Em
parte, consegui me adaptar a algumas demandas do mundo contemporâneo. Os dois
sorriem juntos. Que luxo, ela diz. Ainda resta quase meia garrafa de vinho.
Desta vez, a iniciativa é dela. Inclina-se na cama, enche as duas taças e
convida-o a um brinde. Ela saboreia suavemente o vinho, ele dá um trago longo. Então,
você deve ser um homem famoso no meio jornalístico, não é? Não é bem assim. O
trabalho que hoje realizo não me proporciona muita visibilidade, as tecnologias
digitais, me permitem que o execute de forma bem discreta. Mesmo porque, hoje,
não assino matérias ou artigos, apenas administro uma equipe, um sistema. Minha
equipe não sai às ruas, em busca das notícias, nossa tarefa, ofício, poderia
dizer, é pegar a notícia pronta, já veiculada, e dar a ela o verniz das
concepções e pontos de vista daqueles que nos contratam. Nós trabalhamos as
notícias, as adaptamos às expectativas e demandas do público que consome as
informações dos nossos clientes. Nossos clientes? Grandes portais de notícias,
mídias impressas, televisivas e digitais, instituições religiosas, que são
sediadas no país e até fora dele, temos muitas organizações do Império que nos
contratam. O meu patrão, com o qual tenho pouco contato direto, é um sujeito
muito bem relacionado, passa a maior parte do seu tempo fora do país, é um
sujeito que possui contatos poderosos. Enquanto estiver sob sua guarda e
proteção, não me faltará o trabalho e, também, algum conforto. A menos que algo
dê muito errado e nos ponha à mostra, é um trabalho que, apesar de se destinar
a um público enorme, nos permite trabalhar mais à sombra dos escritórios, do
que à luz dos holofotes. Mas, poxa, acho que já falei demais. Deve ser
resultado do vinho, não sou lá de desembolar estes assuntos, mesmo porque, se
for falar de trabalho nos poucos momentos em que estou fora dele, posso acabar
me estafando, não acha? Verdade, meu bem. Mas só uma pergunta, Como é isso de
adaptar a notícia às expectativas de alguém? É a parte que não compreendi bem.
A notícia não é o fato por si só? Claro que não, minha linda. O fato é uma
coisa, a notícia é outra. Notícia é narrativa, é alguém, alguma entidade,
empresarial, governamental, religiosa ou sei lá o quê, que relata o ocorrido de
acordo com suas conveniências, suas crenças ou negócios. A notícia é algo muito
maleável, somos os artesãos da notícia. Porém, artesãos à moda contemporânea,
lhes metemos as mãos, dando nossas formas, tintas e tons, em um trabalho
minucioso, cirúrgico e artesanal, depois, as distribuímos em escala industrial.
Aliás, somos os operários da notícia. E hoje, mais que nunca, a notícia anda
cada vez mais à distância dos fatos que se propõe narrar. Olha, Alberto, sendo assim, não é então, a
notícia, uma representação, um retrato da realidade do fato? Pelo que diz, há
casos em que a notícia pode caminhar em um sentido e a verdade para o outro, a
depender dos interesses de grupos ou ocasiões? Poxa, Bianca, você é mais atenta
do que podia imaginar. Sim, em muitos dos casos, e é o que fazemos. Mas não
acha que prolongamos demais o assunto? Não demora a manhã chega e precisamos
descansar, diz, Alberto, encerrando o assunto. Isso mesmo, meu Redator,
querido, aliás, Redator? Penso que é mais um gerente, não é isso? Diretor
Editorial ou Gerente Geral de Negócios?
Acho que as duas coisas, sua curiosa, mas quem trata mesmo da parte
financeira é o homem lá de cima, esta entidade milagrosa, que vem salvando um
setor do jornalismo da bancarrota total, nestas épocas de rápida circulação do
noticiário, e de uma proliferação infinita de sites e blogs de todos os tipos e
para todos os gostos e públicos. A disputa e concorrência são tão grandes que
passamos por um acelerado processo de seleção natural, onde uma grande parte de
profissionais são, literalmente, ceifados do mercado. Assim é a vida, assim é o
mundo. Boa noite? Boa noite, meu lindo. O sol já brilha forte, quando Alberto
abre os olhos, um pouco empapuçados, devido aos excessos com a bebida, e
assusta-se com a claridade do dia, escondido por trás das cortinas, anunciado
apenas pela fresta que, ainda ontem, iluminava o corpo sedutor de Bianca. Olha
para o relógio e constata que estava atrasado de fato. Sacode delicadamente o
ombro esquerdo de Bianca e sussurra em seu ouvido que já passou da hora de se
levantarem. Ela abre os olhos, lentamente, também incomodada com a claridade
que lhe batia no rosto, puxa-o para os seus braços, no que ele cede e mais uma
vez, enlaça-o nas teias do sexo e do amor, com sua carne quente e seu sangue
jovem e vulcânico. Após um banho rápido, vestem, apressadamente, suas roupas,
Bianca demora um pouco mais, pois o batom deveria seguir fielmente as linhas
dos lábios, o que lhe realça a beleza e a jovialidade. Alberto, antes de
dirigir-se à porta, retira a carteira do bolso, arranca de dentro duas notas de
cem e as entrega a Bianca. Ela dá-lhe um beijo no rosto e diz, Obrigado, amor,
Vamos já marcar nosso próximo encontro? Ainda não, meu bem, meus horários por
estes dias são instáveis e imprevisíveis. Assim que der e, espero que seja
breve, te envio uma mensagem. Ele a deixa no mesmo local que a apanhou e em
poucos minutos, chega em casa.
Não vai demorar em casa, apenas
trocar de roupa, pegar alguns documentos, certificar-se de que as coisas estão
em seus lugares e, em seguida, correr para o escritório, pois o atraso, sempre
lhe traz problemas e embaraços. Enquanto abotoa a camisa, o telefone dá o sinal
que acabava de receber uma mensagem do seu chefe, aquele homem impenetrável,
exigente e rigoroso, porém com poderes ainda não completamente dimensionados,
dados os contatos e influências que tem no Império, os quais nunca revela, em
detalhes, quais são exatamente. O aparelho telefônico está programado para
acender uma luz alaranjada e forte, quando recebe qualquer tipo de mensagem
desta entidade onipresente e invisível. Foram poucas as vezes em que, apesar do
bom tempo que lhe presta serviços, os dois se encontraram pessoalmente, assim,
em carne e osso, olho no olho, ao vivo e a cores, como muitos diriam. Normalmente,
estes encontros presenciais, ocorrem apenas diante de demandas mais urgentes,
as reuniões, quase, invariavelmente, se dão pelo sistema de videoconferências.
Nos primeiros tempos de Alberto no cargo, estas reuniões eram mais frequentes, porém,
foram reduzindo a frequência, à medida que aumentou a confiança do chefe em seu
empregado. Alberto nunca lhe traz problemas, a empresa vai bem, é perceptível o
enriquecimento do patrão e, ele sempre elogia os editoriais e os artigos que,
junto à equipe que montara, Alberto despacha para as milhares de organizações e
empresas que as compram e disseminam para um público cada dia mais vasto. É um
negócio em ascensão. Quando recebe destas mensagens, Alberto larga o que quer que
esteja fazendo, para verificar do que se trata. Afinal, dali vem as orientações
e diretrizes que traçam não apenas as linhas do seu trabalho, mas os rumos da
sua vida. Ele não termina de fechar todos os botões da camisa. Corre até o
aparelho e abre, curiosamente, a mensagem, que diz, Preciso falar com você com
urgência. Podemos nos reunir às dezesseis horas? Um abraço e não atrase. Claro,
Senhor Hamilton. A partir das quinze horas, já estarei à sua espera e inteira
disposição. Um abraço. Desliga o telefone, desacelera a pressa inicial, afinal,
seu compromisso maior, para o qual deve poupar energias, será apenas no final
da tarde. Joga-se no sofá e põe-se a imaginar do que poderia se tratar, pensa
em uma série de possibilidades e motivos, algum contrato novo, algum material
que não tenha saído a gosto e contento de algum cliente poderoso, algum
excesso, alguma falha técnica imperdoável, uma transferência, mudança de posto?
Pensa, pensa e, acaba por se convencer que, certamente, não seria nada daquilo.
Dado o perfil megalomaníaco e excêntrico do chefe, estes raros encontros e
reuniões, são sempre uma surpresa. As ligações que o patrão possui com o mundo
dos negócios, circulação de capitais e fortunas, seja no plano nacional ou
transnacional, fazem dele um homem sempre surpreendente. Além de estar bem
consolidado no ramo das comunicações, possui um bom faro para as forças e
tendências do mercado e da política e, vez ou outra, aventura-se em outros
empreendimentos. E, por enquanto, vem se saindo bem. A preocupação com a
reunião das dezesseis horas, somada a uma ligeira ressaca, advinda das cervejas
e vinhos consumidos na noite anterior, lhe proporciona uma incômoda dor de
cabeça e o desconforto das ansiedades. Esforça-se para relaxar e, para tanto,
puxa do fundo do baú das memórias, momentos que passara no campo, no mato,
põe-se a recordar do barulho das águas, dos roncos das ondas do mar à melodia
úmida do rio em cachoeiras, que se arrebenta nas pedras. É uma tática
costumeira que utiliza quando lhe escapa o sono ou as tensões lhe formigam os
nervos. Geralmente, funciona. Afunda-se no sofá e, por sorte, pode desfrutar de
um sono de quase uma hora.
São quinze horas e cinquenta
minutos e, pelas marcações e agendamento, em dez minutos, Senhor Hamilton
entrará por aquela porta. O escritório de onde despacha diariamente é uma sala
enorme, bastante iluminada e ventilada, graças as enormes janelas de vidro que
rodeiam todo o edifício. A vista ali de cima é privilegiada, e é possível mirar
uma grande parte da cidade, com seus prédios cinzentos, as áreas das encostas,
os morros degradados e os brilhos dos automóveis, enfim, um retrato panorâmico
e do alto, do que são nossas cidades e o que fizemos de nós mesmos, os
contemporâneos, Homo urbanus. O salão
é amplo, confortável, a mesa onde trabalha Alberto está plantada sobre um
tablado de madeira, elevado do plano do chão em dois curtos degraus, onde se
espalham dois armários com arquivos, dois computadores enormes e possantes, um
notebook, e um telefone celular de última geração acoplado a um tripé, bem ao
lado da poltrona de couro utilizada por Alberto. Sem luxos desnecessários, o
espaço é ornamentado com quadros pendurados nas paredes, fotografias de
paisagens, um cactos ao fundo, oitos poltronas estofadas, para o caso de
reuniões ou visitas, e uma pequena estante, próxima da porta de entrada, guarda
várias publicações e títulos nas áreas de jornalismo, gestão de negócios,
tecnologias e mídias digitais. Na prateleira de cima, há uma pequena coleção de
best-sellers de autores estrangeiros. Alberto dá uma última conferida, se está
tudo em ordem, ajeita alguns papéis sobre a mesa, organiza as pastas,
alinhando-as umas sobre as outras, abre e fecha gavetas e olha para o relógio,
são dezesseis horas. O local é adequado para quem quer trabalhar em privacidade,
apenas ele fica ali, sua equipe de trabalho ocupava as salas adjacentes, por
onde Alberto passa a maior parte de seu dia. Com dez minutos de atraso, a
secretária anuncia a chegada do Senhor Hamilton. Alberto levanta-se para
recebê-lo à porta. Olá, boa tarde, Sr. Hamilton, como vai? Há um bom tempo não
nos vemos, não é mesmo? Boa tarde, Senhor Alberto Matias. Aqui estamos
novamente. Os dois homens se cumprimentam com um aperto de mão e um abraço rápido
e formal. Como era de costume, os olhos curiosos e investigativos do chefe
percorrem, rápida e atentamente, cada canto e detalhe do salão, enquanto
desloca-se da entrada à poltrona em que ocuparia para dialogar com o seu
Diretor Editorial. Alberto observa que o homem havia adquirido um peso a mais,
desde a última vez que o vira. As mãos, sob o paletó, estão roliças,
rechonchudas e arredondadas. O rosto, mais redondo, brilhoso e bronzeado,
denuncia uma vida de excessos e farturas, coisas que o dinheiro em sobra,
geralmente, à falta de cuidados, costuma proporcionar. O visitante veste um
terno azul, muito alinhado, e uma gravata bege, ajeitada ao pescoço com uma
precisão milimétrica, certamente, havia alguém contratado, especializado, para
dar um nó tão perfeito. Alberto toma seu lugar à mesa e o patrão senta-se,
quase jogando-se, na acolchoada poltrona de visitante à frente. Como vão as
coisas Senhor Alberto Matias? Tudo bem? A família, como vai? Virgínia? Estão
todos bem, Senhor. E o Senhor e os seus? Tudo ok, Alberto, tudo ok. Fico
satisfeito em lhe ver bem, Senhor Matias. Devo admitir que, através de seus
reconhecidos esforços, o senhor, hoje, adquiriu posição de destaque entre os
nossos melhores quadros. Estamos muito satisfeitos com os resultados
apresentados, nossos clientes tem elogiado muito a qualidade e eficácia das matérias
e editoriais produzidos por sua equipe. O senhor é um bom articulador, o que me
dá seguranças, principalmente, em uma conjuntura de crescimento da demanda por
nossos produtos. Sabe, Senhor Matias, em um mundo polarizado e dividido como o
nosso, a propaganda, digo, o jornalismo, torna-se uma arma muito importante
para os nossos clientes. As versões que vocês têm produzido encontram uma
aceitação muito grande no mercado das notícias. Nossos clientes, gente
poderosa, são guerreiros em uma batalha permanente, e como bem sabe, não só com
pólvora e bombas se ganha uma guerra. E consideram que umas das frentes
vitoriosas deste gigantesco campo de batalha, é a guerra, onde nós, temos
produzido das armas mais eficazes. Hoje as bandeiras que mais arrastam as
multidões, já não são as de mastro e tecido costurado, são as forças das
ideias, a subjetividade dos símbolos, a arte do convencimento, as palavras de
ordem, os robôs digitais, as palavras-chave, os algoritmos e as campanhas de
hashtags. O mundo gira, Senhor Matias. E vejo que você é um artista, captou bem
o espírito da época. O senhor, Alberto Matias, é um especialista na arte de
plantar a notícia, a boa notícia. Estamos satisfeitos mesmo, de verdade, com a
qualidade do trabalho, a perspicácia do argumento, as linhas do raciocínio, as
premissas e os princípios, a força dos vocábulos e das expressões, a sedução da
palavra, o disfarce, o despiste, a arte de mostrar o que não se viu, e de
ocultar o que não pode ou não deve ser revelado. Sejamos francos, Senhor
Alberto, assim ganhamos a vida, quiçá, conquistamos o mundo, declara o senhor
Hamilton. Apesar de ter a plena consciência do quanto se dedica com afinco ao
trabalho, dando o máximo de si e o máximo que acredita poder oferecer, a contundência
do elogio do chefe, deixa Alberto, visivelmente, constrangido. Suas mãos não
encontram local que as caiba, acaricia as bordas das pastas sobre a mesa, muda
de posição a caixa de lápis, deixa os dedos tamborilando sobre o estojo,
enquanto o restante do corpo mantém-se imóvel e sem tirar os olhos do patrão.
Aqui, Senhor Alberto Matias, nas organizações que comando, sabemos bem
valorizar os talentos que temos, sabe-se lá, não é este o segredo do nosso
sucesso. A propósito, como vão os seus tempos? Tens outros compromissos afora os
quem temos entre nós? Talvez precisemos ainda mais do senhor, com dedicações
exclusivas, possibilidades de viagens, algumas ações fora da cidade. Tem outras
ocupações que o limitam, senhor Alberto? Estamos expandindo e potencializando
nossos empreendimentos e temos promovido uma ousada política de promoções. Tens
interesse? Por alguns segundos, Alberto engasga-se com uma tosse seca,
pigarreia, as maçãs do rosto ficam ligeiramente coradas, toma um gole d´água, e
responde, Claro que tenho interesse, senhor. O senhor bem sabe que nos últimos
anos não tenho feito outra coisa, do que dedicar-me às demandas da organização.
Não fosse assim, talvez não merecesse os elogios que faz. A escolha de uma
equipe competente, a aplicação disciplinada dos editoriais, abordagens e
versões, aos princípios que nos regem e pelos quais trabalhamos, a realização
de pesquisas e análises permanentes, que nos permitem conhecer a fundo e
sistematicamente os mais variados nichos de leitores e consumidores que
atendemos, a disposição em dialogar com os clientes para conhecermos melhor os
detalhes e especificidades de seus públicos e seguidores, nada disso seria
possível de ser executado com a mínima eficiência, se já não estivesse
dedicando-me em regime de dedicação exclusiva. A linha de frente, senhor, exige
empenhos férreos e a disciplina dos combatentes. Pois, então, gosto de ouvi-lo,
senhor Alberto, o senhor nunca me faz perder o tempo, este bem precioso, ao
contrário, sempre me retiro daqui acreditando, que saio em benefícios e
vantagens. O senhor agrega muitos valores aos nossos empreendimentos e
negócios, é um homem que soma. Além do
que, depois de tudo que já foi realizado, fico tranquilo em afirmar que o
senhor é um colaborador da minha mais estrita confiança. Alberto sorri em um
constrangimento indisfarçável e lança um olhar fugidio e distante para a
janela, encara novamente o chefe e agradece, Obrigado, senhor, muito obrigado
mesmo. Sinto-me lisonjeado e, agora, sem palavras. Um ligeiro silêncio interpõe-se
entre os dois homens. O senhor Hamilton observa atenta e fixamente o seu
Diretor Editorial, mais do que é observado por este. Alberto esforça-se para
livrar-se do desconforto e da ansiedade, remexe-se continuamente na poltrona,
tampa e destampa a caneta posta sobre a mesa, esfregando lhe o polegar. O
Senhor Hamilton aproxima a poltrona da mesa, coloca as duas mãos sobre ela,
procura os olhos de Alberto e indaga, Tudo bem, senhor Alberto? Tudo ótimo,
senhor. Que bom, e Virgínia, como vai? Virgínia está muito bem, no momento,
está empenhada na organização da minha festa de aniversário, adora organizar
eventos, mas é um pouco ansiosa e, praticamente, não pensa em outra coisa. É
uma excelente mulher, acho que não poderia ter feito escolha melhor. Inclusive,
aproveito a ocasião para já lhe estender e antecipar o convite, ficando a dever
os detalhes sobre horário e endereço que estamos definindo por estes dias.
Muito obrigado, Alberto, mas não estarei no país. Viajo na próxima semana, e
ficarei cerca de dois meses em viagens. De antemão, porém, lhe desejo muitas
felicidades e sucesso. Levanta-se e abraça Alberto. Senta-se novamente e
retorna à carga. Bem, senhor Alberto Matias, voltemos, pois, aos assuntos.
Hamilton segura as bordas da mesa com as pontas dos dedos, retirando as costas
do encosto da poltrona, levanta o peito e posiciona-se frente a frente com
Alberto. Senhor Alberto, temos uma missão à frente. E o senhor me parece a
pessoa mais qualificada, senão, ideal, para colaborar no intento. Vejo-o com
todas as credenciais para tal, é das nossas confianças, acredita no que faz,
veste a camisa, é determinado e possuí um inegável espirito de liderança de
equipe. A fórmula fechou. Um calafrio, como nunca lhe ocorrera, rasga o peito e
atravessa o estômago de Alberto que, por alguns instantes, tem a sensação de
perder a cor e ser possuído por uma incontrolável frouxidão nos braços. Respira
fundo algumas vezes, procurando disfarçar ao máximo a ação à frente do patrão,
pois sabe que o recurso lhe cai bem quando diante de grandes expectativas ou
ansiedades. Rapidamente, porém, retoma o fôlego e, acredita que a pequena
movimentação tenha passado imperceptível aos olhos do chefe. Tome um gole
d´água, Senhor Alberto. O patrão se apressa em servi-lo. Muito obrigado, senhor,
muito obrigado. Dá um gole apressado e indaga, Mas como o senhor lá ia dizendo.
Pois bem, senhor Alberto, em breve, teremos as eleições municipais. E como o
senhor bem sabe, nestas ocasiões, nossos clientes assanham-se, mesmo porque, o
jornalismo político e religioso são nossos carros-chefes, nossas especialidades
primeiras e inadiáveis. A demanda por nossos serviços aumenta muito. É hora de
arregaçarmos as mangas mais que nunca. O problema é que nossos mais importantes
e poderosos clientes vão se tornando, a cada dia, mais exigentes. Querem cada
vez mais de nós. Às vezes, me ponho a imaginar até onde vamos, para atender as
suas mais extravagantes exigências. O mundo dá muitas voltas, disso sabemos, as
coisas, às vezes, parecem colocarem-se de pernas para o ar, mas é o mundo que
temos. Não há outro. Dos formadores de opinião, estrategistas da comunicação,
exigem-se não apenas o controle da narrativa, mas também, a criação do enredo.
As estratégias de campanha não são mais as mesmas do que eram há apenas algumas
décadas. Tornaram-se mais contundentes, bilionárias e ofensivas. Há um campo
infinito e inexplorado de possibilidades, ações e recursos que, por mais
domínio que acreditamos possuir na área, nunca deixamos de nos surpreender. Como sempre ouço, em várias ocasiões, as
forças do mercado e as poderosas forças políticas, em nome de supostas
modernidades, exigem de profissionais de todas as áreas, não apenas competência
técnica, mas o que chamam, aos quatro de cantos, de maleabilidade, um sinal de
progresso, e de nós, agentes do jornalismo e da propaganda, nos querem, a cada
momento, cada vez mais versáteis. Disto se trata. Querem nos ver às estripulias
e hoje, já não nos basta o controle da narrativa como disse há pouco, somos convocados a interferir nos rumos
próprios da história. Hamilton faz um breve silêncio e fica a observar a reação
de Alberto. Este, não consegue conter-se de ansiedade e os olhos estão mais
abertos do que o de costume. Força uma tosse, para dar-lhe tempo de pronunciar
a pergunta, sem o risco de engasgar-se, e atreve-se, Sim, senhor Hamilton, mas
onde é, exatamente, que entro nesta história? É uma boa pergunta, senhor
Matias, aguentou por muito tempo, hein? Pois, então, agentes do Império, gente
poderosa que nada nos dinheiros e nos luxos, como você não imagina, ligados a
poderosas corporações econômicas e políticas, a maioria deles, nunca colocou os
pés por aqui, mas estão interessadíssimos nos rumos e resultados das eleições
do final do ano, sabe onde? Pasme, senhor Alberto, em Jurupemba. O senhor já
ouviu falar em Jurupemba, senhor Alberto Matias? Sei que não, lugarejo isolado,
enfurnado nos cafundós, eu também até quinze dias atrás, nunca havia ouvido
falar. Estas terras são muito grandes, não se conhece tudo, por mais que se leve
uma vida inteira viajando em veículos de toda espécie, carros, jatos, navios,
não temos a oportunidade de conhecermos uma ínfima parte do chão deste planeta,
mesmo deste país. Jurupemba, senhor Alberto, guarde bem este nome. Pois, então,
nossos clientes já têm o seu candidato em Jurupemba. Na verdade, eles sempre
têm seus candidatos. E quais são os seus candidatos? Obviamente, desnecessário
dizer, que são aqueles que, compactuam com seus negócios, fazem os acordos
prévios, às vezes, às claras, às vezes, as sombras, para garantirem o sucesso
dos empreendimentos. Não há fronteiras para estes grupos, estão em todos os
lugares, em todo o mundo. Agora, estão empenhadíssimos na campanha de
Jurupemba. Ainda não conhecemos de perto o candidato deles e, obviamente,
também nosso, mas certo é que técnicos encontraram, não faz muito tempo,
riquezas grossas no subsolo do município. Jurupemba não faz ideia de quantos
olhos voltam-se sobre ela. Melhor dizendo, sobre o que há por baixo dela. O
centro urbano é pequeno, os habitantes são algumas poucas dezenas de milhares,
mas o território do município é vasto e se constatou que ali há um potencial
fabuloso para a indústria extrativista, parece-me que são minérios, dos quais
se alimentam a produção de eletrônicos, computadores, telefones, parafernálias
tecnológicas de toda ordem. Mas esta parte não é a que nos interessa
diretamente, ou que nos diz respeito. É apenas para que compreenda, senhor
Alberto, a complexidade do trabalho. E se não há como varrer aquele povo
daquele território, o que temos a fazer, é que eles se convençam e se alinhem
às políticas que são gestadas para eles. Entende-me, senhor Alberto, por onde
entramos? Compreendo, senhor, mas ainda não vi onde há a novidade, afinal não
será a primeira vez que realizamos trabalho deste tipo. Diria mesmo que, não é
de pouco tempo que fazemos coisas assim. Não é nisto que vamos nos
especializando e conquistando cada vez mais os mercados? Exato, senhor Alberto,
porém, como se diz por aí, cada caso é um caso, e não há um dia igual ao outro,
não é verdade? Pois, sim. Então, vou lhe dar os detalhes. Explicar-lhe o passo
a passo. Antes, porém, preciso saber se
há alguma objeção da parte do senhor em instalar-se em Jurupemba por um
período, talvez umas duas semanas, talvez mais ou menos, ainda não se sabe
exatamente, para levar a cabo a missão.
O senhor se dispõe? Espero que sim, pois os prazos, não demora se
esgotam, e confesso que, provavelmente, terei dificuldades em encontrar um
substituto à altura, neste ponto do campeonato. A campanha eleitoral já está
bem aquecida em Jurupemba e daqui a alguns dias, entraremos em sua fase
crucial, onde, certamente, se definirão os resultados. Ganhamos ou perdemos, e
não podemos perder, senhor Alberto Matias. O senhor, volto a repetir, já
conquistou a confiança e o respeito de nossos clientes. Não podemos
frustrá-los. O senhor se dispõe? Alberto sorri para o chefe, na tentativa de
esconder o desconforto, sabe que não é o momento para titubear, estufa o peito,
a mostrar-se decidido e, sem tempo ou condições para pensar em qualquer
possibilidade de um não, adianta-se, antes que qualquer constrangimento pudesse
ocorrer em meio ao diálogo com o patrão. Sim, senhor Hamilton, quando foi que
não estive à frente, preparado, armas em punho, para atender as demandas da
empresa e seus projetos? Sabia que podia contar com o senhor. Então, ouça-me.
Caberá ao senhor a coordenação de uma equipe, não mais que dez homens. Alguns
serão indicados pelo senhor, homens que além da competência técnica, já tenham demonstrado
lealdade aos propósitos de nossos negócios, profissionais da sua confiança, e
alguns outros, serão indicação dos clientes. Isso ainda vai se ver em detalhes.
Temos um plano a ser executado. Desta vez, não somos nós os idealizadores, já
vem pronto, empacotado, diria mesmo, lacrado, do Império. Resta a nós, a parte
da execução, seguirmos a receita já elaborada. Vamos por etapas. Regra
primeira, a equipe se instalará em um hotel na região central da cidade. É uma
equipe de jornalismo, a serviços da mídia nacional e internacional , que
chegará à cidade para fazer uma cobertura meramente jornalística da campanha
eleitoral que ocorre no município. Todos os candidatos deverão ser
entrevistados, filmados, fotografados, suas falas serão registradas, em tempos
e tratamentos similares, para não se gerar as legítimas suspeitas. Colocaremos
à disposição da equipe, logomarcas das empresas que pactuam com a ação e que
tem os votos de confiança do povo, são conglomerados importantes, que também
financiam os nossos trabalhos e foram incorporados ao imaginário popular, como
símbolos da verdade, do respeito e da confiabilidade. Estamos em boas mãos. O
que ninguém precisa saber é que, além do trabalho jornalístico a ser realizado,
ao fim e ao cabo, o material produzido estará a cargo de outras equipes,
nacionais e estrangeiras, agregando valores, que o transformará em objeto de
propaganda política a ser disseminado pelas redes sociais, a favor claro, do
nosso candidato, o senhor Josemar de Miranda, que já fechou os contratos. Assim
é a política e esse é, no frigir dos ovos, o nosso trabalho. E vamos além.
Agora vêm as novidades, senhor Alberto Matias. E esta talvez seja a parte mais
empolgante e inovadora desta nossa ação. Preste muita atenção, senhor Alberto.
A sua equipe ficará hospedada em um hotel na região central da cidade. É um
alojamento modesto, porém, confortável, estrategicamente localizado e atende
bem aos nossos propósitos. Em frente à janela do quarto onde o senhor se
hospedará há uma praça, com alguns bancos, um pequeno jardim, árvores, ao
fundo, há guardada em uma cúpula de vidro, uma imagem de uma santa, onde, em
dadas ocasiões, devotos lhe depositam flores e oferendas, até às dez horas da
noite ainda é possível encontrar um ou outro casal de namorados e, ao centro da
praça, bem ao lado de uma antiga fonte luminosa, hoje, desativada, há uma
estátua em tamanho real, à altura de um homem de quase dois metros. Não tenho
lá certezas se, de fato, era assim, tão grande, o representado, o estatuado,
quando em vida. Bem, mas isto não importa. Assim o fizeram, assim é visto por
seus conterrâneos. Alberto, impaciente, o interpela, O senhor esteve lá? Ora, Alberto,
não esbanje ingenuidades, isto não é necessário. Os agentes do Império já
estiveram por lá, a área está bem mapeada, fotografada, inclusive, se preferir,
temos imagens até em escala tridimensional. Estas novas tecnologias são mesmo
uma beleza, o senhor não acha? Da janela do seu quarto, senhor Alberto, o
senhor tem uma vista privilegiada para esta estátua, diria mesmo que, sentado
em sua cama, poderá, praticamente, caso o queira, mirá-la nos olhos. É a
estátua de um dos fundadores da cidade, feita de um realismo que sempre
impressionou os moradores. Hoje, sua história confunde-se com as lendas, e
quase ninguém sabe ao certo, quais os feitos e ditos pertencem à realidade dos
fatos, e quais deles, são provenientes dos campos do imaginário popular e das
crendices. Certo é que o consideram um herói, tombado em uma violenta luta, há
mais de cem anos, quando bandos de saqueadores invadiram o local, abusaram das
mulheres e mataram muitos homens e inocentes. Em seu traje de combatente, agora
em bronze, há um corte grande à altura do peito, uma rasgadura, por onde teria
entrado o punhal que lhe subtraíra a vida. Ao lado da estátua, há um pequeno
obelisco que traz afixada uma placa onde se lê as últimas palavras proferidas
pelo guerreiro, quando acuado e cercado pelos inimigos, já próximo da emboscada
fatal, “Morrerei na batalha, mas meu sangue e minhas lágrimas inundarão de
esperanças e coragem o coração do povo e a terra de Jurupemba”. Hamilton faz
uma pausa, toma um gole d’água, enquanto observa as reações de Alberto. Alberto
encara-o, espantado e curioso. Prossiga, senhor Hamilton. Pois bem, senhor
Alberto, este herói local, hoje em bronze, denominado Coronel Jovelino Miranda,
é ninguém mais, ninguém menos, que o avô de nosso candidato, o senhor Josemar
Miranda. A primeira vista, talvez, possa se imaginar que, diante de um
antepassado assim, a eleição do neto fosse favas contadas, um tiro certeiro,
mas não, tantas bobagens fizeram os descendentes, ele próprio, o candidato,
envolvido em falcatruas e negócios suspeitos, que comprometeram um resultado
favorável e uma vitória eleitoral garantida à família. Se ainda há muitos que o
apoiam, muitos outros também, já o repudiam, influenciados pelos casos mal
elucidados e pela má fama que, principalmente, em épocas eleitorais, os
opositores nunca deixam de explorar. Além disto, aparece um jovem candidato,
carismático, cuja popularidade cresce a olhos vistos, que pelos dados e
informações que levantamos, tem tudo para quebrar a hegemonia dos Miranda. É
onde entramos, Alberto. E o que vou lhe contar agora, é de sigilo absoluto. Nem
Virgínia ou ninguém, qualquer outra pessoa, poderá sabê-lo. Por favor, desligue
o seu telefone, senhor Alberto. Alberto, imediatamente, desliga o aparelho. O
que vem agora é a parte mais delicada da ação. Já disse que alguns homens que o
acompanharão virão designados lá do Império, tranquilize-se, que trata-se de
gente da mais larga experiência, e eles tem uma tarefa, diria melhor, uma
missão, para o qual estão plenamente treinados, equipados e capacitados, qual
seja, plantar um milagre em Jurupemba. Isto mesmo, plantar um milagre. Como
assim? Uma equipe de estrategistas, gente que se dedica aos temas da política,
dos negócios, das ciências e tecnologias, especialistas das estatísticas,
psicologias sociais e de massa, gentes para lá das fronteiras, dos laboratórios
do Império, estão convencidos que só mesmo um milagre poderá levar à vitória, o
nosso candidato. Sabe o que os especialistas sugerem, ou melhor, determinam? Que
a estátua do Coronel Jovelino Miranda chore e sangre as vésperas das eleições.
Alberto, em uma reação espontânea, dá um pequeno salto da poltrona e tem os
olhos, involuntariamente, arregalados. Como pode uma estátua lacrimejar e
verter sangue, senhor? Realmente, devo admitir que é uma boa e inteligente
pergunta. Milagres acontecem, senhor Alberto. Somos nós que os operamos. Pode
crer nisto? Se o puder, melhor. Os homens sabem como fazê-lo. Os agentes que
vão acompanhá-lo são especialistas nestas modalidades, é gente experiente, nada
de marinheiros de primeira viagem. De primeira viagem, em ação desta natureza e
de tal envergadura, somos nós, senhor Alberto. Eles, porém, não tem como
infiltrarem-se nesta comunidade, onde todos se conhecem e dão notícias de uns
sobre os outros e tudo o mais, e realizarem com sucesso seus serviços, se não
estiverem amparados e acompanhados de uma sofisticada equipe de jornalistas
que, certamente, despertarão os olhares curiosos, mas tem a admiração e a fé da
população local, por carregarem os símbolos e as logomarcas sempre estampadas
nas bancas dos jornais e nos canais de televisão que, por seguidas gerações,
levam filmes, noticiário e novelas para o interior de suas casas. Nestas
cidades do interior, mais que nos grandes centros, as grandes mídias,
principalmente, as televisivas, são, na maioria dos casos, colocados sempre
acima de qualquer suspeita. Então, enquanto nossa equipe se encarrega da parte
das filmagens e entrevistas, diria, do aspecto jornalístico do trabalho, os
agentes realizam sua operação. Eles ficarão acobertados sob nossa equipe de
repórteres e técnicos. Nós lhes daremos as devidas coberturas. Já os vi, senhor
Alberto, são dois homens gentis, inteligentes e, apesar de discretos, como é
próprio do ofício, lhes farão uma boa companhia, apesar de não dominarem por
completo a nossa língua. Inclusive, a sugestão é que os dois, principalmente,
quando em público, falem o menos possível, obviamente, para que o sotaque
estrangeiro não desperte muitas atenções. Sabe como é, forasteiros, nestes
lugares, sempre despertam os olhares atentos e curiosos dos nativos, quanto
mais diferentes de si são os visitantes, mais são alvos de curiosidades e
bisbilhotices. Não se aflija, senhor Alberto, tudo sairá bem. Dois dias antes
da eleição, o candidato fará um comício bem ao lado da estátua do avô. Ao
elogiar o coronel em seu discurso, puxando para si, as palhas e as sardinhas,
em vistas a faturar sobre glórias alheias, Josemar de Miranda tocará os ombros
em bronze de Jovelino Miranda. E neste instante, justamente, neste instante,
lágrimas grossas, de água e sal, escorrerão pelos olhos do avô, enquanto um
sangue vermelho, viscoso e vivo, escorrerá do seu peito rasgado, alvejado.
Técnicos e cientistas renomados e a serviço do Império desenvolveram um pequeno
dispositivo com um material especial e completamente transparente, invisível
mesmo, que, bem acoplado a estátua, fará, de forma eficaz e rápida, jorrar
lágrimas e sangue da imortal estátua de bronze. Já estiveram em Jurupemba,
visitaram a estátua, tiraram todas as suas medidas e desenvolveram o equipamento
perfeito, completamente ajustado à estrutura. Holofotes estarão posicionados
sobre ela, e a equipe de fotografia e filmagem se posicionará de modo a
capturar, dos mais variados ângulos, as melhores imagens deste dia histórico.
Certamente, um pequeno alvoroço, entre falatórios e espantos, se sucederá à
constatação do ocorrido. Neste primeiro momento, em questão de segundos, por um
fio, a pequena, leve e invisível parafernália, já estará nas mãos dos agentes
e, sem sombras de dúvidas, para sempre ocultadas, da curiosidade ou
investigação de quem quer que seja. Os caras são perfeitos nisto, Alberto. Eles
irão embora na manhã seguinte ao comício, para que, de imediato e,
definitivamente, possam ser destruídos quaisquer rastros de sua operação. O
senhor e a equipe ficarão ainda realizando a cobertura do dia da eleição. Os
homens, lá do Império, estão plenamente convencidos que após o milagre da
estátua, a eleição de Josemar estará garantida e nisto, estão apostando muitas
de suas fichas. A propósito, Alberto, será o trabalho mais bem remunerado,
entre todas as encomendas que já lhe trouxe. Após o feito, sugiro, inclusive,
que tire umas boas férias, conheça e explore os tantos paraísos que temos aí
pelo mundo afora. O senhor bem merece e lhes ofereceremos das melhores
estadias. As portas vão se abrindo, Alberto. Sugiro que leve Virgínia, será
necessário oferecer-lhe compensações, após ver frustrada sua propalada festa de
aniversário. Hamilton interrompe a fala, toma mais um gole d’água e, antes que,
qualquer outra palavra se interpusesse entre eles, procura fazer a leitura da
expressão de Alberto de modo a antecipar-se a qualquer comentário ou resposta
de seu interlocutor. Alberto mantém-se em silêncio, gira a caneta entre os
dedos, e pelas linhas de sua fisionomia, pode se supor que ainda esteja
digerindo os detalhes do plano que lhe foi apresentado. Um breve silêncio toma
conta da sala. Alberto procura palavras, os olhos permanecem bem abertos e
estáticos e, balbucia, Sim, o aniversário. Sim, senhor Alberto, já se esqueceu
o quanto estamos próximos das eleições? Estamos, de fato, em cima da hora, mas
apenas agora, a proposta surgiu. Acredito que coisas assim, não se programam
mesmo com muitas antecedências, o plano, na verdade, é uma estratégia de
emergência. Acredito que há alguns meses ainda não contavam com o crescimento
da candidatura opositora, foram todos pegos de surpresa. Senhor Hamilton, estou
pronto para atendê-lo em mais esta missão, mas cá estou a interrogar-me, não
seria um exagero, não estamos forçando um pouco os limites e as linhas do
oficio que, normalmente, executamos? Ora, senhor Alberto Matias, pelos vistos,
não carrega toda a ousadia que, às vezes, faz parecer. A que limite,
exatamente, o senhor se refere? Ora, senhor Hamilton, aqui não estamos apenas
manipulando notícias e narrativas, mas criando o fato, já é certo que forjamos
as versões, mas forjarmos a realidade a ponto de plantar-lhe milagres não é
algo que vai muito além dos produtos que vendemos? Ora, Alberto, perdoe-me
discordar, mas o que faz, no dia a dia, neste escritório, ao forjar as versões,
como o senhor mesmo diz, não é também uma forma de forjar a própria realidade
do mundo? Se você manipula os modelos e as fórmulas para a compreensão das
coisas, não está a mudar a própria realidade e natureza delas? Senhor Alberto,
não sou um empreendedor alheio aos produtos nos quais invisto, do tipo
distante. Acompanho de perto seu trabalho e parabenizo-o na forma como o faz
com maestria. O senhor e sua equipe trabalham bem com as palavras, com o trato
das narrativas, com a guerra de propaganda. Mas bem sabe, Senhor Alberto, que
muito do mundo e das versões que vende, são embasadas na mentira. De certa
forma, nos tornamos mercadores de mentiras, ou não o vê? Tem as contas do
quanto já foi obrigado a esconder e omitir, do quanto foi necessário silenciar?
Tem a lembrança de quantas meias palavras, quantas edições mal recortadas,
foram utilizadas para encaixar-se na narrativa pronta? Uma meia verdade também
é uma mentira, senhor Alberto. A palavra também é uma arma e admira-me como a
manipula bem, sabe lidar com seus códigos, seja para exaltar nossos melhores
clientes ou para destruir os seus inimigos. Vejo como lhe são úteis os
adjetivos e tenho aqui uma lista deles. Hamilton retira do bolso o aparelho
celular e acessa os arquivos. Veja, aos nossos, o senhor brinda com adjetivos
como esplêndido, intocável, grande, grandioso, resplandecente, incontestável,
cristalino, esclarecido, santo ou fenômeno, aos adversários os artigos são
recheados de agressivos, ladinos, fanáticos, impávidos, espertalhões,
desqualificados, boçais, pitorescos, para ficar em apenas alguns exemplos,
senhor Alberto. O senhor já está nesta guerra e já rompeu as linhas do ofício
não é de hoje, meu amigo. Quando estas grandes engrenagens da mentira
encaixam-se nas engrenagens da política e das disputas pelo poder e pelo
dinheiro, não há como retroceder, é um caminho sem volta, mesmo quando não
imaginamos o que nos aguarda à frente. Volta os olhos ao celular, acessa um
outro arquivo e volta-se, novamente, para Alberto, Veja esta passagem, senhor
Matias, de Martinho Lutero, “Somos por natureza propensos a acreditar em
mentiras, em vez de verdades. Uma mentira é como uma bola de neve; quanto mais
roda, maior se torna”. Pois, então, a bola de neve cresceu. E o senhor, está
apenas sendo promovido. Parabéns, senhor Matias. O chefe o cumprimenta e trocam
um aperto de mão. Fechado, senhor Alberto? Fechado, senhor. Hamilton
levanta-se. Bem, combinado, então. Vou levantar âncoras, já passou dos meus
horários. Fique mais um pouco, senhor. Tome um pouco de café. Obrigado,
Alberto, mas este fica para outra ocasião. Preciso ir. A gente vai se falando.
Prepare-se. Organize os seus homens, suas coisas, providenciarei as reservas
para a semana que vem. Passe bem, senhor Alberto. Daqui em diante, o que
tivermos de acertar ou resolver, quanto aos detalhes da operação, nos
comunicamos pelo telefone. Estou de malas prontas e nos próximos dias estarei
fora do país. É sempre um prazer reunir-me com o senhor. Tem descansado, se
divertido? Cuidando da saúde? O senhor é um homem de sorte e ainda tem
Virgínia, que é uma bela mulher.
Cuide-se, senhor Alberto, ainda precisaremos muito de seus serviços.
Hamilton apressa-se em direção à porta, coloca as mãos sobre os ombros de
Alberto e despede-se, Sucesso, senhor Alberto, Sucesso. Vira as costas em
direção ao elevador. Alberto acompanha-o com os olhos até que desaparecesse
pelo corredor.
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