quinta-feira, 21 de novembro de 2019

Um diálogo entre os cegos de Saramago e os de Sebastián Piñera.



Para os leitores de Ensaio Sobre a Cegueira, não há como não se lembrar da história da cegueira branca, criada por José Saramago, ao deparar-se com as imagens da marcha dos manifestantes chilenos que perderam a visão nos últimos dias, vítimas de uma nova modalidade de violência policial e truculência política, como ainda não havia registro na história, que condena os que saem as ruas, não apenas a jatos d´água e bombas de gás, como sempre vimos nas manifestações no Chile, mas a tiros de escopetas com esferas de chumbo e balas de borracha, elas próprias, com chumbo em seu núcleo, balas de ar comprimido, projéteis de nove milímetros, que geram lesões profundas no globo ocular, condenando uma legião de manifestantes à perda total da visão, a uma cegueira definitiva. Mais de duzentos e trinta chilenos perderam a visão nas manifestações que a partir de 18 de outubro, se alastraram por todo o Chile. O saldo da violência é estarrecedor. Além dos cegos, já são mais de vinte mortos, mais de dois mil feridos e cinco mil detidos. Segundo Maurício Lopez, oftalmologista, chefe de turno da Unidade de Trauma Ocular do Hospital Salvador, “Temos o triste recorde mundial no número de casos de cegueira. Foi inacreditável. Nada parecido já aconteceu na história da medicina ocular no Chile. É uma epidemia.” Inevitável não nos remetermos ao memorável romance, à cegueira branca de José Saramago. Mas, o que há em comum entre os cegos de Saramago e os cegos de Sebastián Piñera? Onde suas cegueiras se cruzam? Que relação há entre os cegos do mundo da ficção e os cegos do nosso trágico mundo real? Tantos uns quanto outros, são vítimas de uma cegueira coletiva e repentina. Uma e outra ocorrem em cenários de caos social e excessos de violência institucional. São cegueiras típicas do mundo contemporâneo. Há uma linha de comunicação, um diálogo entre eles, o que faz de Saramago quase um visionário. Mas o que diferencia os cegos de Saramago e os cegos de Piñera? Os cegos de Saramago nos mostram o quanto estamos próximos do caos e da desordem absoluta, o quanto é fino o fio que faz fronteiras entre a civilização e a barbárie. Através da linguagem da ficção, nos faz ver, a nós, que temos “a responsabilidade de ter olhos quando os outros os perderam”, o quão fácil é cairmos no precipício da perturbação e da loucura, do olho por olho, dente por dente, no domínio da perversidade e do medo. O romance de Saramago é um alerta. É aí que realiza o que sempre fez de melhor, que é abrir nossos olhos. A literatura de Saramago é, de maneira geral, um apelo contra a cegueira e luz sobre as coisas do mundo. Já os cegos de Piñera são a constatação que em nosso mundo real já cabem até os horrores dos absurdos da ficção e a consumação da tragédia anunciada. Os cegos de Piñera nos apresentam um mundo as avessas, também de pernas para o ar, onde quem protesta contra ele, não está condenado apenas a morte ou ao cárcere, mas a uma perda de visão, parcial ou total, de um olho ou dos dois, como se desta forma, fosse possível cegar os anseios populares e conter resistências e rebeliões. Como se através da cegueira involuntária, desta vez, criminosa, as perversidades políticas e o terrorismo de Estado, se tornassem menos visíveis. A cegueira como arma política. Vê o que pode te acontecer? Podemos cegá-lo. Os cegos de Piñera são o símbolo de um mundo sem compaixão ou piedade. Não é apenas no Chile, porém, que as esferas de chumbo, os tiros de escopetas e as bombas de gás fazem suas vítimas, elas estão espalhadas por todos os quadrantes do planeta, ali, se destacou pela intensidade, pelo recorde histórico. A propósito, cegar homens e povos tem sido uma estratégia bastante eficaz de controle e domínio político e hoje se apresentam inéditas modalidades de cegueira, digamos, cegueiras, que vem desde a destruição dos globos oculares dos manifestantes nas ruas até a criação de um mundo de mentiras e ilusões, de faz-de-conta, que grande parte das populações e largas fatias do eleitorado, consomem como se tratasse da mais pura e absoluta das verdades. Este processo de cegueira, artificialmente criado, induzido, é facilitado pelos truques da tecnologia digital, da psicologia aplicada, dos algoritmos, muito dinheiro, pelas tramoias espúrias entre a ciência e o capital. Aqui na América Latina, em 2019, temos sentido de forma muita dura e perversa o impacto desta política, que se impõe muito rapidamente. Para ficar em breves exemplos, diria que, se um dia quiser entender o que se passa na Venezuela, terá uma tarefa árdua pela frente, pois a grande mídia criou um extenso, quase intransponível ‘cordão sanitário’ jornalístico que, a serviço das grandes corporações e de interesses inconfessáveis, tem por missão, confundir e desinformar, e para tanto, utilizam-se de sofisticadas técnicas de manipulação, omissão e mentiras. Não é nada fácil compreender o que, de fato, se passa por lá, as mídias da cegueira não podem ser esclarecedoras. E isso ocorre em toda a América Latina. Como explicar que pobres, dependentes da saúde pública, diante de todas as precariedades impostas, queiram expulsar médicos cubanos? No Brasil, uma ideologia da morte, que prega a violência extrema como solução para os nossos males, vem se capilarizando pelo país em sucessivas eleições. Enquanto adota-se uma política que tem como pressupostos e pilares, apologia à tortura e à ditadura, legitimação da exploração do trabalho infantil e escravo, racismo, censura e brutal retirada de direitos, leva um amplo setor da população a defender, fanaticamente, que a terra é plana, peixes são inteligentes e sabem como se safarem da contaminação do óleo tóxico, óleo este que brota de lugar algum, que Jesus, vez ou outra, sobe pelas goiabeiras, que o nazismo é de esquerda e que os meninos vestem azul e as meninas, cor-de-rosa. Trata-se de uma epidemia. Na Bolívia, golpistas, amparados pela polícia e pelo Exército, matam manifestantes, promovem sequestros, incendeiam casas, queimam a bandeira sagrada dos indígenas, e tomam de assalto o palácio presidencial, com a Bíblia em punho. Instalam uma ditadura brutal sob os auspícios e coadjuvância da OEA, supostamente, encarregada de zelar pela democracia no continente. Trata-se de uma epidemia. Em um diálogo no Ensaio Sobre a Cegueira, diz-se, “Por que foi que cegamos? Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão. Queres que te diga o que penso? Diz! Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, Cegos que veem, Cegos que, vendo, não veem.” Alguns poucos dias após o início do levante chileno, o presidente Sebastian Piñera veio a público pedir perdão por sua “falta de visão” e que iria reconhecer as demandas da população. Já era tarde demais. O Chile exige sua renúncia e tornou-se um barril de pólvora. Em outro trecho do romance, “a mulher do médico compreendeu que não tinha qualquer sentido, se o havia tido alguma vez, continuar com o fingimento de ser cega, está visto que aqui já ninguém se pode salvar, a cegueira também é isso, viver num mundo onde se tenha acabado a esperança.” Na linha do diálogo entre os cegos de Saramago e os cegos de Piñera, um destes últimos afirma “os médicos me dizem que agora preciso me cuidar, porque a recuperação será lenta, mas ainda vou aos protestos, quando me sinto forte”, ao que um outro acrescenta, “Ainda tenho um olho, e pretendo continuar usando até que algo mude”. Pelo visto, ainda há luz. Há?


Marcos Vinícius.

quinta-feira, 14 de novembro de 2019

O resgate




Surpreendente o ato de bravura, coragem e solidariedade do presidente mexicano, Manuel López Obrador, no resgate de Evo Morales, salvando-lhe a pele e a vida. Obrador realizou um gesto histórico de rara grandeza. Deu a Evo a oportunidade de salvação que a história recente da América Latina negou a tantos outros. Alan Garcia, ex-presidente do Peru, suicidou logo após ter seu pedido de asilo negado pelo Uruguai; o Equador de Lenin Moreno expulsou Assange de sua embaixada em Londres, colocando-o no caminho dos corredores da morte nos EUA. A própria Bolívia de Evo Morales, entregou Cesare Battisti às garras dos fascistas italianos, ainda ontem. E há quem diga que o Brasil fez vistas grossas a um desejo de Snowden em vir para cá. Morales teve sorte em conseguir escapar, estava sitiado. Não fosse o heroísmo, a valentia e a grandeza de Obrador, talvez, não sobrevivesse. Vida longa a Evo Morales. Vida longa a Manuel Obrador, e à sua ousadia e coragem. Precisamos deles.


Marcos Vinícius.

domingo, 10 de novembro de 2019

No espelho




Um dos mais antigos ditos populares, de natureza universal, e de caráter, fundamentalmente, educativo e pedagógico, que a sabedoria milenar já consagrou, "sujou, limpou", por aqui, no Brasil de 2019, não tem a menor valia ou sentido, e disso, já temos mostras diárias, mas a imundície que se espalhou por nossos paradisíacos litorais, o óleo derramado, somado à total ausência de qualquer iniciativa dos poderes constituídos, seja para a adoção de políticas mínimas de redução de danos, seja para a identificação dos responsáveis pela tragédia e cobrança de ações emergenciais de despoluição, afora o discurso oficial, dominante e exclusivo, de que o vazamento é obra de uma conspiração venezuelana, são demonstrações espetaculares e tenebrosas, de como o povo brasileiro migrou do já conhecido sono profundo, para as profundezas dos piores dos pesadelos. No Brasil da nova era, somos milhões de perfis fakes, fantasmagóricos e raivosos, prostrados à frente de um grande espelho, fazendo chacotas e simulando tiros e assassínios, em nós mesmos. O gigante desacordou.


Marcos Vinícius.

Belo Horizonte, 2019




Para não deixar dúvidas que aqui se trata de fascismo, Belo Horizonte, através de sua Câmara Municipal, pela primeira vez, em trinta e cinco anos, fechada para o povo, com um esquema de policiamento ostensivo, aprovou o Projeto 274/17, Lei da Mordaça ou Escola sem partido, em um primeiro turno de votação. A Lei da Mordaça é um ataque feroz da extrema direita, que visa destruir os mais elementares pilares do processo educativo, a liberdade, a universalidade do conhecimento, e criminalizar o trabalho docente e o professor. O projeto inspira-se na famigerada paranóia do marxismo cultural, teoria conspiratória, hoje alimentada pelos ianques, mas que remonta à Alemanha do período entre guerras, onde os ressentimentos, o ódio e a bestialidade triunfante, conduziram o mundo e sua civilização à barbárie, aos campos de extermínio, às câmaras de gás, ao hitlerismo. Não se trata de exagero ou força de expressão , o fascismo é histórico, contemporâneo, e seus monstros continuam vivos, muito vivos, entre nós. Pobres de nós. A Câmara Municipal, lacrada, tornou-se então, além do reforçado cordão policial, uma grande vitrine, onde Belo Horizonte, absurdamente, tristemente, se expõe, como a grande vanguarda do atraso. Corre o ano de 2019.


Marcos Vinícius.

Na rodoviária



Bem antiga esta foto da rodoviária de Belo Horizonte, não? A propósito, passei nela por estes dias. Há uma mudança sendo feita que irá alterar completamente sua imagem e modelo. O espaço púbico da estrutura, do prédio, está sendo garfado, fisgado pela iniciativa privada. Mesas de um restaurante, que já haviam ocupado um vão inteiro há alguns anos, onde antes ficavam vários assentos, agora, com reformas em andamento, vão ocupar dois vãos inteiros. Não demora muito, o povo vai esperar suas viagens de pé, e só vão poder se acomodar sentados, os que pagarem as fortunas cobradas pelos privilegiados restaurantes. Como será que a gente faz para ter uma sorte assim?


Marcos Vinícius.

sábado, 10 de agosto de 2019

Bug




Hoje, ouvi de um bozopateta, que ele estava muito feliz, sentindo-se realizado. Afinal, acabava de adquirir um sapato de couro, legítimo, afirmava com convicção, por apenas 49 reais. Já era um sinal dos novos tempos e que as coisas estavam melhorando. Argumentava que com o comércio quebrado, e as lojas encerrando suas atividades, uma a uma, os lojistas seriam forçados a baixarem seus preços e realizarem promoções eternas. Deve ter se inspirado na teoria econômica da absoluta falta de noção, a qual vai formando um exército de especialistas. E viva o fim.

Marcos Vinícius.

quarta-feira, 31 de julho de 2019

O bebedouro



Dentro do shopping, em meio ao corredor que dá acesso não apenas aos banheiros, como à rampa que leva à plataforma do metrô, o que faz do local um ponto de intensa movimentação de transeuntes, trabalhadores e consumidores, há um bebedouro, onde sempre há quem vai ali matar a sua sede. Não são raras as ocasiões, em que filas se formam entre ansiosos e apressados, quase todos, com os olhos pregados nas telas luminosas dos smartphones. Ao me aproximar, para que, também eu, pudesse beber um pouco daquela água filtrada, fui bruscamente barrado por uma senhora, que com as mãos espalmadas e voltadas para mim, disse: - O senhor não pode beber desta água, pois desliguei o bebedouro para carregar a bateria do meu telefone celular. E me fitou com um olhar decidido e definitivo. No primeiro instante, me senti estupefato, mais surpreso que indignado. Afinal, como chegar a tal ponto? Mas o que é isto? Como pode? O bebedouro, tão disputado, seria interditado, para que o aparelho dela adquirisse a sua carga? Confesso que é a primeira vez que me deparo com o fenômeno e senti-me, de imediato, desorientado e admirado. Dolorosamente, porém, compreendi que ali, na verdade, estava um retrato recém-revelado de um perfil de brasileiro que hoje vem se configurando. Uma brasilidade fundamentada em um individualismo exacerbado, em um déficit ético crônico e aparentemente insuperável, e em uma moralidade tosca e hipócrita. Ali estava o retrato de um novo país, que se está a construir, as últimas pás de cal, atiradas sobre o que chamamos de Estado Democrático de Direito, já se fazem sentir nos comportamentos de nossos concidadãos, em manifestações exemplares, reveladoras e fantásticas. É o nascimento de um novo ânimo nacional, em que autoritarismos e arrogâncias, já estão caricaturados em meio das gentes, em uma nova cultura, um novo modus operandi, onde o espírito das leis e da justiça jaz sepultado. Estão plantados os alicerces da brasilidade radical, mágico-fascista, não apenas sobre delírios, paranoias, exageros e conspirações, mas lançados às raias do absurdo. Nasce um novo espírito, com a força do caos.

Marcos Vinícius.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

A fronteira




Entre as primeiras providências e considerada uma das mais emergentes medidas a serem tomadas pelas autoridades recém-eleitas, assim que encerrara o pleito, era tratar das questões de paz, por um fim ao antiquíssimo conflito, rixas e batalhas intermináveis, que desde tempos imemoriáveis, atormentavam as duas comunidades vizinhas. A propósito, a contenda era tão antiga, mas tão antiga, e como os ancestrais daquela gente, à época das desavenças primeiras, não faziam uso dos registros escritos, os cidadãos dos dois lados, sequer sabem exatamente, porque ainda mantém a peleja eterna. Como não há memória da guerra originária e suas causas remotas são desconhecidas, qualquer futilidade é motivo para a retomada das hostilidades. Um disse me disse, uma fofoca na família, uma conversa ao pé do ouvido, um desentendido de importância mínima, um olhar atravessado, eram motivos para que, tanto de um lado, quanto do outro, se reiniciassem os combates. Os mais velhos sabem contar, na ponta da língua, uma infinidade de histórias e casos relacionados à velha discórdia, mas não há um que saiba falar sobre as origens dela. Muitas destas histórias acabaram por tornarem-se lendárias, mitológicas, de tantas vezes foram contadas, recontadas, transmitidas entre as diferentes e sucessivas gerações. Cada geração, à sua maneira, e de acordo com suas conveniências mais imediatas, transformam-nas, acrescentando elementos, enaltecendo ou omitindo episódios, conforme suas demandas momentâneas mais específicas. Definitivamente, a memória do conflito original perdeu-se no tempo, mas a das batalhas intermediárias, de pequenas ou grandes proporções, antigas e recentes, os heróis e as ações gloriosas e épicas que são delas provenientes, são sempre relembrados em reuniões familiares, de vizinhança, em rodas de conversas, eventos públicos, em placas, monumentos e homenagens diversas. Um pequeno vale, pantanoso e úmido, separa os dois povoados, formando uma fronteira natural, às vezes, transformado em trincheira entre as populações beligerantes. Havia muito tempo que, apesar de muito próximas uma da outra, as comunidades quase não se comunicavam, a exceção das ocasiões em que estivesse em jogo algum interesse econômico maior ou alguns casos de paixões incontroláveis, audaciosas e aventureiras que, inevitavelmente, levavam jovens a desafiarem a sorte. O fato é que, ainda que não houvesse explicações seguras e definitivas a respeito do fenômeno, poucos ainda negavam que, de maneira geral, havia certa impaciência das populações, dos dois lados, de acabarem de vez, com aquelas guerras infrutíferas, que tantos prejuízos e dissabores haviam rendido tanto aos seus contemporâneos, quantos aos antepassados. Se de um lado, havia ainda uma geração, os mais velhos e os mais afetados pelos anos de desavenças, que faziam questão de se manterem bem longe de qualquer perspectiva de acordos e entendimentos, já os mais jovens, sentiam-se menos afetados por estas pendengas. Os tempos eram outros e novos ventos começavam a soprar sobre a região. Talvez tenham imaginado que tantos anos e energias dispendidas nos conflitos tenham lhes trazido mais prejuízos que benefícios. Os mais novos começavam a desconfiar da viabilidade e necessidade de uma guerra em que sequer os mais velhos, sabiam dizer onde, como e porque havia começado. Ainda que os reais motivos desta alteração nos humores não tivessem sido diagnosticados, devidamente apurados, havia um sentimento disseminado entre aquela gente que, um acordo de paz e o fim das hostilidades pudessem abrir novas e várias perspectivas, seja através de novos postos de trabalho, no campo dos negócios, na exploração de novos territórios e oportunidades, na ampliação dos horizontes, além é claro, de ampliar as possibilidades de encontros amorosos, sexuais e acasalamentos. Afora que, anos e anos de disputas, das mais variadas modalidades de violências e escaramuças, havia gerado um sentimento de cansaço e exaustão do qual, principalmente, os mais jovens, queriam, agora, se livrar. Um movimento que se iniciou silencioso, já era ouvido em todos os cantos, nas ruas, no campo, onde quer que estivessem, as pessoas estavam discutindo a possibilidade de um cessar fogo definitivo, concomitantemente, nos dois povoados, nas duas bordas do vale.

Seja de um lado, seja do outro, as autoridades locais  haviam percebido o movimento. Tanto é que nas últimas eleições - elas ocorrem no mesmo período nas duas bandas - os diversos candidatos que entraram na disputa, colocaram em pauta, em suas campanhas, propostas de conciliação e o fim das desavenças. O resultado das urnas é um marco histórico. Pela primeira vez, a Câmara dos Vereadores, nas duas cidadelas, é composta por representantes que, de forma direta e veemente, ou adotando um discurso mais sutil, defenderam a desmobilização e o fim das agressões. As populações estavam otimistas e um novo tempo de paz parecia ser inevitável e inadiável. Obviamente, que ninguém esperava que os dois povos rivais, a partir daí, fossem romper fronteiras, em festas e polvorosas, e corressem a se abraçar, uns aos outros, de forma espontânea e instantânea. Apesar da boa vontade e dos esforços das duas partes, as desconfianças ainda eram grandes, as mágoas não se desfizeram de vez e algumas cicatrizes ainda não haviam secado de todo. Portanto, acordos de paz, por mais necessários e desejados que façam, não se resolvem com um passe de mágica, de uma hora para outra, por maiores que sejam as expectativas. Porém, mal as urnas foram abertas e os votos apurados, os eleitos se reuniram, no dia seguinte, para discutirem procedimentos e medidas urgentes, no campo diplomático, para que tivessem início as negociações. Os vereadores, tanto de um lado quanto do outro, saíram otimistas da primeira reunião e um acordo de paz nunca esteve tão próximo. As duas Câmaras, num acordo prévio, decidiram, então, criar uma Comissão, formada por três vereadores de cada município, os primeiros mais votados, para que estes se encarregassem dos trabalhos. De um lado, a Comissão era formada por Mauro Cimenteiro, Jadson do Churrasco e Manoel Sabichão; do outro, Jorge do Trator, Celso dos Parafusos e João das Tintas. Eram estes seis notáveis, os responsáveis em traçar as linhas, pressupostos e trâmites dos tratados de paz. A Câmara entendia que a votação expressiva que obtiveram estes seis vereadores, fazia deles figuras representativas dos anseios populares e lhes foi outorgada a histórica tarefa de colocar um ponto final nas pendengas, que tantos malefícios haviam proporcionado aos moradores dos dois municípios. Os membros da recém-formada Comissão eram figuras conhecidas entre as populações locais, não que já tivessem realizado grandes feitos em prol de suas coletividades, mas suas atividades profissionais colocavam-nos em posições de destaque nestas comunidades relativamente pequenas. Os seis eram novatos na Câmara, seriam seus primeiro mandatos. Os eleitores, desta feita, fizeram uma considerável renovação em seu parlamento, deixando a maioria dos antigos representantes, de fora. Poucos foram os que conseguiram se reeleger. A maioria absoluta dos novos representantes era formada por novatos na política. Havia, entre os eleitores, um anseio generalizado por mudanças, ainda que não estivesse muito claro o que isto significava ou que rumos deveriam tomar.  O que parecia ser um sentimento quase geral, afora uns ou outros mais renitentes, eram as esperanças em que, no mínimo, fosse declarado algum armistício e que, quem sabe, os habitantes daqueles territórios pudessem se deslocar livremente, sem qualquer problema ou constrangimento, entre uma cidadela e outra. Os mais jovens, o que era muito notório, eram os mais entusiasmados com esta possibilidade. O desafio inédito lhes atiçava todo o tipo de curiosidades e a permissão para explorar terras tão próximas e desconhecidas, lhes enchia de ânimos. A Comissão assumira o compromisso público de resolver a questão o quanto antes, em caráter emergencial, não apenas porque consideram o momento ideal, dado o desejo manifesto entre seus respectivos povos e a predisposição para os diálogos de paz, mas também porque não queriam desperdiçar seu capital político, dando uma resposta rápida aos seus eleitores, passando-lhes a mensagem de eficiência, prontidão e velocidade. Para tanto, dispensaram consultas adicionais, audiências públicas, referendos ou plebiscitos. A Comissão, ela própria, legitimada pelo voto popular, soberana, deveria resolver todas as questões relativas à guerra e a paz. Para evitar interferências de qualquer natureza ou dispersão dos trabalhos, resolvera a Comissão, que sua primeira e decisiva reunião, seria realizada a portas fechadas. Assim que encerrassem os trabalhos do dia, a resolução tomada seria, imediatamente, anunciada ao público.

Eram duas horas da tarde. Um sol abrasador iluminava os telhados das casas e uma luz branca, pálida e intensa, dominava a atmosfera. Homens e mulheres conversavam animados e procuravam o refúgio confortável das sombras das árvores, das marquises, toldos e puxadinhos. Havia dias em que o calor do verão era quase insuportável. Ainda assim, os cidadãos, dos dois lados, exibiam entusiasmo e euforia. Um proprietário rural, interessado em negócios no município vizinho, e cujas terras tocavam os limites fronteiriços, cedera um amplo galpão, preparado e adaptado para a ocasião, cujas paredes eram uma das linhas divisórias das cidadelas, para o encontro histórico. No horário marcado, os seis já estavam reunidos à porta do galpão, para o início dos diálogos. Três de cada lado. Todos eles suavam excessivamente, ajeitavam as golas de suas camisas, enxugavam o suor do rosto com os lenços já encharcados e cumprimentavam-se uns aos outros. Eram cercados por um forte aparato de segurança. Cinquenta homens armados faziam a segurança dos notáveis. Dentro do galpão, fora preparado um ambiente adequado a estas ocasiões, com mesas largas, cadeiras estofadas e confortáveis, quadros emoldurados, louças e porcelanas, distintivos, insígnias e tudo o mais que servisse como um cenário a altura da importância daquele dia. O espaço era levemente requintado, porém, fundamentalmente, austero. Os homens sentaram-se à mesa. Ventiladores improvisados, instalados às pressas, amenizavam o calor intenso do local. Os vereadores saudavam-se, trocavam amabilidades, apresentavam sorrisos tensos, esfregavam as mãos, remexiam os papéis, ajeitavam os penteados e trocavam olhares atentos, com um misto de satisfação e desconfiança. Era aberta a sessão.

De início, um pouco constrangidos, sem saber exatamente por onde começar, dada a novidade e o ineditismo da ocasião, relutam em pronunciar as primeiras palavras. Entre um raspar de garganta daqui, um esfregar de olhos dali, Mauro Cimenteiro quebra o clima de desconforto, vira-se para os demais, olha um por um – apenas a Comissão se reunia ali – e abre os trabalhos. A tensão desenhada nas linhas do rosto é indisfarçável. Tem a expressão firme e dura; a mandíbula quadrada e os cabelos grisalhos proporcionam-lhe um aspecto de força e rigidez, uma feição de concreto. Era um homem de negócios, daí sua popularidade. Não havia quem não houvesse recorrido a ele, quando em circunstâncias de obras, construções e reformas. Fez uma pequena fortuna vendendo cimento. Enfim, leva as mãos sobre a mesa, embaralha aleatoriamente as folhas de papel que tem à sua frente, e diz - Senhores, é com enorme satisfação que componho esta mesa com vossas ilustríssimas pessoas. Sabemos, pois, da importância e grandiosidade da missão que hoje temos. A nós, foi dada uma tarefa de extrema relevância, a qual nos compete realizar com a máxima responsabilidade e presteza, fazendo jus ao voto de confiança que nossos irmãos-cidadãos nos deram, nossos bravos conterrâneos, cansados de tantos anos de guerras e misérias. Cabe a nós, então, essa missão inadiável, que é responder aos nossos, aos seus apelos de paz, com todo o empenho e desprendimento de que formos capazes. Sejamos, pois, mais que nunca, movidos pelo espírito público e pela tradição democrática, para que estejamos à altura do que de nós é esperado, para que nossos povos não caiam mais vez, nas armadilhas das desilusões, do desgosto, frustrações e desesperanças. Sou um homem do cimento, das grandes obras, conheço como ninguém a dureza do calcário e do minério, as altas temperaturas dos fornos das fábricas cimenteiras e o rugido das explosões das minas de pedra. Não existe concreto armado que não tenha passado pela maleabilidade das argamassas. Não há muralha construída sem a associação do pó do cimento e a energia da água. Assim é o mundo, assim é a vida. A paz também demanda suas fórmulas, suas condições e prerrogativas. Não há paz sem acordos, não há paz sem diálogo. Para isto, meus companheiros de jornada, estamos reunidos nesta Casa. O cimento é um pó fino, mas tem como principais qualidades, as propriedades de serem aglutinantes, ligantes. Chegou o momento de fazermos de nós próprios, os agentes da união de nossos povos, a liga, o arrimo, a ponte entre nossos municípios para a construção de nossa obra maior, a paz duradoura - Assim que encerra o rápido discurso e silencia-se, dá uma olhada rápida nos olhos e na expressão de cada um dos presentes, para avaliar as reações. De imediato, porém, todos o aplaudem euforicamente. Em seguida, os vereadores levantam-se, um a um, sorridentes e entusiasmados e vão cumprimentar o colega. Até o momento, parecia não haver qualquer discordância entre eles, e esta manifestação de apoio, gerara uma sensação de conforto e descontração no ambiente quente e abafado do galpão fronteiriço. - Isto mesmo, Mauro, parabéns, muito bem colocado; faço, portanto, minhas, as suas palavras - diz Manoel Sabichão, dando fortes e vigorosos tapas em suas costas. De imediato, sentam-se novamente, e Celso dos Parafusos pede a palavra. Mesmo não constando em lei alguma ou em qualquer regulamento, era tradição entre eles que, sempre que autoridades dos dois lados se reuniam, por quaisquer circunstâncias, os representantes municipais intercalavam-se nas falações; a fala do representante de um município era sempre seguida da fala do representante do outro. Celso abre um pequeno caderno, dá uma olhadela rápida e silenciosa em algumas anotações. Os demais o observam, atentos e curiosos. Por um instante, ouvia-se apenas o ronco persistente dos ventiladores, que aliviava um pouco as altas temperaturas do local. Celso dos Parafusos ainda era jovem e herdara a  loja do pai, que passara uma vida inteira vendendo todo tipo de ferragens e estruturas metálicas. A alcunha Parafusos é quase um diminutivo dos negócios que a família sempre realizou. Reza a lenda que o avô passou a maior parte da infância colecionando pregos e, principalmente, parafusos, e tinha a estranha mania de sair pregando e parafusando tudo o que passível de ser pregado ou parafusado encontrasse pelo caminho. Encontrou problemas, mas, por fim, fez fortuna, que pôde atravessar gerações. Celso era da terceira geração de proprietários da empresa de ferragens e vendia qualquer peça ou estrutura metálica necessária em qualquer obra, desde a construção de casebres, casas populares, até o levantamento de prédios e grandes obras públicas. Era um empresário bem sucedido. Suas bochechas fartas e rosadas e o sorriso sempre aberto e confiante eram o sinais visíveis de que nascera em berço de ouro. Com este ofício e ramo de negócios, não havia quem não o conhecesse nas imediações. Ele era novato na vida pública, seria seu primeiro mandato de vereador, mas o pai, porém, já havia ocupado uma cadeira na Câmara por duas ocasiões. O rosto arredondado, de sorriso fácil e a juventude saudável e alegre, além da adoção, em suas lojas, de uma política com pagamentos parcelados em inúmeras prestações, para a população mais pobre, apesar dos juros altos, fez dele um dos candidatos mais bem votados na última eleição. - É uma enorme alegria estar aqui nesta tarde, compartilhando com vossas excelências, este momento histórico, sobre o qual temos tanto o que fazer e para o qual fomos convocados por nossos concidadãos -ele diz - São inúmeros os desafios à frente. Não bastassem os problemas que temos no interior de nossos municípios, e não são poucos, nos coube ainda, a honrosa missão de dar cabo a tantos anos de desencontros e angústias que sempre nos separou em campos opostos. Não são todos os dias que oportunidades como esta ocorrem nas governanças municipais, não são corriqueiros e comuns os grandes tratados e acordos de paz, mundo afora. Arrisco dizer que, esta talvez seja uma oportunidade única, pois nunca houve entre nossos povos, principalmente, entre os jovens, um desejo tão forte de conciliação. Não podemos deixar isto nos escapar e acredito que estamos à altura deste chamado. Estou plenamente convencido que nossos povos não podiam ter feito melhores escolhas, não apenas no que diz respeito à opção pelo fim das beligerâncias, como em relação aos representantes que elegeram. Portanto, não podemos titubear. Nossos municípios não suportam mais a política-dobradiça, como portas que se abrem e logo se fecham, reivindicam a paz definitiva, assentada em vigas e vergalhões que não se rompam. Já basta de armistícios-mola, de estica e relaxa, comprime e puxa, e sempre nos faz regressar ao ponto de partida. Temos que formar laços de ferro e aço, e romper de vez com as frágeis alianças de argila e barro, tão pouco duráveis, tão quebrantáveis. Basta de divisórias e discórdias. É este o momento de selarmos os trilhos de nossa amizade, de nossas índoles pacíficas, não com cuspe apenas, mas com os apertos e arrochos que apenas os pregos e os, porque não, parafusos podem fazer. No que depender de mim, apresentaremos o quanto antes, o mais urgente possível, uma proposta concreta e metálica para o problema sob o qual, ora nos debruçamos. Há uma grande expectativa e ansiedade entre nosso eleitorado. Proponho, então, que apresentemos aos nossos cidadãos algo impactante e sólido, já nas próximas vinte e quatro horas, que possa transmitir uma mensagem de determinação, vontade política e firmeza nas resoluções. Muito obrigado - Mais uma vez, aplaudem, todos eles, sem exceção, com entusiasmo e euforia. O som dos aplausos é entrecortado pelo zumbido contínuo e prolongado de um enorme besouro que sobrevoa, em um voo incerto e estonteante, a mesa de reuniões. Os seis abaixam as cabeças, curvam-se, na tentativa de safarem-se de uma colisão com o robusto inseto. Manoel Sabichão tenta estapeá-lo, mas o bicho dá-lhe um drible e escapa em direção a um pequeno vão, aberto na parte superior do galpão. Sabichão, então, comenta - Besouro atinado este, conseguiu furar nosso forte esquema de segurança - Os vereadores riem e descontraem-se. Aproveitando a ocasião, quando todos olhavam para si, Sabichão aponta para Jadson do Churrasco, sugerindo que seja o próximo a se manifestar. E brinca, remexendo-se na cadeira - Agora, com a palavra,  o Ilustríssimo Senhor Jadson do Churrasco - Jadson pigarreia, põe os cotovelos sobre a mesa e entrelaça os dedos das mãos, levando, rapidamente, os dois polegares sobre a ponta do nariz. Desfaz-se da posição, num movimento abrupto, e pendura um dos braços no encosto da cadeira. É um homem de origem humilde e começou a vida profissional, ainda na adolescência, ajudando o tio em uma pequena banca, vendendo espetinhos de boi, frango e porco. Atualmente, é considerado o melhor churrasqueiro da região e dono de um bem sucedido restaurante que oferece refeições acompanhadas de uma variedade inigualável de churrascos. Uma vida inteira dedicada ao ofício lhe rendeu uma barriga proeminente, braços largos e um rosto completamente redondo. São as gorduras e banhas do ofício, pois aqui, já não se veem mais os ossos. Do rosto corado e rechonchudo, escorria o suor a bicas, e gradualmente, sua desalinhada camisa azul vai se ensopando, formando uma linha branca de sal, como se ele próprio, estivesse assando. - Pois então, meus prezados parceiros de mesa e empreitada, sinto-me também honrado em dividir com vocês este momento tão nobre e tão repleto de boas intenções. Que bons ventos possam nos glorificar e nos proporcionar êxito. Hoje não falamos por nós mesmos, mas por vários eleitores e cidadãos que, depositaram em nós a esperança de dias melhores - diz Jadson. Planta as palmas das mãos sobre a mesa e proclama - Promessa feita, promessa cumprida. Não há tempo a perder. Acolho a proposta do colega que me antecedeu, o Senhor Celso dos Parafusos, e também defendo, em respeito àqueles que nos deram seus votos, que saiamos daqui, com uma proposta pronta, para apresentá-la ao público, em menos de vinte e quatro horas. Lembrando aos senhores, que não há conciliação possível, amizade selada, acordos honrados, que não sejam comemorados com uma saborosa picanha assada, asinhas de frango e costelas na brasa. Assim ocorre desde os tempos mais remotos, lá pelas idades da pedra. Não é pouca coisa. Seja lá o que for deliberado aqui, qualquer coisa, uma grande churrascada, com todas as opções possíveis de carnes, entre picanha, costelas, alcatra, contra filé, bacon e linguiça, deverá ser oferecida pelo poder público, a todos os cidadãos, sem distinção de sexo, idade ou estado civil, para que, enfim, possamos nos assegurar de uma paz, não apenas bem temperada e saborosa, mas, como a maioria agora almeja, no ponto certo. A fala de Jadson é interrompida por palmas efusivas. Sabichão grita - Viva! Está eleito o presidente da Comissão - Todos caem em uma prolongada gargalhada. Aproveitando-se da interrupção, Jadson, então, empolgado e vaidoso, volta à carga - Ah, sim, tenho ainda, o primo do Depósito de Bebidas, que, com certeza, não medirá esforços, para regar a nossa festa - Neste momento, de uma só vez, todos se levantam e o aplaudem de pé, tentam abraçá-lo e apertar a sua mão. A reunião, portanto, corria bem. Ainda não havia se manifestado qualquer tipo de divergências ou desavenças, muitos antes pelo contrário, até ali, o que se viu foi um clima de cordialidades e unanimidades. Quando retornam todos aos seus lugares, João das Tintas levanta o dedo indicador, posicionando-se para falar. Ajeita o último botão da camisa, fechando-a um pouco mais, adota uma postura mais formal e rígida e diz - Parabéns a nós todos pelo clima de entendimento em que ora nos encontramos, isso me parece ser a prova maior de quanto nossos povos estavam acertados ao  estabelecerem como pauta prioritária nosso tratado de paz. Algo me diz que a ocasião nunca fora tão apropriada, uma conjunção de forças conspira a favor. Tenho a forte impressão, que sairemos daqui, com a sensação do dever cumprido, pois, hoje, entre nós, creio, não haverá qualquer impedimento, empecilho, que possa retardar o processo que agora inauguramos. O bom diálogo, a disposição para as negociações, o empenho em querer ver as coisas acontecerem e se realizarem, encontraram um campo fértil, aqui nesta linha de nossas fronteiras. Vejo em cada um dos senhores, o desejo de que possamos acertar o mais breve possível, os últimos pontos para um acordo.  Sinto que esta predisposição é comum a todos aqui presentes. Então, colegas, mãos a obra. O que temos a concluir não é coisa tão difícil assim, afinal, os passos maiores já foram dados, qual seja, a opção que, claramente fez nosso eleitorado e a composição desta Comissão, que ora se reúne. Portanto, o que temos que fazer é acertar os detalhes do acordo, em caráter de urgência, aqui entre nós, e em seguida, entregarmos o rascunho do aqui fora deliberado para uma equipe técnica, que se encarregará de dar os detalhes formais e transformá-lo em um documento a ser apresentado em nossos respectivos municípios. Pronto. A partir daí, já podemos contratar os serviços do nosso churrasqueiro - Todos fazem sinais de aprovação. Mauro faz sinal de positivo com os dois polegares, Jadson alisa a barriga, em um movimento circular e sorri alegremente, Sabichão levanta os dois punhos cerrados para o alto, Jorge do Trator faz um gesto pouco usual, como se estivesse a engatar uma marcha de arrancada em algumas de suas máquinas e Celso dos Parafusos encenou o gesto de bater um martelo. Mais uma vez, os seis homens transformam-se em um único e largo sorriso. João das Tintas também conquistou sua popularidade através do comércio. Era proprietário de uma loja que oferecia todas as marcas e cores encontradas no mercado. Seu negócio sempre fora muito próspero e realizava-se além-fronteiras, vendendo para vários municípios. O papel de precursor no ramo das tintas deu-lhe um monopólio nesta atividade. Não havia parede pintada em toda a redondeza, cujas cores não tivessem passado por suas contabilidades. Apesar de haver queixas daqui e dali, de que sempre fora duro com seus funcionários e até fazer uso de violências verbais, esta má fama, não comprometeu ou afetou sua popularidade, pois segundo ele, eram, justamente, estas práticas, o segredo do sucesso de seus empreendimentos. João foi o campeão de votos e elegeu-se fazendo campanha aberta e explícita pela paz. Ele bate palmas fortes na tentativa de trazer novamente os colegas de sessão ao debate e retomar os trabalhos, desfazendo o burburinho que se instalou no local. Todos se posicionam novamente para ouvi-lo.  Ele retoma o discurso - Pois bem, meus colegas de mesa, tratemos, pois, de acertar os detalhes e cláusulas, colocar tudo na ponta do lápis e dos pincéis para que possamos dar andamentos aos trabalhos e fazer deste nosso encontro, o mais frutífero possível. Que seja frutífera a ocasião, mas que, mais do que isto, possa também ser capaz de construir uma paz durável e multicolorida. Isto mesmo, colegas. Afinal, qual é a cor símbolo da paz? Não é o branco? Pois, então, o branco, nada mais é que o resultado da sobreposição de todas as cores luminosas. A paz é luminosa e também é colorida. Disto já sabemos. Façamos, agora, um esforço concentrado para que nos permita a sabedoria, acertar a coloração e a tonalidade dos termos do acordo, e possamos, enfim, na mão certa, dar um verniz luminoso, resistente e definitivo em nossas conversações e tratados. Lixando as arestas e removendo com thinner e aguarrás nossos mais profundos ressentimentos, daremos um colorido novo em nossas desgastadas relações. E sob este prisma, pavimentar aos nossos munícipes irmãos, o caminho para o progresso econômico e o desenvolvimento social, com muita paz e amor. Juntos, seremos mais fortes. Obrigado. Ao trabalho. Para frente é que se anda - Mais uma vez, ao término do discurso, todos aplaudem de forma entusiasmada e alegre. Outra vez os vereadores se levantam, e vão ao encontro de João das Tintas cumprimentá-lo. Antes que todos se acomodassem novamente em seus devidos lugares, Manuel Sabichão anuncia que, agora seria ele a falar. Antes, porém, observa mais uma vez, atentamente, cada um deles. Sabichão é alto e magro, os ossos da face são proeminentes, o nariz é avantajado e pontiagudo. Os olhos são pequenos, mas penetrantes. As rugas acentuadas e fundas sob os cantos dos olhos, revelam um homem de riso fácil. Tem uma mania persistente de esfregar, continuamente, as mãos, uma na outra, como se fosse a única maneira de desafogar uma ansiedade incontrolável. A história de Manoel Sabichão era a menos conhecida dentre os demais parlamentares, pois quando chegou à região já era um jovem e passara sua infância em terras distantes e desconhecidas. Mesmo assim, se adaptou fácil ao lugar e, rapidamente, construiu um vasto círculo de amizades. Sempre foi muito falante e extrovertido, o que acabou por conduzi-lo às mais diversas rodas sociais. Quanto ao trabalho, passou pelas mais variadas profissões e atividades que se possa imaginar. Trabalhou em fazendas, vendeu livros, administrou escritórios, foi funcionário de contabilidades, atuou na área da saúde, realizou todo tipo de comércio e, atualmente, trabalhava como corretor de seguros. Não havia quem não o conhecesse no município. Ao iniciar sua intervenção, imprime em sua fala um tom mais alto que o dos demais e faz um gesto reflexivo, observando ao redor, medindo com os olhos as paredes do galpão e esfregando suavemente o queixo - Amigos, é com uma imensa satisfação que me dirijo, agora, a vocês – diz - Vou lhes fazer uma confissão. Desde o primeiro dia desta campanha eleitoral, a propósito, desde o momento em que decidi disputar esta vereança, praticamente, não tive mais um minuto de sossego. Um turbilhão de pensamentos e ideias assaltou a minha cabeça e não consigo imaginar outras coisas, senão uma forma de ser útil a este povo que tão bem me acolheu e me ofereceu oportunidades uma vida inteira. Não há sonho em que esta preocupação não me ocorra. Dormindo ou acordado, esta consciência está presente, latente. Nossa responsabilidade não é pequena. O destino destas terras, de homens e mulheres, está em nossas mãos. Há muito que fazer, a realizar. Estou aqui ouvindo atentamente cada um dos senhores, cada palavra, cada gesto, cada ideia e proposta e, antes de qualquer coisa, gostaria de reiterar que, estou excessivamente orgulhoso e feliz, em compor um quadro, uma Casa, uma mesa, com pessoas tão brilhantes, perspicazes e preparadas. É um momento único da minha vida e, repleto de emoções, pois é também um momento único da vida de nossos povos e eleitores, e aqui, sinto sair de mim, não apenas a voz de muitos, como também, um novo espírito de liderança - Sabichão é interrompido por aplausos fortes e contundentes - Mas, vejam senhores, é necessário que aprovemos algo de concreto e grandioso. Não podemos sair daqui com apenas meia dúzia de boas intenções. Saúdo o colega Celso dos Parafusos, quando propõe que apresentemos algo em vinte quatro horas. Estou de pleno acordo, não há como ser diferente. Mas vou além. Sabemos que nosso povo, após tantos anos de conflitos, desde os tempos mais remotos que se tem notícia, não se contentará com o anúncio e a apresentação de um documento recheado de cláusulas e artigos, como um mero procedimento burocrático, por mais que esteja recheado de boas intenções. Sugiro que apresentemos um documento compacto, claro e objetivo e que não se perca em palavrórios incompreensíveis e distantes do sentimento do nosso povo. E mais do que isto, o mais importante, que seja apresentado, além do que já é esperado, algo novo e inusitado, grande e glorioso. Que possa não apenas selar nossas amizades e o fim de todas as querelas, mas que deixe para as gerações futuras, a marca e o símbolo do nosso tempo e do nosso empenho. Nossos esforços não podem ser em vão, esquecidos ou ignorados. A paz que queremos, não é de ocasião, temporária ou provisória, mas uma paz duradoura e definitiva, não como uma nuvem passageira, mas como a rocha e o concreto, plantados sobre a face da terra - Manuel Sabichão faz uma pausa em seu discurso e observa mais uma vez sua reduzida plateia. Ninguém se manifesta. Todos têm os olhos fixos nele e se mantém em silêncio. Naquele breve instante, ouve-se apenas o ruído ininterrupto dos ventiladores - Então, meus, caros - ele prossegue - pensei, pensei, pensei, ouvindo-os, e cá com os meus botões, e sugiro que façamos o seguinte. Uma vez que a redação do Tratado já é algo líquido e certo, não tenho qualquer sombra de dúvida sobre isto, e até o momento, é a única certeza que temos, construída até aqui neste consenso, sugiro, considerando, inclusive, a vasta experiência que temos acumuladas aqui neste recinto, no ramo de reformas e construções, que uma grande obra, a base de concreto, ferragens e multicolorida , seja apresentada ao nosso povo, como o símbolo maior de nossa amizade e união que, almejamos, possa ser eterna - Mal termina a frase, os vereadores entreolham-se, tentando fazer a leitura de qualquer sinal, expressão, gesto, que possa revelar a reação de cada um ante a proposta, antes que as posições, concordâncias ou divergências pudessem ser pronunciadas.  Percebendo o movimento dos colegas, Sabichão é incisivo - Isto mesmo, senhores, o que proponho, de forma objetiva e sucinta, é que possamos aproveitar o melhor de nós, sim, as maiores de nossas experiências, para que as coloquemos a serviço da nossa gente. Reunindo as nossas mais qualificadas habilidades, aquelas que cultivamos uma vida inteira, poderemos, juntos, com nossas forças e energias, acumuladas e concentradas, direcioná-las para o bem comum e para o desenvolvimento social e econômico de nossos municípios. O Senhor Mauro, com toda a experiência que tem com a arte do cimento e do concreto, o Ilustríssimo Senhor Celso, representante contemporâneo de uma tradicional família que, por gerações, se dedicou a oferecer ao seu povo todo tipo de ferragens, O Senhor Jorge, com suas máquinas e equipamentos possantes, com seus grandes dentes e garras de ferro, não há o que não possa tratorar, campos que não possam se abrir, por sinal, é o único que ainda não se manifestou, O Senhor Jadson, com seus assados brilhantemente temperados e suculentos, preparado para qualquer festejo, O Senhor João, que carrega consigo, todas as cores do mundo, não há ambiente que não possa alegrar, ornamentando com o seu radiante colorido, as cinzas do pessimismo e da discórdia. Sim, senhores, é o melhor de nós, o melhor que temos a oferecer. E assim nosso povo quis e escolheu. Temos a legitimidade do voto popular e não nos esqueçamos, somos, aqui reunidos, uma Comissão de Notáveis, e nada mais, nada menos, que os seis mais votados nos dois municípios - Mais uma vez, é interrompido por uma saraivada de palmas - Isto mesmo, Isto mesmo - bradava Mauro Cimenteiro. - Bravo, Senhor Sabichão - proclamava Celso dos Parafusos, enquanto levantava o punho cerrado. - Não podia haver ideia mais sábia e viável - arremata Jadson do Churrasco. Um murmurinho caloroso faz aumentar ainda mais a temperatura naquele ambiente fechado. Quase não se ouve o ronco do ventilador, abafado pelas vozes eufóricas dos bem votados parlamentares. João das Tintas interrompe o falatório alvoraçado e, dedo em riste, afirma – Desconfio que seja por excesso de humildade que o Senhor Sabichão tenha deixado de citar a si próprio ao elencar as melhores qualidades de cada um de nós e o quanto, com elas, podemos ajudar a nossa gente. Este homem é um gênio e sabe, como ninguém, não apenas desvencilhar-se dos grandes problemas e imbróglios, como também, apontar caminhos, alternativas e construir soluções - Jorge do Trator, até o momento sem se manifestar, levanta os braços, sacudindo-os, e grita - Vivas ao Sabichão! - E todos agitam-se ainda mais, e aplaudem-no efusivamente. Celso dos Parafusos, sem conter a ansiedade, interpela Manoel Sabichão – Senhor Sabichão, estou aqui me coçando para conhecer os detalhes da sua proposta. Que tipo de obra exatamente, o senhor já teria imaginado? - Bem, Senhor Celso, quanto aos detalhes, é algo que teremos que construir juntos. O que estou aqui imaginando, após pensar muito sobre o nó que nos cabe desatar e ouvir muito atentamente cada uma das intervenções que aqui foram feitas, à exceção do Senhor Jorge do Trator, que ainda não teve a oportunidade de se manifestar, além das respectivas habilidades a que já me referi, penso, que o ideal seria que a paz que estamos construindo seja, finalmente, coroada com um gesto monumentalmente simbólico. O que, num lampejo, me veio à mente foi o seguinte - Neste momento, Sabichão silencia-se, criando um clima de suspense e um silêncio aterrador entre os homens. Mais uma vez, apenas o ruído do ventilador se faz ouvir. Observa novamente, um por um, não apenas para ler suas em suas fisionomias o tamanho das expectativas, mas também, buscando algum sinal de uma aprovação prévia, antes mesmo que a proposta fosse apresentada - Senhores – ele retoma – Sugiro, pois, a construção de uma ponte gigante unindo nossos dois municípios. Nós a chamaríamos de A Grande Ponte da Amizade. Seria a maior obra já vista em toda a redondeza. Uma obra para impressionar a todos pela sua grandeza e o seu simbolismo. Nada que estes homens empreendedores aqui reunidos não possam executar. Uma ponte enorme que atravessasse a fronteira e unisse nossos territórios de ponta a ponta, que fosse vista de todos os cantos da Terra, imensa, onipresente, que deixaria nossos povos e os das terras longínquas e inalcançáveis, com os queixos caídos e as bocas abertas. Uma ponte que servisse de exemplo e lição para o mundo e uma prova de que, para a engenharia não há limites e que não existem males, contendas ou intempéries que ela não possa enfrentar. Nós fomos os escolhidos e, como prova da escolha sábia e consciente de nossos eleitores, daremos a eles, o melhor de nós. A ponte seria erguida sobre grandes colunatas, pintada com todas as cores do mundo e, sobre ela, a cada dez dias, durante dez anos, um farto churrasco, com todas as carnes conhecidas e assáveis, seria oferecido aos nossos povos, agora, irmanados. Pensei também, na construção de jardins suspensos, com flores trazidas dos estrangeiros, o maior que já tivemos, com todas as espécies do planeta, para que a história jamais de esqueça de nós. Este é um problema relativamente fácil de resolver, tenho parentes em terras distantes, especializados nas artes da floricultura e tenho certeza, não fariam objeções em aqui se instalarem para nos oferecer os seus melhores serviços - Neste momento, Mauro Cimenteiro, levanta a mão e interrompe Manoel Sabichão – Mas Senhor Manoel, as regiões fronteiriças de nossos municípios não apresentam qualquer obstáculo relevante, acidente natural, nem um rio, uma escarpa, pedras ou montanhas, que se interponham entre nós, além de pequenos trechos alagados e pantanosos, facilmente contornáveis. Pelo contrário, o que há é um grande descampado, uma vasta planície em que, qualquer um de nós, pode atravessar sem qualquer problema ou empecilho, em poucos minutos. A proposta é deveras tentadora, confesso, mas o acesso fácil que são nossas fronteiras, não poderá fomentar oposições? - Jorge do Trator, que até o momento, mantivera-se, praticamente calado, intervém. Era um homem de baixa estatura, ombros largos e braços musculosos. Apesar de que, nos últimos anos, ficara mais tempo nos escritórios de sua empresa, do que nas oficinas e nos pátios dos estacionamentos de suas máquinas robustas, ainda apresentava nos sulcos das mãos, vestígios de óleo e graxa, herança de uma vida inteira dedicada ao manuseio de tratores, equipamentos pesados e motores potentes. Tornara-se um homem rico e de poucas palavras. Sua popularidade, no entanto, adivinha de seus modos simplórios e humildes, nunca carregava qualquer ostentação, apesar de sempre ter tido uma notória preocupação em acumular dinheiro. Um trabalho que realizou com um de seus tratores em um lote de um velho moribundo e muito conhecido na região, sem lhe gerar qualquer cobrança, há mais de vinte anos, lhe proporcionou uma fama de um homem carregado de generosidades e compaixão, apesar dos familiares mais próximos reclamarem, vez ou outra, a boca miúda, do excesso de sovinice. - Senhores vereadores, senhores notáveis – diz Jorge do Trator - como sabem, não sou homem de muitos palavrórios e discursos, sempre fui um sujeito das ações e das atitudes. Serei breve, abreviado e sucinto, portanto. O que gostaria de dizer e acrescentar, sem repetir o que aqui já foi dito e frisado, é que a ideia do Senhor Manoel Sabichão é uma verdadeira pérola e completamente exequível. Quanto à observação que faz o Senhor Mauro Cimenteiro, estou aqui pensando, acho que há uma maneira fácil de contornar o problema e aumentar ainda mais a monumentalidade da nossa obra. Nada melhor para fortalecer o simbolismo de nossa pacificação, quanto à manutenção de uma memória sólida e concreta de nossas antiquíssimas desavenças. Proponho então, que, construamos uma vala profunda e fortificada, acompanhando nossa linha fronteiriça, para que aumente ainda mais o significado e a importância da Grande Ponte da Amizade, que será edificada sobre ela. Com a abertura de um fosso gigante, não apenas teremos gravada em imensas fissuras na terra, a lembrança da guerra que até aqui nos separou, donde mais se valorizará os esforços pela paz, como ainda mais se justificará a construção da Grande Ponte, representando e simbolizando de fato, a restauração dos caminhos e a criação do elo que, de uma vez por todas, ligará os nossos povos e municípios. Teremos então, não uma grande obra somente, mas duas. Uma representando o que fomos, a outra, o que seremos. Uma obra retroalimentará a outra, enchendo-as de significados. Os tratores que, recentemente, adquiri, são capazes de cavar os mais subterrâneos poços, e buracos de profundidade tal, como não se tem notícia. O deslocamento de um município ao outro, a partir de então, se dará sempre, exclusivamente, sobre a Grande Ponte, que como nunca, afinal, se fará tão necessária - Deixe-me ver se entendi bem – intervém João das Tintas – o que o senhor está propondo é que, além da Grande Ponte, faríamos também uma imensa vala debaixo dela, como uma lembrança de nosso histórico de discórdias? - Exatamente – responde de imediato, Jorge do Trator - Pelo que vejo, temos aqui não só os mais bem votados de nossos municípios, nós, os notáveis, mas, muito mais que isto, uma reunião de homens geniais e exageradamente criativos – diz Jadson do Churrasco, entre risos e aplausos. Mas Senhores – interpela Celso dos Parafusos – apesar do brilhantismo das propostas que foram aqui apresentadas, onde não consigo vislumbrar ideias melhores, tenho uma dúvida. Ainda não conhecemos o tamanho exato das contas do município. Será que teremos, em nossos cofres públicos, verba suficiente para tão nobre projeto? Terá o Tesouro Municipal, fundos e moedas, para arcar com o custo elevadíssimo de obras destas magnitudes? É uma boa e necessária pergunta, Senhor Jadson – responde imediatamente Manoel Sabichão – Para fazermos estes cálculos, temos que ter acesso aos livros, aos números e ao Orçamento Geral. Mas a bem da verdade, adianto, pois, que isto não é lá motivo para preocupações ou impedimentos. Há muito dinheiro circulando pelo mundo. Se por aqui, em nossos cofres, as contas não fecharem ou forem insuficientes, podemos apelar às riquíssimas instituições financeiras internacionais, sempre dispostas a investirem suas fortunas, em socorro aos povos, que lhes acorrem. Eu mesmo, com os contatos que tenho além-fronteiras, posso ajudar a captar as somas necessárias a qualquer tipo de empreendimento. Acalmem-se, Senhores, as verbas não serão um obstáculo, e mesmo que, às vezes, não pareça, há dinheiros com fartura em circulação. Fiquem tranquilos -  Sabichão silencia-se e repousa as mãos sobre a mesa. É aclamado, demoradamente.  Pois bem, Senhores – retoma Sabichão – façamos, então, a apuração das opiniões e votos de toda esta Comissão, para verificarmos se há algum ponto de discordância, objeções e obstruções, afim de que tomemos as medidas e providências cabíveis e os encaminhamentos e procedimentos necessários. Senhores, o que aqui temos é a proposta de um arrojado projeto de pacificação e conciliação assentado em duas monumentais obras que, ao fim e ao cabo, são uma coisa só, as bases da união de nossos povos. A construção da Grande Ponte da Amizade e a Vala da Discórdia. Alguém tem alguma proposta mais? - A Comissão silencia-se - Podemos proceder à votação? - Os vereadores, em coro, respondem que sim. Sabichão, adota uma postura mais formal, ajeita a gola da camisa e diz – Aberto o processo de votação. Aqueles que aprovam a proposta aqui apresentada, por favor, se manifestem levantando a mão - Antes que terminasse a frase, todos já estavam com os braços erguidos. Em seguida, os vereadores trocam abraços calorosos. Dão por encerrada a sessão.

Em menos de vinte dias, máquinas pesadas e tratores de todos os tamanhos abriam o mato, derrubavam árvores, removiam pedras, nivelavam os terrenos e cavavam buracos. A estreita faixa fronteiriça, rapidamente, se transformara em um gigantesco canteiro de obras. Dezenas de galpões eram erigidas, instalações de todos os formatos e tamanhos modificavam a paisagem do vale. Estruturas metálicas eram vistas por todos os lados, bases e alicerces, já eram plantados. Um sem número de peões transitava de um lado para o outro, realizando todo tipo de trabalhos, medição dos terrenos, identificação dos obstáculos, transporte de cargas, levantamento de vigas, edificação de pilares e todas as atividades e ofícios demandados por uma obra desta natureza. A população, dos dois municípios, curiosa, mesmo porque nunca vira coisa igual, de tamanha magnitude, se amontoava nos montes próximos para observarem o andamento dos trabalhos. Nos finais de semana, a aglomeração era bem maior, e muitas famílias passavam ali um dia inteiro, admirados com a grandeza das estruturas metálicas e de concreto e a sofisticação das máquinas e equipamentos. As crianças, mais que ninguém, se impressionavam e se divertiam com o gigantismo dos guinchos e das carretas. Não havia quem, na região, não tivesse ainda visitado a obra que já começava a adquirir os seus primeiros contornos. O ritmo da construção era intenso e não parava momento algum, sequer durante as madrugadas. Antes de completar um ano, a obra estava pronta, para o espanto de todos. Por mais que os trabalhos, passo a passo, dia após dia, tivessem sido acompanhados por multidões, que disputavam as melhores vistas panorâmicas para A Grande Ponte e a Vala Profunda, não havia quem não ficasse estupefato diante da obra colossal, finalmente, plantada na terra. A Vala era larga, profunda e exageradamente fortificada. A Ponte era gigantesca, mastodôntica. A Vala da Discórdia possuía muitos metros de profundidade; a Grande Ponte da Amizade, muitos metros de altura. Da Vala, não se via o fundo. Da Ponte, tinha-se a vista mais alta de toda a região. A Vala fora toda forrada de concreto, madeiras e apinhada de pontas e estacas. A Ponte tinha um colorido intenso, pintada com todas as cores conhecidas e catalogadas, jardins de flores variadas, locais e estrangeiras, das simples margaridas as mais exóticas que a terra concebeu, espalhadas da base ao topo da descomunal estrutura. As vigas e pilares, as fundações de aço e concreto eram fortes e pesadas, a ponto de sustentarem o mundo. Chegara o dia do grande e esperado festejo, da maior das comemorações e o mais faustuoso dos eventos que já ocorrera por aquelas bandas. As autoridades organizaram as festividades com um empenho nunca visto por ali. Aquele deveria ser um dia memorável, seja para os que ali estivessem ou para as gerações futuras, pois a data constaria em todos os registros públicos, documentos oficiais, símbolos municipais, na literatura, nos livros didáticos e nos currículos escolares. A partir daquele dia, novos horizontes e oportunidades estariam abertos aos povos, agora unidos, que viviam dos dois lados da Grande Ponte e da Vala da Discórdia. Era um marco histórico e um divisor de águas. A cerimônia fora aberta. Ponte e Vala estavam ornamentadas com balões gigantes, parafernálias luminosas e faixas que carregavam as cores das duas bandeiras municipais e insígnias diversas. Ao meio da Ponte e bem acima da Grande Vala foi instalado o magnífico palanque onde se posicionavam as principais autoridades dos dois lados. Perfilados e de pé, sobre um tablado elevado, os membros da Comissão aguardavam, sorridentes e vaidosos, a execução do hino, composto especialmente para a ocasião e que abriria o ato inaugural. Manoel Sabichão fora o escolhido como representante e porta-voz da Comissão de Notáveis. Seria ele o responsável pelo mais esperado discurso daquele dia. Ao lado deles, posicionavam-se outras autoridades e seus familiares, os demais vereadores e correligionários, religiosos, líderes espirituais, representantes das associações do empresariado local e de entidades diversas, agentes do tesouro municipal, engenheiros e representantes de bancos estrangeiros, que tornaram possível o monumental empreendimento. A banda musical, formada pelos melhores músicos da região e com um número impressionante de instrumentos musicais, dá início ao hino.  Dançarinas, com vestidos coloridos e ricamente ornamentados, executavam uma coreografia especial e única, emocionando os presentes com seu ritmo frenético e seus passos e movimentos sincronizados. A multidão mostrava-se entusiasmada e admirada. As mulheres vestiam roupas especiais e elegantes, adquiridas para a ocasião, os homens estavam alinhados e bem trajados para o inesquecível feriado municipal. As crianças brincavam com balões e se empanturravam de doces e guloseimas. Ambulantes vendiam de tudo quanto há, pirulitos, doces, salgados, bebidas, brinquedos, chaveiros, bonés, camisetas e recordações. Ao redor da Vala e sobre a Ponte se amontoava um grande formigueiro humano. Muitos apreciavam a vista proporcionada pela estrutura, que os permitiam vislumbrar terras longínquas e um horizonte tão amplo como nunca haviam visto. Outros tantos se debruçavam sobre as muretas fortificadas que guardavam a Vala, olhando, com estranheza e assombro, a escuridão do abismo que se formara. Churrasqueiras enormes foram espalhadas por todos os cantos, fumegantes, servindo à fartura, carnes finas e variadas a todos. Flores, naturais e ornamentais, eram distribuídas a todas as mulheres, das pequenas garotas as senhoras de idade. Era uma festa só.  Foguetes anunciavam a chegada da paz almejada. Sob os acordes triunfantes da banda de música e os estouros dos fogos de artifício, a multidão, frenética, dançava. Mal ouviram quando o primeiro estrondo se anunciou. Já o segundo estrondo, desta vez, ensurdecedor, provoca correrias para todos os lados. Rachaduras e trincas abriam-se no concreto em chagas gigantes. Em um movimento que se inicia lento e, imediatamente, acelera-se, a estrutura se rompe e começa a desmoronar. Milhares emitem um grito só, em coro, de pânico e desespero. Uma fenda definitiva e fatal quebra a Ponte ao meio que, em um deslize oblíquo e vigoroso, desaba dentro do fosso. Uma boca monstruosa e descomunal se abre na terra e a tudo engole. Os municípios foram arrastados. Não haveria sobreviventes, tão pouco sobraria pedra sobre pedra. Apenas uma nuvem espessa, formada por um pó cinzento e pesado, restaria no local.





Marcos Vinícius.