quarta-feira, 31 de julho de 2019

O bebedouro



Dentro do shopping, em meio ao corredor que dá acesso não apenas aos banheiros, como à rampa que leva à plataforma do metrô, o que faz do local um ponto de intensa movimentação de transeuntes, trabalhadores e consumidores, há um bebedouro, onde sempre há quem vai ali matar a sua sede. Não são raras as ocasiões, em que filas se formam entre ansiosos e apressados, quase todos, com os olhos pregados nas telas luminosas dos smartphones. Ao me aproximar, para que, também eu, pudesse beber um pouco daquela água filtrada, fui bruscamente barrado por uma senhora, que com as mãos espalmadas e voltadas para mim, disse: - O senhor não pode beber desta água, pois desliguei o bebedouro para carregar a bateria do meu telefone celular. E me fitou com um olhar decidido e definitivo. No primeiro instante, me senti estupefato, mais surpreso que indignado. Afinal, como chegar a tal ponto? Mas o que é isto? Como pode? O bebedouro, tão disputado, seria interditado, para que o aparelho dela adquirisse a sua carga? Confesso que é a primeira vez que me deparo com o fenômeno e senti-me, de imediato, desorientado e admirado. Dolorosamente, porém, compreendi que ali, na verdade, estava um retrato recém-revelado de um perfil de brasileiro que hoje vem se configurando. Uma brasilidade fundamentada em um individualismo exacerbado, em um déficit ético crônico e aparentemente insuperável, e em uma moralidade tosca e hipócrita. Ali estava o retrato de um novo país, que se está a construir, as últimas pás de cal, atiradas sobre o que chamamos de Estado Democrático de Direito, já se fazem sentir nos comportamentos de nossos concidadãos, em manifestações exemplares, reveladoras e fantásticas. É o nascimento de um novo ânimo nacional, em que autoritarismos e arrogâncias, já estão caricaturados em meio das gentes, em uma nova cultura, um novo modus operandi, onde o espírito das leis e da justiça jaz sepultado. Estão plantados os alicerces da brasilidade radical, mágico-fascista, não apenas sobre delírios, paranoias, exageros e conspirações, mas lançados às raias do absurdo. Nasce um novo espírito, com a força do caos.

Marcos Vinícius.

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