Entre
as primeiras providências e considerada uma das mais emergentes medidas a serem
tomadas pelas autoridades recém-eleitas, assim que encerrara o pleito, era
tratar das questões de paz, por um fim ao antiquíssimo conflito, rixas e
batalhas intermináveis, que desde tempos imemoriáveis, atormentavam as duas
comunidades vizinhas. A propósito, a contenda era tão antiga, mas tão antiga, e
como os ancestrais daquela gente, à época das desavenças primeiras, não faziam
uso dos registros escritos, os cidadãos dos dois lados, sequer sabem
exatamente, porque ainda mantém a peleja eterna. Como não há memória da guerra
originária e suas causas remotas são desconhecidas, qualquer futilidade é
motivo para a retomada das hostilidades. Um disse me disse, uma fofoca na
família, uma conversa ao pé do ouvido, um desentendido de importância mínima,
um olhar atravessado, eram motivos para que, tanto de um lado, quanto do outro,
se reiniciassem os combates. Os mais velhos sabem contar, na ponta da língua,
uma infinidade de histórias e casos relacionados à velha discórdia, mas não há
um que saiba falar sobre as origens dela. Muitas destas histórias acabaram por
tornarem-se lendárias, mitológicas, de tantas vezes foram contadas, recontadas,
transmitidas entre as diferentes e sucessivas gerações. Cada geração, à sua
maneira, e de acordo com suas conveniências mais imediatas, transformam-nas,
acrescentando elementos, enaltecendo ou omitindo episódios, conforme suas
demandas momentâneas mais específicas. Definitivamente, a memória do conflito
original perdeu-se no tempo, mas a das batalhas intermediárias, de pequenas ou
grandes proporções, antigas e recentes, os heróis e as ações gloriosas e épicas
que são delas provenientes, são sempre relembrados em reuniões familiares, de
vizinhança, em rodas de conversas, eventos públicos, em placas, monumentos e
homenagens diversas. Um pequeno vale, pantanoso e úmido, separa os dois
povoados, formando uma fronteira natural, às vezes, transformado em trincheira
entre as populações beligerantes. Havia muito tempo que, apesar de muito
próximas uma da outra, as comunidades quase não se comunicavam, a exceção das
ocasiões em que estivesse em jogo algum interesse econômico maior ou alguns
casos de paixões incontroláveis, audaciosas e aventureiras que,
inevitavelmente, levavam jovens a desafiarem a sorte. O fato é que, ainda que
não houvesse explicações seguras e definitivas a respeito do fenômeno, poucos
ainda negavam que, de maneira geral, havia certa impaciência das populações,
dos dois lados, de acabarem de vez, com aquelas guerras infrutíferas, que tantos
prejuízos e dissabores haviam rendido tanto aos seus contemporâneos, quantos
aos antepassados. Se de um lado, havia ainda uma geração, os mais velhos e os
mais afetados pelos anos de desavenças, que faziam questão de se manterem bem
longe de qualquer perspectiva de acordos e entendimentos, já os mais jovens,
sentiam-se menos afetados por estas pendengas. Os tempos eram outros e novos
ventos começavam a soprar sobre a região. Talvez tenham imaginado que tantos
anos e energias dispendidas nos conflitos tenham lhes trazido mais prejuízos
que benefícios. Os mais novos começavam a desconfiar da viabilidade e
necessidade de uma guerra em que sequer os mais velhos, sabiam dizer onde, como
e porque havia começado. Ainda que os reais motivos desta alteração nos humores
não tivessem sido diagnosticados, devidamente apurados, havia um sentimento disseminado
entre aquela gente que, um acordo de paz e o fim das hostilidades pudessem
abrir novas e várias perspectivas, seja através de novos postos de trabalho, no
campo dos negócios, na exploração de novos territórios e oportunidades, na
ampliação dos horizontes, além é claro, de ampliar as possibilidades de
encontros amorosos, sexuais e acasalamentos. Afora que, anos e anos de
disputas, das mais variadas modalidades de violências e escaramuças, havia
gerado um sentimento de cansaço e exaustão do qual, principalmente, os mais
jovens, queriam, agora, se livrar. Um movimento que se iniciou silencioso, já
era ouvido em todos os cantos, nas ruas, no campo, onde quer que estivessem, as
pessoas estavam discutindo a possibilidade de um cessar fogo definitivo,
concomitantemente, nos dois povoados, nas duas bordas do vale.
Seja
de um lado, seja do outro, as autoridades locais haviam percebido o movimento. Tanto é que nas
últimas eleições - elas ocorrem no mesmo período nas duas bandas - os diversos
candidatos que entraram na disputa, colocaram em pauta, em suas campanhas,
propostas de conciliação e o fim das desavenças. O resultado das urnas é um
marco histórico. Pela primeira vez, a Câmara dos Vereadores, nas duas
cidadelas, é composta por representantes que, de forma direta e veemente, ou
adotando um discurso mais sutil, defenderam a desmobilização e o fim das
agressões. As populações estavam otimistas e um novo tempo de paz parecia ser
inevitável e inadiável. Obviamente, que ninguém esperava que os dois povos
rivais, a partir daí, fossem romper fronteiras, em festas e polvorosas, e
corressem a se abraçar, uns aos outros, de forma espontânea e instantânea.
Apesar da boa vontade e dos esforços das duas partes, as desconfianças ainda
eram grandes, as mágoas não se desfizeram de vez e algumas cicatrizes ainda não
haviam secado de todo. Portanto, acordos de paz, por mais necessários e
desejados que façam, não se resolvem com um passe de mágica, de uma hora para
outra, por maiores que sejam as expectativas. Porém, mal as urnas foram abertas
e os votos apurados, os eleitos se reuniram, no dia seguinte, para discutirem
procedimentos e medidas urgentes, no campo diplomático, para que tivessem
início as negociações. Os vereadores, tanto de um lado quanto do outro, saíram
otimistas da primeira reunião e um acordo de paz nunca esteve tão próximo. As
duas Câmaras, num acordo prévio, decidiram, então, criar uma Comissão, formada
por três vereadores de cada município, os primeiros mais votados, para que
estes se encarregassem dos trabalhos. De um lado, a Comissão era formada por
Mauro Cimenteiro, Jadson do Churrasco e Manoel Sabichão; do outro, Jorge do
Trator, Celso dos Parafusos e João das Tintas. Eram estes seis notáveis, os
responsáveis em traçar as linhas, pressupostos e trâmites dos tratados de paz.
A Câmara entendia que a votação expressiva que obtiveram estes seis vereadores,
fazia deles figuras representativas dos anseios populares e lhes foi outorgada
a histórica tarefa de colocar um ponto final nas pendengas, que tantos
malefícios haviam proporcionado aos moradores dos dois municípios. Os membros
da recém-formada Comissão eram figuras conhecidas entre as populações locais,
não que já tivessem realizado grandes feitos em prol de suas coletividades, mas
suas atividades profissionais colocavam-nos em posições de destaque nestas
comunidades relativamente pequenas. Os seis eram novatos na Câmara, seriam seus
primeiro mandatos. Os eleitores, desta feita, fizeram uma considerável
renovação em seu parlamento, deixando a maioria dos antigos representantes, de
fora. Poucos foram os que conseguiram se reeleger. A maioria absoluta dos novos
representantes era formada por novatos na política. Havia, entre os eleitores,
um anseio generalizado por mudanças, ainda que não estivesse muito claro o que
isto significava ou que rumos deveriam tomar.
O que parecia ser um sentimento quase geral, afora uns ou outros mais
renitentes, eram as esperanças em que, no mínimo, fosse declarado algum
armistício e que, quem sabe, os habitantes daqueles territórios pudessem se
deslocar livremente, sem qualquer problema ou constrangimento, entre uma
cidadela e outra. Os mais jovens, o que era muito notório, eram os mais
entusiasmados com esta possibilidade. O desafio inédito lhes atiçava todo o tipo
de curiosidades e a permissão para explorar terras tão próximas e
desconhecidas, lhes enchia de ânimos. A Comissão assumira o compromisso público
de resolver a questão o quanto antes, em caráter emergencial, não apenas porque
consideram o momento ideal, dado o desejo manifesto entre seus respectivos
povos e a predisposição para os diálogos de paz, mas também porque não queriam
desperdiçar seu capital político, dando uma resposta rápida aos seus eleitores,
passando-lhes a mensagem de eficiência, prontidão e velocidade. Para tanto,
dispensaram consultas adicionais, audiências públicas, referendos ou
plebiscitos. A Comissão, ela própria, legitimada pelo voto popular, soberana,
deveria resolver todas as questões relativas à guerra e a paz. Para evitar
interferências de qualquer natureza ou dispersão dos trabalhos, resolvera a
Comissão, que sua primeira e decisiva reunião, seria realizada a portas
fechadas. Assim que encerrassem os trabalhos do dia, a resolução tomada seria,
imediatamente, anunciada ao público.
Eram
duas horas da tarde. Um sol abrasador iluminava os telhados das casas e uma luz
branca, pálida e intensa, dominava a atmosfera. Homens e mulheres conversavam
animados e procuravam o refúgio confortável das sombras das árvores, das
marquises, toldos e puxadinhos. Havia dias em que o calor do verão era quase
insuportável. Ainda assim, os cidadãos, dos dois lados, exibiam entusiasmo e
euforia. Um proprietário rural, interessado em negócios no município vizinho, e
cujas terras tocavam os limites fronteiriços, cedera um amplo galpão, preparado
e adaptado para a ocasião, cujas paredes eram uma das linhas divisórias das
cidadelas, para o encontro histórico. No horário marcado, os seis já estavam
reunidos à porta do galpão, para o início dos diálogos. Três de cada lado.
Todos eles suavam excessivamente, ajeitavam as golas de suas camisas, enxugavam
o suor do rosto com os lenços já encharcados e cumprimentavam-se uns aos
outros. Eram cercados por um forte aparato de segurança. Cinquenta homens
armados faziam a segurança dos notáveis. Dentro do galpão, fora preparado um
ambiente adequado a estas ocasiões, com mesas largas, cadeiras estofadas e
confortáveis, quadros emoldurados, louças e porcelanas, distintivos, insígnias
e tudo o mais que servisse como um cenário a altura da importância daquele dia.
O espaço era levemente requintado, porém, fundamentalmente, austero. Os homens
sentaram-se à mesa. Ventiladores improvisados, instalados às pressas, amenizavam
o calor intenso do local. Os vereadores saudavam-se, trocavam amabilidades, apresentavam
sorrisos tensos, esfregavam as mãos, remexiam os papéis, ajeitavam os penteados
e trocavam olhares atentos, com um misto de satisfação e desconfiança. Era
aberta a sessão.
De
início, um pouco constrangidos, sem saber exatamente por onde começar, dada a
novidade e o ineditismo da ocasião, relutam em pronunciar as primeiras palavras.
Entre um raspar de garganta daqui, um esfregar de olhos dali, Mauro Cimenteiro
quebra o clima de desconforto, vira-se para os demais, olha um por um – apenas
a Comissão se reunia ali – e abre os trabalhos. A tensão desenhada nas linhas do
rosto é indisfarçável. Tem a expressão firme e dura; a mandíbula quadrada e os
cabelos grisalhos proporcionam-lhe um aspecto de força e rigidez, uma feição de
concreto. Era um homem de negócios, daí sua popularidade. Não havia quem não
houvesse recorrido a ele, quando em circunstâncias de obras, construções e
reformas. Fez uma pequena fortuna vendendo cimento. Enfim, leva as mãos sobre a
mesa, embaralha aleatoriamente as folhas de papel que tem à sua frente, e diz -
Senhores, é com enorme satisfação que componho esta mesa com vossas
ilustríssimas pessoas. Sabemos, pois, da importância e grandiosidade da missão
que hoje temos. A nós, foi dada uma tarefa de extrema relevância, a qual nos
compete realizar com a máxima responsabilidade e presteza, fazendo jus ao voto
de confiança que nossos irmãos-cidadãos nos deram, nossos bravos conterrâneos,
cansados de tantos anos de guerras e misérias. Cabe a nós, então, essa missão inadiável,
que é responder aos nossos, aos seus apelos de paz, com todo o empenho e
desprendimento de que formos capazes. Sejamos, pois, mais que nunca, movidos
pelo espírito público e pela tradição democrática, para que estejamos à altura
do que de nós é esperado, para que nossos povos não caiam mais vez, nas
armadilhas das desilusões, do desgosto, frustrações e desesperanças. Sou um
homem do cimento, das grandes obras, conheço como ninguém a dureza do calcário
e do minério, as altas temperaturas dos fornos das fábricas cimenteiras e o
rugido das explosões das minas de pedra. Não existe concreto armado que não
tenha passado pela maleabilidade das argamassas. Não há muralha construída sem
a associação do pó do cimento e a energia da água. Assim é o mundo, assim é a
vida. A paz também demanda suas fórmulas, suas condições e prerrogativas. Não
há paz sem acordos, não há paz sem diálogo. Para isto, meus companheiros de
jornada, estamos reunidos nesta Casa. O cimento é um pó fino, mas tem como
principais qualidades, as propriedades de serem aglutinantes, ligantes. Chegou
o momento de fazermos de nós próprios, os agentes da união de nossos povos, a
liga, o arrimo, a ponte entre nossos municípios para a construção de nossa obra
maior, a paz duradoura - Assim que encerra o rápido discurso e silencia-se, dá
uma olhada rápida nos olhos e na expressão de cada um dos presentes, para
avaliar as reações. De imediato, porém, todos o aplaudem euforicamente. Em
seguida, os vereadores levantam-se, um a um, sorridentes e entusiasmados e vão
cumprimentar o colega. Até o momento, parecia não haver qualquer discordância
entre eles, e esta manifestação de apoio, gerara uma sensação de conforto e
descontração no ambiente quente e abafado do galpão fronteiriço. - Isto mesmo,
Mauro, parabéns, muito bem colocado; faço, portanto, minhas, as suas palavras -
diz Manoel Sabichão, dando fortes e vigorosos tapas em suas costas. De
imediato, sentam-se novamente, e Celso dos Parafusos pede a palavra. Mesmo não
constando em lei alguma ou em qualquer regulamento, era tradição entre eles
que, sempre que autoridades dos dois lados se reuniam, por quaisquer
circunstâncias, os representantes municipais intercalavam-se nas falações; a
fala do representante de um município era sempre seguida da fala do
representante do outro. Celso abre um pequeno caderno, dá uma olhadela rápida e
silenciosa em algumas anotações. Os demais o observam, atentos e curiosos. Por
um instante, ouvia-se apenas o ronco persistente dos ventiladores, que aliviava
um pouco as altas temperaturas do local. Celso dos Parafusos ainda era jovem e
herdara a loja do pai, que passara uma
vida inteira vendendo todo tipo de ferragens e estruturas metálicas. A alcunha
Parafusos é quase um diminutivo dos negócios que a família sempre realizou.
Reza a lenda que o avô passou a maior parte da infância colecionando pregos e,
principalmente, parafusos, e tinha a estranha mania de sair pregando e
parafusando tudo o que passível de ser pregado ou parafusado encontrasse pelo
caminho. Encontrou problemas, mas, por fim, fez fortuna, que pôde atravessar
gerações. Celso era da terceira geração de proprietários da empresa de
ferragens e vendia qualquer peça ou estrutura metálica necessária em qualquer
obra, desde a construção de casebres, casas populares, até o levantamento de
prédios e grandes obras públicas. Era um empresário bem sucedido. Suas
bochechas fartas e rosadas e o sorriso sempre aberto e confiante eram o sinais
visíveis de que nascera em berço de ouro. Com este ofício e ramo de negócios,
não havia quem não o conhecesse nas imediações. Ele era novato na vida pública,
seria seu primeiro mandato de vereador, mas o pai, porém, já havia ocupado uma
cadeira na Câmara por duas ocasiões. O rosto arredondado, de sorriso fácil e a
juventude saudável e alegre, além da adoção, em suas lojas, de uma política com
pagamentos parcelados em inúmeras prestações, para a população mais pobre,
apesar dos juros altos, fez dele um dos candidatos mais bem votados na última
eleição. - É uma enorme alegria estar aqui nesta tarde, compartilhando com
vossas excelências, este momento histórico, sobre o qual temos tanto o que
fazer e para o qual fomos convocados por nossos concidadãos -ele diz - São
inúmeros os desafios à frente. Não bastassem os problemas que temos no interior
de nossos municípios, e não são poucos, nos coube ainda, a honrosa missão de
dar cabo a tantos anos de desencontros e angústias que sempre nos separou em
campos opostos. Não são todos os dias que oportunidades como esta ocorrem nas
governanças municipais, não são corriqueiros e comuns os grandes tratados e
acordos de paz, mundo afora. Arrisco dizer que, esta talvez seja uma
oportunidade única, pois nunca houve entre nossos povos, principalmente, entre
os jovens, um desejo tão forte de conciliação. Não podemos deixar isto nos
escapar e acredito que estamos à altura deste chamado. Estou plenamente
convencido que nossos povos não podiam ter feito melhores escolhas, não apenas
no que diz respeito à opção pelo fim das beligerâncias, como em relação aos
representantes que elegeram. Portanto, não podemos titubear. Nossos municípios
não suportam mais a política-dobradiça, como portas que se abrem e logo se
fecham, reivindicam a paz definitiva, assentada em vigas e vergalhões que não
se rompam. Já basta de armistícios-mola, de estica e relaxa, comprime e puxa, e
sempre nos faz regressar ao ponto de partida. Temos que formar laços de ferro e
aço, e romper de vez com as frágeis alianças de argila e barro, tão pouco
duráveis, tão quebrantáveis. Basta de divisórias e discórdias. É este o momento
de selarmos os trilhos de nossa amizade, de nossas índoles pacíficas, não com
cuspe apenas, mas com os apertos e arrochos que apenas os pregos e os, porque
não, parafusos podem fazer. No que depender de mim, apresentaremos o quanto
antes, o mais urgente possível, uma proposta concreta e metálica para o
problema sob o qual, ora nos debruçamos. Há uma grande expectativa e ansiedade
entre nosso eleitorado. Proponho, então, que apresentemos aos nossos cidadãos
algo impactante e sólido, já nas próximas vinte e quatro horas, que possa
transmitir uma mensagem de determinação, vontade política e firmeza nas
resoluções. Muito obrigado - Mais uma vez, aplaudem, todos eles, sem exceção,
com entusiasmo e euforia. O som dos aplausos é entrecortado pelo zumbido
contínuo e prolongado de um enorme besouro que sobrevoa, em um voo incerto e
estonteante, a mesa de reuniões. Os seis abaixam as cabeças, curvam-se, na
tentativa de safarem-se de uma colisão com o robusto inseto. Manoel Sabichão
tenta estapeá-lo, mas o bicho dá-lhe um drible e escapa em direção a um pequeno
vão, aberto na parte superior do galpão. Sabichão, então, comenta - Besouro
atinado este, conseguiu furar nosso forte esquema de segurança - Os vereadores
riem e descontraem-se. Aproveitando a ocasião, quando todos olhavam para si, Sabichão
aponta para Jadson do Churrasco, sugerindo que seja o próximo a se manifestar.
E brinca, remexendo-se na cadeira - Agora, com a palavra, o Ilustríssimo Senhor Jadson do Churrasco -
Jadson pigarreia, põe os cotovelos sobre a mesa e entrelaça os dedos das mãos,
levando, rapidamente, os dois polegares sobre a ponta do nariz. Desfaz-se da
posição, num movimento abrupto, e pendura um dos braços no encosto da cadeira. É
um homem de origem humilde e começou a vida profissional, ainda na
adolescência, ajudando o tio em uma pequena banca, vendendo espetinhos de boi,
frango e porco. Atualmente, é considerado o melhor churrasqueiro da região e
dono de um bem sucedido restaurante que oferece refeições acompanhadas de uma
variedade inigualável de churrascos. Uma vida inteira dedicada ao ofício lhe
rendeu uma barriga proeminente, braços largos e um rosto completamente redondo.
São as gorduras e banhas do ofício, pois aqui, já não se veem mais os ossos. Do
rosto corado e rechonchudo, escorria o suor a bicas, e gradualmente, sua
desalinhada camisa azul vai se ensopando, formando uma linha branca de sal,
como se ele próprio, estivesse assando. - Pois então, meus prezados parceiros
de mesa e empreitada, sinto-me também honrado em dividir com vocês este momento
tão nobre e tão repleto de boas intenções. Que bons ventos possam nos
glorificar e nos proporcionar êxito. Hoje não falamos por nós mesmos, mas por
vários eleitores e cidadãos que, depositaram em nós a esperança de dias
melhores - diz Jadson. Planta as palmas das mãos sobre a mesa e proclama -
Promessa feita, promessa cumprida. Não há tempo a perder. Acolho a proposta do
colega que me antecedeu, o Senhor Celso dos Parafusos, e também defendo, em
respeito àqueles que nos deram seus votos, que saiamos daqui, com uma proposta
pronta, para apresentá-la ao público, em menos de vinte e quatro horas.
Lembrando aos senhores, que não há conciliação possível, amizade selada,
acordos honrados, que não sejam comemorados com uma saborosa picanha assada,
asinhas de frango e costelas na brasa. Assim ocorre desde os tempos mais
remotos, lá pelas idades da pedra. Não é pouca coisa. Seja lá o que for
deliberado aqui, qualquer coisa, uma grande churrascada, com todas as opções
possíveis de carnes, entre picanha, costelas, alcatra, contra filé, bacon e
linguiça, deverá ser oferecida pelo poder público, a todos os cidadãos, sem
distinção de sexo, idade ou estado civil, para que, enfim, possamos nos
assegurar de uma paz, não apenas bem temperada e saborosa, mas, como a maioria
agora almeja, no ponto certo. A fala de Jadson é interrompida por palmas
efusivas. Sabichão grita - Viva! Está eleito o presidente da Comissão - Todos
caem em uma prolongada gargalhada. Aproveitando-se da interrupção, Jadson,
então, empolgado e vaidoso, volta à carga - Ah, sim, tenho ainda, o primo do
Depósito de Bebidas, que, com certeza, não medirá esforços, para regar a nossa
festa - Neste momento, de uma só vez, todos se levantam e o aplaudem de pé,
tentam abraçá-lo e apertar a sua mão. A reunião, portanto, corria bem. Ainda
não havia se manifestado qualquer tipo de divergências ou desavenças, muitos
antes pelo contrário, até ali, o que se viu foi um clima de cordialidades e
unanimidades. Quando retornam todos aos seus lugares, João das Tintas levanta o
dedo indicador, posicionando-se para falar. Ajeita o último botão da camisa,
fechando-a um pouco mais, adota uma postura mais formal e rígida e diz -
Parabéns a nós todos pelo clima de entendimento em que ora nos encontramos,
isso me parece ser a prova maior de quanto nossos povos estavam acertados ao estabelecerem como pauta prioritária nosso
tratado de paz. Algo me diz que a ocasião nunca fora tão apropriada, uma
conjunção de forças conspira a favor. Tenho a forte impressão, que sairemos
daqui, com a sensação do dever cumprido, pois, hoje, entre nós, creio, não
haverá qualquer impedimento, empecilho, que possa retardar o processo que agora
inauguramos. O bom diálogo, a disposição para as negociações, o empenho em
querer ver as coisas acontecerem e se realizarem, encontraram um campo fértil,
aqui nesta linha de nossas fronteiras. Vejo em cada um dos senhores, o desejo
de que possamos acertar o mais breve possível, os últimos pontos para um
acordo. Sinto que esta predisposição é
comum a todos aqui presentes. Então, colegas, mãos a obra. O que temos a concluir
não é coisa tão difícil assim, afinal, os passos maiores já foram dados, qual
seja, a opção que, claramente fez nosso eleitorado e a composição desta
Comissão, que ora se reúne. Portanto, o que temos que fazer é acertar os
detalhes do acordo, em caráter de urgência, aqui entre nós, e em seguida,
entregarmos o rascunho do aqui fora deliberado para uma equipe técnica, que se
encarregará de dar os detalhes formais e transformá-lo em um documento a ser
apresentado em nossos respectivos municípios. Pronto. A partir daí, já podemos
contratar os serviços do nosso churrasqueiro - Todos fazem sinais de aprovação.
Mauro faz sinal de positivo com os dois polegares, Jadson alisa a barriga, em
um movimento circular e sorri alegremente, Sabichão levanta os dois punhos
cerrados para o alto, Jorge do Trator faz um gesto pouco usual, como se
estivesse a engatar uma marcha de arrancada em algumas de suas máquinas e Celso
dos Parafusos encenou o gesto de bater um martelo. Mais uma vez, os seis homens
transformam-se em um único e largo sorriso. João das Tintas também conquistou
sua popularidade através do comércio. Era proprietário de uma loja que oferecia
todas as marcas e cores encontradas no mercado. Seu negócio sempre fora muito
próspero e realizava-se além-fronteiras, vendendo para vários municípios. O
papel de precursor no ramo das tintas deu-lhe um monopólio nesta atividade. Não
havia parede pintada em toda a redondeza, cujas cores não tivessem passado por
suas contabilidades. Apesar de haver queixas daqui e dali, de que sempre fora
duro com seus funcionários e até fazer uso de violências verbais, esta má fama,
não comprometeu ou afetou sua popularidade, pois segundo ele, eram, justamente,
estas práticas, o segredo do sucesso de seus empreendimentos. João foi o
campeão de votos e elegeu-se fazendo campanha aberta e explícita pela paz. Ele bate
palmas fortes na tentativa de trazer novamente os colegas de sessão ao debate e
retomar os trabalhos, desfazendo o burburinho que se instalou no local. Todos se
posicionam novamente para ouvi-lo. Ele
retoma o discurso - Pois bem, meus colegas de mesa, tratemos, pois, de acertar
os detalhes e cláusulas, colocar tudo na ponta do lápis e dos pincéis para que
possamos dar andamentos aos trabalhos e fazer deste nosso encontro, o mais
frutífero possível. Que seja frutífera a ocasião, mas que, mais do que isto,
possa também ser capaz de construir uma paz durável e multicolorida. Isto
mesmo, colegas. Afinal, qual é a cor símbolo da paz? Não é o branco? Pois,
então, o branco, nada mais é que o resultado da sobreposição de todas as cores
luminosas. A paz é luminosa e também é colorida. Disto já sabemos. Façamos,
agora, um esforço concentrado para que nos permita a sabedoria, acertar a
coloração e a tonalidade dos termos do acordo, e possamos, enfim, na mão certa,
dar um verniz luminoso, resistente e definitivo em nossas conversações e
tratados. Lixando as arestas e removendo com thinner e aguarrás nossos mais
profundos ressentimentos, daremos um colorido novo em nossas desgastadas
relações. E sob este prisma, pavimentar aos nossos munícipes irmãos, o caminho
para o progresso econômico e o desenvolvimento social, com muita paz e amor.
Juntos, seremos mais fortes. Obrigado. Ao trabalho. Para frente é que se anda -
Mais uma vez, ao término do discurso, todos aplaudem de forma entusiasmada e
alegre. Outra vez os vereadores se levantam, e vão ao encontro de João das
Tintas cumprimentá-lo. Antes que todos se acomodassem novamente em seus devidos
lugares, Manuel Sabichão anuncia que, agora seria ele a falar. Antes, porém,
observa mais uma vez, atentamente, cada um deles. Sabichão é alto e magro, os
ossos da face são proeminentes, o nariz é avantajado e pontiagudo. Os olhos são
pequenos, mas penetrantes. As rugas acentuadas e fundas sob os cantos dos
olhos, revelam um homem de riso fácil. Tem uma mania persistente de esfregar,
continuamente, as mãos, uma na outra, como se fosse a única maneira de desafogar
uma ansiedade incontrolável. A história de Manoel Sabichão era a menos
conhecida dentre os demais parlamentares, pois quando chegou à região já era um
jovem e passara sua infância em terras distantes e desconhecidas. Mesmo assim,
se adaptou fácil ao lugar e, rapidamente, construiu um vasto círculo de
amizades. Sempre foi muito falante e extrovertido, o que acabou por conduzi-lo
às mais diversas rodas sociais. Quanto ao trabalho, passou pelas mais variadas
profissões e atividades que se possa imaginar. Trabalhou em fazendas, vendeu
livros, administrou escritórios, foi funcionário de contabilidades, atuou na
área da saúde, realizou todo tipo de comércio e, atualmente, trabalhava como
corretor de seguros. Não havia quem não o conhecesse no município. Ao iniciar
sua intervenção, imprime em sua fala um tom mais alto que o dos demais e faz um
gesto reflexivo, observando ao redor, medindo com os olhos as paredes do galpão
e esfregando suavemente o queixo - Amigos, é com uma imensa satisfação que me
dirijo, agora, a vocês – diz - Vou lhes fazer uma confissão. Desde o primeiro
dia desta campanha eleitoral, a propósito, desde o momento em que decidi
disputar esta vereança, praticamente, não tive mais um minuto de sossego. Um
turbilhão de pensamentos e ideias assaltou a minha cabeça e não consigo
imaginar outras coisas, senão uma forma de ser útil a este povo que tão bem me
acolheu e me ofereceu oportunidades uma vida inteira. Não há sonho em que esta
preocupação não me ocorra. Dormindo ou acordado, esta consciência está
presente, latente. Nossa responsabilidade não é pequena. O destino destas
terras, de homens e mulheres, está em nossas mãos. Há muito que fazer, a
realizar. Estou aqui ouvindo atentamente cada um dos senhores, cada palavra,
cada gesto, cada ideia e proposta e, antes de qualquer coisa, gostaria de
reiterar que, estou excessivamente orgulhoso e feliz, em compor um quadro, uma
Casa, uma mesa, com pessoas tão brilhantes, perspicazes e preparadas. É um
momento único da minha vida e, repleto de emoções, pois é também um momento
único da vida de nossos povos e eleitores, e aqui, sinto sair de mim, não
apenas a voz de muitos, como também, um novo espírito de liderança - Sabichão é
interrompido por aplausos fortes e contundentes - Mas, vejam senhores, é
necessário que aprovemos algo de concreto e grandioso. Não podemos sair daqui
com apenas meia dúzia de boas intenções. Saúdo o colega Celso dos Parafusos,
quando propõe que apresentemos algo em vinte quatro horas. Estou de pleno
acordo, não há como ser diferente. Mas vou além. Sabemos que nosso povo, após
tantos anos de conflitos, desde os tempos mais remotos que se tem notícia, não
se contentará com o anúncio e a apresentação de um documento recheado de
cláusulas e artigos, como um mero procedimento burocrático, por mais que esteja
recheado de boas intenções. Sugiro que apresentemos um documento compacto,
claro e objetivo e que não se perca em palavrórios incompreensíveis e distantes
do sentimento do nosso povo. E mais do que isto, o mais importante, que seja
apresentado, além do que já é esperado, algo novo e inusitado, grande e
glorioso. Que possa não apenas selar nossas amizades e o fim de todas as
querelas, mas que deixe para as gerações futuras, a marca e o símbolo do nosso
tempo e do nosso empenho. Nossos esforços não podem ser em vão, esquecidos ou
ignorados. A paz que queremos, não é de ocasião, temporária ou provisória, mas
uma paz duradoura e definitiva, não como uma nuvem passageira, mas como a rocha
e o concreto, plantados sobre a face da terra - Manuel Sabichão faz uma pausa
em seu discurso e observa mais uma vez sua reduzida plateia. Ninguém se
manifesta. Todos têm os olhos fixos nele e se mantém em silêncio. Naquele breve
instante, ouve-se apenas o ruído ininterrupto dos ventiladores - Então, meus,
caros - ele prossegue - pensei, pensei, pensei, ouvindo-os, e cá com os meus
botões, e sugiro que façamos o seguinte. Uma vez que a redação do Tratado já é
algo líquido e certo, não tenho qualquer sombra de dúvida sobre isto, e até o
momento, é a única certeza que temos, construída até aqui neste consenso,
sugiro, considerando, inclusive, a vasta experiência que temos acumuladas aqui
neste recinto, no ramo de reformas e construções, que uma grande obra, a base
de concreto, ferragens e multicolorida , seja apresentada ao nosso povo, como o
símbolo maior de nossa amizade e união que, almejamos, possa ser eterna - Mal
termina a frase, os vereadores entreolham-se, tentando fazer a leitura de
qualquer sinal, expressão, gesto, que possa revelar a reação de cada um ante a
proposta, antes que as posições, concordâncias ou divergências pudessem ser
pronunciadas. Percebendo o movimento dos
colegas, Sabichão é incisivo - Isto mesmo, senhores, o que proponho, de forma
objetiva e sucinta, é que possamos aproveitar o melhor de nós, sim, as maiores
de nossas experiências, para que as coloquemos a serviço da nossa gente.
Reunindo as nossas mais qualificadas habilidades, aquelas que cultivamos uma
vida inteira, poderemos, juntos, com nossas forças e energias, acumuladas e
concentradas, direcioná-las para o bem comum e para o desenvolvimento social e
econômico de nossos municípios. O Senhor Mauro, com toda a experiência que tem
com a arte do cimento e do concreto, o Ilustríssimo Senhor Celso, representante
contemporâneo de uma tradicional família que, por gerações, se dedicou a
oferecer ao seu povo todo tipo de ferragens, O Senhor Jorge, com suas máquinas
e equipamentos possantes, com seus grandes dentes e garras de ferro, não há o
que não possa tratorar, campos que não possam se abrir, por sinal, é o único
que ainda não se manifestou, O Senhor Jadson, com seus assados brilhantemente
temperados e suculentos, preparado para qualquer festejo, O Senhor João, que
carrega consigo, todas as cores do mundo, não há ambiente que não possa
alegrar, ornamentando com o seu radiante colorido, as cinzas do pessimismo e da
discórdia. Sim, senhores, é o melhor de nós, o melhor que temos a oferecer. E
assim nosso povo quis e escolheu. Temos a legitimidade do voto popular e não
nos esqueçamos, somos, aqui reunidos, uma Comissão de Notáveis, e nada mais,
nada menos, que os seis mais votados nos dois municípios - Mais uma vez, é
interrompido por uma saraivada de palmas - Isto mesmo, Isto mesmo - bradava
Mauro Cimenteiro. - Bravo, Senhor Sabichão - proclamava Celso dos Parafusos,
enquanto levantava o punho cerrado. - Não podia haver ideia mais sábia e viável
- arremata Jadson do Churrasco. Um murmurinho caloroso faz aumentar ainda mais
a temperatura naquele ambiente fechado. Quase não se ouve o ronco do
ventilador, abafado pelas vozes eufóricas dos bem votados parlamentares. João
das Tintas interrompe o falatório alvoraçado e, dedo em riste, afirma –
Desconfio que seja por excesso de humildade que o Senhor Sabichão tenha deixado
de citar a si próprio ao elencar as melhores qualidades de cada um de nós e o
quanto, com elas, podemos ajudar a nossa gente. Este homem é um gênio e sabe,
como ninguém, não apenas desvencilhar-se dos grandes problemas e imbróglios,
como também, apontar caminhos, alternativas e construir soluções - Jorge do
Trator, até o momento sem se manifestar, levanta os braços, sacudindo-os, e
grita - Vivas ao Sabichão! - E todos agitam-se ainda mais, e aplaudem-no
efusivamente. Celso dos Parafusos, sem conter a ansiedade, interpela Manoel
Sabichão – Senhor Sabichão, estou aqui me coçando para conhecer os detalhes da
sua proposta. Que tipo de obra exatamente, o senhor já teria imaginado? - Bem,
Senhor Celso, quanto aos detalhes, é algo que teremos que construir juntos. O
que estou aqui imaginando, após pensar muito sobre o nó que nos cabe desatar e
ouvir muito atentamente cada uma das intervenções que aqui foram feitas, à
exceção do Senhor Jorge do Trator, que ainda não teve a oportunidade de se
manifestar, além das respectivas habilidades a que já me referi, penso, que o
ideal seria que a paz que estamos construindo seja, finalmente, coroada com um
gesto monumentalmente simbólico. O que, num lampejo, me veio à mente foi o
seguinte - Neste momento, Sabichão silencia-se, criando um clima de suspense e
um silêncio aterrador entre os homens. Mais uma vez, apenas o ruído do
ventilador se faz ouvir. Observa novamente, um por um, não apenas para ler suas
em suas fisionomias o tamanho das expectativas, mas também, buscando algum
sinal de uma aprovação prévia, antes mesmo que a proposta fosse apresentada - Senhores
– ele retoma – Sugiro, pois, a construção de uma ponte gigante unindo nossos
dois municípios. Nós a chamaríamos de A Grande Ponte da Amizade. Seria a maior
obra já vista em toda a redondeza. Uma obra para impressionar a todos pela sua
grandeza e o seu simbolismo. Nada que estes homens empreendedores aqui reunidos
não possam executar. Uma ponte enorme que atravessasse a fronteira e unisse
nossos territórios de ponta a ponta, que fosse vista de todos os cantos da
Terra, imensa, onipresente, que deixaria nossos povos e os das terras
longínquas e inalcançáveis, com os queixos caídos e as bocas abertas. Uma ponte
que servisse de exemplo e lição para o mundo e uma prova de que, para a
engenharia não há limites e que não existem males, contendas ou intempéries que
ela não possa enfrentar. Nós fomos os escolhidos e, como prova da escolha sábia
e consciente de nossos eleitores, daremos a eles, o melhor de nós. A ponte
seria erguida sobre grandes colunatas, pintada com todas as cores do mundo e,
sobre ela, a cada dez dias, durante dez anos, um farto churrasco, com todas as
carnes conhecidas e assáveis, seria oferecido aos nossos povos, agora,
irmanados. Pensei também, na construção de jardins suspensos, com flores
trazidas dos estrangeiros, o maior que já tivemos, com todas as espécies do
planeta, para que a história jamais de esqueça de nós. Este é um problema
relativamente fácil de resolver, tenho parentes em terras distantes,
especializados nas artes da floricultura e tenho certeza, não fariam objeções
em aqui se instalarem para nos oferecer os seus melhores serviços - Neste
momento, Mauro Cimenteiro, levanta a mão e interrompe Manoel Sabichão – Mas Senhor
Manoel, as regiões fronteiriças de nossos municípios não apresentam qualquer
obstáculo relevante, acidente natural, nem um rio, uma escarpa, pedras ou
montanhas, que se interponham entre nós, além de pequenos trechos alagados e
pantanosos, facilmente contornáveis. Pelo contrário, o que há é um grande
descampado, uma vasta planície em que, qualquer um de nós, pode atravessar sem
qualquer problema ou empecilho, em poucos minutos. A proposta é deveras
tentadora, confesso, mas o acesso fácil que são nossas fronteiras, não poderá
fomentar oposições? - Jorge do Trator, que até o momento, mantivera-se, praticamente
calado, intervém. Era um homem de baixa estatura, ombros largos e braços
musculosos. Apesar de que, nos últimos anos, ficara mais tempo nos escritórios
de sua empresa, do que nas oficinas e nos pátios dos estacionamentos de suas
máquinas robustas, ainda apresentava nos sulcos das mãos, vestígios de óleo e graxa,
herança de uma vida inteira dedicada ao manuseio de tratores, equipamentos
pesados e motores potentes. Tornara-se um homem rico e de poucas palavras. Sua
popularidade, no entanto, adivinha de seus modos simplórios e humildes, nunca carregava
qualquer ostentação, apesar de sempre ter tido uma notória preocupação em
acumular dinheiro. Um trabalho que realizou com um de seus tratores em um lote
de um velho moribundo e muito conhecido na região, sem lhe gerar qualquer
cobrança, há mais de vinte anos, lhe proporcionou uma fama de um homem
carregado de generosidades e compaixão, apesar dos familiares mais próximos reclamarem,
vez ou outra, a boca miúda, do excesso de sovinice. - Senhores vereadores,
senhores notáveis – diz Jorge do Trator - como sabem, não sou homem de muitos
palavrórios e discursos, sempre fui um sujeito das ações e das atitudes. Serei
breve, abreviado e sucinto, portanto. O que gostaria de dizer e acrescentar,
sem repetir o que aqui já foi dito e frisado, é que a ideia do Senhor Manoel
Sabichão é uma verdadeira pérola e completamente exequível. Quanto à observação
que faz o Senhor Mauro Cimenteiro, estou aqui pensando, acho que há uma maneira
fácil de contornar o problema e aumentar ainda mais a monumentalidade da nossa
obra. Nada melhor para fortalecer o simbolismo de nossa pacificação, quanto à
manutenção de uma memória sólida e concreta de nossas antiquíssimas desavenças.
Proponho então, que, construamos uma vala profunda e fortificada, acompanhando
nossa linha fronteiriça, para que aumente ainda mais o significado e a
importância da Grande Ponte da Amizade, que será edificada sobre ela. Com a
abertura de um fosso gigante, não apenas teremos gravada em imensas fissuras na
terra, a lembrança da guerra que até aqui nos separou, donde mais se valorizará
os esforços pela paz, como ainda mais se justificará a construção da Grande Ponte,
representando e simbolizando de fato, a restauração dos caminhos e a criação do
elo que, de uma vez por todas, ligará os nossos povos e municípios. Teremos
então, não uma grande obra somente, mas duas. Uma representando o que fomos, a
outra, o que seremos. Uma obra retroalimentará a outra, enchendo-as de
significados. Os tratores que, recentemente, adquiri, são capazes de cavar os
mais subterrâneos poços, e buracos de profundidade tal, como não se tem
notícia. O deslocamento de um município ao outro, a partir de então, se dará
sempre, exclusivamente, sobre a Grande Ponte, que como nunca, afinal, se fará
tão necessária - Deixe-me ver se entendi bem – intervém João das Tintas – o que
o senhor está propondo é que, além da Grande Ponte, faríamos também uma imensa
vala debaixo dela, como uma lembrança de nosso histórico de discórdias? - Exatamente
– responde de imediato, Jorge do Trator - Pelo que vejo, temos aqui não só os
mais bem votados de nossos municípios, nós, os notáveis, mas, muito mais que
isto, uma reunião de homens geniais e exageradamente criativos – diz Jadson do
Churrasco, entre risos e aplausos. Mas Senhores – interpela Celso dos Parafusos
– apesar do brilhantismo das propostas que foram aqui apresentadas, onde não
consigo vislumbrar ideias melhores, tenho uma dúvida. Ainda não conhecemos o
tamanho exato das contas do município. Será que teremos, em nossos cofres
públicos, verba suficiente para tão nobre projeto? Terá o Tesouro Municipal,
fundos e moedas, para arcar com o custo elevadíssimo de obras destas
magnitudes? É uma boa e necessária pergunta, Senhor Jadson – responde
imediatamente Manoel Sabichão – Para fazermos estes cálculos, temos que ter
acesso aos livros, aos números e ao Orçamento Geral. Mas a bem da verdade,
adianto, pois, que isto não é lá motivo para preocupações ou impedimentos. Há
muito dinheiro circulando pelo mundo. Se por aqui, em nossos cofres, as contas
não fecharem ou forem insuficientes, podemos apelar às riquíssimas instituições
financeiras internacionais, sempre dispostas a investirem suas fortunas, em
socorro aos povos, que lhes acorrem. Eu mesmo, com os contatos que tenho
além-fronteiras, posso ajudar a captar as somas necessárias a qualquer tipo de
empreendimento. Acalmem-se, Senhores, as verbas não serão um obstáculo, e mesmo
que, às vezes, não pareça, há dinheiros com fartura em circulação. Fiquem
tranquilos - Sabichão silencia-se e
repousa as mãos sobre a mesa. É aclamado, demoradamente. Pois bem, Senhores – retoma Sabichão –
façamos, então, a apuração das opiniões e votos de toda esta Comissão, para
verificarmos se há algum ponto de discordância, objeções e obstruções, afim de
que tomemos as medidas e providências cabíveis e os encaminhamentos e
procedimentos necessários. Senhores, o que aqui temos é a proposta de um
arrojado projeto de pacificação e conciliação assentado em duas monumentais
obras que, ao fim e ao cabo, são uma coisa só, as bases da união de nossos
povos. A construção da Grande Ponte da Amizade e a Vala da Discórdia. Alguém tem
alguma proposta mais? - A Comissão silencia-se - Podemos proceder à votação? - Os
vereadores, em coro, respondem que sim. Sabichão, adota uma postura mais
formal, ajeita a gola da camisa e diz – Aberto o processo de votação. Aqueles
que aprovam a proposta aqui apresentada, por favor, se manifestem levantando a
mão - Antes que terminasse a frase, todos já estavam com os braços erguidos. Em
seguida, os vereadores trocam abraços calorosos. Dão por encerrada a sessão.
Em
menos de vinte dias, máquinas pesadas e tratores de todos os tamanhos abriam o
mato, derrubavam árvores, removiam pedras, nivelavam os terrenos e cavavam
buracos. A estreita faixa fronteiriça, rapidamente, se transformara em um
gigantesco canteiro de obras. Dezenas de galpões eram erigidas, instalações de
todos os formatos e tamanhos modificavam a paisagem do vale. Estruturas metálicas
eram vistas por todos os lados, bases e alicerces, já eram plantados. Um sem
número de peões transitava de um lado para o outro, realizando todo tipo de
trabalhos, medição dos terrenos, identificação dos obstáculos, transporte de
cargas, levantamento de vigas, edificação de pilares e todas as atividades e
ofícios demandados por uma obra desta natureza. A população, dos dois
municípios, curiosa, mesmo porque nunca vira coisa igual, de tamanha magnitude,
se amontoava nos montes próximos para observarem o andamento dos trabalhos. Nos
finais de semana, a aglomeração era bem maior, e muitas famílias passavam ali
um dia inteiro, admirados com a grandeza das estruturas metálicas e de concreto
e a sofisticação das máquinas e equipamentos. As crianças, mais que ninguém, se
impressionavam e se divertiam com o gigantismo dos guinchos e das carretas. Não
havia quem, na região, não tivesse ainda visitado a obra que já começava a
adquirir os seus primeiros contornos. O ritmo da construção era intenso e não
parava momento algum, sequer durante as madrugadas. Antes de completar um ano,
a obra estava pronta, para o espanto de todos. Por mais que os trabalhos, passo
a passo, dia após dia, tivessem sido acompanhados por multidões, que disputavam
as melhores vistas panorâmicas para A Grande Ponte e a Vala Profunda, não havia
quem não ficasse estupefato diante da obra colossal, finalmente, plantada na
terra. A Vala era larga, profunda e exageradamente fortificada. A Ponte era
gigantesca, mastodôntica. A Vala da Discórdia possuía muitos metros de
profundidade; a Grande Ponte da Amizade, muitos metros de altura. Da Vala, não
se via o fundo. Da Ponte, tinha-se a vista mais alta de toda a região. A Vala
fora toda forrada de concreto, madeiras e apinhada de pontas e estacas. A Ponte
tinha um colorido intenso, pintada com todas as cores conhecidas e catalogadas,
jardins de flores variadas, locais e estrangeiras, das simples margaridas as
mais exóticas que a terra concebeu, espalhadas da base ao topo da descomunal
estrutura. As vigas e pilares, as fundações de aço e concreto eram fortes e
pesadas, a ponto de sustentarem o mundo. Chegara o dia do grande e esperado
festejo, da maior das comemorações e o mais faustuoso dos eventos que já
ocorrera por aquelas bandas. As autoridades organizaram as festividades com um
empenho nunca visto por ali. Aquele deveria ser um dia memorável, seja para os
que ali estivessem ou para as gerações futuras, pois a data constaria em todos
os registros públicos, documentos oficiais, símbolos municipais, na literatura,
nos livros didáticos e nos currículos escolares. A partir daquele dia, novos
horizontes e oportunidades estariam abertos aos povos, agora unidos, que viviam
dos dois lados da Grande Ponte e da Vala da Discórdia. Era um marco histórico e
um divisor de águas. A cerimônia fora aberta. Ponte e Vala estavam ornamentadas
com balões gigantes, parafernálias luminosas e faixas que carregavam as cores
das duas bandeiras municipais e insígnias diversas. Ao meio da Ponte e bem
acima da Grande Vala foi instalado o magnífico palanque onde se posicionavam as
principais autoridades dos dois lados. Perfilados e de pé, sobre um tablado
elevado, os membros da Comissão aguardavam, sorridentes e vaidosos, a execução
do hino, composto especialmente para a ocasião e que abriria o ato inaugural.
Manoel Sabichão fora o escolhido como representante e porta-voz da Comissão de
Notáveis. Seria ele o responsável pelo mais esperado discurso daquele dia. Ao
lado deles, posicionavam-se outras autoridades e seus familiares, os demais
vereadores e correligionários, religiosos, líderes espirituais, representantes
das associações do empresariado local e de entidades diversas, agentes do tesouro
municipal, engenheiros e representantes de bancos estrangeiros, que tornaram
possível o monumental empreendimento. A banda musical, formada pelos melhores
músicos da região e com um número impressionante de instrumentos musicais, dá
início ao hino. Dançarinas, com vestidos
coloridos e ricamente ornamentados, executavam uma coreografia especial e
única, emocionando os presentes com seu ritmo frenético e seus passos e
movimentos sincronizados. A multidão mostrava-se entusiasmada e admirada. As mulheres
vestiam roupas especiais e elegantes, adquiridas para a ocasião, os homens
estavam alinhados e bem trajados para o inesquecível feriado municipal. As
crianças brincavam com balões e se empanturravam de doces e guloseimas.
Ambulantes vendiam de tudo quanto há, pirulitos, doces, salgados, bebidas,
brinquedos, chaveiros, bonés, camisetas e recordações. Ao redor da Vala e sobre
a Ponte se amontoava um grande formigueiro humano. Muitos apreciavam a vista
proporcionada pela estrutura, que os permitiam vislumbrar terras longínquas e
um horizonte tão amplo como nunca haviam visto. Outros tantos se debruçavam
sobre as muretas fortificadas que guardavam a Vala, olhando, com estranheza e
assombro, a escuridão do abismo que se formara. Churrasqueiras enormes foram
espalhadas por todos os cantos, fumegantes, servindo à fartura, carnes finas e
variadas a todos. Flores, naturais e ornamentais, eram distribuídas a todas as
mulheres, das pequenas garotas as senhoras de idade. Era uma festa só. Foguetes anunciavam a chegada da paz
almejada. Sob os acordes triunfantes da banda de música e os estouros dos fogos
de artifício, a multidão, frenética, dançava. Mal ouviram quando o primeiro
estrondo se anunciou. Já o segundo estrondo, desta vez, ensurdecedor, provoca
correrias para todos os lados. Rachaduras e trincas abriam-se no concreto em
chagas gigantes. Em um movimento que se inicia lento e, imediatamente, acelera-se,
a estrutura se rompe e começa a desmoronar. Milhares emitem um grito só, em
coro, de pânico e desespero. Uma fenda definitiva e fatal quebra a Ponte ao
meio que, em um deslize oblíquo e vigoroso, desaba dentro do fosso. Uma boca
monstruosa e descomunal se abre na terra e a tudo engole. Os municípios foram
arrastados. Não haveria sobreviventes, tão pouco sobraria pedra sobre pedra. Apenas
uma nuvem espessa, formada por um pó cinzento e pesado, restaria no local.
Marcos Vinícius.
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