quarta-feira, 27 de setembro de 2017

O futebol, o sonho e a revolução.


Um dia desses, parado em um ponto de ônibus, impressionado com a algazarra que faziam os torcedores em dia de campeonato, com suas camisas coloridas, suas buzinas alucinantes, seus gritos tresloucados, sentei-me, quase entorpecido, em meio à legião de fanáticos, que desfraldavam as ruas, as avenidas, com suas bandeiras flamejantes e seus escudos dourados. Um breve formigamento me percorreu por inteiro, da cabeça aos pés, uma descarga elétrica, que levara, num súbito, as forças das pernas e o meu bom ânimo. Mal acabara de me ajeitar no banco estreito, sob a marquise de concreto, um rapaz envelhecido, que não aparentava a idade que tinha, pois a vida lhe parecia cruel, com os olhos inchados, a pele precocemente enrugada e as barbas mal feitas, sussurra ao meu lado, como se dissesse para si mesmo: Mas que diabos. Por que essas massas afoitas, mobilizadas pelo futebol e suas torcidas, não canalizam estas energias contidas, estas explosões não detonadas, este cataclismo encapsulado, para a ação política e a revolução social? Olhei para o homem, que não esperava qualquer reação, e mal sorri para ele, quando se levantou e desapareceu. A turba de torcedores, como uma manada desnorteada, já entopia os lotações, as esquinas, as calçadas e os bares, estava em todos os lugares, com suas palavras de ordem, suas rimas desgastadas e seus hinos agonizantes. Os carros estavam todos nas ruas e o fluxo era lento e eufórico. A cidade inteira é uma torcida insone, e o ruído contínuo da multidão alvoraçada e histérica, faz-me correr dali. Apesar de saber que nestas ocasiões, não existe abrigo seguro, os foguetes arrebentam por dentro dos nossos miolos, as cornetas perfuram os tímpanos, tomei o rumo de casa, pois se do barulho não há como se livrar, pelo menos, que entre eu e eles, se interponham algumas paredes. Assim fiz. Em casa, tomei uma ducha rápida, deitei-me e me enrolei em lençóis, colchas e travesseiros, para que pudesse, sem abafar a mim mesmo, abafar o ruído infernal que me embalaria madrugada adentro. Quando a escuridão total se fez, no breu dos meus olhos fechados, o jovem velho que encontrara no ponto, voltou a fitar-me com seu olhar fugidio. Sumiu na velocidade de um raio. Perguntei a mim mesmo, na agitação da alma, que já queria dormir. Por que essas massas afoitas...? Em poucos segundos, uma cantoria ritmada, com muitas vozes, mas muitas vozes mesmo, e o som de uma banda, que fez-se a cada segundo, mais próxima e presente, encheu todo o ambiente. As ruas cobriram-se de pétalas e flores despedaçadas. Das janelas, as bandeiras tremulavam com o sopro do canto dos homens, nas varandas, os estandartes arrastavam-se quase ao chão, com suas pedras coloridas, seus fios prateados e suas letras garrafais. Serpentinas coloridas escorriam das marquises e dos balaústres, vasos brilhantes enfeitavam muretas e balcões. Os homens marchavam. Eram muitos, infinitos. Um sem número deles. Eram também as mulheres. Aos milhões, ocupavam todos os espaços e territórios, as cidades e os países, lotavam os continentes, sabe-se lá como, tomaram também os mares, os oceanos, conquistaram o planeta, avançaram em direção ao universo. Eram muitos. Eram todos, uma unanimidade. Era um corpo coeso. Disciplinado. Todos eles, todas elas, um a um, uma a uma. De onde viera aquele canto padrão, aquele gigantesco bloco monolítico, aqueles gestos sincronizados? Em que oficinas se criaram estas vozes, em quais organizações formaram-se estas lideranças, modelaram os discursos? Eram milhões e se multiplicaram. Estavam muito organizados. Haviam abandonado o futebol e as torcidas, em definitivo, adotaram a política. Era incrível, mas o povo assumira o poder. Os cientistas políticos e os historiadores haviam subavaliado o potencial revolucionário das massas conectadas em rede. Uma nova ordem se instalou. Não era pouca coisa. A população, frenética, comemorava. O deus-mercado não apenas se revelou, impôs-se, com suas leis, princípios e sua imoralidade absoluta, venceu a guerra da colonização dos espíritos. O planeta tornou-se uma imensa propriedade privada. Na grande praça pública, no bairro aqui ao lado, estandartes gigantes eram suspensos. Nada tinha a ver com as torcidas organizadas ou qualquer um dos seus símbolos futebolísticos. Eram grandes retratos. Rothbard, Von Mises e Olavo de Carvalho. A população havia tomado as redes e as ruas. Pela primeira vez, pasmem, despenquei-me da cama. O sonho acabou. E agora?


Marcos Vinícius.

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