Um dia desses, parado em um ponto
de ônibus, impressionado com a algazarra que faziam os torcedores em dia de
campeonato, com suas camisas coloridas, suas buzinas alucinantes, seus gritos
tresloucados, sentei-me, quase entorpecido, em meio à legião de fanáticos, que
desfraldavam as ruas, as avenidas, com suas bandeiras flamejantes e seus
escudos dourados. Um breve formigamento me percorreu por inteiro, da cabeça aos
pés, uma descarga elétrica, que levara, num súbito, as forças das pernas e o
meu bom ânimo. Mal acabara de me ajeitar no banco estreito, sob a marquise de
concreto, um rapaz envelhecido, que não aparentava a idade que tinha, pois a
vida lhe parecia cruel, com os olhos inchados, a pele precocemente enrugada e
as barbas mal feitas, sussurra ao meu lado, como se dissesse para si mesmo: Mas
que diabos. Por que essas massas afoitas, mobilizadas pelo futebol e suas
torcidas, não canalizam estas energias contidas, estas explosões não detonadas,
este cataclismo encapsulado, para a ação política e a revolução social? Olhei
para o homem, que não esperava qualquer reação, e mal sorri para ele, quando se
levantou e desapareceu. A turba de torcedores, como uma manada desnorteada, já entopia
os lotações, as esquinas, as calçadas e os bares, estava em todos os lugares,
com suas palavras de ordem, suas rimas desgastadas e seus hinos agonizantes. Os
carros estavam todos nas ruas e o fluxo era lento e eufórico. A cidade inteira é
uma torcida insone, e o ruído contínuo da multidão alvoraçada e histérica, faz-me
correr dali. Apesar de saber que nestas ocasiões, não existe abrigo seguro, os
foguetes arrebentam por dentro dos nossos miolos, as cornetas perfuram os
tímpanos, tomei o rumo de casa, pois se do barulho não há como se livrar, pelo
menos, que entre eu e eles, se interponham algumas paredes. Assim fiz. Em casa,
tomei uma ducha rápida, deitei-me e me enrolei em lençóis, colchas e
travesseiros, para que pudesse, sem abafar a mim mesmo, abafar o ruído infernal
que me embalaria madrugada adentro. Quando a escuridão total se fez, no breu
dos meus olhos fechados, o jovem velho que encontrara no ponto, voltou a
fitar-me com seu olhar fugidio. Sumiu na velocidade de um raio. Perguntei a mim
mesmo, na agitação da alma, que já queria dormir. Por que essas massas afoitas...?
Em poucos segundos, uma cantoria ritmada, com muitas vozes, mas muitas vozes
mesmo, e o som de uma banda, que fez-se a cada segundo, mais próxima e
presente, encheu todo o ambiente. As ruas cobriram-se de pétalas e flores
despedaçadas. Das janelas, as bandeiras tremulavam com o sopro do canto dos
homens, nas varandas, os estandartes arrastavam-se quase ao chão, com suas
pedras coloridas, seus fios prateados e suas letras garrafais. Serpentinas
coloridas escorriam das marquises e dos balaústres, vasos brilhantes enfeitavam
muretas e balcões. Os homens marchavam. Eram muitos, infinitos. Um sem número
deles. Eram também as mulheres. Aos milhões, ocupavam todos os espaços e
territórios, as cidades e os países, lotavam os continentes, sabe-se lá como, tomaram
também os mares, os oceanos, conquistaram o planeta, avançaram em direção ao
universo. Eram muitos. Eram todos, uma unanimidade. Era um corpo coeso.
Disciplinado. Todos eles, todas elas, um a um, uma a uma. De onde viera aquele
canto padrão, aquele gigantesco bloco monolítico, aqueles gestos sincronizados?
Em que oficinas se criaram estas vozes, em quais organizações formaram-se estas
lideranças, modelaram os discursos? Eram milhões e se multiplicaram. Estavam
muito organizados. Haviam abandonado o futebol e as torcidas, em definitivo,
adotaram a política. Era incrível, mas o povo assumira o poder. Os cientistas
políticos e os historiadores haviam subavaliado o potencial revolucionário das
massas conectadas em rede. Uma nova ordem se instalou. Não era pouca coisa. A
população, frenética, comemorava. O deus-mercado não apenas se revelou, impôs-se,
com suas leis, princípios e sua imoralidade absoluta, venceu a guerra da
colonização dos espíritos. O planeta tornou-se uma imensa propriedade privada.
Na grande praça pública, no bairro aqui ao lado, estandartes gigantes eram
suspensos. Nada tinha a ver com as torcidas organizadas ou qualquer um dos seus
símbolos futebolísticos. Eram grandes retratos. Rothbard, Von Mises e Olavo de
Carvalho. A população havia tomado as redes e as ruas. Pela primeira vez,
pasmem, despenquei-me da cama. O sonho acabou. E agora?
Marcos Vinícius.
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