quinta-feira, 2 de novembro de 2017

A boneca de Armênio


Já se passaram muitos anos desde que Armênio atingira a tão esperada maioridade e, junto dela, o primeiro emprego que iria finalmente, proporcionar-lhe a oportunidade de um salário e as primeiras aquisições com que há muito sonhara. Obviamente, não eram poucas as suas demandas e desejos de consumo em uma comunidade totalmente influenciada pela grande propaganda. Antes, porém, que qualquer outra coisa, os primeiros investimentos que faria, seriam um relógio de pulso, um paletó e uma gravata, que lhe acompanhariam, algum dia, ao casamento e ao altar. Sempre imaginou que o relógio de pulso fosse um atributo que pudesse enfim, dar-lhe ares de adulto, homem pronto, afinal, esta maquinazinha de ponteiros dourados, colada ao braço, não é coisa que carreguem as crianças e os mais jovens, alheios à lógica dos tempos contados, numéricos. Isto é coisa para os que já tornaram-se adultos, desvestiram-se das meninices e já carregam responsabilidades que a vida, inevitavelmente, proporciona. Quanto aos demais acessórios, o paletó e a gravata, vê neles, uma espécie de amuleto, um ritual de passagem que um dia o conduzirá a ser um homem completo. Afinal, como aprendera, com a totalidade da parentalha, o casamento era um pressuposto-chave, para que pudesse enfim, constituir a família. Assim fizeram seus pais, tios, primos e avós. Ele não faria diferente. Não seria ele a romper as antigas tradições que deram-lhe laços, sangue e nome. Armênio guardava bem fresca a memória deste tempo, ainda que décadas já tivessem passado, encontrar-se mais próximo da terceira idade do que da juventude e ter perdido parte das ilusões; mas ainda tinha fechado em seu guarda roupas, o  antigo relógio mecânico, analógico, o paletó e a gravata, praticamente, fora de moda. Aproximava-se a aposentadoria, mas o casamento não viera. Armênio sempre fora um namorador contumaz. Mal saía de um namoro e já metia-se em outro, as mulheres lhe proporcionam um conforto e refúgio, que tinha como imprescindíveis. Por várias ocasiões, pensou aproximar-se do matrimônio, mas não. Uma série de desencontros e oportunidades perdidas condenaram-no aos amores fugazes, passageiros. Desejos perdidos, cumplicidades despedaçadas, enganos, desenganos, infidelidades, ciúmes e incompatibilidades de toda ordem, condenaram Armênio a uma vida solitária. Mas o sonho do casamento sempre o perseguia e inquietava, proporcionando-lhe doses de mal estar, sensação de vazio e a dor da incompletude. Nesta primavera, resolvera, decididamente, fazer diferente. Sentou-se na frente do computador, e aproveitando-se da oportunidade de receber uma indenização que já aguardava há alguns anos, decidiu que iria, agora sim, se casar, não com uma das que tivera a chance de conhecer, de carne e osso, mas com uma boneca, de plástico e borracha, que o mercado agora oferecia, com qualidades e versatilidades que só mesmo a indústria é capaz de ofertar. Havia se cansado, em definitivo, de tentar compreender ou fazer-se compreendido. Sentira que o território do amor e do prazer era também o território da disputa e desavenças. Tornaram-se difíceis amarrarem em nós as relações que nunca passaram de breves, mesmo que largos laços. Armênio atirara a toalha. O dinheiro que recebera lhe permitiria adquirir uma das melhores e mais aparelhadas, com direito a uma textura semi-humana, vagina vibratória e gemido eletrônico. Não era pouca coisa. A versatilidade do material, apesar de inflável, possibilitava as mais variadas posições e uma película térmica lhe induzia o calor. Fechado o negócio, seria enfim, a hora de tirar do armário as velhas aquisições e o paletó e a gravata poderiam cumprir suas históricas e postergadas funções. O relógio seria o testemunho maior do tempo que se aguardou e do atraso que ora, se interrompia. Aquela seria uma ocasião especial. Naturalmente, por razões que são óbvias, não haveria convidados para a cerimônia, mas afora este detalhe, Armênio organizou um casamento completo. Providenciou doces e salgados, encheu a casa de flores, fitas e guirlandas. Perfumou os móveis e o apartamento inteiro transformou-se em um grande altar. Ele não se esquecera de comprar um vestido de noiva, ornado de rendas e rosas. Comprou champagnes, vinhos e taças. Enfim, a união iria se consumar. Armênio, retirou o embrulho de plástico que encobria sua esposa-mercadoria, retirou-lhe as fitas e perfumou-a inteira. Selecionou e programou o aparelho de som para tocar as músicas mais românticas que encontrara e tomou duas garrafas inteiras do seu vinho preferido. Os olhos de Armênio foguejavam. Levou a recém-esposa para o quarto. A lâmpada regulada à meia-luz. Despida a cônjuge, deita-se sobre ela, onde afoga todo o seu voluptuoso amor. Ama-a com toda intensidade que corpo e alma lhe permitiam e, com todos os pelos e poros em arrepios, sente que forças cósmicas o levam ao céu. Armênio entra em erupção, num explosivo surto de prazer. Olha bem dentro dos olhos de vidro de sua esposa de plástico. Uma descarga elétrica rasga seu peito. Levanta-se e abre a janela. Ao deitar-se de novo, abraça-a tão afoitamente, que a taça de vinho, no encosto da cama, espatifa-se em cacos. Um caco fino e cortante enfia-se na perna esquerda da boneca perfumada e ela, esvaziando-se num rasgo, rodopia pela cama, dá um salto para o alto e atira-se pela janela do quarto. Armênio senta-se no canto da cama. Não irá atrás dela e também não havia como reclamar ao fabricante.



Marcos Vinícius.

Nenhum comentário: