domingo, 28 de junho de 2009

O Rei e os ratos





O Rei e os ratos.



Já há muitos anos que era senhor absoluto por aquelas terras. Na verdade, o poder que acumulava não era fruto de apenas  uma vida ou geração, era poder que vinha de muito tempo, pois a família tinha sangue real e, em função da precariedade do serviço de registros, não se sabe dizer ao certo, há quanto tempo dominaram por ali. O reino era bem vasto, resultado de uma política expansionista agressiva, levada a cabo por várias gerações de antepassados . Sob seu comando, atingira o seu limite máximo, nunca fora tão amplas suas fronteiras. Dominava não só a região das montanhas, os planaltos, mas também a região dos lagos, as planícies, os vales e as praias. Os domínios estendiam-se por desertos e florestas. As insígnias do poder real espalhavam-se por todos os cantos, para que o rei pudesse estar em todos os lugares, onipresente, a fiscalizar a todos, a ditar-lhes as ordens, a ameaçá-los, pois de ameaças e arrogância também se faz o poder. Não havia muro, construções, monumentos, templos, prédios, que não trouxessem dependurados ou gravados os símbolos do Estado, da nação. Era preciso sempre lembrar aos homens, aos povos, quem de fato, exercia o domínio e o poder sobre eles. Era necessário também espalhar o medo, pois sem ele, dificilmente, reinos, impérios sobreviveriam ao longo dos tempos. A demonstração de força é recurso fundamental dos que desejam manter entre as mãos o cetro e, sobre os ombros, o manto real. Não há realeza que sobreviva ante súditos destemidos. Vez ou outra, punições exemplares, públicas, geralmente em praças, em centros religiosos, para que possam, também as execuções, serem atos de fé, consagrações. Os impérios se edificam não apenas sobre leis e fortalezas, pedras e pontes, mas também sobre o sangue dos homens.


Ele era particularmente impiedoso. Gostava, na maioria das vezes, de participar diretamente dos rituais de execução. Não se sabe ao certo o porquê do gosto especial que sentia nisso, mas era algo que há muito o fascinava. Talvez, fosse mesmo o momento em que mais poderoso se sentia. Afinal, era ali, mais que em qualquer outra ocasião, que se manifestava e se comprovava seu poder absoluto, pois podia trazer à morte quem desejasse, no momento em que melhor lhe conviesse. Não era ele quem dava o golpe final, mas fazia sempre questão de entregar, pessoalmente, o machado ao carrasco. Eram ritos que  considerava necessários, para que pudesse tornar-se e manter-se especial e temível diante dos olhos de seus súditos. Quando jovem, fizera vigorar por alguns anos uma lei que condenava ao degredo ou à morte quem ousasse sobre sua sombra pisar. Gostava sempre de manter-se à distância dos outros seres supostamente inferiores, mortais. Não que dispensasse os bajuladores, mas é que no fundo, sentia-se um deus, o qual de fato não poderia ser, se muito próximo aos homens estivesse.


O excesso de vaidade condenava-o a alguns vícios. Geralmente, não usava a mesma roupa mais de uma vez, o que não era um problema, uma vez que possuía inúmeras costureiras e criadas à sua disposição. Mais difícil às vezes o que sempre custava algumas vidas, era conseguir as matérias-primas, pois muitas de suas vestimentas preferidas eram costuradas com peças, tecidos, pedrarias, jóias, vindas de terras muito distantes e de difícil acesso. Fazia questão de perfurmar-se como ninguém. Havia uma grande perfumaria no palácio, onde montou uma considerável equipe de especialistas provenientes das mais diversas regiões do mundo até então conhecido. Semanalmente, banhava-se com ervas, flores, perfumes, para que a ninguém mais fosse proporcionada a graça dos mais finos aromas e cheiros. Usava pomadas, ungüentos, cremes, que retardavam o envelhecimento e proporcionavam uma pele suave, como só os reis, príncipes e princesas podiam usufruir. As roupas eram costuradas com fios de ouro. A coroa era mais bela e rica do que a de todos os outros ancestrais.


Fazia questão que as ruas e os caminhos por onde passasse fossem todos exaustivamente varridos, mais pelo ritual que lhe proporcionaria pela passagem, com centenas de homens e mulheres envolvidos na varrição, quando ia por longas caminhadas, que por uma mania ou obsessão pela limpeza. Não gostava de animais em casa e fazia questão que os tapetes fossem sempre trocados. Mas algo o irritava profundamente: Ver ratos atravessando os cômodos e dependências do palácio. Nunca o admitia. Característica que, a propósito,  herdara das gerações anteriores, pois recorda-se que já seu avô possuía verdadeiro horror aos roedores e sempre mandava seus criados persegui-los e eliminá-los. Tarefa que depois se soube inglória, pois por mais que se perseguissem os murídeos, eles estavam sempre, ainda, a cruzar-lhe os caminhos.. Já os encontrara em vários cômodos, pelos corredores e até pelos grandes jardins. Se era assim pelas entranhas do palácio, imagine quando ia o rei visitar as regiões mais distantes e pobres do seu crescente império... Essa presença animal deixava-o intrigado. Se já subjugara tantos povos, eliminara tantas aldeias e povoados, vencera tantas guerras e batalhas, por que sua dinastia não fora capaz, enfim, de eliminar os malditos ratos? Que teriam esses animaizinhos que os fazia resistir aos tempos, aos exércitos e às escaramuças? Com eles, nada podiam as armas, os venenos, as orações, as mudanças de hábito, a força, e parecia nada poder também   os deuses. Vem atravessando as gerações de homens, súditos e reis, invencíveis.


Muito o incomodava saber que, a rigor, os ratos dominavam  aquelas regiões muitos anos antes que os seus mais antigos antepassados, pois pertencem a uma estirpe animal que  soma dezenas de milhões de anos, existentes desde tempos imemoriais. São mesmo antiqüíssimos estes roedores que são aparentemente insaciáveis. Uma eternidade a roer. Vem há milhões e milhões de anos no encalço dos homens, afinal, a humanidade sempre proporcionou a eles uma grande possibilidade de sobrevivência, com seus mortos insepultos, seus lixos individuais e coletivos, sobras, restos, esgotos, sujeiras de todos os tipos. Muito do que não é bom para os homens é banquete para eles. Afinal, um sistema olfativo privilegiado deu-lhes condições, não só de escolher o que lhes é saudável entre o que perdido está, como ainda lhes proporcionar a possibilidade de escolhas, entre variadas preferências e cardápios de todos os tipos. Além do mais, têm os roedores uma invejável capacidade de adaptação aos mais diversos ambientes ou condições de vida, permitindo-lhes sobreviver, em muitas situações em que  os homens certamente morreriam.


Os grandes prejuízos que já tinham causado ao reino, desde um tempo de que já não mais se tem lembrança, foram transmitindo a todos que o trono ocupavam, ou próximo dele estivessem, uma aversão muito grande à sua presença. Perdas de colheitas, ataques aos depósitos de alimentos, silos, doenças e pestes, sempre fizeram dos ratos, ratazanas e camundongos alvos prefernciais das políticas de governo no reino. Seus antepassados fizeram todos os tipos de tentativas, todas fracassadas no longo prazo. Tipos imagináveis e inimagináveis de engenhocas foram criadas por inúmeros inventores que de todas as partes afluíam, incentivados pelo rei e por seus funcionários. Quase de tudo se tentou. Os danados sumiam, às vezes  por um largo tempo, mas retornavam depois, aos milhares, subitamente, a zombar dos inventos humanos e a desafiar o poder sagrado dos soberanos. Talvez, fosse mais por isso do que por qualquer outro motivo que o rei havia herdado uma obsessão praticamente genética, hereditária, em querer eliminá-los. Mais que uma necessidade de fato, era uma questão de honra. Um desejo de vingança que pudesse redimir os espíritos de seus ancestrais.


Quando à distância, o rei gostava de observá-los. Era um exercício. Ficava sempre a imaginar como podiam ser tão poderosos e resistentes. Não cediam. Eram como os homens, extremamente territoriais. Sobreviveram às guerras de conquista e anexação de territórios, que apesar de incorporados ao reino e de todo o aparato de segurança, fugiam ao controle dos governos. As profundezas, os subterrâneos, as frinchas dos telhados, os buracos imperceptíveis, as entranhas, os cantos, às escuras. Além do mais, se reproduziam em proporções geométricas e parecia ainda não dominar o mundo, pois não haviam vencido de todo a cruzada eterna, que se abatera sobre eles. Sim. Não podia haver esmorecimento. A impressão que tinha era que a antiga peleja que sempre tiveram que travar contra eles era condição fundamental da sobrevivência de seu poderio. Sem o ataque sistemático ao inimigo comum, dos povos e dos reis, talvez ao grande reino não houvesse sobrado nem mesmo os escombros, não só pela ação destruidora dos roedores, mas pelo que a luta contra os pequenos mamíferos não humanos pode gerar entre os que humanos são - um sentimento de identidade, além dos ressentimentos de classe. A guerra aos roedores servia, pois, como estímulo ao espírito patriótico, fortalecia o rei e ajudava a manter uma relativa ordem e paz social.


Como rei que era, não podia se descuidar deles. Então, subitamente, uma idéia lhe veio à mente. Em vez de enviar equipes profissionais, técnicos, burocratas pelo território à caça dos inimigos, por que não envolver cada súdito, a população inteira, numa guerra que afinal beneficiaria supostamente a todos? Sim. A idéia o estimulava. Seus olhos brilhavam. Quem sabe inventaria um método próprio, que mais sucesso teria do que todas as tentativas anteriores? Além de rei que era, poderia ainda, no futuro, quando neste mundo não mais estivesse, virar respeitável divindade, por haver dobrado fatalmente o inimigo que a todos sempre dobrou. Por que não havia pensado nisso antes? Os traços de seu rosto desenhavam linhas de satisfação e um sorriso rejuvenescedor agarrava-se aos cantos da boca. Os olhos estavam fulminantes. Por duas vezes passou a mão pela testa para certificar-se se um suor frio lhe escorria pela testa. Por que não havia pensado nisso antes? Claro. Pagar aos homens, a todos quantos pudesse, pelos ratos que conseguissem capturar. O reino vivia uma relativa prosperidade econômica e uma vitória como esta o levaria à consagração com que sempre sonhara: conquistar o amor ou o medo dos homens e um trono cativo pelos reinos do além. Seu rosto se iluminava.


Decretou que a partir da décima lua uma grande caçada, uma caçada coletiva, que deveria atrair não apenas um voluntário ou outro, mas multidões inteiras, se iniciaria por todas as terras do reino. Cada canto deveria ser devassado, todos os armários de todas as casas seriam abertos, revirados, os telhados seriam vasculhados, os porões iluminados, cada sombra perseguida, cada vulto inspecionado. A grande cruzada aos ratos. O estímulo seria em ouro, afinal não era pouca coisa o que estava em jogo. As famílias apresentariam às repartições oficiais o seu montante em ratos e levariam em troca, proporcionalmente ao peso, uma porção de pó de ouro. Era a promessa real. As multidões se alvoroçaram. Na verdade, não conheciam o que era o ouro, mas tinham ouvido sempre falar dele. O sonho do enriquecimento rápido mobilizou uma população inteira. Nos litorais, nos desertos, nas montanhas e florestas. No campo, nas aldeias, em todas as partes, crianças, velhos, homens, mulheres, doentes, se armavam de paus, cassetetes, venenos, armadilhas, para capturar o valioso adversário. O espírito da caça nunca seduziu a tantos. Parecia estar próxima do fim a espécie dos ratos, pavimentando à eternidade e à gloria divina a criatividade do rei, que nunca havia se sentido tão genial. Tinha a certeza da vitória, antes mesmo que a Grande Cruzada tivesse início.


Na véspera do grande dia, uma série de festividades animou o reino. O nome do rei corria de boca em boca. Todos faziam apostas, dançavam, cantavam e bebiam. Havia uma comoção nacional. Estavam felizes e ansiosos. Trocar ratos por ouro era algo em que realmente nunca haviam pensado. Mas fosse como fosse era uma oportunidade única, para que alguns mudassem seu destino. A partir do aparecimento da lua que, naquela noite, estaria a clarear o país inteiro e viria pela madrugada, começaria a campanha que poria fim a um longo capítulo da história do reino.


O rei recolheu-se aos seus aposentos. Estava feliz como nunca. O coração batia mais forte do que normalmente o fazia. Não conseguia pensar em outra coisa, além da grande guerra que estava por iniciar. Envaidecia-se. Não imaginava que pudesse ser tão criativo e genial. Sentia-se ansioso, porém. Um ligeiro formigamento percorria por todo seu corpo, como se um sangue novo, divino quem sabe, estivesse a percorrer-lhe rapidamente as veias. A sensação que sentiaera de que não era mais o mesmo e de que jamais o seria. Não se lembrava de ter vivido tão grande e satisfatória emoção. Conquistaria ele, depois de tantos anos, séculos, uma vitória que sempre parecera impossível?


Fechou a última janela do quarto, deixando a porta dos fundos entreaberta, para que a luz da lua pudesse adentrar pelo quarto, quando a grande hora chegasse. Deitou-se. Mas a sensação de formigamento se intensificava e o sono acabou por perder-se. Encostou-se na cabeceira da cama e se pôs a observar uma claridade intensa que começava a despontar por sobre os montes. Nunca havia experimentado nada igual. Sentiu uma coceira pelo corpo e os olhos ficaram um pouco embaçados, quando a luz da lua, que majestosamente se levantava, começou a clarear os objetos e móveis do quarto real. A visão prejudicada incomod-ou-o um pouco e ele resolveu ir até a janela. Mas uma sensação estranha acabou por prendê-lo à cama. Um forte cheiro de urina de rato sobiu-lhe pelas narinas. Imagina o rei que naquele momento, muitos homens, insones, já tenham saído para a guerra, que se promete vitoriosa, e que os inimigos já sentem a derrota iminente. O cheiro intenso faz o nariz arder e ao coçá-lo, estremece, pois nunca o sentiu tão frio e molhado. Terá apanhado um resfriado justamente numa noite tão importante para si? Resolve então apalpá-lo mais uma vez. Entra em pânico. O nariz, que esfregava, agora violentamente, estava terrivelmente modificado, mais pontiagudo, sentia-o pelo toque. Próximo dele, um grande bigode despontava como jamais imaginou que pudesse aparecer em um homem, que dirá em um rei. O corpo repentinamente se enche de um pelame grosso e denso. O pânico é total. Ao virar-se abruptamente para o lado uma cauda comprida e fina, embaralha-se por entre as pernas. Ao correr em busca de socorro, percebe o quão grande está a cama, e que duas outras novas pernas o ajudam a se locomover. Não compreende o que ocorreu. A voz não lhe sai, sente as orelhas enormes. Desce pelas pernas da cama e corre apressado, rente ao assoalho. Sorte ter deixado a enorme e pesada porta entreaberta, por onde atravessa. O sol já estava a pino, e a lua, muito branca, transparente, ainda resistia em deixar o céu. Uma criada do palácio, munida de um porrete, como quase todos os súditos do reino, aplica um golpe único e fatal no rato insolente que arrisca-se a andar pelos corredores reais. Naquele dia, os ratos sofreram uma perseguição implacável. Em pouco tempo, haviam desaparecido, e o rei, inexplicavelmente, também.



Marcos Vinícius.

Um comentário:

Leia Castilho disse...

Que orgulho de vc marcos Vinícios!!!!