sábado, 13 de junho de 2009

Os dias de Lúcia


Os dias de Lúcia


Exatamente às sete e meia, Lúcia entra pela porta de seu apartamento, como o faz praticamente todos os dias, de segunda a sexta-feira, sempre no mesmo horário. É uma rotina de muitos anos. É uma funcionária pontual, tanto no que diz respeito à hora da entrada, quanto da saída, mesmo porque a sua atividade profissional, o seu ofício diário, não requer horas-extras, ou permanência no local de trabalho além do horário estipulado no contrato de trabalho. O patrão é de uma família de tradição patronal, pois o avô do proprietário já era empresário à época, e ele conhece bem a legislação trabalhista, e faz questão de se organizar no sentido de evitar que seus empregados, estendam a sua jornada de trabalho diária, além do que rezam os acordos classistas, sindicais. Geralmente a funcionária sai pontualmente às seis horas da tarde, ao findar o dia, pega sempre o mesmo ônibus no mesmo ponto, no mesmo horário, motorista, e muitos dos mesmos passageiros, seus desconhecidos e eternos companheiros de viagem. No banco da frente, a mesma senhora de óculos, que faz questão de sentar sempre perto da janela, gosto pelo qual pode se dar ao luxo, por pegar o ônibus sempre no início da viagem, o senhor que vai sempre de pé, logo atrás do motorista, e o pirralho, que vai acompanhado da mãe, o qual já flagrou inúmeras vezes, colando melecas do nariz, debaixo do banco da frente. É sempre assim. Ao largar o trabalho, a primeira providência é realizar algumas ligações telefônicas para resolver assuntos pessoais, e na maioria das vezes, utiliza um telefone público, bem próximo ao ponto de ônibus. O tempo gasto nestas ligações, nunca excede os dez minutos, normalmente, é o tempo que leva para esperar sua condução. Por isto, chega, quase invariavelmente, às sete e meia em casa.



As circunstâncias da vida e algumas desilusões amorosas condenaram Lúcia à solidão. Normalmente, quando abre a porta, ao chegar, tem pressa em entrar, acender logo a luz, e ligar o som ou a TV, pois a sensação de romper o ambiente de escuro e silêncio, muito a incomoda. Suas mãos, ao largarem a maçaneta da porta, dirigem-se voluptuosas, apressadas em direção ao interruptor, como se não houvesse tempo a perder, como se o breu da sala, pudesse sombrear sua alma ou entristecer seu coração. As luzes se acendem, e quando há alguma correspondência por sob a porta, faz questão de verificar o remetente, quanto ao conteúdo, pode deixar para após o banho, a menos que seja algo que incite inevitavelmente sua pouca curiosidade. Fora isso, liga o rádio, e sem muito rigor seletivo, ou exigência musical, pois neste momento inicial, quando está a desvendar o lar, já deixado há horas, o que mais importa, é um ruído qualquer que possa preencher a sensação de vazio.



Não se sabe ao certo, se é o rigor profissional, com sua disciplina e horários, que fazem com que já em casa, Lúcia, tenha também uma rotina rígida e cronometrada, ou se ao contrário, são os hábitos domésticos, que a adequaram ao seu sistema de trabalho. Se pudéssemos colocar os dias de Lúcia, um por sobre o outro, como a película de um filme, veríamos como as mesmas tarefas e atividades sempre coincidem com os mesmos momentos e horários. É como se todo o tempo, fosse sempre o mesmo. Momentos eternizados pela repetição, como se cada passo, cada gesto, acompanhasse os mesmos tics e os mesmo tacs do relógio suntuoso do fundo do corredor que dá acesso aos quartos. Momentos que trazem a herança de ontem, e a quase certeza, do que pode vir a ser amanhã. Com algumas luzes acesas e o rádio ligado, prepara-se para o banho, pelo qual nutre um sentido quase sagrado, como se este fosse um ritual de purificação ou passagem, é quando se livra do arquétipo do trabalho, de seu padrão profissional, uniforme, quando deixa para trás o bafo das ruas, os fungos e bactérias dos assentos que precisou usar ao longo do dia.


Após um bom banho, realmente, se sente outra pessoa. E de fato, praticamente o é. A água quente e poder livrar-se das vestimentas que usou durante todo o dia, lhe proporcionam uma inigualável sensação de alívio e prazer. Após o banho se enrola na toalha e vai até a cozinha, às vezes, mesmo, até sem ter o que fazer, é um antigo hábito, como se necessitasse não só de fazer mais um reconhecimento dos cômodos do apartamento, para certificar-se que tudo estava normalmente, mais uma vez em ordem, mas também para que pudesse andar um pouco, livre das roupas escuras e pesadas que compõem seu uniforme de trabalho. Quem sabe, talvez, ainda nutrir alguma fantasia, guardada nos recônditos de seu subconsciente ou do velho lar, a lembrança de algum amor passado, o despir-se sensual, ante o amante que já não tem mais, ou quem sabe, algum belo vizinho, que possa estar a bisbilhotá-la, por sob as franjas das cortinas.


Volta mais uma vez ao banheiro. Antes de vestir a camiseta surrada, destas de se usar em casa, que sempre proporcionam um grande conforto, dá mais uma passada ao espelho. Joga os cabelos para trás, depois, repousa-os sobre os seios, para ver o quão de erotismo ainda pode tirar da sua face um pouco cansada. Apalpa os quadris, depois, suavemente, corre os dedos por sobre os seios, que se arrepiam repentinamente, suas pálpebras, chegam a abaixar, seus olhos negros, por poucas frações de minuto, parecem boiar, vagar como nau perdida em alto mar, mas o estado de semi-êxtase se rompe com a cantoria do vizinho do apartamento de cima, que normalmente, neste mesmo horário, preenche não só os espaços coletivos do condomínio, mas também dos apartamentos mais próximos com sua voz estridente de taquara rachada. Não há tesão que resista, ainda mais se tratando do mal-educado vizinho, que faz sempre questão de hostilizar suas raras intervenções ou falas nas assembléias dos moradores. O vizinho é um tormento, do qual ela adoraria poder se livrar. Pega bruscamente a camiseta, veste-a, fecha a porta do banheiro, para ver se isola um pouco o desagradável ruído e entra em seu quarto.


Abre a porta do guarda-roupa onde ficam os perfumes e cosméticos. Há uma grande variedade deles. Loção pós-banho, fragrâncias variadas, óleos, cremes, hidratantes, esfoleantes, perfumes, pomadas, formando um grande acervo de frascos, vidros, arranjos, potes, das mais variadas cores ou marcas, todos organizados sistematicamente, em seus mesmos lugares, milimetricamente posicionados. Tem dias, em que faz uso de praticamente todos eles. Não só pelos perfumes ou pelo conforto que os produtos podem lhe proporcionar, mas pela rara sensação de prazer que tem ao passá-los pelo corpo, é quase uma forma de massagem, excitamento, auto-conhecimento, um contato consigo mesmo, que a correria do dia a dia e as demandas do trabalho, quase impossibilitam. Além de ser ainda um bom exercício de vaidade, pois Lúcia se acha bela. Sente-se também, de certa forma, ungida, cidadã, na medida em que se vê como inserida no mercado de consumo, por guardar uma verdadeira coleção de marcas e nomes consagrados no mercado. Pensando bem, são muitos os seus conhecidos, ou colegas que não teriam as condições de manter um arsenal químico como os seu. Sente-se aliviada, e mesmo, privilegiada.


Após o ritual, que é repetido diariamente, de segunda a segunda, sempre ali no mesmo horário, no mesmo quarto, vai então, até a cozinha, fazer um breve lanche. Lúcia gosta de se vangloriar de comer pouco, não é quem se possa chamar de gulosa, muito antes pelo contrário, é bastante comedida em seus hábitos alimentares. Há anos mantém uma dieta bem equilibrada, evitando massas, gorduras e refrigerantes. Sempre acreditou que dessa maneira, pudesse manter a forma, e ganhar um tempinho a mais na linha da vida. À noite, quase não come, além deste pequeno lanche após o banho. Às vezes, toma um suco, um copo de leite ou achocolatado, torradas, biscoitos, pães e broas, quanto aos doces, apenas em raras ocasiões, dá-se ao prazer de degustá-los. Em raros momentos se excede no pecado capital da gula, o que normalmente ocorre, quando vai a festas de finais de ano, aniversários, na casa de amigos, ou em qualquer outra comemoração ou evento, em que não precise pagar. Não que seu salário não lhe permita manter uma alimentação saudável e satisfatória, mas sente-se orgulhosa por aproveitar bem as oportunidades de ocasião. E acredita que isto não afeta a qualidade se seu regime, por que não é lá dessas pessoas muito sociáveis, que possuem uma longa lista de amigos, para fazer dela uma freqüentadora assídua de festas, bares ou restaurantes. Os contatos sociais, fora do ambiente de trabalho, nos últimos anos, vêm se limitando mais a alguns amigos virtuais, conhecidos em sites de relacionamento, ou em salas de bate-papo, onde Lúcia perde às vezes, inúmeras horas de seu dia, principalmente às noites, nos finais de semana e feriados. É praticamente um vício. A impressão que se tem é que tanto o banho, quanto a massagem com os cremes, ou o lanche são sempre um pouco, inconscientemente acelerados, para que no final das contas, possa usufruir um tempo cada vez maior diante da tela de seu computador. Come apressadamente seus biscoitos, lava uma maçã, que não tem que necessariamente ser toda ingerida na cozinha, pode acompanhá-la pelo apartamento, e dá a última golada em seu suco, como se tempo não mais tivesse para esperar. Levanta-se de uma vez, e vai até o quarto, onde fica o PC.


Liga as tomadas, que ficam todas desplugadas em sua ausência, arranja os fios, ajeita o tapetinho do mouse, sopra um restinho de poeira por sobre o teclado, resíduos de um biscoitinho de queijo, que não resistiu em comer, na noite de ontem, coisa que normalmente não faz, pois teme danificar o equipamento, mas na noite passada não teve como evitar, pois a conversa calorosa que travou com seu namorado virtual, que diz viver na Europa, fez com que sonhos e fantasias, despertassem uma ansiedade tal, que não tinha como contê-la não fosse umas rosquinhas e uns biscoitinhos de queijo, que comprou no mercado ao lado da empresa em que trabalha, onde passa de vez em quando para comprar pães integrais ou alimentos dietéticos. Às vezes, ela própria, tão cuidadosa com seu patrimônio material, fica sem entender como pode cometer tamanho pecado ou delito. Afinal, sabe que farelos caídos por entre as teclas podem em última instância, comprometer o bom funcionamento de sua máquina. Mas a conversa ´caliente` que a absorvia, ao mesmo tempo, que despertava uma necessidade fisiológica qualquer, que acabava por descarregar no ato de comer, não permita que tirasse seus olhos vidrados, da tela do monitor de última geração que acabou de adquir. É aqui onde passa quase a totalidade de seu tempo, quando está em casa. Diante da tela. E é justamente, dentro de casa onde passa a maior parte de seu tempo, quando não está no trabalho. Nota-se que fora o trabalho, e a noite de sono, as horas gastas no computador são as que mais ocupam sua vida. Isso já há alguns anos.


Todos os dias é praticamente a mesma coisa. Aperta o botão, e ao captar o som da máquina ligada, tem a sensação de estar dando os primeiros passos para penetrar em outra dimensão, arranja a postura do corpo, como se estivesse prestes a realizar uma longínqua viagem, prepara-se, seus olhos fixam-se prontamente na tela, quando esta se ilumina. Lúcia não mais se atreve a virar para os lados. Está inerte, à abertura enfim, de sua esperada navegação pela internet. Os olhos de Lucia adquirem certo fascínio, estão brilhantes, estatelados. A luz excessiva do monitor de tela grande deixa seu rosto pálido, e os ligeiros sulcos em sua face, salientados. Mas é o momento esperado, enfim, quando poderá finalmente navegar, acariciar o pequeno mouse, bater ansiosamente seus dedos sobre o teclado, cujas letras, já começam a se apagar, o que não importa, pois seus pequenos dedos, como pequenos cérebros, memorizaram, quase sem chance de errar, a posição exata de cada letra, número, sinal, cada acento ou ponto. Locomovem-se sobre as teclas, como se fossem estas, sua antiga morada. Caminham por sobre elas, com uma desenvoltura e velocidade, que chega a impressionar. Inicia então a rotina diária, o seu plano de vôo, a sua rota de navegação traçada. Verifica sua caixa de correio, onde a maioria absoluta da correspondência é de anônimos, scraps, ou textos de auto-ajuda, de teor religioso, recheado de belas imagens, com fundo musical, feitos em Power Point. Sempre os recebe, mas dificilmente os lê até o final, mas os repassa imediatamente assim mesmo, para a maioria dos contatos de sua lista de emails. É sempre assim.


Aqui, pode-se mesmo afirmar que Lúcia perde a noção do tempo, como raramente acontece ao longo de seus dias, seja quando está no trabalho, ou dedicando-se a qualquer outra atividade fora do mundo virtual. Às vezes, se distrai a ponto de passar alguns minutos do horário que habitualmente faz questão de desligar a máquina para dirigir-se à cama. Neste aspecto, é disciplinada, pois não tolera a idéia, seja lá por que motivo for, de ver-se obrigada a reduzir o tempo de sono diário, que considera lhe ser de direito. Sabe, pela experiência dos já muitos anos que carrega às costas, que pouco tempo que subtraia ao seu sono, irá lhe trazer grandes prejuízos no dia seguinte, como uma dor de cabeça, que lhe traz uma baita mal humor, um raciocínio provavelmente um pouco mais lento, alguns esquecimentos, que considera insuportáveis, e por fim, uma sensação de mal estar, da qual sabe que poderá se safar, apenas no dia seguinte. Apesar de ficar por horas, em suas peregrinações pelas vias telemáticas, pelas páginas e links sem fim, faz questão de ser pontual, como se um último gesto de disciplina do dia, ao deitar-se e apagar as luzes do apartamento. Geralmente, nem minuto a mais, nem minuto a menos, às onze horas da noite.


Sentada diante da tela, Lúcia, vive uma contradição de sensações. Enquanto sente-se rodeada de informações e contatos, pois faz questão de se interagir com blogueiros, participar das grandes correntes de e-mails, trocar mensagens de auto-ajuda, militar em diversas comunidades de sites de relacionamentos, sente-se também, no casulo, no claustro do quarto, uma solidão arrebatadora, da qual tem a forte impressão de que não poderá se livrar, e de ser prisioneira de si mesma. Estranha sensação. Como se a vida, outro destino não tivesse que lhe apresentar. Mas evita perder-se neste tipo de pensamento, pois sabe bem o desconforto que ele lhe causa, além de lhe tomar o pouco tempo que tem para fazer o que acredita ter de ser feito todas as noites, diariamente, metodicamente, em seus poucos momentos de folga.


Lúcia recorda-se de quando se iniciou por esta saga pela internet. A princípio, gostava de coletar informações, saber dos próximos capítulos da novela, que sequer assiste, inteirar-se das fofocas dos ídolos, uma receita de bolo, a temperatura, a previsão do tempo, imagens dos lugares que pretende conhecer um dia, e daqueles que sabe que jamais conhecerá, fazer amizades, comunicar-se com os que do outro lado do mundo se encontram, em tempo real. Era o mundo a lhe abrir as portas. Mas com o tempo, os gostos e preferências de nossa personagem foram se alterando. Lúcia passava a descobrir alguns novos macetes que o uso diário das ferramentas passava a lhe proporcionar, foi adquirindo algumas habilidades, e a cada dia, novas e intrigantes descobertas. Novas idéias. Se estava mesmo sozinha em casa, e não havendo quem pudesse testemunhar a façanha, por que não poderia então, finalmente, fantasiar, fazer-se passar por quem nunca foi ou haveria de ser? Por que não falsear? Emitir opiniões, que além das suas próprias, outras muitas que nunca talvez tenha pensado, outras tantas que apesar de imaginar, nunca lhe passou pela cabeça divulgar? Por que não aproveitar então, a ocasião, vasculhar vidas alheias, devassar privacidades? Sim. Lúcia sentia-se vaidosa e dona de algum poder. Poderia, pois, conhecer de perto alguns universos pessoais, observar sem ser observado, como se de uma entidade superior se tratasse, podendo acompanhar os passos dos homens, quem os acompanha, por onde passam e o que fazem pelo caminho. E mais. Deixou de lhe bastar, com o tempo, a simples vigília, o rastreamento. A novidade e o exercício do poder tornaram-na ambiciosa. Queria testar sua criatividade e suas habilidades, alterando agora, as vidas, as realidades e contextos, dos outros.


Assim Lúcia o fez. Criou perfis e identidades falsos. Adulterou, burlou, corrompeu, aplicou pequenos golpes, tentou decifrar senhas. Copiou aqui, colou acolá. Potencializou como nunca, sua ação criadora. Sentia-se poderosa, e achava graça em poder manipular os homens, à distância, e em algumas ocasiões, e em certas medidas, alterar-lhe o destino. Afinal, pôde, invisivelmente, criar atritos entre casais, alguns novos, outros nem tão novos assim, vizinhos, parentes, conhecidos e desconhecidos, alguns embaraços no trabalho daquele cobiçado namorado da vizinha do apartamento ao lado, alguns desentendimentos entre familiares, que sempre se deram tão bem. Resolveu alterar a ordem e o aparente rumo natural das coisas. Estava vaidosa. O mundo cujas portas lhe abriam, parecia agora, entregar-lhe algumas chaves, desvendar-lhe alguns mistérios, e por fim, pousar-lhe sobre as mãos. Mas como em todas as noites, apressava-se ao se aproximar às onze horas. Era o fim do dia. Antes de desligar o computador, enfiava os dedos por entre as pernas e masturbava-se num gemido silencioso. Depois se levantava, ia até a cozinha, abria a porta do armário, e freneticamente, levava um comprimido à boca. Não se passavam quinze minutos, antes que começasse a dormir, até o dia seguinte, às seis.



Marcos Vinícius.

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