sexta-feira, 10 de julho de 2009

Drama da consciência






Drama da consciência





A ambulância para em frente ao grande portão de ferro e reduz a luz dos faróis. Um guarda, de prontidão, retira uma pesada chave da cintura, e abre rapidamente os cadeados. O portão se abre. O carro avança pela rampa de acesso e as luzes de emergência se apagam. Assim que estaciona, surgem pelo portão principal dois musculosos enfermeiros, que se dirigem imediatamente a recepcionar o doente. Ao abrirem o veículo, dois olhos enormes saltam sobre eles, e os fitam profundamente. Num primeiro momento, desconcertam-se um pouco, os profissionais. Mas como não era ocasião de se perder tempo, retiram o paciente que estava transtornado, nitidamente alucinado, do interior do veículo. Perguntam os enfermeiros pelos recônditos de suas consciências e memórias se já tinham cruzado com um olhar assim. Mesmo nunca tendo visto aquele homem antes, era óbvio que estava desfigurado. Que mal levaria consigo? Parecia ter saído de um momento de fúria. Estava amarrado. Dois vizinhos e um parente distante ajudaram a segurá-lo. Naquele momento, encontrava-se aparentemente sob controle, e já um pouco sedado pelos fortes medicamentos que lhe foram aplicados pelo caminho. Tinha a face dura. Não havia expressão, além do aspecto de quem teve que conter suas forças, em virtude de forças maiores o segurarem. Sejam os que vinham pelo interior da ambulância, seja pela segurança, que o recepcionava na chegada. O corpo estava sob domínio, mas parecia carregar um sujeito sem alma. Os olhos estavam fixos, talvez, em coisa alguma. Pareciam mirar o nada que carregava por dentro, como se mais não fosse que um infinito universo vazio, uma grande noite de silêncios e sem estrelas. As mãos estavam trêmulas e a boca ressecada. Não havia pronunciado palavra alguma. Mantinha-se amarrado.


Enquanto os acompanhantes davam a entrada em alguns papéis, é levado para a ala que passaria a ocupar. Vai andando. Não olha para os lados. Segue pelo imenso corredor, que não parece correr por seus olhos. É certo que não o vê. Mas anda como se os passos já conhecessem o destino, vai em linha reta. Observado, sem observar, não vê os outros internos, com os quais cruza pelo caminho. Ficará no quarto no final do corredor, pois mesmo entre os demais doentes poderia despertar atenções e curiosidades, pois, de fato, se trata de alguém diferente. Ainda não se sabe o que está a ocorrer. Um caso atípico, talvez.


Dois médicos avaliam o doente, que está inerte. Tem os olhos voltados para cima, não dorme, mas também não parece estar acordado. Não emite som algum. O coração bate forte. Os cabelos estão desgrenhados. Não reage às tentativas de diálogo. Os médicos, ainda sem um diagnóstico preciso, um pouco desorientados, acham mais conveniente deixá-lo amarrado. Aplicam mais uma dose de remédios, observam mais um pouco e, em seguida, dada a urgência de outros atendimentos, abandonam-no só, no quarto. Ao saírem, o homem se mexe. Parece dotado de uma força surpreendente. Num único gesto, desvincula-se das espessas cordas que atavam seus braços e mãos, como se fossem finos barbantes, e tenta se levantar. Neste momento, é tomado de um pânico violentamente incontrolável. E naquele hospital, solta as primeiras palavras, que saem engasgadas. Você de novo? O que fazes por aqui? Por que não me abandonas de vez, ó tormento? Não posso mais, responde o espectro que se acomodava por sobre a mesinha ao lado do banheiro. O doente sente todo o corpo arrepiar. Terei que acompanhá-lo, agora, para sempre. Chame-me sua consciência. Sou companheira antiga, e resolvi firmar-me de vez, em ti, por passares tanto tempo sem notar minha permanente presença. Tens longas dívidas comigo. Não pretendo deixá-lo. O doente é tomado de um pânico total. Desta vez, tenta gritar, pedir um último socorro, mas não consegue, o grito é sufocado na garganta.


 O que queres? suplica o doente. Como consciência que sou, não posso deixá-lo em grandes dívidas, principalmente, com o maior credor que tens, que sou eu própria. Afinal, já estás na idade de me dares algumas respostas. Quanto às perguntas, como agora bem sabes, tenho-as de sobra, tanto as que se referem aos casos pequenos, quantos às referentes aos de maior gravidade. Por que nunca atendeu aos meus apelos? Uma vida inteira. São tantos anos... Lembras-te de quando te corroias de inveja? Esperneei, supliquei, sacudi, gritei aos ouvidos e nada. Quando te envolveste em golpes e mentiras, fiz de mim fortaleza, para poder-te segurar. Nunca consegui te conter. Quando te esfolaste, trapaceaste, quase me dei por morta, mas consegui-me soerguer. Puxei-te pelos braços, agarrei teus cabelos, e de nada adiantou. Deve-me respostas. Sabia que um dia nos veríamos de frente.


O doente suava por todos os poros; a mão tremia e os cabelos, assim como o lençol da cama, estavam ensopados. Inquietava-se irremediavelmente. As pernas, no entanto, mantinham-se amarradas. O visitante, que grande incômodo lhe trazia, sentia-se à vontade, esticava-se sobre a mesa, sorria confortavelmente, e punha-se a falar. Falava, falava, compulsivamente, como se um mundo de palavras e intenções estivessem fadados a se libertar. Sentindo o estado de choque do paciente, a consciência resolve, então, se aproximar. Desce da mesinha e encosta-se à cama.


Algumas horas depois, um alvoroço percorre o hospital. Os médicos, todos eles, são chamados às pressas pela direção da instituição. Todos, sem exceção, os que se encontrassem no horário de repouso e os que estivessem em meio a algum atendimento, deveriam atender à emergência.. Luzes insistentes piscaram e uma eufórica correria se espalhou pelos longos corredores. Em pouco tempo, o quarto do paciente estava repleto de todos os tipos de médicos, enfermeiros, técnicos de equipamentos, especialistas de toda ordem, a burocracia, representantes do governo e autoridades policiais. Todos perplexos. Olhavam-se, uns para os outros, sem palavras com as quais pudessem se expressar. Seria um dia inesquecível para a medicina. No dia seguinte, estaria estampado nos jornais, o doente havia morrido, incrivelmente estrangulado pelas próprias mãos. Dizem que perdera a consciência de si.



Marcos Vinícius.




































































Um comentário:

Moisés Augusto Gonçalves disse...

Marcos,

gosto da sua imaginação e atrevimento. Está cada vez melhor!