quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Olá, Belchior

 


João me ligou agora há pouco. Estava feliz e eufórico. Não era para menos. Acabou de ganhar um disco com as vinte músicas mais conhecidas de Belchior. Ele diz estar maravilhado com o presente, pois, como já conhece de cor a letra de todas as músicas, coloca o som bem alto, e se põe a cantar também. Segundo ele, não há terapia melhor para aliviar o estresse e o cansaço e que, quanto mais canta, mais tem vontade de cantar, sentindo-se alegre e revigorado. Na noite passada, ouviu o disco por diversas vezes e adormeceu ouvindo o canto mágico de Bel. De repente, abriu os olhos. O dia estava claro e uma revoada de pássaros passou sobre sua cabeça, enchendo os céus de uma música afinadíssima e alegre. Ao longe, ouvia-se o ronco de alguma cachoeira. Como havia chovido quase a noite inteira e o sol despontava radiante, o verde ao redor tornara-se tão intenso, que mais parecia um cenário de sonhos. Ele caminhava sozinho por uma estreita trilha de terra, ainda húmida pela chuva da madrugada e, imediatamente, após abaixar-se para desviar-se de um tronco que se punha no caminho e colocar-se novamente de pé, quem vê à sua frente? Ninguém menos que Belchior. Surpreso, e sem entender tamanha coincidência e sorte, cumprimenta o poeta que, também andava só, porém em sentido oposto ao seu. – Bom dia. Belchior? Não acredito. Nossa, que sorte a minha. O que faz por aqui? Que felicidade em vê-lo. Agora mesmo, acabo de ganhar um belíssimo disco seu. Isto é que é presente. Belchior posta-se à sua frente, a trilha ali ainda é mais estreita, o mato se fecha, e enquanto um atravessa, o outro tem que aguardar. Belchior observa-o, silenciosamente, e não dá muita importância aos cumprimentos. João insiste - Belchior, sou o maior fã que há. Não imagina o prazer que é encontrá-lo por aqui. Está só? Pois eu também. Posso fazer-lhe companhia? Belchior encara-o, fixamente, olhos nos olhos, e diz apenas, “O passado é uma roupa que não nos serve mais”.  João, curioso, em tom amável e sem dar a passagem, responde – Amo esta sua música, como amo todas as outras também. Diga-me, Bel, para onde vai? Eu estou sem horários ou compromissos. Seria uma honra poder acompanhá-lo. “Saia do meu caminho, eu prefiro andar sozinho, deixem que eu decida a minha vida”, diz o cantor, que mostrava-se impaciente com seu interlocutor. João, sem graça, um calor abrasador lhe subia a face a ponto de enrubescê-la, resolve, porém, não desperdiçar a oportunidade do raro encontro. Desculpe-me, Belchior - ele disse, abrindo o caminho - De forma alguma traria incômodos ou inconveniências a quem só me proporcionou alegrias. Mas diga-me Bel, por onde tem andado? “Se você vier me perguntar por onde andei no tempo em que você sonhava, de olhos abertos lhe direi, amigo eu me desesperava”, responde o poeta. Mas está tudo bem com o senhor? Insiste João, tentando ser amigável. “A minha alucinação é suportar o dia-a-dia, e meu delírio é a experiência com coisas reais”, diz Belchior, que dá as costas, e segue pela trilha sem olhar para trás. Mas Belchior - implora João - permita-me apenas fazer algumas perguntinhas, por favor. Não é necessário chatear-se, diga-me apenas por onde anda e por que o mau humor? Neste instante, Belchior interrompe os passos e vira-se para ele com um sorriso amigável e diz – “Eu sinto tudo na ferida viva do meu coração”. “Meu bem, o meu lugar é onde você quer que ele seja, não quero o que a cabeça pensa, eu quero o que a alma deseja”, “Mesmo vivendo assim, não me esqueci de amar...”, “A noite fria me ensinou a amar mais o meu dia, e pela dor eu descobri o poder da alegria”. Neste instante, João é tomado de grande alegria e entusiasmo. Outra vez, uma grande revoada de pássaros enche o céu de cantorias. Um pássaro, maior que os outros, com o bico preto e afunilado, penas cinzas e peito amarelo, pousa suavemente sobre os ombros do poeta, que ainda diz – “Meu bem, talvez você possa compreender a minha solidão, o meu som e a minha fúria e essa pressa de viver”, “Aparências, nada mais, sustentaram nossas vidas que apesar de mal vividas têm ainda uma esperança de poder viver”. Belchior abre um sorriso sincero e amável para João que, tímido e desconcertado, arrisca ainda uma pergunta – O que tem feito de bom? – “Tenho ouvido muitos discos, conversado com pessoas, caminhado meu caminho”, “Amar e mudas as coisas me interessa mais”. Os dois estão em pé, um olhando para o outro. João não consegue conter-se em entusiasmos e indaga – Tem acompanhado as coisas todas que tem acontecido no Brasil? Belchior dá um sorriso sem graça, lança um olhar consternado e diz – “Tenho comigo pensado, Deus é brasileiro e anda do meu lado, e assim já não posso sofrer no ano passado”. Dá uma piscadela para João e acrescenta – “Por força deste destino, um tango argentino me vai bem melhor que um Blues”. Neste minuto, um silêncio se interpõe entre eles, quebrado apenas por um bando de andorinhas cantadoras que realizam uma coreografia sobre a cabeça dos dois. Belchior põe-se a andar. João o chama. – Belchior, há saída? – “Falaremos para a vida: vida, pisa devagar, meu coração, cuidado, é frágil”, “Você não sente nem vê, meu amigo, que uma nova mudança em breve vai acontecer” - ele responde. Belchior lhe dá um aceno em despedida, vira-se e segue pela trilha. No terceiro passo, um muro branco, caiado, aparece à margem esquerda do caminho. O poeta retira um pincel do bolso, volta-se, mais uma vez para João, as andorinhas dão-lhe uma rasante, esvoaçando sua cabeleira, e ele diz – “E a certeza que tenho coisas novas, coisas novas pra dizer”. O poeta banha o pincel em uma lata de tinta que carregava nas mãos, leva-o até a parede branca e grita para João – “Sonho e escrevo em letras grandes de novo pelos muros do país”. É o instante em que João desperta e o disco ainda tocava, era a última faixa. O fato é que João levantou-se, foi ao banheiro e correu de volta para a cama, na tentativa de retomar o sonho. Inútil. Dormiu uma noite inteira como uma pedra e ninguém mais o visitou durante o sono. Agora, me atormenta ao telefone querendo que o ajude a descobrir o que é que Belchior já ia escrever naquele muro. Tem como?

 

Marcos Vinícius.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

Raskólnikov

 


Neste ano, finalmente, pude ler Crime e Castigo, de Dostoiévski. Esta obra monumental e intrigante, tem como protagonista, Raskolnikov, um jovem estudante, que resolve assassinar uma velha agiota, e assim o faz, de forma fria e calculada. Após o assassinato brutal, Raskolnikov é assolado por um tormento tal que o adoece a ponto de, por fim, confessar a sua culpa. Ainda que na conturbada mente de um assassino confesso, o autor assoma uma dimensão ética à condição humana, onde o próprio assassino, não vê alternativas possíveis, além do sofrimento, a prisão e o castigo. Raskolnikov é uma metáfora as avessas do que se tornou uma parte do Brasil. Quais foram as barreiras éticas demolidas para que agentes do crime organizado transformem-se em símbolos de salvação nacional? Quais foram os limites que tivemos que transgredir para que autodenominados cristãos, substituam a dimensão do sagrado pela violência da pólvora? Onde perdemos a compaixão? O que terá ocorrido pelo meio do caminho para que um pedaço da sociedade brasileira eleja como mito, quem adota políticas genocidas, como recusar-se a imunizar o país, deixando uma população inteira refém de um vírus demolidor, além de desdenhar das centenas de milhares de mortes alheias? Lembra-se que as metas iniciais eram uns trinta mil? A quantas andam as contabilidades dos genocidas que nunca dormem? Onde foi que nos tornamos isto? Talvez, lá das brumas e névoas da São Petersburgo do século XIX, Raskolnikov  nos observe, atônito e assustado, de ver como por aqui, fazemos da morte, espetáculo, redenção e glória, em uma terra sem leis, onde o crime, sequer merece o castigo. E com indiferença, fria e mórbida, não enxergamos os mortos.

 

Marcos Vinícius.

sábado, 26 de dezembro de 2020

Palavra em transe

 


Não faz muito tempo, a palavra todos meteu-se em encrencas. Se alguém se dirige ao público e diz, todos aqui estão convidados ou todos os presentes deverão comparecer, logo aparecerá quem dirá que uma fala destas, traz conotações carregadas de discriminação de gênero, pois afinal, ali, estariam reunidos não apenas homens, mas também as mulheres. A partir desta descoberta, creio que é uma descoberta deste século, não são poucas as reuniões ou encontros em que agora ouvimos, todos e todas estão convidados e convidadas ou todos e todas deverão usar trajes esportivos. Não sou conhecedor das artes gramaticais, mas a primeira vista, ou aos primeiros ouvidos, a impressão que tenho, é de ser algo desnecessário, redundante, onde o discurso parece abrir-se já enfadonho e duvido mesmo que alguém que preze pelas boas literaturas assinaria um texto com esta inovação. Porém, se um dia me convencer que a nova prática poderá, de alguma forma, de fato, resolver problemas de gênero, ponho-me de acordo. Ocorre que agora, mais recentemente, a palavra todos meteu-se em encrencas ainda maiores. Como se já não bastasse o enjoado todos e todas, há agora uma nova vanguarda de militantes que resolveram que todos ou todas já não bastam, é necessário uma nova variação, e eis que surgem as expressões todes e todxs, para abarcar todos os gêneros possíveis, e só não sei ainda se a palavra todos ainda continuaria valendo. Como miséria pouca é bobagem e nisto somos especialistas, vem agora o gênio-mor-semianalfabeto, vereadore Carluxo, e apresenta na câmara municipal do Rio de janeiro, um projeto de lei proibindo “terminantemente’ o uso destas expressões inovadoras, para evitar “perversões e alterações maliciosas e progressistas” no uso da Língua, podendo, inclusive, suspender os alvarás das escolas que violarem a norma. Alguém deve ter soprado para o energúmeno, que esta dinâmica da língua é resultado de alguma conspiração comunista e aí resolve-se o problema com a ditadura da palavra, o engessamento e a perseguição, os remédios mais apropriados para conterem as perversões destes corrompidos que aprendem o português nas cartilhas impressas em Cuba, na Venezuela, sabe-se lá, na China. Além dos males todos que dividimos, nunca perdemos o hábito de criarmos outros tantos, afinal, filhos de um tempo onde tudo já parece ter sido inventado e dito, é necessário então, criarmos outras modalidades de chatices, pedantismos e autoritarismos. E neste aspecto, somos vocacionados, não é a toa que uma figura destas, que imagina ser capaz de conter a dinâmica viva da língua em um projeto de lei, sem pé nem cabeça, tenha sido o segundo mais votado para a câmara da cidade do Rio de Janeiro.

 

Marcos Vinícius.