Era 24 de abril de 1985, e eu
acabava de completar 18 anos. Naquela época, não me chocara tanto a morte do
presidente, pois, além de já ser esperada, dados os longos dias em que se
arrastou a agonia de Tancredo, já naquela época, não nutria muitas ilusões ou
expectativas em relação a um governo, advindo de uma eleição indireta, entre
apenas dois candidatos, os permitidos pelo regime, e por ser mais um dos
inúmeros pactos e acordos realizados pelos de cima, pelas elites políticas e
econômicas, para a manutenção de sua ordem e esquemas, o que é marca,
praticamente, inquebrantável da História do Brasil. Vinha eu, pela Avenida
Afonso Pena, esquina com Avenida Álvares Cabral, quando encontro um velho amigo
de escola, que não via há anos, e então, como os dois tinham algum tempo
disponível, aproveitamos a ocasião para colocarmos a conversa em dia, o que se
deu por ali mesmo, plantados, bem no cruzamento das avenidas. Por mais incrível
que hoje possa parecer, não nos lembramos, de imediato, que aquele estrondoso ruído
que se fazia ouvir ao longe, se tratasse do cortejo do presidente morto, que se
aproximava. Estávamos realmente distraídos. Porém, de uma hora para outra,
repentinamente, assim, quase do nada, uma multidão em estado de plena comoção,
veio correndo em nossa direção. Foi tudo muito rápido. Um mar de gente vinha se
formando desde o Aeroporto da Pampulha, havia percorrido toda a Avenida Antônio
Carlos, e chegava ao centro a passos rápidos, em correrias e atropelos. Era uma
onda gigantesca. Um pouco perplexos e assustados no meio daquela multidão e,
como nunca, nem eu ou ele, havíamos visto tanta gente junta, resolvemos
acompanhar aquela inigualável massa humana, e subimos a Avenida João Pinheiro,
em direção ao Palácio da Liberdade. O problema é que não dimensionávamos o
número de pessoas que se arrastavam atrás de nós, pois, pegamos o cortejo em
sua ponta inicial, o caminhão com o corpo de Tancredo, passava bem à nossa
frente. Com passos aceleradíssimos, quase correndo, subimos em meio à turba e,
confesso, que sem sequer entender, exatamente, o que fazia ali, rapidamente,
chegaríamos à Praça da Liberdade, onde já se encontrava um outro mar de gentes
à nossa espera. Havia uma corrente de energias humanas passando entre nós, que
não nos permitia desgarrarmo-nos daquele rebanho. É a partir daí, já na Praça
da Liberdade, que tem o início a parte exaustiva, quase dramática, deste
fatídico e já distante dia. Quando estávamos bem no centro da Praça,
constatamos uma realidade difícil, inusitada, não havia como enxergar os
limites, onde terminava aquele mar de corpos amontoados, que se esfregavam,
apertavam, acotovelavam, todos tendo como único destino os grandes portões do
Palácio da Liberdade, por trás dos quais, o corpo seria velado. Todos os olhos,
forças e passos, orientavam-se em um único sentido. Não havia como nos
desvencilharmos daquela imensa massa de corpos, a menos que seguíssemos todos,
no mesmo sentido. Não havia como desistir ou voltar atrás, pegar o rumo das
ruas laterais ou dirigir-se para as traseiras do Palácio, todas estavam
abarrotadas, entupidas de gente. Estávamos, literalmente, encurralados. Aquilo
tornou-se uma prisão. Confesso que foi assustador. Movíamos não mais com nossos
pés e pernas, mas, principalmente, com os ombros, aonde íamos abrindo caminhos
na aglomeração. Uma senhora idosa, mais baixa, que estava ao meu lado e pedia
ajuda, não havia como fazê-lo, não tinha como colocar os pés no chão e movia-se
arrastada. Foram momentos de agonia e aflição e só depois de muitos esfregões,
sufocos, e muito tempo, que hoje não sei dizer quanto, é que finalmente, com
muito custo, consegui me livrar dali. Não havia opções, só consegui sair depois
de transpor os portões e passar pelos jardins do Palácio. Ali me perdi do amigo
e nunca mais o vi. Não acompanhei o velório, sequer me aproximei do féretro.
Muitas pessoas passaram mal no local, portões se romperam, e por muito pouco,
ali não ocorreu uma tragédia. Foi um dia de luto nacional. E como tristeza
pouca é bobagem, assumiria, então, a Presidência, José Sarney, advindo da
Arena, partido de sustentação da Ditadura que se implantara no país em 1964, a
qual, muitos estavam ansiosos em ver o fim. Havia, na ocasião, um forte anseio
popular pela instauração de uma democracia no país. Trinta e cinco anos se
passaram e como foi rápido. É bom, vez ou outra, puxarmos os fios da memória,
esta que às vezes nos trai, mas também nos ajuda a aproximar-nos, pela
lembrança, das tragédias passadas e evitá-las à frente. Triste também é, porém,
após trinta e cinco anos de história, após tantos sonhos de democracia,
assistirmos, de Belo Horizonte, greves de professores e carnavais populares
sendo criminalizados pelos agentes do poder e, no plano nacional, milhões de
brasileiros elegendo os que defendem o fim das liberdades democráticas, o
retorno dos sombrios tempos das ditaduras, com suas práticas autoritárias,
violentas, e fortes ataques à arte, à cultura, ao conhecimento e à ciência.
Enquanto finalizo estas linhas, ouço também soar na memória, o canto de Zé
Ramalho, com o qual me despeço destas recordações: “O povo foge da
ignorância/Apesar de viver tão perto dela/E sonham com melhores tempos
idos/Contemplam essa vida numa cela/Esperam nova possibilidade/De verem esse
mundo se acabar/A Arca de Noé, o dirigível/Não voam, nem se pode flutuar”.
Marcos Vinícius, em Causos e Histórias de BH e Fotos Antigas de Belo Horizonte.