segunda-feira, 16 de maio de 2016

A entrevista



O calor da manhã, associado a uma considerável dose de nervosismo e ansiedade, fazia com que filetes frios de suor corressem sob a camisa laranja que Ermínio escolhera para aquele dia. Apesar de não fazer qualquer esforço físico naquele momento, a longa espera e a expectativa do que poderia ocorrer na entrevista que aguardava, aumentava o volume do suor salgado, que escorria quase pelo corpo inteiro e, em pouco tempo, a camisa ficara praticamente ensopada. Procurava conter-se, respirava profundamente e esforçava-se para tranquilizar seu pensamento, o que parecia ser impossível, sabia que a tensão excessiva poderia fatalmente comprometer o sucesso da sessão a que esperava submeter-se. Apanha uma folha verde caída ao chão, observa-a detidamente, alisa a textura, acompanha com a ponta dos dedos suas estrias e veias, quebra-a, dobrando-a em várias partes, arrancando-lhe o resto de seiva, que ainda guardava consigo, antes que o sol e o vento a secassem de vez. Por fim, esfrega as folhas entre os dedos, esmagando-a freneticamente, tingindo as unhas de verde e de uma gosma esbranquiçada. Por várias vezes, repete o mesmo movimento, até que folha úmida, desfigurada, transforme-se completamente em pó. Quando encontrava-se já com as mãos vazias e levava os dedos próximos das narinas para verificar o perfume que a operação lhe deixara, é surpreendido pelo sentinela que lhe anuncia a vez. Senhor, a Diretora o aguarda. Ermínio levanta-se, apesar das pernas fazerem um movimento contrário, quase o puxam para o banco novamente, mas ele mantém-se firme, de pé, e entra na sala iluminada.

As mulheres que o atenderiam ajeitavam-se em seus lugares; a terceira a sentar-se, que ocuparia a lateral direita da mesa, ainda não havia terminado de bater o ponto no equipamento eletrônico, pendurado próximo da porta de entrada, quando Ermínio senta-se na cadeira que lhe fora reservada. Enquanto aguardava o início da conversa, observava seu entorno. A mulher assentada bem ao seu lado, à esquerda, terminava de ajeitar os papéis sobre a mesa e abria uma agenda, onde certamente realizaria algumas anotações. A outra, bem à sua frente, ocupando o centro da mesa, mantinha-se imóvel, a observá-lo, discretamente. Parecia estar plantada ali há séculos, petrificada, como se tivesse o corpo de concreto, tinha a pele muito branca e os olhos fundos e roxos. Há quantos séculos permanecia naquela posição? Sua imagem confundia-se com a paisagem do fundo e Ermínio temia que seus olhos encontrassem com os dela. A última a sentar-se, após enfiar o cartão do ponto no bolso dianteiro da calça, observa-o, até o momento que ele se vira para ela. Ela mantém uma ansiedade incontrolável, parece nunca encontrar uma posição adequada na cadeira que ocupa e esfrega-se nela o tempo todo. Dobra a perna para um lado, para o outro, ajeita os óculos na face, alisa o cabelos, enrola-o, faz e desfaz uma trança, joga-o para trás e depois, ajeita-os sobre os peitos fartos, comprimidos sob a blusa branca.

Não era a primeira entrevista de emprego a que o pobre se submetia na semana. Dado o colapso da economia mundial, mal sentava-se na cadeira e já ia a levantar-se em busca de outras salas, mesas, cadeiras, diretoras, gerentes, empresas. Perdera a conta de quantas portas havia batido nos últimos quinze dias, em busca de uma oportunidade de trabalho. Mas não tinha como render-se. Insistiria, até que conseguisse, não havia qualquer possibilidade de desistência, de jogar a toalha. A mulher, à sua esquerda, anuncia que, finalmente, a entrevista teria início. É feita a primeira pergunta. Talvez, em função das repetidas tentativas, das múltiplas entrevistas e infinitas recusas a que se submetera nos últimos tempos, a voz lhe sai pesada, como presa à garganta, sofrida, cansada, mas procura responder da melhor maneira que dá conta. Não prolonga as palavras, busca objetividade e precisão, mas elas, as palavras, mesmo curtas, revelam seu espírito, acabam por colocar sobre a mesa um pedaço considerável de si. Ermírio era uma alma humilde, apesar de vestir-se com roupas limpas e bem passadas, não carregava marcas, adornos e ostentações. As peças, por exemplo, eram de tecido barato, e lembravam as de produção doméstica, caseira. Suas mãos, grossas, indicavam muitos anos de trabalho pesado, os sulcos no rosto, as rugas precoces, lhe imprimiam uma idade mais avançada do que realmente possuía. É feita a segunda pergunta. Ele mantem o tom e pausadamente, responde, espremendo o pedaço de papel, que suas mãos, quase involuntariamente, capturaram sobre a mesa. Assim que conclui esta segunda resposta, as mulheres se entreolham e, com um gesto combinado, codificado, selam a sorte de Ermínio, ele não seria contratado.

Mesmo assim, mediante um pacto silencioso, combinaram entre elas, que a agonia do candidato se prolongaria. A expressão das três, a partir daí, seria outra. A da esquerda, mexe mais uma vez os papéis e começa a rabiscar garatujas nas páginas da agenda amarela que tinha sob as mãos, a do meio, mantinha-se petrificada, sólida, com o olhar duro e congelado, medindo os gestos e o desespero do homem, que suava rios, diante de si. A esta altura, o pobre fora tomado de uma sensação de pânico, as batidas cardíacas intensificavam-se, sem que soubesse por quê; a outra, a terceira, rebolava inquieta sobre a cadeira, que chegava a arrastar-se; o cabelo, talvez de tanto que o pegava e retorcia, tinha um aspecto oleoso e engordurado, mas ela, mesma ansiosa e agitada, parecia divertir-se. Fitavam Ermínio e entreolhavam-se. Depois de trabalharem há um bom tempo juntas, aprenderam a ler os olhares, os silêncios e os gestos umas das outras. Comunicavam-se sem que o entrevistado o percebesse. Uma sensação de fraqueza e desânimo percorre o corpo de Ermínio e um golpe de cansaço faz-se sentir em cada uma de suas veias e células e a pressão arterial parece cair. Mas não tinha o direito de esmorecer, não podia. Levanta a cabeça, raspa a garganta, ajeita o colarinho e procura fugir aos olhares das inquisidoras, aventurando-se a observar os detalhes do escritório. É uma repartição burocrática, lotada de papéis, manuais, estantes, armários e dois computadores. Na parede ao fundo, um quadro grande, traz o retrato de um homem de meia idade, uma gravata cafona, cabelos grisalhos, olhos inchados e bochechas gordas, que mais lhe recordava um sapo. Certamente é o chefe. Aos pés da gravura, havia uma inscrição com um nome e título, que aquela distância, não conseguia decifrar. Observando a rápida distração do entrevistado, a inquisidora à esquerda, aumenta e endurece o tom da voz e das perguntas.

Das questões de natureza profissional, já quase esgotadas, em uma entrevista que já se estendia além do previsto e desejável, iniciam uma devassa em sua vida pessoal, privada. Está desempregado há muito tempo? Como faz para viver nestas condições? Tem filhos? Garotos, garotas, um casal? Sua esposa, se é que possui uma, também está fora do mercado de trabalho? O senhor fuma ou bebe? Mora em casa própria? A família é numerosa? É desta cidade ou forasteiro? Sabe com quantos paus se faz uma canoa? Sabe resolver equações, domina programas de computador? Prefere carne de boi ou de porco? Café ou chá? A da esquerda apoiava-se sobre os cotovelos e aproximava-se de Ermírio, mostrava-se tranquila e, não fosse a gola puída, talvez aparentasse um estilo aristocrático; era a que mais interrogava. A do meio, estátua, gélida, incompreensível, fez algumas poucas perguntas sem que, incrivelmente, abrisse a boca. Permaneceria ali, plantada, por mais mil anos. A terceira, tagarela, não falava coisa com coisa, era a que apresentava as questões mais desconexas, não as mais embaraçosas. Seus pés e mãos contorciam-se em volta de si mesma. Quando não havia mais o que perguntar, viram-se para Ermírio, exaurido, e dão a sentença final, que já traziam consigo desde os primeiros minutos da sessão interminável, ainda na segunda pergunta. Infelizmente, Senhor Ermínio, para o perfil que apresenta, nosso quadro está lotado, concluiu. Aqui estão seus documentos, lhe desejamos uma boa sorte e, quem sabe em uma próxima ocasião. Ermínio, um pouco atordoado e confuso, levanta-se, agradece e, finalmente deixa o local. Ali, certamente, nunca mais voltaria.


Não se passaram dez minutos que o pobre havia se retirado e, com um pontapé na porta, que quase desaba, fazendo as três saltarem assustadas de seus assentos, entra bufando o chefe, o do retrato na parede. Ainda que, com a cara de sapo, como havia constatado Ermínio, fedia como um porco. O cheiro de cigarro e o odor impregnado de álcool alteravam sensivelmente o ambiente da sala. As três, subitamente, murcharam. O homem dá um soco na mesa da recepção, joga um maço de papéis no colo da mais inquieta, que treme descontroladamente, passa um lenço encardido sob a bochecha gorda e suada, abre os primeiros botões da camisa e esbraveja. Mas que diabos, quantas vezes preciso dizer para não deixarem todas as lâmpadas acesas? Da próxima vez, vão as três, juntas, para o olho da rua. De cabeça baixa, caladas, retomam seus afazeres. A da esquerda faz anotações na agenda, a do meio muda os manuais de lugar, sem se mexer, a outra, em um rodopio rápido, senta-se em frente ao computador, resignadas. O chefe permaneceria ali, pelo resto do dia, onipresente, autoritário e absoluto. Um cheiro de urina e enxofre impregnava toda a atmosfera.


Marcos Vinícius.

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