quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

A quem pertence o tesouro do San José?



Em 1708, navios de guerra ingleses, em um cerco de aproximadamente noventa minutos, bombardeiam e afundam o galeão San José, que ia do Panamá à Espanha, com um carregamento de 200 toneladas de prata, ouro e pedras preciosas, avaliado, em valores atualizados, em torno de 60 bilhões de reais. Era apenas uma embarcação, dentre tantas outras, que ao longo de séculos, levavam fortunas incalculáveis, arrancadas das minas da América, para a Europa, frutos de um saque sistemático, onde eram retiradas não apenas as riquezas naturais do continente, mas a vida de populações ameríndias inteiras, sacrificadas nas guerras de conquista ou no trabalho exaustivo, escravo, realizado nas entranhas da terra, de onde eram retirados os valiosos metais. Comentavam-se à época, que foram tantas as toneladas de prata transportadas da América para a Espanha, que daria para se construir uma ponte deste precioso metal, ligando um continente a outro. A riqueza levada de uma parte do mundo para outro, resultou, séculos depois, em prosperidade para uns e miséria, morte e genocídio para outros. A prata e o ouro, que chegavam à Europa, em uma avalanche, que parecia não haver fim, possibilitaram um inédito desenvolvimento econômico, que levaria não apenas a uma grande acumulação de fortunas, como a um acelerado desenvolvimento tecnológico e industrial, que em última instância, resultou na consolidação de um sistema socioeconômico, o capitalismo, que transformaria a Europa e, posteriormente, os Estados Unidos, nas maiores potências econômicas da Terra. Em contrapartida, a exploração sistemática das colônias no ultramar, seja através do saque aos recursos naturais ou da escravização das populações nativas e africanas, levou ao desaparecimento de povos inteiros. A população nativa, da região do Caribe, onde aportou, em 1492, à época do descobrimento, Cristóvão Colombo, onde hoje está o Haiti e a República Dominicana, em fins do século XVI, havia praticamente desaparecido. Assim como no vale do México, onde florescera uma sofisticada civilização, em um período de aproximadamente cem anos, mais de vinte milhões de indivíduos, entre homens, mulheres e crianças, foram brutalmente exterminados. A colonização do continente americano, ameríndio, levada a cabo pelas expedições e forças armadas espanholas, configurou-se, o maior genocídio da história da humanidade.


Em fins de Novembro de 2015, o presidente da Colômbia, Juan Manuel Santos, anuncia que o galeão, afundado em 1708, após anos e anos de buscas infrutíferas, é finalmente descoberto pela Marinha Colombiana, nas proximidades de Cartagena. Não é de hoje que o tesouro submerso alimenta o imaginário da população local. Gabriel Garcia Márquez, prêmio Nobel de Literatura, faz referência a ele em seu romance “O amor nos tempos do cólera”. O protagonista da história, Florentino Ariza, vítima de uma paixão platônica, que duraria uma vida inteira, mas que só iria às vias de fato, em sua velhice, sonhava encontrar o tesouro para “banhar de ouro Fermina Daza”, sua amada. Em uma passagem do romance, Gabo escreve: “Aquela fortuna jacente em fundos de corais, com o cadáver do comandante flutuando adernado no posto de mando, costumava ser evocada pelos historiadores como o emblema da cidade afogada nas recordações”. Uma vez localizada a embarcação, segundo técnicos, ainda afogada em “águas profundas”, já se inicia uma disputa em torno dos direitos de propriedade. “É um patrimônio colombiano para os colombianos. Agora muitos vão se dizer donos do navio, mas pertence à Colômbia”, afirma o presidente Manuel Santos. “Trata-se de um barco de Estado, e não um navio privado. Há uma titularidade de Estado onde quer que ele esteja”, diz, em contrapartida, o chanceler espanhol, José Manuel Garcia-Margallo”. Já o presidente do Equador, Rafael Correa, teria dito ao presidente Santos, durante a cerimônia de posse do presidente argentino, Maurício Macri, que o tesouro do San José, deveria ser repartido entre todos os latino-americanos, uma vez que a fortuna é proveniente de diversos países da região, quando sob o domínio espanhol, argumento com o qual estaria de acordo o presidente do Peru, Ollanta Humala.



Em se tratando de tão grande fortuna, obviamente, a polêmica dificilmente se esgotará, inclusive, até norte-americanos, através de uma empresa privada, já teriam reivindicado sua propriedade, alegando terem contribuído para a rica descoberta, o que já foi descartado pelos tribunais competentes. Qual seria então, a forma mais apropriada para se solucionar a pendenga? A quem de fato deveria ser entregue o direito de propriedade e usufruto do tesouro descoberto? Injusto seria resolver a questão sem levar em conta o contexto histórico em que se deu o naufrágio. O afundamento se deu no dia 08 de junho de 1708, portanto, há mais de trezentos anos, e quando já se completavam duzentos e dezesseis anos da chegada das primeiras expedições europeias no continente americano, portanto, em uma época em que a empresa colonial espanhola na América já estava bem consolidada. Passados trezentos anos, não é difícil realizar um balanço da herança dessa empreitada para as populações nativas. A miséria e o subdesenvolvimento a que estão submetidas as populações da América Latina tem suas raízes mais profundas no processo de espoliação implementado pelas grandes potências estrangeiras; a princípio, pelas nações europeias, e posteriormente, após as grandes guerras mundiais, pelos EUA. Qual a região mais afetada por este domínio secular? Quais são os povos da América que mais duramente sofreram as consequências deste perverso sistema colonial? Adotando como princípio uma perspectiva de justiça histórica e uma ética humanitária, talvez o maior merecedor do tesouro recém-descoberto seja o Haiti, país mais pobre de todo o continente americano e, aparentemente condenado a uma situação de caos e miséria, como talvez não se conheça em todo o Hemisfério Ocidental. Localizado na ilha caribenha de São Domingos, onde aportou a expedição de Cristóvão Colombo, o Haiti, realizou a mais extraordinária revolução de independência de todo o continente, onde o processo revolucionário, ao contrário do viria a ocorrer nas demais colônias, esteve sob a liderança das classes populares e  ex-escravos. Primeira nação independente da América Latina, foi também a primeira do mundo a abolir a escravidão e a primeira República negra da História da Humanidade. Tamanha ousadia não seria tolerada pelas elites do Ocidente. Sob o cerco da França, se viram forçados a uma indenização de cento e cinquenta milhões de francos, dívida pesadíssima, aviltante, da qual se livraram apenas em 2010, após o terremoto que deixou um saldo de cerca de trezentos mil mortos e um milhão e meio de desabrigados. Ao longo do século XX, o país esteve sob o governo de ditadores sanguinários, fantoches do poderio norte-americano. Afinal, a punição ao Haiti, deveria ser exemplar, e as grandes elites econômicas, brancas, os donos do mundo, nunca permitiram que os haitianos voltassem a se levantar. Centenas de milhares de crianças no Haiti Contemporâneo são submetidas à condição de empregados domésticos, sem remuneração, em uma nova modalidade de escravidão, o país não tem coleta de lixo e o esgoto corre a céu aberto em todas as cidades. Metade da população não tem acesso à água potável e apenas vinte por cento dela tem acesso ao sistema de saneamento básico. Com uma sociedade predominantemente rural, onde a maioria absoluta da população vive no campo, o país importa oitenta por cento dos alimentos que consome. Esses são apenas alguns números e dados que dão uma clara demonstração da situação de penúria em que vivem os haitianos e da tragédia histórica a que estão condenados. Diante do quadro dramático, herança perversa de um passado colonial ainda vivo no cotidiano desta gente, nada mais justo, que o tesouro de Cartagena, seja destinado, se não a compensar os malefícios, o que é impossível, dadas as vidas e possibilidades já perdidas, mas a prestar algum socorro, em caráter emergencial, ao povo, praticamente esquecido, da Ilha de São Domingos. 


Marcos Vinícius.

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