quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

As flores dos sonhos de Ana. (Juvenil)




Ana era filha de camponeses, e ali naquela terra estava, desde a mais tenra idade, como a maioria dos que ali viviam. Raríssimos eram os que abandonavam aquela terrinha em busca de outros lugares; além de ser difícil a sobrevivência longe dos seus, eram pouquíssimas as ocasiões em que a Rainha permitia que seus súditos, transitassem livremente por entre os cantões do seu Estado. O Governo, as mais altas hierarquias da Corte, mantinha um controle rígido sobre a população. Desta forma, seria muito mais fácil, não apenas extrair o trabalho obrigatório, que deviam aos palácios, a totalidade dos moradores, homens e mulheres, também os velhos e as crianças, onde até o trabalho dos enfermos e acamados era exigido, mas também garantir a implacável cobrança dos impostos; aqueles que não tinham por onde saldar suas dívidas eram condenados aos mais cruéis açoites e castigos. As condições de vida daquele povo como já se pode observar, não eram muito fáceis, apesar de viverem em território muito próspero, com campos verdejantes e água em abundância, o código de leis e o sistema de governo que inventaram, fazia daquele país, um dos mais desiguais da Terra. Os amigos do rei, homens da Corte e seus familiares, funcionários graduados do Estado, através de uma política dura e injusta, destinavam a maior parte das riquezas que eram produzidas, para si próprios. O restante da população vivia de restos e sobras, a maioria, passava fome na maior parte do tempo, além de trabalharem como verdadeiros burros de carga. Nestas condições, a vida no campo era muito miserável. Apesar de produzirem muitos alimentos, dos mais variados tipos, de tudo que a terra dava, o que sobrava para a sobrevivência das famílias era sempre muito minguado. Era uma dieta tosca, que nunca saciava a fome que os ameaçava. Muito nova ainda, uma criança, Ana, que mal completara sua década de vida, já ajudava os pais com os trabalhos no campo. Além da agricultura, ajudava também a cuidar dos animais, na limpeza da casa, no preparo das refeições, no cuidado com as roupas, e com as crianças mais novas. Desde muito nova, já se dedicava aplicadamente ao trabalho. Talvez este trabalho duro, cotidiano, do qual nunca havia como escapar, tenha transformado Ana em uma grande observadora do mundo em que vivia. Conhecia cada tipo de tarefa que se realizava ali e nos arredores, desde o plantio da semente, o trabalho com o arado de madeira, até a forja e as caldeiras quentes, onde as rústicas ferramentas eram confeccionadas, dominava a técnica da produção do fio e o acabamento dos tecidos, agasalhos e cobertores. Na mata, conhecia todo tipo de frutos, raízes e ervas, as comestíveis e as curativas, na cozinha, as mais variadas receitas, que o pouco alimento de que dispunham lhe permitia fazer. Apesar de muito nova, de tudo um pouco, no que diz respeito ao mundo do trabalho, já havia feito. Havia auxiliado na caça, na pesca e na coleta de alimentos. Na confecção de roupas e até no levantamento de casas. Não foram poucas as ocasiões em que ajudou a transportar areia, pedras e madeiras para levantar casas de familiares ou vizinhos, quando não apenas mais um puxadinho. Também nos cuidados com os animais de carga, que eram os responsáveis por todo o transporte que se realizava por aquelas bandas. Ana não conhecia outro mundo, era ali onde sempre vivera e estivera; vez ou outra, mas muito raramente, o pai a levava consigo, quando tinha que visitar os mercados, que eram muito poucos, por aqueles tempos. Quando iam ao mercado, era um cavalo magro e estropiado, quem puxava a carroça, que os levava por uma viagem, que durava quase dois dias inteiros. Aborrecia-se quando seu pai não podia levá-la a uma destas viagens. Apesar de difíceis e cheias de problemas e riscos, ela as adorava. Era nestas ocasiões, longe de casa, é que tinha a oportunidade de encontrar outros mundos que não os seus, comunidades, que apesar de viverem sob o mesmo Reino, dadas as peculiaridades locais, possuíam estilos de vidas diferentes. Sempre observava que quanto mais se distanciava de sua casa, seu torrão natal, mais diferente eram os jeitos os sotaques, e os trabalhos a que os moradores se dedicavam. As moradias das regiões das montanhas diferenciavam-se das moradias das partes mais baixas, das planícies, as ferramentas das comunidades de agricultores, não eram as mesmas das aldeias de pescadores. Assim, o mundo, com sua diversidade, abria-se aos olhos sempre atentos e curiosos de Ana. Ficava bastante intrigada quando chegava aos mercados, onde se reunia todo tipo de gente, criadores, caçadores, artesãos para tudo quanto há, vendedores de tudo que a terra oferece, dos frutos mais exóticos às carnes mais macias, soldados, mercenários, autoridades e ladrões. Os mercados, normalmente próximos a grandes entroncamentos nas estradas ou às margens de grandes rios navegáveis, nas proximidades de áreas mais populosas, reuniam homens falantes, todos em busca de algum negócio, comprar, vender, trocar, trapacear, roubar, arranjar-se ou endividar-se de vez, eram as alternativas a que estavam sujeitos, todos aqueles que iam e viam dos grandes mercados da época. Quem nunca tinha prejuízos eram os homens do palácio, a Corte e a Rainha, seja através da exploração do trabalho escravo ou dos impostos que arrancava de seus súditos, a população local. Os homens da Rainha estavam por toda a parte. Soldados ferozes, prontos a cortar qualquer cabeça, cobravam toda a sorte de impostos, daqueles que transitavam pelas estradas Reais, fiscais acompanhavam os negócios, e cobravam taxas, comissões, em um jogo, onde os homens da Corte arrecadavam fortunas fabulosas, o que sempre era garantido pela presença de uma força militar ostensiva e permanente. Ana tremia da cabeça aos pés, quando, por acaso, alguns destes soldados olhavam para ela. Ela os temia. A bem da verdade, todos sempre os temiam. Aprenderam todos, desde bem novos, a temerem os desígnios da Realeza. Diante do medo, Ana indignava-se. Por que deveria temer? Possuía os olhos grandes, que visto sob certo ângulo, passava-nos a impressão, que estava a mirar todo o mundo, nada escaparia dos raios dos seus olhares. Quando lhe aparecia alguma indagação para a qual não tinha uma resposta imediata, agarrava a barra do vestido de camponesa com a ponta dos dedos e os enrolava até que dali, quem sabe, alguma resposta ligeira pudesse lhe ocorrer. Com a mesma atenção com que observava os detalhes mais próximos de si, mirava também os mistérios distantes, os cumes das montanhas, as estrelas brilhantes. Observava sempre a refletir. Por observar e pensar o mundo, seja o mais próximo, ali diante dos olhos, seja o mais longínquo, onde apenas a imaginação alcança, deixava transparecer uma inteligência precoce, que aliada a uma profunda sensibilidade perceptiva, fariam dela, uma garota sábia e especial. Normalmente, quando em viagem com o pai, observava os torrões de terra, as folhas e galhos de árvores, os cantos das aves, que nunca eram os mesmos, os aromas das flores, a forma do relevo, cada cerca, muro ou construção. Nada lhe escapava. O pai, nestas ocasiões, era de poucas palavras. Talvez ele, como a filha, estivesse também a observar os caprichos da natureza pelo caminho. Talvez apreensivo, com os perigos da estrada ou com os negócios que iria ainda realizar. Falava pouco e não deixava transparecer para a filha qualquer tipo de preocupação ou ansiedade. Ana mantinha os olhos arregalados e uma série de imagens povoava seu pensamento.



Viviam em uma aldeia, onde todos trabalhavam exaustivamente. Os do campo tinham a pele cansada, os sulcos das pálpebras, cheios de fissuras e ranhuras, onde o suor salgado, parecia estancado há uma eternidade. As mãos rachadas, queimadas, cortadas, cuidavam dos alimentos, que encheriam os silos e os grandes depósitos oficiais, os grandes celeiros da Rainha. Os pescadores tinham os olhos úmidos, a pele flácida, os dedos de escamas. Os barcos vinham apinhados de peixes, das mais variadas espécies que a vida pode conceber, mas os fiscais e homens do Palácio, não tardavam a aparecer com suas folhas de cálculos e suas armas poderosas; noventa por cento da riqueza produzida, do animal criado, do peixe pescado, da roupa tecida e do alimento preparado destinavam-se aos silos, depósitos e cofres Reais. O construtor, o artesão, o agricultor, pescador, pedreiro, tecelão, ceramista, vendedor, cozinheira, todos deviam serviços e impostos ao Governo. As águas são limpas, a mata está de pé, a fauna local é variada e riquíssima, mas os homens, observa Ana, com os olhos tristes, parecem ter perdido sua liberdade. Não lhes pertence o fruto do seu trabalho, não lhes pertence, pois, a vida que tem. Lembra-se da Rainha. Seus olhos lampejam. Sente um tremor nas mãos e um calafrio percorre cada músculo do seu corpo franzino. Tropas oficiais, montadas em cavalos robustos e brilhantes, desfilam em vários trechos da estrada. Não era raro vê-los transportando grandes jaulas, com prisioneiros, escravos, ladrões, com aqueles que ousaram contrapor-se às forças do Estado. A paisagem é sempre um desafio. Admira-se com os afazeres dos homens, os movimentos das mulheres, as brincadeiras das crianças, encanta-se com as cores das roupas, com o espelho das águas, a densidade das matas, e os sons, que as espécies nativas emitem, quando longe do burburinho das multidões. A natureza é pródiga. Por que são tristes os homens, por que a mesa é mísera? Intriga-se Ana. Como pode? Se fartas são as terras e as águas e fortes são os homens, por que a miséria é tanta? Os tributos cobrados pelo Estado eram cada vez mais altos e a população já não via mais como os pagar. Viviam uma vida miserável, e o pouco que lhes restava, era o mínimo para sobreviver. Em todas as profissões e ofícios. As carências materiais que os impossibilitavam de pagar em dia os pesados impostos, levavam-nos a um estado de penúria que, em muitas ocasiões, resultavam em escravidão ou a prisão. Vítimas destas condições, muitos caíam para não mais se levantarem. Famílias eram desfeitas, prisioneiros jamais eram libertados, homens desapareciam, levados para os trabalhos mais perigosos e arriscados que há, e vários ataques violentos eram ordenados pela Rainha, para que o povo, não se esquecesse, quem é que mandava por ali. Assim funcionavam as coisas no Reino. Ana se entristecia ao perceber, que todos naquela localidade, estavam sob o jugo da autoridade maior, daquele Estado, implacável, que não permitia desvios, que orientava, organizava, regulava, fiscalizava, explorava, reprimia, hierarquizava aquela população de camponeses, que levava uma vida inteira a produzir riquezas para a Corte. A nobreza, responsável pela administração e comando do Reino, controlava tudo o que ali se fazia. Todos os dias, grãos e frutas de todas as espécies, enchiam os palácios e as mesas das autoridades e seus familiares, que viviam em um luxo fabuloso, uma suntuosidade, como os pobres, talvez jamais tivessem visto ou imaginado, lá no canto de suas choças de barro e palha, no fundo da roça. Carnes, de todas as caças e temperos que havia no mundo, para os paladares mais sofisticados e exigentes, das esposas e filhas, daqueles que, de fato, sempre ditaram as ordens e as regras naquele país. Cremes e loções chegavam das partes mais distantes da Terra, para atender ao anseio de beleza, das que mais próximas estivessem da Rainha; joias, as mais valiosas, muito ouro, diamantes e todo o tipo de pedras preciosas, adentravam os grandes portais do Palácio, em um fluxo, que parecia não haver fim. Roupas riquíssimas, cheias de adereços e filamentos de ouro, enchiam os guarda roupas, das damas e donzelas que povoavam os círculos mais íntimos dos Palácios Reais. Perfumes chegavam dos mercados mais distantes do planeta, para perfumar o cotidiano daquelas elites governantes. Os escribas, funcionários graduados, gestores, negociantes, puxa-sacos da família Real, eram os mais abastados. A diferença de estilo de vida desta Corte faustuosa sempre fora perceptível à primeira vista. As faces, dos adultos aos mais jovens, são sempre mais rechonchudas e rosadas, carregam sempre a expressão de satisfação, de estarem bem alimentadas, e o trabalho braçal, pesado, não deixou sequelas ou cicatrizes em sua constituição física. Afora o imenso número de serviçais que os rodeiam, oferecendo todo o tipo de mimos, privilégios e bajulações. Estranho mundo, refletia Ana, e como a vida pode ser desigual. Um turbilhão de ideias e pensamentos reviravam seu espírito. Ela demonstrava uma impaciência grande em sua vontade de compreender o mundo e a natureza dos homens do seu tempo.





Foi um dia cheio de trabalho, havia ajudado a família desde cedo, na lida no campo, era um dia em que a comunidade se dedicava a colheita dos grãos, que os abasteceria de alimentos por um período razoável, mas também os deixariam completamente esfolados, dada as condições duras do trabalho nas lavouras, havia também preparado, na cozinha, junto à mãe, o almoço, ajudado a acender o fogo, a preparar as panelas, e a temperar e acompanhar toda a feitura da refeição. À tarde, ajudou a alimentar os animais e a realizar a limpeza dos currais e estábulos. Fora um dia duro, cansativo. Se já não era um trabalho fácil para os adultos, pior seria para as crianças. Quando as últimas luzes do sol arriscavam-se a se esconderem por detrás das montanhas de pedra, e a noite despontava de uma vez, com uma força hercúlea, e o planeta, dominava e escurecia, as pálpebras de Ana, pesavam sobre seus olhos, uma exaustão física, um afrouxamento dos músculos das pernas e dos braços, depois de trabalhos pesados, levavam-na a um estado de sonolência profundo. Vai até a cozinha, toma um gole rápido de chá, as pernas quase tropeçam em si mesmas ao entrar no quarto escuro, e num gesto automático, veste a camisola, ajeita lençóis e cobertores, e entrega-se a um sono profundo. Um turbilhão de sonhos, uma sucessão de imagens, fenômenos, fatos, os ocorridos e os absurdos, passam ligeiramente, como um filme, em uma espécie de tela, gravados em seu cérebro, quando está a dormir. Cenas confusas, de um segundo a outro, sucedem-se, sem qualquer conexão, em seguida, a aparição de todos os rostos que já viu um dia, todos os parentes, a família inteira, vizinhos, os mais próximos e os mais distantes, os rostos que vira pelos caminhos, quando de suas viagens aos mercados, os soldados, os mercadores, todos, os burocratas da Rainha, e ela própria, a Rainha, que sempre avistara de longe. O ritmo dos sonhos fora intenso, e um suor salgado e frio corria sobre seu corpo quente e úmido. Na terra dos sonhos, deslocara-se, repentinamente, para o meio de um grande deserto. Estranho é, que apesar de nunca ter visto um, ela estava ali, em sonho, bem ao meio de um deles. Sem saber o porquê e para onde, apenas caminhava. Em um determinado ponto, uma pedra negra, imensa e cristalina e cravada na areia quente, colocava-se em seu caminho. Enquanto Ana a apreciava e observava curiosamente, uma voz firme ecoa de dentro dela, quando Ana lhe aproxima as mãos. Ana mantem-se paralisada. Os olhos quase saltam para a fora de suas órbitas, e as pernas são tomadas de um intenso tremor, o susto fora grande. Agita-se na cama, vira-se, enrola-se firme nos cobertores, mas não acorda em momento algum. A voz, altiva e imponente, diz, Não tem do que do que se assustar, garota. Venho apenas lhe contar um segredo. Sua passagem por aqui é rápida, agora mesmo , estará de volta ao mundo, que de fato é o seu, então tenho que me apressar. Sorte sua, transitar por aqui, são tantos os caminhos por que podem percorrer os sonhos, e afinal, vieste até a mim. Não podemos desperdiçar a oportunidade e preciso ser breve, vai que de uma hora para outra vais para sempre. Não se sabe. Uma porta que se abre, o vento que sopra, um barulho na janela. Acorda-se e já era. Não é sempre que retornamos aos sonhos, quando voltamos a dormir, ainda que, vez ou outra, aconteça. Vejo que seus olhos se encantam sempre com as belezas do mundo, mas que também preocupa-se e entristece-se com as injustiças e maldades que vê. Talvez, tenha as qualidades apropriadas para levar o meu segredo. Preciso ser breve, os sonhos são sempre rápidos, por mais longos que pareçam, são efêmeros e passageiros. Preste atenção, menina. Ana ouvia perplexa, mantinha-se paralisada, apenas as mãos que havia se aproximado das pedras, haviam recuado assustadas, ela permanecia praticamente imóvel, desde quando a pedra pusera-se a pronunciar. Sabe a cachoeira, que corre do paredão enorme, atrás da terceira curva do rio, depois da grande lavoura, onde brotam sempre as flores amarelas? Ana, ainda atônita, responde afirmativamente. Um espírito de confiança toma conta de si, e ela diz, alegremente, claro que sim, não apenas esta cachoeira, mas um grande número delas, que vão se sucedendo rio acima. Desde pequena, nado em suas águas e admiro sua beleza. Maravilha, mas tenho que ser breve, o tempo do sonho é talvez tão ou mais instável que o tempo da vida real. Não o temos então, a perder. Ao lado esquerdo da cachoeira do paredão, a das flores amarelas, há um ajuntamento de pedras que se destaca fácil, caso estejamos procurando por elas, pois ao contrário do cinza claro que predomina no local, estas possuem esta mesma cor, que diante de você se apresenta. São pedras negras. Sob elas nasce uma florzinha vermelha, pequena, imperceptível para os olhos menos observadores, geralmente crescem mais ao fundo das pedras, e não se encontram em outro local. Só ali se encontraram delas, e mesmo que as tempestades, os ventos fortes a arranquem, elas sempre brotarão novamente. São flores especiais, e incrivelmente, animais do campo, pássaros e insetos, já a viram e até experimentaram dela, de seu cheiro ou sabor, mas gente mesmo, humanos, nunca se deram conta da sua existência. O que tens a fazer, não é tarefa das mais difíceis, estas, já as realiza no dia a dia. Vá até a cachoeira, apanha uma florzinha apenas, deixe outras no local, para o caso de necessidades futuras, e leve-a até o Palácio e a Rainha. Mas como? Indaga Ana. Não importa, faça-o à sua maneira, mas faça-a chegar até a Rainha. Um pequeno mosquito pousa na face descoberta de Ana e ela afasta-o com os dedos. Ele insiste e pousa sobre ela novamente. Ana acorda.


Irritada com a mosca, ela tenta acertá-la com as mãos, estapeia daqui, estapeia dali, mas o pequeno inseto lhe escapa. Observa pela fresta da janela, que o dia já começa a clarear lá fora e vai até o banheiro lavar-se, pois daqui a pouco a mãe já a acordaria, para o início dos trabalhos, que por ali, sempre começava muito cedo. Ainda absorta pela escuridão do quarto, assusta-se quando abre a porta para ir até o pequeno banheiro e a luz do dia, ilumina lhe de vez a face. Estava de frente ao espelho, observa os cabelos desgrenhados e em seguida, encara a si própria, olhos nos olhos, o que só mesmo os espelhos nos permitem, vermos dentro de nós mesmos, pela fenda do olhar. É quando repentinamente, lhe vem a memória do sonho. A voz. A pedra. Ana não pensou duas vezes, vestiu-se o mais rápido que pode, desculpou-se com a mãe, a quem mal cumprimentou, dizendo que seria breve. Que a perdoasse, mas não tinha como não fazê-lo. Depois conversariam melhor. Sem dar tempo para que a mãe lhe fizesse qualquer pergunta, atravessou rapidamente a porta. Aos saltos, foi até a cachoeira, que não era muito longe, e cujo caminho, sempre percorrera. Não foi difícil localizar o ponto indicado pela voz, pois de fato, incrível, como poderia? Havia mesmo bem ao lado esquerdo da queda d’água, um ajuntamento de pedras negras e cristalinas, que formavam uma pequena loca no paredão cinzento e gigante. Ali estavam as florezinhas vermelhas. Ana apanha uma apenas, havia cerca de duas dezenas delas, amontoadas no fundo das pedras, e como bem dissera a voz, no sonho, não era mesmo fácil encontrá-las, se não se estivesse à sua procura, pois pareciam esconder-se aos olhares, no fundo da pequena gruta de pedras escuras, úmidas e escorregadias.


Ana, porém não sabia como realizar a próxima etapa da tarefa que lhe fora atribuída. Como aproximar-se da Rainha? Seria impossível. A distância que a separa de seus súditos sempre fora enorme, não apenas em relação ao seu estilo de vida, a riqueza, o luxo e a suntuosidade em que vivia, mas estava sempre fortemente protegida, seja pelas grandes muralhas de seu Palácio, seja pelo enorme número de soldados que a rodeiam em suas aparições públicas. Além do mais, entregar-lhe qualquer objeto, produto ou mesmo uma flor, poderia ser interpretado pelas leis, que ela mesma fazia, como um ato ofensivo, o que poderia condenar-lhe a uma vida eterna nas masmorras ou mesmo a pena de morte. Como fazê-lo? De qualquer maneira, a voz do sonho, a voz das pedras, havia dito que fizesse á sua maneira, lembrou-se, e talvez nada mais pudesse fazer, que simplesmente plantar a florzinha, próximo às grandes muralhas do Palácio. Não parecia mesmo haver melhores ou mais viáveis alternativas. Talvez nem devesse arriscar-se tanto em uma ação, que sabe-se lá, que vínculo teria com seu mundo real. Mas seja lá como for, e disto não poderia se esquecer, a aparição havia acertado. As flores realmente existiam e estavam onde ela dizia estar. Ana não teve dúvidas. Percorreu trilhas e estradas, andou algumas horas, dobrou curvas, subiu e desceu montes, e por fim, pôs-se à frente do Grande Palácio, com a pequena flor, acomodada entre os dedos. Não era a primeira vez que via o Palácio, a bem da verdade, ele sempre era visto por aqueles que atravessavam o território, levados pelo comércio. Mesmo quem não passasse próximo de seus muros, o via à distância, pois por um ângulo amplo da região, suas torres, mastros e insígnias, nunca escapavam aos olhos dos viajantes. Ana já havia estado bem próxima daquelas muralhas, mas a cada vez que se aproximava, era tomada de um sentimento de pânico, de pequenez diante da grandeza dos Reinos e dos homens, aliada a um temor incontrolável que lhe causava calafrios, ao topar-se com os gigantes que faziam a sentinela. Pareciam não ter fim. Era difícil dar qualquer passo, sem ser observada, estavam em todos os lugares e tinham um rosto de pedra. À primeira vista, parecia não haver diferença entre eles. Tinham a face dura e os olhos parados. O cinza-mofo dos uniformes, onipresente, fazia dos arredores do Palácio, um território sempre descolorido e sombrio. Mas à diferença, das vindas e passagens anteriores, Ana desta vez, caminhava determinada e pensava, que diante deste desafio, que até lhe parecia simples, nada iria detê-la. E assim o fez. Arrancou uns montículos de uma terra escura e fértil que sustentava um amplo gramado, ajuntou-o a um canto daquele muro alto e longo, e ali, rapidamente, plantou a pequena flor vermelha, nascida no seio das pedras negras da cachoeira do paredão. O gesto passou praticamente despercebido pelas forças de segurança, pelas sentinelas e vigilância, pois era comum que, principalmente crianças, atrevessem-se a tocar as muralhas gigantes, dada a curiosidade ingênua que carregam, o desejo das brincadeiras ou o desafio diante do que lhe é novo. Bobagem seria, ter que abandonar o posto, mobilizar a guarda, toda vez, que uma criança tocasse o cal branco das paredes inquebrantáveis que guardavam a morada grande e os tesouros da Rainha. Mas acontecia de até mesmo as crianças, serem alvo da pontaria das armas mortíferas, que os brutamontes portavam. Bastava às vezes, que um jovem se aproximasse, e duas ou três armas pesadas eram apontadas para ele, não que disparassem sempre, mas o temor ao Governo, deveria ser incutido, semeado desde cedo, para que crianças e jovens, ao crescerem, não ousassem facilmente desafiá-lo. Assim se constituem os poderes na maior parte do mundo, e em qualquer tempo da história. Armas, o terror, ameaças, intimidações e desaparecimentos sempre são usados pelos Estados para manterem seus súditos, em estado de completa submissão. Ana não fora perturbada ao plantar sua flor. Seu gesto foi tão leve e rápido, que a vigilância sequer percebeu. Missão cumprida, volta alegre e reflexiva para casa. Afinal, para que teria feito o que fez? O sonho não lhe deixava dúvida, não havia alternativa, não deixaria de fazê-lo, mas por quê? Passados sete dias, os sonhos não voltaram a perturbá-la, mas também não havia qualquer resposta para a sua aventura. À noite, ao deitar-se, antes mesmo que houvesse se preparado de todo para dormir, uma sonolência profunda, a puxara para a cama e, mais outra vez, exausta, encosta-se sobre os travesseiros, e seus olhos, soltos nas órbitas, quase desaprumados, transitam entre o sono e a vigília. A mosca solta um zumbido lento e contínuo ao pé de seu ouvido. Ela vira-se, quase já sem o perceber, e lentamente, como um último lampejo de força que ainda lhe restava, arma uma força propulsora com os dedos, e a enxota, em definitivo, para longe do quarto.





Uma pequena tropa de mensageiros reais, montados em cavalos ricos em adornos e brasões, percorrem rapidamente as ruas de terra da aldeia, levantando atrás de si uma poeira fina, transformada em nuvem, que podia ser vista, a muitos metros de distância, e pelas cores das grandes bandeiras flamejantes, que traziam atadas às selas, era notícia de interesse para todo o Reino. Aos gritos e ao som de cornetas potentes, anunciavam que a Rainha convocava todos os súditos, do extremo norte ao extremo sul do país, para um pronunciamento histórico urgente, que faria dos portões de seu Palácio. Toda a população deveria estar presente. Inúmeros mensageiros foram enviados para percorrerem cada canto do Reino, todos seriam comunicados, e a presença era obrigatória. Doentes foram perturbados em seus leitos, agricultores estacionaram as enxadas, pescadores tiraram os anzóis das águas, as donas de casa abandonaram seus afazeres, meninos e meninas paravam as brincadeiras, até os cães e cavalos, faziam reverência à passagem da comitiva Real. Procissões de famílias, grupos grandes e menores, grupos de crianças, senhoras, idosos, uma população inteira dirigia-se para as portas do Palácio, coisa que nunca ocorrera, desde os tempos em que a memória coletiva alcança. Multidões se deslocavam rapidamente, sem entender exatamente o que ocorria ou o que os esperavam. Muitos resmungavam por terem de abandonar tarefas importantes, muitos outros se perguntavam o que pretendia o Governo, outros se preocupavam, não seria talvez mais uma de suas armadilhas, aumentar os valores dos impostos, a carga de trabalho obrigatório, endurecer os contratos de servidão? Estaria mais uma vez o Reino em guerra, e seriam todos convocados para lutarem nos campos de batalha, com os armamentos precários que normalmente são distribuídos para a maioria dos combatentes? Estavam todos apreensivos. A família de Ana, entre os parentes mais próximos e os mais distantes, formava um grupo numeroso e caminhavam praticamente juntos e estavam particularmente falantes. Havia os que conversavam sobre os assuntos do cotidiano, sobre questões menores da vida, questiúnculas familiares e outros que discutiam tanto questões filosóficas quanto questões de governança, como as perspectivas políticas postas com o esperado pronunciamento Real. O grupo também fora tomado pela ansiedade do que estava por vir. Ana parecia perdida em seus pensamentos. Não conseguia concentrar em nada que via ou ouvia. As imagens e possibilidades vinham à sua mente, embaralhadas. Não conseguia encontrar ordem no caos em que se transformaram suas ideias. Mas as imagens das pedras negras e cristalinas, as palavras do sonho e a aventura que realizou , atormentavam-na. Voltaria ao Palácio, em convocação oficial, uma semana após ser convocada a fazê-lo por uma voz saída das pedras dos sonhos. Não sabia o que pensar. O turbilhão de imagens, dúvidas e pensamentos, deixava-lhe um pouco fraca e febril. Prosseguiam.

Já havia uma pequena multidão se formando, quando Ana se aproximou do Palácio. Procurava observar a tudo e a todos. Procurava explicações na fisionomia de cada um que ali se reunia, e não encontrava sequer uma sombra de resposta. Mas ao aproximar-se um pouco mais, e deparar-se com as muralhas, praticamente entra em estado de choque. Quase metade da grande muralha havia sido tomada pelas flores vermelhas que havia plantado. Do chão, subiam para as paredes, e faziam um grande cinturão florido, que proporcionava um aspecto inédito, para aquela massa branca de cal, sempre sombria e sem cores. As mãos de Ana tremiam. Como teriam crescido tão rápido? Como uma plantinha pequena, retirada dos mapas dos sonhos, cobrira tão rapidamente os muros e os arredores do Palácio? Quando toda a área à frente dos grandes portões enchera-se de gentes, provenientes de todos os cantos do país, uma multidão curiosa, que cobria campos e montanhas, as cornetas anunciaram a chegada da Rainha. Não vinha só, quando atravessava os portões, mas acompanhada de um enorme séquito, formado por ministros, secretários, bajuladores, chefes e gerentes dos mais variados setores, parentes próximos, burocratas, escribas, enfim, uma multidão de autoridades e funcionários do Reino. Para o espanto maior de Ana, a Rainha aparecera com um toucado confeccionado com as flores vermelhas, originárias da cachoeira do paredão e das pedras negras do sonho. Após saudar a multidão, dá início ao esperado pronunciamento. De hoje em diante, dizia, com os peitos cheios e a voz firme, a Realeza não mais existirá. Esta nação se converterá em uma pátria de homens livres, e não pensem que é um ato isolado de uma rainha enlouquecida, nisso já estamos de acordo, as maiores autoridades que agora me acompanham e podem ver aqui ao meu lado. O que significa que foram abolidos, da noite para o dia, os marcos e os títulos de propriedade, a terra, este bem, de onde todos tiram trabalho e sustento, não mais pertencem ao Estado ou a pequenas elites, estas entidades, foram desmontadas. A terra é um bem comum. Fica abolido o trabalho forçado e todas as modalidades de servidão, o trabalho deverá libertar nossas forças e não mais aprisioná-las. Os impostos e taxações foram eliminados, e as obras ou bens de que necessitarmos, serão construções coletivas, organizadas em mutirões. Todos os armamentos e munições, oficiais ou particulares, deverão ser destruídas antes que o dia termine. Haverá um grande evento de destruição das armas. Este Palácio, símbolo de opressão eterna, será desmontado, pedra por pedra, e apenas as flores permanecerão. Os grandes silos, os salões Reais e os tesouros foram todos abertos, e uma última equipe de funcionários, deverá repartir entre todos, considerados um a um, toda a riqueza, que existe no que até ontem, constituía um Reino. Após a distribuição completa da riqueza que temos, esta última equipe desaparecerá e junto dela, o Palácio, o Poder Real, e tudo o que pode lembrar o Estado e as fontes de injustiça. A Rainha levanta o braço, saúda a multidão e ordena que sejam todos livres. A maquiagem borra seu rosto suado. Antes de retirar-se e dar as costas para a multidão, a Rainha, procura os olhos de Ana, fita-os e pronuncia suas últimas palavras, Não sabem o poder e a força que tem a mágica dos sonhos. Em um último gesto inesperado, abre espaço entre a multidão, aproxima-se de Ana, e sem mais uma palavra sequer, tira uma flor do seu toucado e a coloca entre os cabelos volumosos da garota, que se mantinha imóvel. As duas sorriem uma para a outra e, em direções opostas, cada uma seque seu caminho. O Palácio, em poucas horas, fora desmontado. A própria Guarda se encarregara do serviço. Os arquivos, documentos, registros, títulos, os livros com as contabilidades e as contas, foram postos à praça. A população, em júbilo, organiza-se em grupos e comissões e repartem o que é seu. As terras sempre foram prósperas e dadivosas, os campos férteis, as águas volumosas, límpidas e puras, a floresta esplendorosa, além das flores que brotavam dos sonhos. Estas espalharam-se por todas as partes, por todos os lugares, pelas margens dos rios e córregos, nos planaltos e planícies, dos pés aos topos dos montes, nos campos abertos e nos fechados, nas áreas iluminadas e nos pastos escuros, nos territórios verdejantes e nas paragens desérticas. As famílias, livres do trabalho servil, e do peso do poder Real, eram saudáveis e felizes, o alimento tornara-se farto e o tempo já lhes permitia dedicarem-se à arte, à poesia.  Aquela nação, de flores vermelhas, espalhadas dos sonhos, viveria séculos e séculos de prosperidade e Ana, dormiria em paz.



Marcos Vinícius.

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