sábado, 22 de novembro de 2014

Fala sério, presidenta!



Fala sério, presidenta!


Desde que passei a conhecer um pouco sobre a história do Brasil, sempre acreditei ser completamente impossível garantir qualquer tipo de crescimento econômico com justiça social, sem que antes se efetive uma reforma agrária, que sepulte de vez, a perversa estrutura fundiária do nosso país. A altíssima concentração de terras, institucionalizada por séculos, talvez seja, um dos principais fatores responsáveis pelo nosso subdesenvolvimento crônico, pela pobreza profunda e a escassez absoluta, marcas registradas de nossa história de longa duração. O latifúndio é a fatalidade que fez do país, do Descobrimento para cá, terras da fome. Gerações e gerações de miseráveis e famintos, sujeitos ocultos de uma história muitas vezes silenciada, são o resultado de uma política agrária que expulsou uma humanidade do campo e transformou as cidades brasileiras em réplicas de um inferno completo. Guerra urbana, violência generalizada, modernas modalidades de escravidão, poluição, falta de moradia, transporte, condições de higiene e saúde, enfim, todos os males que transformaram nossas cidades, onde se concentram mais de setenta por cento da população brasileira, em formigueiros humanos, territórios apinhados de gente, onde nos acotovelamos uns aos outros, tem suas raízes históricas mais profundas, no latifúndio, que a todos engole. Nas grandes propriedades de terra de nosso país, já conhecido por suas dimensões continentais, não cabem mais as gentes, são territórios do agronegócio, do desmatamento, do gado gordo e povo esquálido, pastagens que são países, territórios da mineração, que fazem desaparecer nossas serras, sítios arqueológicos, mananciais, infinitas modalidades de vida. Somos uma sociedade em movimento e a luta pela terra no Brasil, sempre fez um número apocalíptico de vítimas. São incontáveis os trabalhadores rurais, homens do campo, sem-teto, sem-terra, expropriados de toda ordem, que tombaram vítimas da truculência sempre muito bem armada dos grandes proprietários. Foram inúmeros os movimentos que se constituíram ao longo dos séculos na busca por justiça social, pelo direito a terra, ao trabalho, ao alimento e a um mínimo de dignidade. Inúmeros os mortos.


Não é novidade para ninguém que a ausência total de escrúpulos já faz parte, também há muito tempo, de nossa corrompida cultura política. Não é novidade alguma, que o atual governo, petista, de nossa tão vilipendiada República, é refém não é de hoje, além de si próprio e suas contradições, da sanha de fisiologismos, esquemas e negócios do PMDB. O partido, pode se dizer, é aliado antigo. É sabido que PT e PMDB, apesar dos conflitos e guerras intestinas, já se imbricaram em uma relação praticamente simbiótica. Agora, nomear a senadora Kátia Abreu para Ministra da Agricultura é escárnio, não apenas pelo que ela representa, mas pelo símbolo em que se transformou. Kátia Abreu é a representante maior da bancada ruralista no Congresso Nacional, do agronegócio, das sementes transgênicas; articuladora, porta-voz, testa de ferro, do que há de mais atrasado e perverso em nossa agenda política. Ao optar pela senadora para o controle da pasta responsável pela questão agrária, a presidenta Dilma transmite um inequívoco e lamentável sinal. Não bastasse a eleição de um dos Congressos mais reacionários das últimas décadas, a presidenta dá uma imperdoável guinada à direita, oferecendo aos movimentos populares e aos lutadores sociais, e principalmente, a muitos de seus eleitores, a ressaca de uma derrota, quiçá mais apropriada para seus adversários, recentemente abatidos nas urnas.

Marcos Vinícius.

quarta-feira, 30 de julho de 2014

Onde vamos?




Onde vamos?



Há sempre quem pergunte qual é a moral da História. Muitas das vezes, quando lemos ou ouvimos uma história qualquer, ficamos nos perguntando, o que há por trás dos fenômenos narrados, que lição o autor pretende passar, o que podemos extrair das entrelinhas, das intenções não explicitamente reveladas, que segredo, mistério ou mágica estarão nos aguardando linhas e palavras à frente? Como se cada história que se conta ou se ouve fosse sempre carregada de segundas intenções, caixas-pretas, onde se diz uma coisa, para no fundo, afirmar o seu contrário, onde se revela para esconder e se esconde para revelar. Sim, é lá na frente, no final, que tanto o autor e o observador têm que juntar todas as peças espalhadas ao longo do enredo, e chegar a um desfecho minimamente lógico ou compreensível. É lá nas linhas finais que a complexidade da história deverá se amarrar, quando o suspense estará concluído, as dúvidas dirimidas, as verdades expostas, e toda a conjuntura, real ou fictícia, atingirá sua dimensão conclusiva. Ali estará sua moral, carregada de simbologias e significados.


Poucas imagens são tão divulgadas e conhecidas como retrato da história da evolução humana, quanto aquela que traz uma sucessão de desenhos de nossos antepassados, desde os mais antigos, até nossa moderníssima espécie sapiens sapiens, em fila indiana, numa escala temporal de alguns milhões de anos. Os primeiros são antropoides primitivos, comedores de raízes, que se arrastam pelo chão; em seguida, nossos ancestrais, peludos e selvagens, vão aos poucos, deixando de curvarem-se ante as violentas forças da natureza e já encaram os inimigos de pé, com o peito aberto, e as mãos livres para a manipulação de ferramentas e armamentos rudimentares. Tem o cérebro menor, e nada mais natural que se pareçam infinitamente menos inteligentes que o homem moderno. A longa trajetória, retrato e símbolo de nossa história de longa duração, desde as mais primitivas das espécies, passando pela selvageria e barbárie, e superada a idade das trevas, parece desembocar em um resultado de redenção e glórias, onde o desenvolvimento científico e tecnológico, nos põe a frente, um futuro cada dia mais rico e promissor. Nada mais falacioso e enganador.


Apesar de conhecermos bem, após milhares de anos de história, todo o repertório de perversidades e absurdos que criamos e aperfeiçoamos ao longo de inúmeras gerações, a fome crônica, as mais devastadoras bombas e mísseis, as indústrias farmacêutica e alimentícia, que se colocam mais a serviço da morte que da vida, a constituição de territórios sem limites de miséria e escassez, a transformação dos rios em esgotos e das florestas em desertos, a criação da sub-raça humana, a genética da desnutrição, nenhum outro episódio ou imagem que nos põe à mostra, são mais reveladores do quão degenerado e corrompido é o destino de nossa espécie, quanto às que nos abarrotam a vista e estão em todo canto, do genocídio cometido por Israel contra os palestinos da faixa de Gaza. Fatalidade e absurdo. O fim de qualquer esperança que exista algum tipo de ética na civilização e no mundo que construímos. Os amontoados de crianças mortas, ensanguentadas, estripadas, os bombardeios contínuos sobre o que mais parece um campo de concentração, são as mais recentes imagens e tragédias que nossa humanidade conseguiu produzir. Difícil esconder o sangue que perturba nosso sonho e aflige nossas ilusões. Talvez a linha reta de nossa evolução nos leve ao abismo, o abismo que irresponsavelmente, deixaremos às gerações futuras. Afinal, a história, também ela, pode ser imoral.



Marcos Vinícius.

sábado, 19 de julho de 2014

A guerra, o futuro e os girassóis



A guerra, o futuro e os girassóis.



Acho que mesmo os mais otimistas terão que concordar que a segunda metade do ano de 2014 que agora se inicia, não tem nos oferecido sinais de que dias melhores virão, como muitos gostariam de acreditar. Quem consegue ver o mundo um pouco além das Copas, e a realidade que se esconde por trás da manipulação e deformação das mídias, certamente irá encontrar uma humanidade um pouco pior do que a encontramos dias atrás. O semestre se abre com episódios tragicamente perturbadores, onde as engrenagens da história apresentam-se mais como trituradores de gentes e sonhos, que como perspectiva de liberdade e redenção. Aqui em nossa colônia contemporânea, condição exposta mais às claras que nunca, com a intervenção estrangeira a que acabamos por nos submeter, com ocupação armada de territórios, muita violência e terrorismo de Estado, em função dos jogos do Mundial, uma nuvem carregada de retrocessos e arbitrariedades, paira sobre um país que se recusa a livrar-se de sua arraigada cultura ditatorial. A forte repressão que vem se abatendo sobre os movimentos populares e as prisões políticas e desaparecimentos que tem ocorrido em todo território nacional, sepulta de vez qualquer ilusão que um dia podemos ter tido de vivermos sob um sistema democrático. São bobagens que apenas os editoriais de nossa imprensa conservadora e reacionária insistem em fazer acreditar, além é claro, dos oportunistas de toda ordem. Que futuro construímos quando os jovens que se propõem a lutar por um mundo melhor, ao contrário da maioria alienada, esmagada pela propaganda e desinformação, são trancados em prisões de segurança máxima, condenados a todo tipo de torturas, e sem qualquer perspectiva de acesso aos princípios mais elementares do Estado de Direito?

O noticiário internacional da semana que se encerra também não é dos mais animadores. Além das guerras de sempre, com seus milhares de mortos, feridos e refugiados, duas fatalidades ocorridas nos últimos dias nos fazem perguntar sobre quem neste mundo pode ainda acreditar em qualquer perspectiva de um futuro de paz. Há pouco mais de dez dias, Israel vem lançando sobre a humanidade, sim, humanidade, é bom frisar, para que não nos esqueçamos, da faixa de Gaza, um bombardeio intenso e contínuo, com um saldo de cerca de trezentos palestinos mortos e dois mil feridos, na operação denominada Margem Protetora. Em 17 de julho, décimo dia da ofensiva, forças terrestres invadiram o território e, em poucas horas, aproximadamente cinquenta e oito civis foram barbaramente assassinados. As operações israelenses na faixa de Gaza, um gigantesco presídio a céu aberto, sempre fazem um número muito grande de vítimas crianças, mortas ou mutiladas, em uma região onde se apresenta uma das mais elevadas taxas de fecundidade do planeta. Mais uma vez, é de se imaginar que perspectivas futuras construímos com gerações inteiras gestadas sob o terrorismo chapa branca, o assombro e o medo. Por mais que possamos nos beneficiar do desenvolvimento científico e tecnológico dos últimos tempos, não podemos ter ilusões, as descobertas e os inventos mais sofisticados, são aplicados na indústria da guerra e da morte, talvez a mais poderosa e afortunada da história. A indústria bélica israelense, sócia-irmã da norte-americana, é uma das mais avançadas, do ponto de vista tecnológico e dos investimentos,  que se tem notícia. Os manifestantes e ativistas brasileiros, nos últimos tempos, tem tido a oportunidade de experimentar, obviamente na condição de vítimas, alguns destes novos armamentos, tão cobiçadas pela elite nacional e largamente utilizados pelas forças de repressão. O Brasil é um dos cinco maiores importadores de armas de Israel.

No mesmo dia em que as forças terroristas sionistas invadiam por terra a faixa de Gaza, um míssil russo, não se sabe ainda se lançado pelos próprios russos ou por ucranianos, pois seus armamentos são praticamente similares, derrubam um avião comercial que havia saído de Amsterdã com destino a Kuala Lumpur, Malásia, com 283 passageiros e 15 tripulantes, quando atravessava a fronteira da Ucrânia com a Rússia. O míssil que derrubou o BOEING-777, conhecido por AS-11 Gadfly, é um equipamento poderoso e sofisticadíssimo, guiado por radares, atinge uma velocidade supersônica, e uma ogiva apenas destrói facilmente um avião deste porte até a 22 mil metros de altura, em um piscar de olhos. Os corpos se espalharam pelas plantações do leste ucraniano a um raio de 15 km de extensão. Dentre as vítimas, de várias nacionalidades, dezenas delas, eram renomados cientistas e ativistas que viajavam para Melbourne, na Austrália, para participarem de uma importante conferência sobre a AIDS, a 20ª Conferência Internacional de AIDS, que se inicia no domingo, dia 20 de Julho. Um dos mortos foi o holandês Joep Lange, um dos mais importantes especialistas em HIV no mundo e pesquisava o assunto havia 30 anos. Foi um dos primeiros a defender o acesso a medicamentos contra a doença em países pobres. A médica brasileira Eliana Gutierrez, que participará da Conferência afirma que o acidente “é uma perda impossível de calcular, que pode comprometer bastante o futuro do enfrentamento da AIDS”.

Enfim, esta primeira semana do pós-Copa, com seu misto de tragédias e fatalidades, não nos permite vislumbrar ainda, o arco-íris colorido e vibrante que os mais otimistas fazem questão de pintar. Neste cenário sombrio que se configurou nos últimos dias, um elemento que se repete como gerador de infortúnios, seja aqui ou acolá, é o estrago causado pelo terrorismo de Estado. A violência policial e o Estado de Exceção que se implantou no Brasil, o genocídio que mais uma vez se inicia em Gaza e a derrubada de um avião comercial, certamente, por um exército profissional e regular, são fortes indícios e significativamente simbólicos, do quanto ainda terá que caminhar a humanidade, para se escrever uma história, minimamente feliz. Acrescentaria ainda, para fins de ilustração, duas imagens inquietantes trazidas nos jornais a respeito do acidente com o Boeing. Em uma delas, vê-se um corpo estendido em um vasto campo de girassóis, a flor-símbolo da sorte e felicidade, a outra, uma fotografia da aeronave abatida, antes da decolagem, que o holandês Cor Pan, passageiro do voo, publicou em seu Facebook, pouco antes de morrer.  Em uma referência ao avião que sumiu em 08 de março com 239 pessoas e nunca foi achado, e como mais um sintoma da crise de otimismo nos dias em que vivemos, atribuiu a seguinte legenda à fotografia, “Se ele desaparecer, é assim que ele era”.



Marcos Vinícius.

terça-feira, 10 de junho de 2014

Amor de tempestade



A primeira vista não havia nada que fizesse com que se destacasse entre a multidão de transeuntes. Não era lá um homem daqueles que chamam a atenção pela beleza, porte físico, que fazem com que os olhares, principalmente os femininos, se enverguem quando passam por elas. Ao contrário, apesar de ser dono de traços, isoladamente, bonitos, no conjunto, considerando a somatória dos atributos, a impressão que se passava talvez fosse mais de feiura, do que fonte de admirações e desejos. Vestia-se bem e carregava um ar de despreocupação. O vento forte que varria a cidade, fazendo os homens levarem as mãos aos cabelos e as mulheres segurarem as barras das saias, arrancava dele, um sorriso descomprometido, um olhar de contemplação, e uma sensação de alegria, ao sentir-se refrescado por uma lufada de ar frio. Aproveita a revigorada que a ventania lhe proporciona e aperta os passos. Talvez, apressando-se, chegue ao destino ainda seco, antes que a chuva caia e alague a cidade. Assim que se aproxima do cruzamento, um raio luminoso corta o céu e este se escurece por completo. Um ruído estrondoso faz os cidadãos taparem os ouvidos e arregalarem os olhos. As nuvens cinza-escuro, num ballet ritmado, traçam uma coreografia misteriosa por sobre a cabeça dos homens. Os que olham para o alto, admiram-se. O vento passa a soprar mais furioso e num ímpeto, varre as calçadas e levanta o pó e o lixo, cegando os que passam e fazendo tossir os mais jovens e os velhos. O cheiro de poeira, o esvoaçar dos cabelos e uma friagem úmida eram o sinal que a tempestade não tardaria.


Correr não iria, pois não valeria o esforço, suas vestimentas não eram apropriadas, a calça era um pouco pesada e o sapato novo, ainda duro, fariam seus galopes extremamente desconfortáveis. Além do mais, o que tinha a fazer, não era coisa que se demandasse muita urgência, era mais vantagem atrasar-se, do que chegar ao destino completamente desarranjado e molhado da cabeça aos pés. As primeiras gotas de chuva, grossas e frias, despencavam furiosamente dos céus, encharcando as ruas, avenidas e as paredes dos edifícios em poucos segundos. Poucos poderiam prever que as águas cairiam tão rápido.  Praticamente sem alternativas, abriga-se sob uma ampla marquise, já tomada pelos corpos que procuravam proteger-se do aguaceiro e da friagem. Acomoda-se sobre um degrau no canto da entrada de um grande edifício. Ali estaria protegido e poderia assistir, com visão privilegiada, a chuva densa que a tudo alagava, e aos murmúrios e resmungos dos que, praticamente à força das águas, tinham seus apressados passos interrompidos. Deixava-se entregue então, na falta do que fazer, aos devaneios e pensamentos. Observa todos ao redor, um a um, a fisionomia enrugada dos velhos, o rosto assustado das crianças diante dos estrondos dos trovões, a maquiagem borrada das raparigas, e as roupas ensopadas dos que chegavam por último. De sua parte, os sinais de gotas encharcadas sobre os ombros, mostrava que não se salvara por completo.


A interrupção do fluxo da cidade, a paralisia da multidão, que não arriscava desafiar a tempestade, as aglomerações sob as marquises e a enxurrada que lavava o asfalto criavam um cenário a dar uma perspectiva diferente da condição humana. E era nisto que pensava. Por minutos, observava a multidão, gentes de todas as idades, de todos os tipos, credos, religiões, tendências políticas, estavam ali, paradas, esperando, ansiosas, resignadas, sob um temporal, que ameaçava engolir a cidade.  Às vezes, as pessoas olhavam-se, desconfiadas, umas para as outras, afinal, estavam próximas demais, noutras, trocavam olhares solidários, cúmplices, eram vítimas da mesma imprevisibilidade. Se o mundo resolvesse, de uma vez, tragar a todos, engolir a humanidade, teriam todos o mesmo destino. E uma vez chegado o momento, pode até ser, que no instante final, dessem as mãos, trocassem palavras derradeiras, mas isto, não saberemos.


Certo é que já se espremiam por ali há um bom tempo, o temporal não dava sinais de que tão cedo, poderia cessar, e aos poucos, na falta de alternativas, enquanto uns mexiam e remexiam os papéis que tiravam do bolso, os liam uma vez, outra, ou apertavam freneticamente os seus aparelhos celulares, havia os que contemplavam desolados a paisagem, fitavam os céus, para ver se de lá arrancavam alguma mensagem ou entreolhavam-se para certificarem-se mais uma vez, através da observação atenta, de cada fisionomia, que os homens, de fato, não se repetem. Nada como estarmos em meio a uma multidão para percebermos quanta diferença há entre nossas semelhanças. Apesar de sermos todos, uma única espécie, ponha-nos juntos, lado a lado, aos milhares, milhões, para percebermos a infinidade de diferenças que há entre nós. É bastante criativa a mão invisível que modela cada um de nossos gestos, olhares, ângulo facial, largura e intensidade dos sorrisos, uma pequena ruga aqui, outra ali, o peso dos ossos, a força dos braços, a habilidade das mãos, o timbre da voz, tornando-nos únicos, peculiares e originais, entre nossos supostos semelhantes.


Olha para o relógio. Estava realmente atrasado, mas era bobagem desesperar-se. Seria impossível atravessar o aguaceiro. Ademais, o atraso era plenamente justificável, uma vez que, certamente, a cidade inteira estaria sob as águas. Resolvera então, não ter pressa, e estava observando um letreiro que piscava à sua frente, quando sente paralisar-se, algo o impedia de realizar qualquer movimento, sentia ser observado, fincava os pés ao chão, e não via ainda, quem, insistentemente, olhava para ele. Ainda não criara forças suficientes para voltar-se para quem o admirava. Uma timidez mórbida o impedia que encarasse a situação de frente. Raspa a garganta, enfia a mão nos bolsos, volta a conferir o relógio, passa os dedos sobre os ombros molhados e por fim, move os pés, ajeitando uma posição mais confortável, quebrando aos poucos, a rigidez dos músculos e dos ossos. Uma névoa imaginária que pousa em seus olhos, uma comichão no braço esquerdo eram o sinal de que continuava sendo contemplado. Quem estaria a encará-lo? Uma coisa tinha certeza. Era uma jovem mulher. Mas como? Não se lembrava de ocasião em que tivesse despertado atenções femininas de forma tão persistente. A bem da verdade, nunca foi de muita sorte com a mulheres, e as que passaram por sua vida, foram fruto de muita conversa e jogos de sedução, que na maioria das vezes, sempre levavam algum tempo. Nada de paixões repentinas, amores à primeira vista, maiores intimidades no primeiro encontro, entregas inesperadas. Suas conquistas, e não haviam sido muitas, eram resultado de estratégias, organização e planejamento, ou coisas arranjadas.


Respira profundamente, enche os pulmões de oxigênio, inala a umidade do ar, estufa o peito, mantem os olhos firmes e vira-se, lentamente, para o lado. Finalmente fixa os olhos que  procuravam os seus. Dois olhos negros, grandes e admirados, parecem vasculhá-lo por dentro. Mantem-se inerte. A mulher contempla-o fixamente. Era jovem e bonita, muito bonita, talvez umas das mais belas que havia visto por aí. Ele a observa em cada detalhe, completamente, e sente o corpo inteiro arrepiar-se. A mulher não tirava os olhos dele. Ele sentia o peito apertar, o coração batia forte. Uma gota d’água fria descola-se da marquise e cai sobre os ombros descobertos da jovem. Ela seca a água que já escorria com os dedos, cruza os braços trêmulos e solta um quase silencioso gemido, sem tirar os olhos dele. Ele cora. A jovem parecia-lhe cada vez mais bela, e começa a imaginar se não teria sido ela a povoar seus sonhos em alguma ocasião da vida, ou se não estaria sonhando ali, agora, quem sabe peripécias do destino, no qual apesar de não acreditar muito, talvez pudessem estar atravessando o seu caminho. Nunca havia confiado muito na sorte. Quem sabe a recompensa por acreditar-se um sujeito de bem. Talvez fosse oportunidade única. Sente-se um pouco inseguro e sem jeito. A mulher olha como quem espera. A chuva reduz a intensidade, começa a abrandar-se, um feixe luminoso abre-se por sobre os edifícios e o asfalto põe-se a brilhar. O tempo começa a abrir-se e um sorriso cúmplice se esboça na face iluminada da mulher.


Não havia tempo a perder. Daqui a pouco, a chuva pararia e não mais haveria motivos para que permanecessem ali. A forma como o fitava, não deixava dúvidas, não eram apenas olhos de curiosidade, ou de quem está a reconhecer um amigo antigo que não vê há anos. Sua fisionomia, e para percebê-lo, não há que ser um especialista, era de desejo e sedução. Não entendia bem que qualidade sua poderia despertar tanto o interesse e a atenção da mulher. Toma algum fôlego em segundos, ajeita um pouco a camisa, procura descontrair-se, ensaia um passo em sua direção e tenta já deixar articuladas, guardadas em algum canto da boca, as primeiras palavras que deveria dirigir-lhe. Ela não desvia os olhos dele. A chuva torna-se a cada instante, mais fina e rala. Ele caminha em sua direção. Por um instante, tem a sensação que as palavras vão lhe trair, dizer o que não deve ser dito, soltarem-se engasgadas ou trancarem-se no peito. Segue adiante. Quando chega bem próximo, um ligeiro tremor corre por suas pernas, como se estas, quisessem fugir de sua missão, ou ao contrário, correr em sua direção, mas certo é, que de certa forma, alteraram o ritmo dos passos. Abrindo caminho entre os que ainda se amontoavam sob a marquise, vai lentamente, aproximando-se dela. A cada passo, impressionava-se mais com a beleza da mulher. Por um segundo, pensa em desistir, deve ser algum engano, pensou. Não houve em sua vida outra ocasião em que mulher tão bela e atraente estive a observá-lo dessa maneira, em um encontro repentino e casual. Posta-se diante dela. De alguma maneira, saem raios dos olhos dos dois. Ele, meio sem jeito e quase aos atropelos, diz a ela, que adoraria conhecê-la. Ela diz que gostaria muito de conhecê-lo também, que não sabia ainda exatamente o porquê, mas que ele havia despertado nela algo de bom. A tempestade que terminava, parecia ter se transferido para dentro dele. Um trovão ensurdecedor estoura em seus peitos e aquece seu corpo inteiro, que vibra. O sangue, circulando mais veloz, deixa seu rosto e o pescoço vermelhos, e um raio de luz desponta em seus olhos admirados. A voz da mulher era excessivamente doce, suave e feminina. Os timbres de sua resposta, a cadência de suas palavras, como o vinho e o mel, deram-lhe uma sensação de encantamento ou embriaguez, da qual mal conseguia disfarçar. Mais uma vez, imaginou que esta pudesse ser a mulher que já povoara seus sonhos. Agora que ouvira sua voz, intérprete de almas, espíritos e intenções, não tinha mais dúvidas. A chuva parou. A mulher diz não poder demorar, pois, uma vez que a chuva havia cessado, deveria tentar recuperar o tempo perdido, já estava atrasada em seus afazeres. Passou o número de seu telefone, que ele rapidamente anotou em seu aparelho celular, e insistiu que ligasse. Ele põe a mão em seu cabelo e ela beija-lhe o rosto, dando-lhe um gracioso sorriso de despedida, que faz com ele, perdesse por completo, o rumo dos passos. Por pouco, não mais se recordava em que direção deveria prosseguir. Um torpor inusitado havia lhe arrebatado os sentidos.


O encontro havia sido breve, mas avassalador. Depois que ela vira de costas, deixando um rastro de perfume no ar, uma inebriante fragrância entra pelas suas narinas, ele a respira profundamente. O mundo parece revolver-se dentro de si. Pouco a pouco retoma os passos em direção ao seu destino, em uma lenta caminhada automatizada, uma trajetória programada, da qual parece ter perdido a noção ou a necessidade. A imagem da mulher continua a persegui-lo, mesmo que siga em frente, sem mais olhar para trás, ela está ali, presente, em cada rosto que surge do nada, em cada esquina ou automóvel, em cada nova multidão que se aproxima, seja nas portas dos shoppings, nas calçadas dos templos ou nos pontos de ônibus. Não consegue perdê-la de vista. Imagina porque não aproveitou melhor a oportunidade do encontro, talvez se insistisse que se demorassem um pouco mais, se tivesse feito perguntas mais apropriadas para a ocasião, ou fosse mais ousado. Talvez não, seja lá como for, ela parecia estar mesmo um pouco apressada, levava umas pastas nas mãos e tinha horários, mas o melhor, havia se interessado por ele. Que horas ligaria? Mais conveniente talvez fosse esperar a noite chegar, quando provavelmente já terá se livrado de seus afazeres e obrigações. Mas uma ansiedade crônica tomava conta de si. Havia horas ainda pela frente. Não via o momento de ouvir novamente aquela voz adocicada. Pouco dialogara com ela, mas sua presença, a forma como o olhava, os gestos suaves, o sorriso aberto, haviam lhe conquistado, definitivamente.


Mil imagens e pensamentos vinham-lhe à mente. Seria esta a mulher, que talvez, os céus haviam reservado para ele? Sempre acreditou, que dado o tamanho da humanidade, muitos certamente morrerão sem conhecer aquela parceira que provavelmente lhe caberia bem. Não que acreditasse na existência de almas gêmeas ou caras-metades, mas que dado o tamanho do mundo, impossível que não houvesse alguém, mesmo que lá pelos seus cantões mais distantes ou inacessíveis, a quem pudesse amar. Mas neste aspecto, não era lá muito otimista, e chegava a imaginar que em seu caso, fosse mais difícil que encontrar uma agulha no palheiro. Por outro lado sabia também, que as coisas não estavam de todo, perdidas. Quem sabe a sorte tenha vindo bater-lhe a porta? Apesar do pessimismo, nunca foi totalmente descrente. Acreditava que as possibilidades da vida, mesmo que muito remotas, eram sempre possibilidades, e que enquanto ainda estamos vivos, sempre pode haver alguma forma de redenção. Uma chuva fina volta a cair. Estranha sensação, mas a água, da qual não procura mais se esquivar, tem a fragrância da mulher. Ele então aperta os passos, levanta a cabeça em direção à chuva, como se quisesse tragá-la e deixa-se encharcar. Quase sem perceber, levanta os braços para o alto. Gesto pouco esperado entre os transeuntes, dado seu relativo ineditismo, muitos olham para ele. Ele vê a mulher em cada um dos rostos, todos são ela, e estão a admirá-lo. Não se faz de rogado. Prossegue com os passos firmes, daqui a pouco chegará a seu destino.


Já ofegante, depois de muito caminhar, estimulado pelo frenesi que o encontro lhe proporcionara, resolve parar sobre a ponte, que ligava as duas porções da cidade, e observar a violência das águas do rio, que corria bem sob seus pés. Impressionante como havia se enchido rapidamente, as águas revoltosas e barulhentas, estavam prestes a transbordar. As ruas laterais alagavam-se. A força das águas chicoteavam as bases e os pilares da ponte, que trepidava. Era possível sentir o roncar das águas e o tremor das estruturas de metal e concreto. Ele, já molhado por inteiro, observa tudo, atentamente, mas tremia, como que tomado de febre. Tremia muito, tremia todo. Por um minuto chegou a pensar, se era ele quem tremia com a ponte, ou se era a ponte quem tremia com ele. Sacolejando-se sobre o asfalto molhado e apoiado no parapeito da estrutura, solta um largo sorriso de felicidade. A sorte, quase inesperada, havia atravessado seu caminho. Agora sabia. Estava irremediavelmente apaixonado e a sombra da mulher estava em todos os lugares. Para certificar-se mais uma vez da sorte grande, enfia a mão no bolso, retira de lá o aparelho celular. Estava ali gravado o número para o qual mais tarde ligaria, e a depender das suas expectativas, talvez pudesse dar algum outro sentido à sua existência. Queria ver o número mais uma vez, o tesouro guardado. Com a mão ainda trêmula, leva o dedo à tela do aparelho para acionar seus comandos, mas por um pequeno descuido, imprime sobre o teclado uma força maior que a necessária para acioná-lo, e ao invés de ligá-lo, acaba por empurrá-lo para o fundo das águas. O aparelho estava perdido, e suas ilusões também. Havia sido apenas um amor de tempestade.



Marcos Vinícius.

quinta-feira, 8 de maio de 2014

Somos todos macacos?


Somos todos macacos?



Desde que me entendo por gente, e isto não faz muito tempo, entendo que nós, humanos, somos, dentre as centenas de espécies de macacos, uma das linhagens, que do ponto de vista evolutivo, foi relativamente mais bem sucedida, uma vez que ao contrário dos nossos outros parentes macacos vivos, proliferamos. Nossa espécie, que em um passado não tão remoto assim, já foi espécie rara, encontrada em apenas alguns pontos isolados no planeta, hoje é encontrada em qualquer parte da Terra, seja em ambientes paradisíacos, seja em territórios completamente inóspitos. Além do mais, na guerra genocida que travamos contra as demais espécies, fomos devastadores, muitas outras espécies talvez tenham sido extintas, antes mesmo que tivéssemos tempo de dar-lhes um nome. Criamos um modelo de civilização, onde além de parecer não cabermos todos, nós mesmos, os humanos, parece também não ter direito à vida qualquer outro ser da natureza, que de alguma forma, não esteja a nosso serviço. Estabelecemos uma relação destrutiva com nossa parentalha animal, que condena à morte, não apenas os primatas, mas o conjunto dos mamíferos, dos répteis, anfíbios, peixes e aves, dentre outros. Somos, inclusive, vítimas de nós mesmos, dadas nossas guerras fratricidas, nossa natureza bélica, nossas bombas, gases, venenos, exércitos e aparatos militares. Os chimpanzés, nossos parentes vivos mais próximos, a ponto de estudiosos considerarem a possibilidade de incluí-los no gênero Homo, dada seu grau de semelhança conosco, do ponto de vista genético, muito maior que as diferenças, são vítimas exemplares de nossa perversidade civilizatória. Sua população não apenas foi drasticamente reduzida, como a de todos os outros macacos antropoides, os mais próximos de nós, os gibões, gorilas e orangotangos, dada a implacável devastação ambiental a que submetemos o planeta, como muitos dos sobreviventes, são submetidos aos mais cruéis dos testes e exames laboratoriais. O fato de sermos muito semelhantes a eles, não significou que tenham tido qualquer tipo de vantagem ou benefício, muito antes pelo contrário, tiveram que se submeter aos experimentos mais macabros que se possa imaginar, talvez não desumanos, bem humanos mesmo, contaminando-os com todos os tipos de vírus, bactérias e doenças, condenando-os aos mais variados infortúnios, medicamentos e torturas. Recentemente, causando revolta em várias entidades defensores dos animais em geral e dos primatas e chimpanzés em particular, mudanças na legislação americana, permitiram que chimpanzés de laboratórios já velhos e aposentados, estropiados, doentes, estressados e deprimidos, voltassem aos centros de pesquisa. Hoje sabemos que os chimpanzés são muito mais inteligentes do que até há pouco tempo se ousava imaginar. Houve época que dizíamos que uma das características que diferenciavam nossa espécie das demais, era, junto ao cérebro avantajado, nossa capacidade de produzir, utilizar ferramentas e trabalhar. Hoje sabemos que os chimpanzés não apenas as utilizam também, como são capazes de transmitir às gerações mais novas, informações e conhecimento. Não é isto o que faz uma fêmea ao dar uma lição ao filhote de como quebrar um vegetal de casca dura, utilizando uma pedra como martelo e a raiz de uma árvore como bigorna? E se “macaco velho não mete a mão em cumbuca” é porque, certamente, foi submetido a algum aprendizado.


O zoólogo Desmond Morris, autor do livro “O Macaco Nu”, afirma que o homem é dentre tantas espécies de macacos e símios, o que levantou-se, ficou de pé, desenvolveu seu cérebro, criou um universo cultural extraordinário, e tornou-se o mais desprovido de pelos. Ele tem razão, e sob este prisma, somos mesmo, todos macacos. Fazer esta afirmação, no entanto, não significa aderir à campanha “Somos todos macacos”, espertamente criada pelo jogador Neymar junto a uma empresa de publicidade, transformando o racismo brasileiro em mercadoria, o ódio e a intolerância em vantajosos negócios. Diria que a atitude do jogador Daniel Alves em comer a banana que lhe foi atirada, talvez tenha sido um gesto heróico, pois não se intimidou diante da agressão e de certa forma, ridicularizou o agressor. Já a campanha publicitária que veio daí, onde um bando de humanos, perdoe-me, mas imbecis, dão suas caras às redes sociais, com uma banana enfiada na boca, afirmando serem todos macacos, talvez seja um dos exemplos mais exponenciais de nossa degradação moral, enquanto humanos que somos. Afirmarmos que somos macacos, nesta perspectiva mercantil e degradante, em uma sociedade conservadora como a nossa, onde muitos indivíduos, inclusive jovens, vítimas da falta de informação ou do fundamentalismo religioso, sequer dão fé à teoria da evolução, pois se consideram de natureza superior, jamais comparável aos toscos animais, serve mais para reafirmar o que dizem combater, do que falar sobre a realidade da vida. Fotografar-se com uma banana à boca, ao contrário de significar um rechaço ao racismo, reforça-o, na medida em que reduz a condição humana ao lugar do ridículo. Somos mais do que comedores de bananas. Entre nós e os outros macacos do mundo, existem semelhanças, mas existem também diferenças, que sabemos não serem poucas. Se dissermos que somos todos macacos significa dizer, veja como somos bonzinhos e solidários, topamos até nos rebaixarmos, abrirmos mãos de nossa humanidade, para ficarmos iguais a eles, negros e macacos, e é isto que parece significar, esta campanha então, merece ser repudiada. Se a campanha é um estrago, do ponto de vista dos humanos, onde se viu até gente de boa fé, “pagando o mico”, acredito que os macacos, caso fossem capazes de decifrarem a linguagem que usamos, certamente iriam também repudiá-la. Não acredito que sejamos motivo de orgulho para eles. Parecidos conosco e vencidos na relação que estabelecemos entre as espécies, jamais poderemos acusá-los de degradação moral. Talvez seja a diferença que recoloca em seu lugar o “cada macaco no seu galho”. Somos todos humanos e também, como nos prova a ocasião, de futilidade incomparável.




Marcos Vinicius.

domingo, 19 de janeiro de 2014

Nós e os Pit Bulls



Vemos praias belíssimas, paraísos terrestres, que são tomadas de assalto, cercadas, e infestadas de Pit Bulls, mesmo que vazias de coisas ou gentes. Os ferozes cães tornam-se, assim, símbolos sanguinolentos da propriedade privada. Se são temíveis esses animais por sua capacidade de atacar e arrancar pedaços, pois assim a natureza os fez, o que diremos de nossa espécie, que deliberadamente, os colocam ali, para que façam uso, contra quem quer que seja, justamente, do que mais tememos neles, que é sua índole carniceira. Há quem se ofenda quando falamos de nossa condição animal, pois nossa humanidade seria algo mais nobre e refinado, mesmo que usemos garras e dentes, ainda que alheias, para trucidar, escalpelar, quem por ventura, ouse cruzar o caminho de nossas ambições e vaidades.



Marcos Vinícius.