A primeira vista não havia nada
que fizesse com que se destacasse entre a multidão de transeuntes. Não era lá
um homem daqueles que chamam a atenção pela beleza, porte físico, que fazem com
que os olhares, principalmente os femininos, se enverguem quando passam por
elas. Ao contrário, apesar de ser dono de traços, isoladamente, bonitos, no
conjunto, considerando a somatória dos atributos, a impressão que se passava
talvez fosse mais de feiura, do que fonte de admirações e desejos. Vestia-se
bem e carregava um ar de despreocupação. O vento forte que varria a cidade,
fazendo os homens levarem as mãos aos cabelos e as mulheres segurarem as barras
das saias, arrancava dele, um sorriso descomprometido, um olhar de
contemplação, e uma sensação de alegria, ao sentir-se refrescado por uma lufada
de ar frio. Aproveita a revigorada que a ventania lhe proporciona e aperta os
passos. Talvez, apressando-se, chegue ao destino ainda seco, antes que a chuva
caia e alague a cidade. Assim que se aproxima do cruzamento, um raio luminoso
corta o céu e este se escurece por completo. Um ruído estrondoso faz os
cidadãos taparem os ouvidos e arregalarem os olhos. As nuvens cinza-escuro, num
ballet ritmado, traçam uma coreografia misteriosa por sobre a cabeça dos
homens. Os que olham para o alto, admiram-se. O vento passa a soprar mais
furioso e num ímpeto, varre as calçadas e levanta o pó e o lixo, cegando os que
passam e fazendo tossir os mais jovens e os velhos. O cheiro de poeira, o
esvoaçar dos cabelos e uma friagem úmida eram o sinal que a tempestade não
tardaria.
Correr não iria, pois não valeria
o esforço, suas vestimentas não eram apropriadas, a calça era um pouco pesada e
o sapato novo, ainda duro, fariam seus galopes extremamente desconfortáveis.
Além do mais, o que tinha a fazer, não era coisa que se demandasse muita
urgência, era mais vantagem atrasar-se, do que chegar ao destino completamente
desarranjado e molhado da cabeça aos pés. As primeiras gotas de chuva, grossas
e frias, despencavam furiosamente dos céus, encharcando as ruas, avenidas e as
paredes dos edifícios em poucos segundos. Poucos poderiam prever que as águas
cairiam tão rápido. Praticamente sem
alternativas, abriga-se sob uma ampla marquise, já tomada pelos corpos que
procuravam proteger-se do aguaceiro e da friagem. Acomoda-se sobre um degrau no
canto da entrada de um grande edifício. Ali estaria protegido e poderia
assistir, com visão privilegiada, a chuva densa que a tudo alagava, e aos
murmúrios e resmungos dos que, praticamente à força das águas, tinham seus
apressados passos interrompidos. Deixava-se entregue então, na falta do que
fazer, aos devaneios e pensamentos. Observa todos ao redor, um a um, a
fisionomia enrugada dos velhos, o rosto assustado das crianças diante dos
estrondos dos trovões, a maquiagem borrada das raparigas, e as roupas ensopadas
dos que chegavam por último. De sua parte, os sinais de gotas encharcadas sobre
os ombros, mostrava que não se salvara por completo.
A interrupção do fluxo da cidade,
a paralisia da multidão, que não arriscava desafiar a tempestade, as
aglomerações sob as marquises e a enxurrada que lavava o asfalto criavam um
cenário a dar uma perspectiva diferente da condição humana. E era nisto que
pensava. Por minutos, observava a multidão, gentes de todas as idades, de todos
os tipos, credos, religiões, tendências políticas, estavam ali, paradas,
esperando, ansiosas, resignadas, sob um temporal, que ameaçava engolir a
cidade. Às vezes, as pessoas olhavam-se,
desconfiadas, umas para as outras, afinal, estavam próximas demais, noutras, trocavam
olhares solidários, cúmplices, eram vítimas da mesma imprevisibilidade. Se o
mundo resolvesse, de uma vez, tragar a todos, engolir a humanidade, teriam
todos o mesmo destino. E uma vez chegado o momento, pode até ser, que no
instante final, dessem as mãos, trocassem palavras derradeiras, mas isto, não
saberemos.
Certo é que já se espremiam por
ali há um bom tempo, o temporal não dava sinais de que tão cedo, poderia cessar,
e aos poucos, na falta de alternativas, enquanto uns mexiam e remexiam os
papéis que tiravam do bolso, os liam uma vez, outra, ou apertavam
freneticamente os seus aparelhos celulares, havia os que contemplavam desolados
a paisagem, fitavam os céus, para ver se de lá arrancavam alguma mensagem ou
entreolhavam-se para certificarem-se mais uma vez, através da observação
atenta, de cada fisionomia, que os homens, de fato, não se repetem. Nada como
estarmos em meio a uma multidão para percebermos quanta diferença há entre
nossas semelhanças. Apesar de sermos todos, uma única espécie, ponha-nos
juntos, lado a lado, aos milhares, milhões, para percebermos a infinidade de
diferenças que há entre nós. É bastante criativa a mão invisível que modela
cada um de nossos gestos, olhares, ângulo facial, largura e intensidade dos
sorrisos, uma pequena ruga aqui, outra ali, o peso dos ossos, a força dos
braços, a habilidade das mãos, o timbre da voz, tornando-nos únicos, peculiares
e originais, entre nossos supostos semelhantes.
Olha para o relógio. Estava
realmente atrasado, mas era bobagem desesperar-se. Seria impossível atravessar
o aguaceiro. Ademais, o atraso era plenamente justificável, uma vez que,
certamente, a cidade inteira estaria sob as águas. Resolvera então, não ter
pressa, e estava observando um letreiro que piscava à sua frente, quando sente
paralisar-se, algo o impedia de realizar qualquer movimento, sentia ser observado,
fincava os pés ao chão, e não via ainda, quem, insistentemente, olhava para
ele. Ainda não criara forças suficientes para voltar-se para quem o admirava.
Uma timidez mórbida o impedia que encarasse a situação de frente. Raspa a
garganta, enfia a mão nos bolsos, volta a conferir o relógio, passa os dedos
sobre os ombros molhados e por fim, move os pés, ajeitando uma posição mais
confortável, quebrando aos poucos, a rigidez dos músculos e dos ossos. Uma
névoa imaginária que pousa em seus olhos, uma comichão no braço esquerdo eram o
sinal de que continuava sendo contemplado. Quem estaria a encará-lo? Uma coisa
tinha certeza. Era uma jovem mulher. Mas como? Não se lembrava de ocasião em
que tivesse despertado atenções femininas de forma tão persistente. A bem da
verdade, nunca foi de muita sorte com a mulheres, e as que passaram por sua
vida, foram fruto de muita conversa e jogos de sedução, que na maioria das
vezes, sempre levavam algum tempo. Nada de paixões repentinas, amores à
primeira vista, maiores intimidades no primeiro encontro, entregas inesperadas.
Suas conquistas, e não haviam sido muitas, eram resultado de estratégias,
organização e planejamento, ou coisas arranjadas.
Respira profundamente, enche os
pulmões de oxigênio, inala a umidade do ar, estufa o peito, mantem os olhos
firmes e vira-se, lentamente, para o lado. Finalmente fixa os olhos que procuravam os seus. Dois olhos negros, grandes
e admirados, parecem vasculhá-lo por dentro. Mantem-se inerte. A mulher
contempla-o fixamente. Era jovem e bonita, muito bonita, talvez umas das mais
belas que havia visto por aí. Ele a observa em cada detalhe, completamente, e
sente o corpo inteiro arrepiar-se. A mulher não tirava os olhos dele. Ele
sentia o peito apertar, o coração batia forte. Uma gota d’água fria descola-se
da marquise e cai sobre os ombros descobertos da jovem. Ela seca a água que já
escorria com os dedos, cruza os braços trêmulos e solta um quase silencioso
gemido, sem tirar os olhos dele. Ele cora. A jovem parecia-lhe cada vez mais
bela, e começa a imaginar se não teria sido ela a povoar seus sonhos em alguma
ocasião da vida, ou se não estaria sonhando ali, agora, quem sabe peripécias do
destino, no qual apesar de não acreditar muito, talvez pudessem estar
atravessando o seu caminho. Nunca havia confiado muito na sorte. Quem sabe a
recompensa por acreditar-se um sujeito de bem. Talvez fosse oportunidade única.
Sente-se um pouco inseguro e sem jeito. A mulher olha como quem espera. A chuva
reduz a intensidade, começa a abrandar-se, um feixe luminoso abre-se por sobre
os edifícios e o asfalto põe-se a brilhar. O tempo começa a abrir-se e um
sorriso cúmplice se esboça na face iluminada da mulher.
Não havia tempo a perder. Daqui a
pouco, a chuva pararia e não mais haveria motivos para que permanecessem ali. A
forma como o fitava, não deixava dúvidas, não eram apenas olhos de curiosidade,
ou de quem está a reconhecer um amigo antigo que não vê há anos. Sua
fisionomia, e para percebê-lo, não há que ser um especialista, era de desejo e
sedução. Não entendia bem que qualidade sua poderia despertar tanto o interesse
e a atenção da mulher. Toma algum fôlego em segundos, ajeita um pouco a camisa,
procura descontrair-se, ensaia um passo em sua direção e tenta já deixar
articuladas, guardadas em algum canto da boca, as primeiras palavras que
deveria dirigir-lhe. Ela não desvia os olhos dele. A chuva torna-se a cada
instante, mais fina e rala. Ele caminha em sua direção. Por um instante, tem a
sensação que as palavras vão lhe trair, dizer o que não deve ser dito, soltarem-se
engasgadas ou trancarem-se no peito. Segue adiante. Quando chega bem próximo,
um ligeiro tremor corre por suas pernas, como se estas, quisessem fugir de sua
missão, ou ao contrário, correr em sua direção, mas certo é, que de certa
forma, alteraram o ritmo dos passos. Abrindo caminho entre os que ainda se
amontoavam sob a marquise, vai lentamente, aproximando-se dela. A cada passo,
impressionava-se mais com a beleza da mulher. Por um segundo, pensa em
desistir, deve ser algum engano, pensou. Não houve em sua vida outra ocasião em
que mulher tão bela e atraente estive a observá-lo dessa maneira, em um
encontro repentino e casual. Posta-se diante dela. De alguma maneira, saem
raios dos olhos dos dois. Ele, meio sem jeito e quase aos atropelos, diz a ela,
que adoraria conhecê-la. Ela diz que gostaria muito de conhecê-lo também, que
não sabia ainda exatamente o porquê, mas que ele havia despertado nela algo de
bom. A tempestade que terminava, parecia ter se transferido para dentro dele.
Um trovão ensurdecedor estoura em seus peitos e aquece seu corpo inteiro, que
vibra. O sangue, circulando mais veloz, deixa seu rosto e o pescoço vermelhos,
e um raio de luz desponta em seus olhos admirados. A voz da mulher era
excessivamente doce, suave e feminina. Os timbres de sua resposta, a cadência
de suas palavras, como o vinho e o mel, deram-lhe uma sensação de encantamento
ou embriaguez, da qual mal conseguia disfarçar. Mais uma vez, imaginou que esta
pudesse ser a mulher que já povoara seus sonhos. Agora que ouvira sua voz,
intérprete de almas, espíritos e intenções, não tinha mais dúvidas. A chuva
parou. A mulher diz não poder demorar, pois, uma vez que a chuva havia cessado,
deveria tentar recuperar o tempo perdido, já estava atrasada em seus afazeres.
Passou o número de seu telefone, que ele rapidamente anotou em seu aparelho
celular, e insistiu que ligasse. Ele põe a mão em seu cabelo e ela beija-lhe o
rosto, dando-lhe um gracioso sorriso de despedida, que faz com ele, perdesse
por completo, o rumo dos passos. Por pouco, não mais se recordava em que
direção deveria prosseguir. Um torpor inusitado havia lhe arrebatado os
sentidos.
O encontro havia sido breve, mas
avassalador. Depois que ela vira de costas, deixando um rastro de perfume no
ar, uma inebriante fragrância entra pelas suas narinas, ele a respira
profundamente. O mundo parece revolver-se dentro de si. Pouco a pouco retoma os
passos em direção ao seu destino, em uma lenta caminhada automatizada, uma
trajetória programada, da qual parece ter perdido a noção ou a necessidade. A
imagem da mulher continua a persegui-lo, mesmo que siga em frente, sem mais
olhar para trás, ela está ali, presente, em cada rosto que surge do nada, em
cada esquina ou automóvel, em cada nova multidão que se aproxima, seja nas
portas dos shoppings, nas calçadas dos templos ou nos pontos de ônibus. Não
consegue perdê-la de vista. Imagina porque não aproveitou melhor a oportunidade
do encontro, talvez se insistisse que se demorassem um pouco mais, se tivesse
feito perguntas mais apropriadas para a ocasião, ou fosse mais ousado. Talvez
não, seja lá como for, ela parecia estar mesmo um pouco apressada, levava umas
pastas nas mãos e tinha horários, mas o melhor, havia se interessado por ele.
Que horas ligaria? Mais conveniente talvez fosse esperar a noite chegar, quando
provavelmente já terá se livrado de seus afazeres e obrigações. Mas uma
ansiedade crônica tomava conta de si. Havia horas ainda pela frente. Não via o
momento de ouvir novamente aquela voz adocicada. Pouco dialogara com ela, mas
sua presença, a forma como o olhava, os gestos suaves, o sorriso aberto, haviam
lhe conquistado, definitivamente.
Mil imagens e pensamentos
vinham-lhe à mente. Seria esta a mulher, que talvez, os céus haviam reservado
para ele? Sempre acreditou, que dado o tamanho da humanidade, muitos certamente
morrerão sem conhecer aquela parceira que provavelmente lhe caberia bem. Não
que acreditasse na existência de almas gêmeas ou caras-metades, mas que dado o
tamanho do mundo, impossível que não houvesse alguém, mesmo que lá pelos seus
cantões mais distantes ou inacessíveis, a quem pudesse amar. Mas neste aspecto,
não era lá muito otimista, e chegava a imaginar que em seu caso, fosse mais
difícil que encontrar uma agulha no palheiro. Por outro lado sabia também, que
as coisas não estavam de todo, perdidas. Quem sabe a sorte tenha vindo
bater-lhe a porta? Apesar do pessimismo, nunca foi totalmente descrente.
Acreditava que as possibilidades da vida, mesmo que muito remotas, eram sempre
possibilidades, e que enquanto ainda estamos vivos, sempre pode haver alguma
forma de redenção. Uma chuva fina volta a cair. Estranha sensação, mas a água,
da qual não procura mais se esquivar, tem a fragrância da mulher. Ele então
aperta os passos, levanta a cabeça em direção à chuva, como se quisesse
tragá-la e deixa-se encharcar. Quase sem perceber, levanta os braços para o
alto. Gesto pouco esperado entre os transeuntes, dado seu relativo ineditismo,
muitos olham para ele. Ele vê a mulher em cada um dos rostos, todos são ela, e
estão a admirá-lo. Não se faz de rogado. Prossegue com os passos firmes, daqui
a pouco chegará a seu destino.
Já ofegante, depois de muito
caminhar, estimulado pelo frenesi que o encontro lhe proporcionara, resolve
parar sobre a ponte, que ligava as duas porções da cidade, e observar a
violência das águas do rio, que corria bem sob seus pés. Impressionante como
havia se enchido rapidamente, as águas revoltosas e barulhentas, estavam
prestes a transbordar. As ruas laterais alagavam-se. A força das águas
chicoteavam as bases e os pilares da ponte, que trepidava. Era possível sentir
o roncar das águas e o tremor das estruturas de metal e concreto. Ele, já
molhado por inteiro, observa tudo, atentamente, mas tremia, como que tomado de
febre. Tremia muito, tremia todo. Por um minuto chegou a pensar, se era ele
quem tremia com a ponte, ou se era a ponte quem tremia com ele. Sacolejando-se
sobre o asfalto molhado e apoiado no parapeito da estrutura, solta um largo
sorriso de felicidade. A sorte, quase inesperada, havia atravessado seu
caminho. Agora sabia. Estava irremediavelmente apaixonado e a sombra da mulher
estava em todos os lugares. Para certificar-se mais uma vez da sorte grande,
enfia a mão no bolso, retira de lá o aparelho celular. Estava ali gravado o
número para o qual mais tarde ligaria, e a depender das suas expectativas,
talvez pudesse dar algum outro sentido à sua existência. Queria ver o número
mais uma vez, o tesouro guardado. Com a mão ainda trêmula, leva o dedo à tela
do aparelho para acionar seus comandos, mas por um pequeno descuido, imprime
sobre o teclado uma força maior que a necessária para acioná-lo, e ao invés de
ligá-lo, acaba por empurrá-lo para o fundo das águas. O aparelho estava
perdido, e suas ilusões também. Havia sido apenas um amor de tempestade.
Marcos Vinícius.
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