O ruído que ouvi ao transpor o grande portão metálico, acredito, estará para sempre em minha memória. É um som único. Uma grande chapa de ferro, um metal pálido e cinzento com grades espessas corria quase silenciosamente com suas roldanas pelos trilhos enterrados no concreto do chão. O barulho inolvidável faz-se quando é acionado o mecanismo que coloca a grande estrutura em movimento. Tanto as arrancadas quanto as paradas são bruscas, abruptas, quando é rompido o grande silêncio da serpente de ferro. Quando as duas barras centrais se encontram, e o portão, finalmente, se fecha, a sensação que dá é de termos sido engolidos. E é o que somos. Não há qualquer dispositivo que amorteça o encontro das placas do portão. O som é petrificante. Quando a trava se lacra, dispositivos eletrônicos são acionados, e um jogo de luzes, cores, sons e códigos, vêm nos revelar que estamos em território onde se investe alto nas chamadas tecnologias de segurança máxima. Uma grande parafernália tecnológica possibilita um confinamento total, a reclusão absoluta. Uma ampla sala de comando com telas coloridas, cadeiras giratórias e máquinas possantes, poderia nos fazer imaginar estarmos no melhor dos mundos, não fosse a ciência tão perversa com a humanidade que a criou. Ainda não sei ao certo por que nos era permitida ter a visão desta sala logo à entrada, que por sinal, não a veríamos mais. Talvez fosse um descuido da segurança, uma falha no sistema, ou quem sabe ao contrário, talvez quisessem mesmo nos fazer crer, que para nós, ali não haveria qualquer alternativa. Os novos deuses, a ciência, a técnica, o capital, as armas, estariam a seu favor e serviço. Isto não me custou ver. Assim que fui retirado do veículo blindado em que havia sido capturado, três ou quatro carrascos se aproximam de mim. Não eram destes carrascos que vemos de cabelo em pé,quando dos filmes de terror, mas carrascos que para uma grande parte de população mundial são vistas como heróis. Homens enormes, com braços e peitos de ferro, alguns com tatuagens, estilos descolados, com celulares e laptops, a fazer inveja a muitos galãs do cinema. Ficamos a imaginar se suas mães suspeitariam algum dia das atrocidades que seus filhos amados seriam levados a executar. Com um chute nas costas, de supetão, não pode ver quem me desferia este golpe, fui atirado ao cimento. Foi tão rápido que mal pude levar a mão ao rosto, cortei as pálpebras, e a testa sangrou embaçando os olhos. Na primeira tentativa de me levantar, uma bota pesada desferiu-me um golpe certeiro entre o queixo e o pescoço, desmontando todas as minhas defesas. Não pude tentar novamente.
A água fria, às vezes, faz mesmo milagres. Após dar-me por encharcado, um grande balde d água foi derramado sobre mim, consigo abrir os olhos. Vestia um macacão, peça única, que me cobria da cabeça aos pés. As pernas e as mãos estavam fortemente amarradas, o que limitava exageradamente os meus movimentos. Dois grandes soldados prenderam à corrente que atava meus pés, uma outra corrente, maior, mais comprida. Ali estava completamente subjugado. Os homens arrastaram-me e minhas costelas esfolavam ao chão. Minha única reação possível, um grito doloroso, foi violentamente reprimido por um bofetão que me quebrara dois pares de dentes. Em seguida, ganhei uma corda estrangulada à boca, que além de impedir qualquer tipo de comunicação, impossibilitava qualquer gritaria, que despertasse a ira dos meus algozes. Sorte ser curto o caminho entre o local em que fui amordaçado e a gaiola que estava à minha espera com sua goela aberta. Era meu primeiro dia, a carne sangrava, mas ainda não estaria desossado. A gaiola onde fui encerrado por longas horas, por mais de um dia, não possuía qualquer cobertura que pudesse proteger-me do calor do sol ou do frio da noite. Durante o dia, o macacão cozinhava-me, suava compulsivamente, e à noite, o frio endurecia meus nervos. Era apertadíssima a jaula e não havia como me esticar. Os poucos movimentos que conseguia ainda realizar eram fruto da necessidade extrema que o corpo tinha de mudar de posição para livrar-se de uma dor, e trocá-la por outra. As dores eram intensas. A boca estourada inchava a cada hora um pouco, os dentes arrancados quase à raiz eram um incômodo que tornava meu sofrimento ainda mais insuportável. As costas queimavam, e as escoriações deixadas pelas boas vindas da recepção eram como deitar-me em brasas. As jaulas foram projetadas de modo a mal caber meio indivíduo. Não há posição possível onde possa se descansar um pouco da posição anterior. As pernas têm que contorcer-se. O peso dos ombros, ora esmaga o braço direito, ora o esquerdo. Depois de alguns minutos dentro da coisa, o incômodo e a sensação de fatalidade impõem um sacrifício mórbido sobre o corpo e a alma. Para aliviar as pernas, sacrifica-se o pescoço, ao dar a este último algum descanso, é quando sofrem novamente as pernas ao se equilibrarem em um contorcionismo inédito, fatigante e doloroso. As cordas das mãos, apertadíssimas e secas, cortavam os punhos, como pequenas navalhas em fios, continuar a friccioná-las, talvez resultasse na dilaceração dos punhos. Estava completamente imobilizado.
Era um trapo quando fui retirado dali na segunda noite. Mal conseguia manter-me de pé. Os ombros enrijecidos e os pés esfolados davam-me um aspecto cambaleante. Sentia os ossos se desfazendo, vítima de uma implosão, um desmoronar de si mesmo. O sujeito desmontado. Como não há mal tão ruim que não possa ser piorado, juntam-se ao meu redor um grupo de homens fortemente armados, uniformizados. São grandes, robustos, e não trazem nas faces coradas qualquer sinal de piedade. Todos carregam pesadas armas de fogo, aparentemente desnecessárias diante da fragilidade do suposto inimigo. Bastaria uma única bala, um único golpe, em meia fração de segundo, para ter-me ao chão, perfurado e morto. Mas pouparam-me naquele instante, talvez quisessem algo mais que a minha insignificante vida. Fui levado para uma sala praticamente vazia e escura. Uma única lâmpada iluminava o ambiente. Colocaram-me debaixo dela, amarrado em uma cadeira, onde permaneceria completamente imóvel. Estava exposto, visível, iluminado, com o corpo aberto, esfolado, quem sabe olhavam-me por dentro. Não conseguia distinguir seus rostos, a luz sobre meus olhos e a frágil iluminação do local, permitia-me apenas enxergar seus vultos, que quase não se mexiam. Esforçava-me para entender o que poderia estar a ocorrer. Por longos instantes, não disseram palavra alguma, mantinham-se em silêncio. A ausência de palavras e a rigidez daqueles soldados, aliada a falta de visão que tinha do local, era uma ansiedade a mais, já à beira do pânico, por não conseguir prever até onde iria a perversão alheia. Dois deles seguem em minha direção. Agora sim, posso ver os seus olhos. Um calafrio súbito gela-me a garganta, e o estômago se contrai. Traziam o ódio. Estavam cada vez mais próximos, retiram dos cinturões sintéticos, duas afiadas navalhas, e postam-nas sob os meus olhos. Elas estavam ali, bem diante das minhas retinas e não me tocavam, estacionadas, mas uma dor profunda, invasiva, adiantava-se, cortando-me e perfurando-me. Arregalava-me em desespero. Quando duas lágrimas incontroláveis encharcam as pálpebras, sabe-se lá de onde vêm, pois sentia-me ressecado, os brutamontes abaixam as lâminas em um gesto lento, e cortam as barras da calça e a mangas compridas do camisão. O macacão fora estropiado e restavam-me apenas retalhos do que deixava-me a descoberto o tronco e as pernas. Fazia frio. Sob o sussurro de um deles, apontam as armas para mim. Seria o fim. Mas um deles aproxima-se dos meus ouvidos e grita: quer livrar-se do inferno, ó resto? Vou te dar a última chance para safar-se, vagabundo, do calvário que tens pela frente. Diga-me tudo o que sabes sobre a Organização. Talvez fosse o único a falar a minha língua, os outros, pelos poucos murmúrios que pude ouvir, eram-me completamente incompreensíveis. Um soluço repentino deu-me um nó na laringe e não me saia palavra alguma. Esbocei mais algumas tentativas, mas estavam todas presas dentro de mim. O esforço para dizer algo, sem o conseguir, minava um suor salgado que queimava ainda mais as feridas da boca. Os dentes quebrados doíam intensamente e talvez fosse mesmo impossível me comunicar com as criaturas. O homem insiste: Não queres mesmo salvar a alma, amaldiçoado? Pois vais conhecer o nosso purgatório. Outro homem se aproxima, este não falava minha língua, mas trazia entre as mãos, algo que lhe dispensava qualquer argumento ou razão, uma enorme furadeira, já ligada a uma tomada. Com muito sacrifício, procuro encher os pulmões, tento levar forças dos braços e do abdômen para o peito, de modo a romper a mudez. Respiro fundo, junto as poucas forças todas de uma só vez, e com um som rouco e falho, anuncio, Não sei da Organização. Os homens se irritam, apanham um capuz negro e tampam-me a cabeça. A furadeira é ligada. Podes agora escolher, ou diga o que sabes, e não terá outra chance, ou poderá dizer, por onde quer que se inicie o trabalho de perfuração. Aqui há divisão entre nós. Alguns defendem que se inicie pela língua, pois acreditam que o órgão em pânico, ponha-se a dar com os dentes, e não há o que não diga. Outros defendem que a broca comece por perfurar o crânio, quem sabe o que a língua não diz, possamos encontrar em sinais por algum canto do cérebro? A broca se aproxima dos ouvidos, sobe pelas orelhas e quase encosta-se no parietal. Uma mecha de cabelo, por sob o capuz, arranca-se ante o contato brusco e violento da ferramenta. Um estado de torpor, por alguns instantes, faz-me acreditar que não sentiria qualquer dor. Vêem-me imagens, ilusões, a amortecer-me a carne, nuvens invadem meus olhos e vejo-me vazando por completo. Por um imenso buraco que levo no topo do crânio, começo a escorrer, pedaços de carne, sangue, vísceras, restos, vai tudo saindo por ali, em meio ao amálgama de matéria orgânica e um mundo de palavras e pensamentos. Mas não, a broca ainda não começou a perfurar. Antes, realiza um passeio pelo meu corpo, parte a parte, como a fazer um lento trabalho de reconhecimento, verificar em que território melhor convinha iniciar as suas operações, talvez num ponto onde houvesse um osso mais proeminente, talvez nos tendões, nas mucosas, nas carnes mais musculosas ou nas mais sensíveis. E insistiam que eu falasse - eu poderia escolher. Eu insistia, não sabia da Organização. Eles não acreditavam no que eu dizia, mas desligaram a furadeira. Um silêncio absoluto absorveu-me por poucos segundos, era um silêncio eterno. O som da ferramenta ligada porém, mantinha-se vivo na memória dos meus ouvidos, perfurando-me o que poderia carregar como alma ou espírito. O ruído infernal cortava-me por dentro, antes que minha pele, meu lado exterior, pusesse a triturar-se. Pouparam-me.
A cada negativa que dava diante do interrogatório a que me submetiam, as faces dos homens enrijeciam-se, tornavam-se mais duras e cruéis, mas parecia não quererem me eliminar de vez. Por duas noites, sou privado do sono. Assim que desligam a furadeira elétrica, retiram-me da sala. Imaginei que retornaria para a jaula, mas sou levado em outra direção. Atravesso, amarrado, dois longos corredores. Dois soldados seguem à minha frente, dois seguram-me pelo braço, e dois outros fazem a retaguarda. Sobre uma viga de concreto no final de um dos corredores, um atirador de elite aponta-me uma arma que parece carregar o poder de fogo de uma guarnição inteira. Bem ao lado, rente ao piso, uma portinhola é aberta por um dos homens. Fui empurrado em direção à ela. Não permitiram que entrasse, fizeram questão de me socarem lá dentro. Era um cubículo frio, e muito se assemelhava a um buraco. Estava escuro e não conseguia ver exatamente onde havia sido enfiado, era bem mais apertado que a jaula. Virei-me, ajeitei um pouco as pernas, empurrei o corpo com as mãos nas paredes úmidas e conquistei um pouco mais de espaço. Agora conseguiria respirar melhor. As costas estavam um pouco flexionadas, foi a forma encontrada para que pudesse esticar um pouco mais as pernas e livrar-me das câimbras que me atacavam. Estava trancado ali. Um calafrio percorreu-me o corpo inteiro e passei a suar por todos os poros que trazia comigo. Apesar do frio, sentia-me derreter. Perguntava-me por quanto tempo conseguiria sobreviver naquelas condições. Uma luz é acesa sobre minha cabeça, mas não tenho como ver de onde vem, de que tipo de lâmpada ou fonte de iluminação se trata, mas clareia o local, e vejo-me em uma cápsula branca. Depois, uma outra luz, agora sob os meus pés se acende, movo um pouco minhas pernas, e desta vez, consigo ver de onde vem o foco. Era uma lampadazinha que brilhava ao fundo. A luz sobre minha cabeça apaga-se. Depois, a dos pés. A de cima volta a acender-se, e permanece acesa. O tempo para. Nada mais acontece. O silêncio é total. O som da furadeira vai aos poucos, silenciando-se em minha mente. Não ouço coisa alguma. Nada vejo, além da parede branca, ante a qual me espremo. Ao esticar um dos braços, e empurrar-me pela cápsula, consigo enxergar-me todo até os pés. Um pouco abaixo dos meus joelhos, inicia-se a curvatura das paredes, afunilando o compartimento. Permaneço ali um longo tempo, sem saber se poderia medi-lo em minutos ou horas. Perdera sua noção. Estava exausto e esperava apenas ser esmagado a qualquer momento. Vencido pelo cansaço extremo, pelas já longas horas de privação de sono e pelo silêncio aterrador do local, sem que coisa alguma ocorra, adormeço.
Um enorme estrondo sobre minha cabeça acorda-me bruscamente. Depois outro, como a certificar-se que seria impossível que permanecesse dormindo. Não imagino quanto tempo dormi, poderia ter sido um dia ou um século, não havia como discernir, mas seja lá como for, o sono havia limpado um pouco os olhos. Apenas a lâmpada sobre minha cabeça mantinha-se acesa. Ao virar o rosto e destampar um pouco os ouvidos, ouço um ruído distante, que lentamente, muito lentamente, vinha aproximando-se. Um ruído seco, arrastado, duro. Ao levar os olhos aos pés, vejo um grande número de insetos percorrendo as paredes em minha direção. Eram muitos os tipos, as formas, cores e tamanhos, onde a ciência já catalogou mais de 800 mil espécies diferentes. Era uma multidão deles. Nunca vira tantos juntos. O fundo da cápsula estava repleto, vinham cada vez mais, eram tantos que a estrutura parecia mover-se. Não era ela quem se movia, mas os bichos. Vão ficando cada vez mais próximos. Os que vinham à frente aproximavam-se já da altura dos meus quadris. A pele arrepia-se inteira, a epiderme reivindica para si todas as defesas remotas do organismo, que inicia a desarranjar-se. Sempre tivera certa ojeriza por eles. Já se aproximavam mais do meu campo de visão. Poderia agora ver mais de perto a variedade que se apresentava, uns peludos, outros mais finos, insetos escuros, esverdeados, com longas antenas, garras, asas miúdas, esticadas, uns mais secos, outros úmidos, alguns pequenos, muitos enormes, conhecidos, e aqueles que jamais havia visto. Um deles chamou-me particularmente a atenção, um besouro enorme, que mal caberia na palma da mão. Quando ficou bem próximo de minha boca ferida travou seus passos ante o meu olhar de pavor. Ficou a fitar-me. Eram inúmeros e não paravam de chegar, provavelmente, representando todas as classes que povoam o planeta, entre ortópteros, nevrípteros, arquipteros, tisanurus, hemípeteros, dípteros, lepidópteros, coleópteros, himenópteros. A luz de baixo se acende novamente e a de cima se apaga. Deixo de enxergá-los com a mesma nitidez. Ao contrário, são agora suas sombras, que me vem aos olhos, e eles ampliam-se, tornam-se fantasmagóricos. Alguns adquirem formas gigantescas, com antenas que atravessam a cápsula inteira. Após ocuparem as paredes do compartimento, iniciam a peregrinação pelo meu corpo. Sobem pelas pernas desnudas. Sinto-os sobre meus pelos, escalando-os. Outros, impossibilitados de manterem-se agarrados à superfície branca, dada a disputa por território entre eles, caem ou saltam sobre minha barriga, peito e ombros. Sinto cada uma de suas patas, percorrendo cada ponto de meu corpo paralisado. Imaginava que mexer-me poderia ser pior, pois os artrópodes, ameaçados, atacar-me-iam de vez, de forma fulminante e definitiva. Mantinha-me completamente inerte, evitava piscar, retesava os músculos e prendia a respiração, mas não adiantou de todo, pois começavam a me picar. Por instantes, apagaram as luzes, apenas sentia o milhão de insetos movendo-se sobre meu corpo tomado, dominado, e meu espírito, se é que ainda possuía algum, certamente lutava para livrar-se de vez daquele cárcere impiedoso em que havia se tornado as minhas carnes. A repugnância tornou-se onipotente. Jamais havia tido tanta vontade de desaparecer, largar àqueles bichos o meu cadáver, todo o meu acervo de sangue, ossos, gorduras, nervos, músculos e peles. A liberdade absoluta, sem mosca alguma a subjugar-me. Quando a massa escura e movediça cobre-me por completo, a voz de meu intérprete entre os monstros ecoa por toda a estrutura. E agora desgraçado? Vai ou não colaborar?
O terror havia me invadido por dentro. Sentia que seria devorado antes mesmo que pudesse esboçar qualquer tipo de resposta. Se pudesse, arrancar-me-ia a própria pele para safar-me daquele manto vivo que arrastava-se sobre mim. A voz berrava, Vai nos falar sobre tua Organização? Mudaste de idéia ó morto vivo? Sem revelar o que sabes, sairá das pestes e irá direto aos abutres. Não há outra saída, verás como a humilhação e o escárnio podem ir além do que imaginavas possuir um limite.Fale-nos sobre tua maldita Organização. Na verdade, naquelas circunstâncias falaria qualquer coisa para que os carrascos pudessem me tirar daquela condição. As baratas iam a cobrir-me o rosto. Eu falo. Eu falo, grasnava minha voz, que já não possuía forças para saltar à garganta. Imediatamente, a luz de fora penetra pelo buraco. A portinhola se abre e por uma corda ainda atada à minha cintura, arrastam-me para fora. Dois funcionários com um vassourão cada um, varrem para dentro de meu casulo empesteado, os insetos que me impregnavam a pele. As cerdas duras da vassouras expulsavam os bichos e abriam mais as escoriações que trazia no tronco e nos braços. Sou retirado deitado. Para livrar-me totalmente dos insetos, arrancaram-me os trapos que ainda levava comigo. Ficara completamente nu. Levantam-me em um solavanco e atiram-me à parede. Só aí vou perceber que além de um pequeno grupo de soldados, havia ainda quatro cães enormes que arregalaram seus olhos ao me verem saindo daquele buraco. Os homens deixam-nos à solta, e eles vem ao meu encontro. Os cães posicionam-se circundando todo o meu corpo, mantendo entre um e outro a mesma distância, alinhados em forma de cruz, sou farejado por todos os lados. Sobre suas bocas gigantes que mantinham-se constantemente abertas, focinhos molhados, investigativos, é que me fazem agora a varredura. A carne que servira aos insetos servia agora aos cães. Não te demora a falar, esbraveja o homem. Os cães estão famintos, e verás como podem comportar como lobos, quando fores reduzido ao pó, ao virares ração. Outra vez, uma dor aguda percorre-me por dentro, como se célula por célula houvesse sido afetada, como se um sem número de lanças cortassem-me em pedaços, uma dor paralisante, não consigo mover-me. Tenho todos os músculos tesos, duro como uma estátua, não fosse pela parede que me amparava, já há muito teria ido ao chão. As palavras traiam-me, não me faziam o serviço, afugentavam-se, corriam em direção às profundezas do meu ser e recusavam-se a proporcionar-me defesa. Os cães impacientam-se. Não sabia mesmo da Organização. Não sabia. Mas como fazê-los crer? Ali não havia leis, não havia argumentos, direitos ou tribunais. Ali havia apenas a força bruta, em seu estágio mais selvagem, como outra contradição e ironia da história, quando imaginávamo-nos gozar de um mundo sem peias. Enlouquecia. Não sabia da Organização.
Fui levado dali. Ainda não foi desta vez que faria o banquete dos cães. Saio pelo mesmo corredor em que havia entrado. Porém ao invés de seguir pelo setor que me levaria à jaula, sou levado por uma escada estreita em caracol, em direção oposta, que me leva a um ambiente muito próximo dos laboratórios e salas de cirurgia. As paredes eram altas e brancas. Diante de mim, surgiram duas grandes portas, ao lado de um painel ligado a vários dispositivos eletrônicos. Sou levado por quatro policiais a uma delas. Espantei-me ao adentrar o local, não sabia que tipo de experiência nova me aguardava. Era uma sala ampla, com duas macas de metal, um enorme armário repleto ampolas, frascos de medicamentos e uma mesa larga com vários instrumentos cirúrgicos, tesouras, pinças, bisturis, agulhas e alicates. Ocupando uma parede inteira, e uma parte do teto, havia um equipamento enorme, completamente desconhecido para mim, cheio de botões luminosos, teclas e fios, como um computador gigante, ligado a uma estrutura de metal que mais parecia um misto de aparelhos de raios-x e sofisticadas máquinas de tomografia. Uma das macas encontrava-se exatamente abaixo desta grande peça tecnológica. Estava ligada a ela por um volumoso emaranhado de cabos e fios. Logo que acabo de entrar, surgem dois homens, cujos trajes indicavam serem profissionais da medicina. Usavam roupas brancas, jalecos, aventais, toucas, óculos de proteção e máscaras. Dois soldados agarram-me e levam-me em direção à maca. Minhas pernas enrijecem, ficam duras, e uma força superior parece colar-me ao chão. Mas não resisto aos empurrões e solavancos, e em questão de segundos, estou sobre a lisa placa de metal, amarrado pelos braços e pernas. Estava ligado àquele aparelho. Um dos especialistas aciona alguns botões, ajusta o monitor de vídeo, e em seguida, liga-me a uma máscara nasal, conectada por um longo tubo. Sobre minha cabeça é colocada uma estrutura de vidro que lembra uma poderosa e sofisticada máquina de scanner. Estão todos a me observar. Soldados e médicos. Com métodos distintos servem aos mesmos propósitos. O mais alto dos homens, o responsável pela operação, recebe do segundo homem, seu auxiliar, uma injeção já pronta para ser aplicada. Não fazia idéia do tipo de medicamento que seria injetado em mim. Os dois seguram os meus braços, enfiam-me a agulha, e o remédio vai sendo transferido, rapidamente, para o meu sangue e nervos. Sou tomado de uma fraqueza total, faltam-me forças sequer para mover os pés ou as mãos. Apesar de conseguir pensar e estar consciente, não consigo respirar, a substância aplicada havia paralisado os músculos responsáveis pela minha respiração. Finalmente entendia a finalidade daquela máscara maldita, servia para manter-me vivo por respiração artificial. O scanner sobre minha cabeça era colocado em funcionamento. Uma luz azulada projetava-se para fora, e aí tinha a certeza, queriam radiografar os meus pensamentos. O técnico fixava seus olhos na tela, nos gráficos do monitor, para ver se decifrava meus segredos mais recônditos, minha alma acuada, em algum canto de meu cérebro devastado. Respirava pelo mesmo aparelho que procurava decifrar-me por dentro. O soldado, mais uma vez aproxima dos meus ouvidos e berra, Como é trapo? Estamos esgotando as nossas paciências, apesar de não esgotarmos nossos recursos, verás o que faremos contra tua humanidade. Verás o que é deixar de ser, ainda sendo, morrer permanecendo vivo, conhecerás o inferno que nem o Diabo conseguiu inventar, mas ainda poderá se redimir, ó pária da terra, se desvendar os segredos da tua Organização. Diga infeliz, O que sabes da Organização? Apesar de imóvel, a boca estava livre e conseguia falar. Não sei da Organização. A luz do scanner moveu-se sobre minha testa, alguns segundos se passaram, e o aparelho que me permitia respirar, fora desligado. Não respirava, definitivamente não respirava. Sufoco absoluto. Não me movia, também não respirava. Os pulmões põem-se prontos a explodir, o cérebro é tomado de um zumbido cada vez mais forte e opressor, a furadeira parece ter sido outra vez acionada e agora, vou estourar. Um longo e doloroso zumbido. Sinto o manto da morte a apertar-me o pescoço, estou estrangulado. Não me adianta abrir a boca, que o ar não vem, não há como respirá-lo. Iria me arrebentar. Estava morto. Não. O oxigênio me é devolvido. A máquina outra vez é ligada. Não conhecia nada mais aterrador que a sufocação. Não acreditava, mas ainda estava vivo, e ao retornar à vida, percebo que sou atentamente observado por todos. Os soldados que ocupavam a sala e os dois médicos que executavam a operação olhavam-me atentamente, curiosamente, cada qual à sua maneira, o primeiros, possuíam um olhar feroz de satisfação, por verem sua presa ser abatida, os segundos, um ar de júbilo, ao constatarem o quão inventiva pode ser sua ciência, que pode levar o homem ao limite da morte, e trazê-lo de volta. O pânico ante a possibilidade da sufocação total é enlouquecedor. Um segundo pode ser fatal. Não sei como conseguiram calcular tão sistematicamente, cientificamente, os meus precários limites. O botão foi acionado na hora exata. Um milésimo de segundo a mais talvez fosse suficiente para deixar-me definitivamente no outro mundo, e ele postou-se diante de mim. Os instantes da sufocação, da falta de ar, são um mergulho na eternidade da inexistência. Toquei-a, e reencarnei. Não havia ali um espelho, onde pudesse fitar-me, mas tinha noção da cara que tinha. Meus olhos estavam traumatizados, esbugalhados e duros, tinha medo de fechá-los, mantinha-os bem abertos, estatelados, era o estado de pânico, levado a seu mais alto grau, cientificamente dosado. Os dedos das mãos pareciam não ter percebido que retornaram ao mundo. Estavam enrijecidos, apontados para o nada, sem cor. A propósito, encontrava-me inteiro exageradamente pálido, o sangue escondia-se não se sabe onde. Imaginei que nunca mais fosse levantar daquela placa fria. O médico chega à beira da maca, segura-me pelos tornozelos, e em seguida, leva a mão sobre meu peito, a conferir minhas batidas cardíacas e ajeita-me a máscara. Afasta-se e dá um sinal para o outro, como a confirmar que havia sido bem sucedida a operação, e quase consigo antever, pela forma como manuseiam o equipamento e os fios, que preparam-se para repetir o procedimento. Pensava que desta vez não resistiria. Outra vez, posicionam o scanner sobre minha cabeça, repetiriam a leitura do meu cérebro, utilizando um sofisticado detector de mentiras, que de novo, me vasculharia a alma por ressonância magnética. A lembrança da sufocação paralisava-me novamente. O suor escorria frio e em grande quantidade, a maca ensopava. Não pude me contar, urinava pelas pernas. Neste instante, vem o soldado. Sempre em meus ouvidos. É tua última chance, besta. Fale o que sabe sobre a Organização, se mentires, a ciência saberá, se a luz da mentira piscar sobre teu cérebro, a luz do oxigênio não mais te aliviará. A morte é o fim dos que ousam não colaborar. Pelo menos aqui, a morte é rápida, fulminante, não te derramará em sangue, pior seria se junto aos cães, às navalhas, aos choques ou esfolamentos. É quase o benefício da morte súbita. Vamos aos fatos. O que sabe da Organização? Não sei da Organização, respondia. A luz do scanner por duas vezes clareia o meu rosto. A lembrança do suplício da sufocação estrangulava-me por dentro. Não sei da Organização. Outra vez o scanner se acendia. Os homens, médicos e soldados, olham para a tela. Os dois médicos discutem em linguagem técnica. Os soldados, ignorantes, procuram adivinhar o que se revelam naqueles gráficos coloridos e nos códigos das falas dos homens da ciência. Não desligam minha máscara de ar. Dão-me um medicamento e adormeço.
Dormi uma eternidade, não sei exatamente por quanto tempo, mas me surpreende terem me permitido tanto. Quando abro de vez os olhos, vejo-me em outro cômodo, livre da sala de horrores, onde adormeci. Era um local mais arejado, movimentado, onde além de soldados, reuniam-se funcionários, burocratas, e possivelmente executivos do negócio, do empreendimento. Uma funcionária, fortemente armada, serve-me uma sopa artificial, que sorvo de uma só vez, dado meu estado famélico e põe dois pesados comprimidos em minha boca. Dois homens de gravata e um grupo de soldados discutem o meu destino. Não entendia. Não era em minha língua que falavam. Mas pude compreender quando um deles se referiu a mim como a um engano. Devolveram-me as roupas que haviam me tomado na entrada e os documentos que trazia no bolso. Colocaram-me em um veículo militar, retiraram-me daquelas instalações, e sem qualquer palavra ou explicação, abandonaram-me em um movimentado cruzamento de ruas. Quando dei por mim, vivo e inteiro, após salvar-me, imaginei registrar esta memória, para que dela não se esqueça. Em seguida, outro propósito apenas me move. Quero a Organização.
Marcos Vinícius.
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