Antes de sair para o trabalho, fazia
questão de deixar a mais perfeita ordem em casa. Deixava o alimento pronto para
as crianças, suas toalhas dobradas e cheirosas, os pratos e talheres
limpíssimos a brilhar e prontos para o uso dos meninos. A moradia era pequena,
precária, mas extremamente organizada, não deixava nada fora do lugar, as
revistas sempre empilhadas, umas sobre as outras por sobre o armário,
alinhadíssimas, sem uma ponta qualquer que pudesse quebrar a harmonia do
conjunto. Sempre fora muito caprichosa com as coisas da casa. Mesmo os
utensílios ou equipamentos mais antigos que possuía, tinham aspecto de novos,
pois eram sempre espanados, limpos em cada canto, com panos secos e úmidos, e
não havia dia em que um cisco qualquer, um poeirinha perdida tivesse sido
encontrada. Assim sempre havia levado sua vida, desde que se entendia por gente,
como gostava de dizer. Não havia em sua memória ocasião em que sua conduta
fosse diferente. Saía de casa em direção ao trabalho, invariavelmente no mesmo
horário, dificilmente atrasava-se ou adiantava-se em um minuto que fosse. Cada
passo, cada gesto, muitas das vezes repetia os mesmos que haviam sido ontem, e
que certamente, também o serão amanhã, e entre vários outros do passado e do
porvir, sempre dentro das mesmas frações de segundo. O mundo do trabalho e sua
condição materna havia criado naquele espírito uma regularidade mecânica, cronométrica,
disciplinada. Habituara-se aquela vida. Uma dor, porém, sempre lhe afligia,
antes de ter que deixar seu barraco. As duas crianças, ainda bem jovens, com
cerca de uma década apenas de existência cada uma, deveriam ficar sozinhas, até
que a tia vizinha pudesse apanhá-las um pouco mais tarde e levá-las para a casa
da avó. Assim ocorria todos os dias. Depois de chegarem da escola, a mãe servia
o jantar, um prato com um bom bocado de arroz com feijão, duas ou três rodelas
de tomate, batatas cozidas, e um ovo frito, ou pedaço de carne. Feita a refeição, chegava a hora de dirigir-se
ao trabalho. Mesmo contando com as graças e a ajuda da família a quem confiava
os filhos, uma angústia lhe apertava o peito, o coração e o estômago doíam-lhe
quando dava a última volta da chave na fechadura da porta e deixava sua prole
para trás. Mas quanto a isso, não havia o que fazer. Sem aquele trabalho não
teria como garantir sua modesta sobrevivência, nem a dos filhos, e nem teria
como retribuir e remunerar o apoio que lhe era assegurado pela pobre família. Assim
era e assim haveria de ser, Deus assim o queria.
Antes de chegar na avenida embaixo, onde
pegava seu ônibus, atravessava umas poucas ruas e vielas, onde era bem
conhecida, acenava para um, para outro, sempre com um sorriso discreto nos
lábios, espalhava umas boas noites, um até mais ver, felicitações e simpatias,
a cumprimentar aquela comunidade que sempre fora tão próxima. Mas não era lá de
muitas intimidades, sempre fora mais discreta, retraída, e mesmo os acenos,
apesar de sinceros, eram relativamente contidos. No fundo, era uma mulher mais reservada, e
apesar de conhecer a maioria de sua antiga vizinhança não era lá de muita
exposição e sempre temera que sua vida privada, seus problemas familiares ou
domésticos se tornassem de domínio público. Pode-se dizer que era mais caseira,
não gostava de envolver-se em fofocas, e nem gostava que os filhos ficassem
soltos à rua. Nunca se envolvera em confusão, e tinha o respeito de todos que
na vizinhança conhecia. Ao afastar-se, porém, daquele ambiente familiar e ingressar
no ônibus que todos os dias a levava ao trabalho, sua expressão alterava-se. A
rigor, não era de dar conversas a estranhos. Era polida e educada quando lhe
faziam alguma pergunta, pediam informação, quando assentavam ao seu lado, mas
definitivamente não era de render assunto. Naquele momento, seu cérebro organizava-se
para mais uma noite de trabalho, uma ligeira ansiedade envolvia-lhe a alma, e
não considerava que houvesse algo que lhe inspirasse alguma conversa fortuita,
um bate-papo. Era o momento de concentrar-se para mais uma noite operária, pois
afinal era de onde tirava o sustento, e sempre se preocupou em fazer muito bem
feito o que tinha de ser feito. Seus olhos, na maioria das vezes, voltavam-se
para o lado de fora, evitava os olhares dos colegas de viajem e observava
sempre o que a visão não podia fixar, a imagem em movimento das ruas, do
comércio e dos transeuntes. Quando o veículo parava, seja em algum sinal
fechado, algum ponto, ou em função de algum engarrafamento ou problemas do
trânsito, seus olhos percorriam aflitos por sobre a multidão, como se ali
procurassem por alguém, ou como se quisessem ao mesmo tempo, em uma só
olhadela, ver todos de uma vez, cada um em meio ao grande alvoroço de corpos.
Distraía-se verificando como são diversos os homens, as mulheres, com suas
roupas coloridas, cortes variados, penteados inigualáveis, e fisionomias que
nunca se repetem. Admirava-se ao observar a grande diversidade de imagens e de
personalidades que a humanidade apresentava. O ônibus faz uma curva fechada,
sai de uma avenida e entra em outra. Ela levanta-se, puxa o longo cordão de
plástico que corria o lotação de ponta a ponta, uma lâmpada vermelha acende-se
bem diante ao motorista, e em segundos, este para no ponto, as portas se abrem
bruscamente, e finalmente, chegava ao trabalho. Faltavam poucos minutos para as
dez horas da noite, quando iniciava o seu turno.
Ao descer do lotação, bastava atravessar a
larga avenida que se punha a seus pés, dar uns dez passos adiante, e em
seguida, estaria bem diante das imensas portas daquele grande supermercado, no
qual já trabalhava há alguns anos. Chegava no exato momento em que as portas se
fechavam para o público, mas abria-se para ela. Ali, alguns poucos fregueses
ainda estavam a encerrar as suas compras, fazendo seus pagamentos e ajeitando
rapidamente algumas mercadorias em suas sacolas e caixas. Algumas luzes se
apagavam pelos cantos das paredes, nos fundos dos corredores. Era uma forma
velada dos funcionários anunciarem aos clientes que a noite agora chegara para
eles. É uma comunicação silenciosa. Como nos bares, nos fins de noites, os
proprietários e empregados aflitos pelo encerramento do expediente, começam a
fechar mesas e cadeiras e empilhá-las em um canto qualquer, de preferência bem
à vista, daqueles últimos beberrões, que estão sempre a pedir algo mais para
beber. Normalmente, após estes sinais, os clientes são instintivamente tomados
de uma pressa maior, e passam a guardar mais rapidamente suas mais recentes
aquisições, apressam-se em enfiar as notas, trocos ou cartões pelos bolsos e
correr em direção à saída. Rapidamente, aquele grande pátio de comprar estaria
vazio. Um a um, os últimos fregueses colocavam-se para fora. O relógio de ponto
apitava, no mesmo momento, em que ela postava-se de frente para ele. Tinha
início, mais um turno de trabalho.
Não temos dúvidas que aquelas luzes que se
apagavam quando dava dez horas, era mesmo para apressar os fregueses lentos,
retardatários, que muitas das vezes, atrasavam um pouco a saída de muitos, isso
via-se claramente nas fisionomias dos empregados, o desconforto e o incômodo,
os olhares cruzados, pois não viam a
hora de verem-se livres do trabalho extenuante
que acabam de realizar naquele dia, afinal, se não podiam atrasar-se na
chegada, era certo que não iriam querer atrasar-se também na hora de irem
embora. As luzes principais, os grandes lustres que iluminavam aquele salão do
consumo, penetravam todas as entranhas daquele grande estabelecimento, todas as
mercadorias, prateleiras, gôndolas, equipamentos, balcões ficavam às claras. As
câmeras de vídeo rastreavam todos os cantos, frestas, as pequenas sombras dos
insetos noturnos, que quebravam o silêncio da madrugada. Os grandes olhos de
vidro, o guardião onipotente que tudo vê, a vigilância eletrônica que guarda o
universo das mercadorias, plásticos, utilitários, alimentos, matérias de
limpeza, roupas, equipamentos, ferramentas, e tudo quanto os homens podem
necessitar para atender suas demandas diárias. Mesmo à noite, com as portas
fechadas, as luzes, praticamente todas, mantinham-se acessas. O grande galpão
de produtos tornava-se uma imensa vitrine, que não se permitia deixar de
mostrar aos cidadãos, que ele ali estava, pronto para atender tanto às reais
necessidades, quanto aos mais supérfluos dos desejos. Era o templo
contemporâneo, onipresente, onde todos em algum momento, teriam que recorrer.
Quem ainda estava há algumas quadras de distância, já enxergavam de longe seu
brilho, seu lume, como um farol, a proporcionar tranquilidade aos homens que
navegam pelos grandes oceanos do consumo, contra os ventos e intempéries das
políticas dos mercados. Quem trouxesse dinheiro ou algum cartão na carteira,
não teria dificuldades na vida, pois Ele ali tudo podia oferecer, não se
passaria fome ou sede, poderia se controlar o frio ou o calor, e quanto às
opções de entretenimento, aquele supermercado era o melhor que poderiam
encontrar pelas redondezas, seu departamento de eletrônicos, jogos e músicas,
era bastante diversificado.
O senso de organização que possuía para
lidar com as coisas de casa, nas atividades domésticas, também trazia para o
trabalho. Era bem metódica, e começava sempre por ajeitar as prateleiras. Sua
função ali era manter o grande salão limpo e organizado, para que os que ali
viessem pela manhã encontrassem tudo pronto para o funcionamento, sejam
empregados ou fregueses. Muitas das vezes, um sujeito coloca um produto
qualquer em um carrinho, e depois de alguns instantes, desiste de levá-lo, e ao
invés de deixá-lo no ponto que o tirou, deposita-o na primeira prateleira que
vê à frente. Estas e outras tem que observar a dedicada funcionária que corre o
olhos em todas as mercadorias, preenche lacunas, ajeita, afasta os que à beira
da gôndola, estão prestes a despencar, ou o pote tombado lá no fundo do
armário, que encontra-se praticamente invisível. Suas mãos cuidadosas aprumam
todas as coisas, não há marca que se misture à outra, produtos similares que
não estejam devidamente alinhados, mercadorias afins em setores distintos.
Prima pela ordem e pela limpeza. Espana, passa panos, varre, retira a poeira
dos cantos, dá polimentos aos planos e às arestas, deixa transparente os
vidros, deixa mais claro o branco gelado dos frigoríficos, deixa mais nítidas
as marcas das embalagens. Sua dedicação sempre lhe rende elogios, o que sempre
a constrange um pouco, pois não é lá de muitas vaidades, o que faz é por mero e
exclusivo sentimento de obrigação e não que goste de aparecer ou mostrar-se
bajuladora, não aprendeu a fazer diferente.
Ao cruzar o corredor que dá acesso aos
hortifrutigranjeiros, um vento frio atravessa seu corpo gelando-a dos pés à
cabeça, fazendo-a estremecer. Naquela noite, não viera preparada para toda
aquela friagem, e normalmente, como exercita-se muito realizando suas tarefas,
dificilmente é de agasalhar-se, pois o corpo, mantém-se quase todo o tempo,
bastante aquecido. O único momento em que talvez desacelere um pouco é no meio
da noite, quando para alguns poucos minutos para fazer um lanche rápido com um
pão já com a manteiga que sempre trazia de casa. Algumas vezes, trazia um pouco
de café, principalmente nas noites frias, noutras, o pão seria ingerido apenas
com água mesmo. Mas seja lá como for, era o único momento, em que deixava um
pouco de lado os panos e as vassouras. Mas assim que ingeria o último bocado,
metia-se ao trabalho novamente, pois temia que o ócio pudesse afetar seu
coração, e que seus pensamentos distraíssem-lhe a atenção comprometendo o
cumprimento da jornada e missão que tinha à frente. Levanta os olhos para ver
se encontra por onde entrava aquela gélida corrente de ar e aproxima-se dos
janelões da parte lateral do edifício. Ali provavelmente encontraria algumas
frestas abertas. De fato, algumas pequenas janelas abertas na parede superior
criavam a corrente que acabava por varrer vez ou outra os grandes corredores do
supermercado. Ao subir o vão da parede para alcançar o dispositivo de metal que
fechava as janelas avista uma pequena praça ao lado, onde um razoável número de
desocupados, desempregados, pedintes, bêbados, estropiados, famintos e doentes
se amontoavam. Alguns falavam e gesticulavam muito, uns eram ouvidos por
muitos, outros por nenhum. Havia quem falasse sozinho. Outros mantinham-se
calados, ouviam um orador, outros os ignoravam por completo. Um velho com uma
perna infectada e inchada, provavelmente com muita dificuldade de locomoção
parecia entregue ao destino, estava prostrado, não falava e também não ouvia as
falações, tinha os olhos petrificados, as mãos encardidas, eram o sinal
evidente de quem há muito não sabia o que era um bom banho. Alguns homens
andavam inquietos de um lado ao outro da praça, depois se sentavam junto aos
outros, levantavam-se, repetiam o percurso, e sentavam-se novamente. Havia um
clima de tensão, que só foi quebrado quando um sujeito de calças puídas, com
uma magra sacola de pães, onde à primeira vista, percebia-se que não mataria a
fome de todos, aproxima-se do local. Neste momento, ninguém permanece mais em
seus lugares, seus antigos postos. Levantam-se e vão em busca das fatias que
talvez lhes destinassem. Era o momento da ceia, os homens juntavam-se ao que se
encarregava de distribuir os bocados, e seus olhos fixavam-se atentamente nos
pães que eram repartidos e nas mãos que os repartiam para certificarem-se que tratava-se
de fato, de uma partilha justa. Uns que estavam mais atrás na estreita roda que
se formava, equilibravam-se nas pontas dos pés para observar a distribuição,
mas também para chamar a atenção dos outros e mostrar que também eram parte na
disputa. Todos recebem o seu quinhão, que é devorado em poucos segundos. Duas
crianças magras disputam, entre si, as migalhas de seus pães que haviam caído
ao chão. Catavam os farelos maiores deitados sobre as pedras do chão da praça,
e seus dedos, de unhas cumpridas, corriam as junções das pedras, os frisos, as
aberturas, o declive no cimento, onde podiam juntar-se o pó do pão, que levados
ao dedo molhado, cata daqui, cata dali, transformava-se em um pequena maçaroca
que enfiavam afoitamente goela abaixo, como se de farta refeição se tratasse.
Com um empurrão brusco, aciona o dispositivo da janela e esta trava-se de uma
só vez, interrompendo a passagem da corrente que congelava o lugar. Antes de
descer dos degraus, observava mais uma vez aquelas pobres almas, com suas
noites mal dormidas e suas fomes não saciadas. Ali, do alto, tinha como
observar também quase todo o estabelecimento, via as prateleiras por cima, e
percebia bem o conjunto, as divisórias, as seções, as placas com as ofertas, os
preços, anúncios, as tabelas, propagandas, em uma grande conjunção de símbolos,
códigos, cores e sinais. Ela estava praticamente sozinha aquela noite, o outro
funcionário de plantão, tinha demanda grande de trabalho no depósito dos
fundos, e provavelmente só daria as caras, quando o dia raiasse, já na troca
dos turnos. Um calafrio cortante percorre outra vez todo o seu corpo, seu peito
estremece, os braços sacodem-se, e os dentes batem uns contra os outros, como
nas poucas vezes, que precisou entrar nas câmaras frigoríficas. Olha para cima,
mira novamente a janela, e não encontra mais por onde pudesse passar o vento. Esfrega as mãos com força, levanta a gola da
camisa, apruma todo o corpo após um programado arrepio e salta novamente ao
chão.
Ao descer, sente-se tomada de uma grande
inquietação, olha para um lado, para o outro, e praticamente não se lembra do
que estava a fazer. Revira as lembranças, tenta voltar o pensamento, mas estes
lhe falham, e permanece parada em meio ao corredor. Seus olhos voltam-se
novamente para a janela, fixam-se nelas. Imediatamente, num ímpeto, pula sobre
o grande degrau de onde poderia observar mais uma vez aquelas almas. Naquele
instante, as crianças reviravam o saco de pão, que já nem farelos mais trazia
em seu interior, e iam em busca de alguma lasca minúscula que talvez houvesse
encravado em algum canto no fundo ou em alguma dobra do papel da embalagem já
amassada. A busca é em vão, e as duas pequenas criaturas entreolham-se
desconsoladas e cúmplices na escassez e na miséria. A funcionária segura firme
a aba da janela, de onde consegue um bom equilíbrio para poder acomodar-se
melhor. Dali observa atentamente aquela cena. Por alguns instantes, não
consegue ver ou imaginar outra coisa. Quebra, como poucas vezes lhe ocorre, a
rotina cotidiana do trabalho. A friagem novamente percorre seu corpo, e um
calafrio brusco, faz-lhe sacudir ligeiramente as janelas. Assusta-se com o
ruído que provoca e outra vez, prepara-se para descer. Antes, porém, põe-se a
observar uma por uma aquelas gentes, seus olhos fazem uma varredura rápida e
precisa daqueles seres, correm pelos olhos, pelas mãos, vestimentas e gestos,
procura acompanhar cada movimento, cada trejeito daqueles não cidadãos. Observa
que por trás de cada particularidade, cada individualidade, existe algo que
aparentemente lhes é comum, as marcas da necessidade, os signos da desnutrição.
As imagens da partilha do pão persistiam em seu pensamento, o momento em que os
homens viam-se irmanados não pela fartura ou deleite, mas pelas privações e
pela fome. Uma fome crônica, que acumulada há tantos tempos, parece ter se
tornado insaciável, e, portanto, deixado cicatrizes eternas. As marcas das
carências múltiplas manifestam-se não apenas pelas roupas surradas, pelos
farrapos encardidos, nas barbas por fazer, mas estavam incrustadas nas peles
ressecadas precocemente, nas rugas antecipadas, em um couro quase sem brilho.
Muitos carregavam os olhos fundos, a tez franzida, e tinham as pernas finas. As
crianças, pobres e pequenas, estavam longe das alegrias da infância. Os velhos,
distantes do conforto, que a idade deveria demandar. Os jovens, entre uns e
outros, completavam a genealogia da pobreza. Tenta voltar de imediato ao
trabalho, mas uma força maior retém-lhe ali, não consegue desgrudar-se da
janela e as pernas ferram-se ao chão. Volta novamente o olhar, refaz, no
sentido inverso, todo o percurso que acabara de realizar, outra vez as
crianças, dirige-lhes um olhar de compaixão, e aí finalmente, consegue
despregar-se dali, e retornar aos seus afazeres.
Por alguns instantes, custa a lembrar-se
da tarefa que iria realizar, mas assim que atravessa o primeiro corredor e vê
novamente as prateleiras com sua infinidade de produtos, recorda-se que deveria
organizar a seção de frutas, ajeitar as caixas, que muitas das vezes ficavam
remexidas e fora do lugar, retirar as frutas que não mais se apresentassem boas
para o consumo e as folhas apodrecidas, retirar uma fruta ou outra que
estivesse afastada de seus pares, ou que tivesse sido colocada com outras
frutas diferentes, seja pela preguiça dos adultos em devolver de onde tirou
aquela que havia desistido de levar, ou pela traquinagem das crianças, que
muitas das vezes, divertem-se com o mal feito, o que não significa que apenas
às crianças devemos reportar a qualidade. Ao dar dois passos na seção, o aroma
das frutas invade suas narinas, e ela respira fundo, como a tragar todo o odor
que cada uma delas exalava. Era um cheiro doce, suave e amargo, um cheiro da
terra e de suas entranhas, seus frutos. Deliciava-se. As frutas estavam
bonitas, grandes e vistosas, cada espécie com suas formas e cores únicas.
Encantava-se. Tinha a impressão de conhecer poucas coisas tão bonitas e procura
aproveitar-se à vontade aquela sensação. Observa atentamente todo aquele
colorido, enche os pulmões, e procura outra vez, captar todo aquele universo de
aromas que aquela grande seção de frutas poderia proporcionar. Respira fundo. Mas,
outra vez, tenta mover-se e não consegue, como acabara de ocorrer agora a pouco,
porém em circunstâncias diversas. Primeiro, sobre os degraus, pendurada na
janela, agora, em frente esta banca farta de frutas. Estava totalmente
paralisada, um torpor inexplicável tomava-a a cada músculo, porém mantinha-se
firme de pé, e uma sensação agradável e de conforto revirava-lhe a alma, e as
cores das frutas povoavam o seu pensamento. Mantém-se tranquila. Após alguns
instantes consegue levantar levemente os braços e escora-se no balcão.
Finalmente percebe que aquele não era um dia como os outros, e sente-se
ligeiramente atordoada. Repentinamente, todos os estímulos voltam a lhe
responder, mas seus olhos estão diferentes, trazem lampejos. Sente em segundos,
cada pedacinho de seu corpo, e sente-se inteira. Das pontas dos pés ao último
fio de cabelo, cada músculo, tecidos ou nervos, dão-lhe resposta de vida.
Sente-se tomada de um ânimo juvenil. As pernas põe-se a correr ligeiras, como
não se lembra de ter feito naquele local.
Quebrando radicalmente uma rotina
inalterável há alguns anos, retira uma peça estrutural do lugar, interrompendo
algo pelo qual sempre zelou, a manutenção da ordem das coisas em seu local de
trabalho. Quando retira alguma mesa, ou arrasta algum freezer qualquer, o faz
tão somente para que possa retirar alguma poeira escondida ou um sujo do chão,
que a vassoura não conseguiu retirar. Tão logo resolva o problema, volta
imediatamente o móvel para o lugar, como se dali ele nunca houvesse se
afastado. Ela era assim. Desta vez, porém, age completamente diferente. Arrasta
abruptamente um grande balcão que servia também como divisória entre uma área
de acesso ao público em geral, e outra restrita, onde podem entrar apenas os
funcionários, devidamente munidos de crachá e uniforme. Após abrir um grande
vão entre uma área e outra, retira uma grande mesa de madeira de dentro, onde
os empregados utilizavam para as mais variadas funções, cortar, pesar, medir,
embalar, onde também ficam acessórios e instrumentos de trabalho. Após retirar
toda a parafernália que sobre ela se encontrava, puxa-a de uma vez, e arrasta-a
para a parte central do supermercado, um local onde havia um espaço maior entre
as prateleiras, praticamente uma área de confluência, onde durante o dia,
quando a loja estava aberta, um grande número de pessoas se cruzava. Afasta um
pouco uns caixotes, alguns pequenos balcões expositores, e em instantes, abre
uma pequena clareira entre aquele mundo de mercadorias, e bem ao centro,
estaciona a grande mesa. Faz todos os movimentos em um ritmo apressado, como se
o tempo se tornasse cada vez mais curto, para realizar todas as tarefas que
tinha à frente.
Passa um pano úmido sobre aquela mesa, que
mais parece um grande tablado, e em seguida, vai rapidamente até uma prateleira
da seção de produtos de cozinha, pega uma belíssima toalha colorida de papel, e
a estende cuidadosamente sobre ela. Em seguida, vai de um lado ao outro, cruza
seções, atravessa balcões, abre e fecha geladeiras, e aos poucos, mas
apressadamente, vai enchendo a mesa de produtos. Colocou sobre ela, várias
caixas de leites e sucos, garrafas de refrigerante, pães, bolos, salames,
defumados, frutas, e uma grande variedade de doces, biscoitos e chocolates.
Ajeitou daqui, ajeitou dali, e ornamentou aquela mesa, como se de um grande
banquete se tratasse. Em poucos minutos, tinha diante de si, uma mesa como ela
mesma nunca havia visto em toda sua vida. Já havia organizado festas de
aniversário na família, participado de inúmeras cerimônias de casamento,
organizados ceias de Natal, mas nada que lembrasse aquela fartura que acabara
de colocar à mesa. Seus olhos brilhavam. Uma luz branca que vinha do teto
iluminava todo o seu rosto, e um sorriso farto desprendia-lhe de um canto dos
lábios. Carregava um ar de felicidade.
Ao constatar que sua obra estava pronta,
corre até o portão dos fundos, que dá acesso à praça, abre-o de uma vez, corre
até o meio dos homens e das crianças que vira há pouco e convida-os para uma
ceia farta, explicando que o tempo que tinham era curto, e que, portanto, se
quisessem aproveitar o máximo o que ela tinha a oferecer, deveriam ser rápidos.
Os homens, a princípio, olham uns para os outros, desconfiados, ficam sem
entender a oferta, mas diante da insistência da mulher, e do ronco dos
estômagos, que reagem instintivamente, diante do pensamento que a surpresa
poderia ser verdadeira, não pensam uma segunda ou terceira vez, e vão verificar
o que havia por trás daquela porta. Ao verem a ceia pronta, dirigem-se afoitos
a ela. Alguns, mais famintos, abrem ali mesmo alguma embalagem e iniciam a
degustação, outros acham mais prudente, colocar o que pudessem debaixo dos
braços e abandonarem o mais rápido possível o local. Os homens entreolham-se
meio sem entender o que viam, mas não podem perder aquela oportunidade. Sobre a
mesa, alimentos que nunca tinham tido como saborear, apesar de já tê-los visto
algum dia, e havia também aqueles que viam pela primeira vez, era uma
descoberta. Embalagens coloridas, frutas saborosas, guloseimas de todas as
espécies, estava tudo ali, a disposição daquelas almas nunca saciadas, daquelas
fomes crônicas. Quem pensou em saborear aquelas delícias apenas do lado de
fora, acabou mudando de ideia ao verem os companheiros já com as bocas cheias e
olhos vidrados, e todos abriam vorazmente os pacotes, plásticos, embalagens,
rompiam os lacres, fatiavam pedaços, as crianças faziam festa. Ela não
participava do banquete, mas olhava o tempo todo, não perdia um movimento
sequer, cada mordida, cada um dos produtos que eram abertos, cada olhar de
surpresa e indagação. Estava inerte, e posicionada num ângulo tal, que não
havia quem pudesse furtar-se ao seu olhar, à sua observação. Tinha a feição
serena, mas carregava nos olhos um farol luminoso e o corpo parecia queimar. O
frio que sentira mais cedo desaparecera de vez e uma chama incandescente
ardia-lhe a alma. Era alta madrugada quando o último homem atravessou a porta
de volta para a rua. Sobre a mesa, nenhum alimento sobrara inteiro. Apenas farelos
e restos do que fora uma farta refeição. A praça ficara vazia, no entanto. Os
homens não voltaram para lá.
Assim que tranca a porta dos fundos, e
encontra-se novamente sozinha, naquele supermercado violado, uma sirene alta
interrompe o silêncio da noite e luzes vermelhas e giratórias refletem nos
vidros do portão principal. O local estava cercado. Um exército de homens
armados, com cães, fuzis e veículos blindados arrebenta as fechaduras e num
piscar de olhos, ocupam todo o interior do estabelecimento. As câmeras haviam feito
o registro e dispensavam grandes interrogatórios, as imagens falavam por si. A
mulher não foi poupada. Meteram-lhe uma grande algema e empurram-na para um dos
carros. Dentro do supermercado, os homens discutiam e avaliavam o tamanho do
prejuízo. De dentro do veículo, ela mantinha a expressão inalterada. Tinha a
feição serena e mantinha os olhos iluminados. Quando o policial liga o motor
para dar a partida, ela dá a última olhada para o supermercado. Sua face é
tomada de um largo sorriso.
FIM
Marcos Vinícius.
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