sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

O Labirinto




O Labirinto



O nome realmente fazia por merecer. O lotação estava tão cheio, que difícil era entender porque o motorista ainda parava nos pontos. Certamente são os ossos do ofício, não se sabe os problemas que o condutor pode ter caso passe direto pelas paradas deixando um sem número de furiosos a praguejar. São os rituais, obrigações da profissão que não podem ser esquecidas, ou quem sabe, ainda, movido por uma sensibilidade moral ou um compromisso ético, de pelo menos provar aos que esperam, que de fato, não cabia mais ninguém ali dentro. Passar pelo corredor do veículo era um sacrifício e um desconforto tal, que só se justificava pela necessidade absoluta de uma hora ter que descer. Sorte é que desta vez vinha sentado, uma senhora que sentava-se justamente próxima de onde se contorcia de pé, levantara-se, e ele sem perder um instante, põe-se, confortavelmente, em seu lugar. Assim ia por já bastante tempo. O ônibus havia praticamente atravessado a cidade, cortado ruas, avenidas e bairros. Ele não estava na janela, mas a observava o tempo todo. Distraía-lhe mais as cenas rápidas que ia vendo do lado de fora, do que com as conversas e os olhares dos que com ele viajava. Observava distraidamente, apreciando o cenário urbano que desfilava sob seus olhos. Os pensamentos moviam-se quase ao ritmo do ônibus e ao compasso de seus sacolejos e curvas. Olhava, olhava, mas seu pensamento, porém, não conseguia fixar-se em ponto algum. Ao cruzar a grande avenida, que corta o centro da cidade, lembra-se que se aproximava o momento da descida. Iria enfim, abandonar aquele carro, livrar-se daqueles corpos apertados, que espremiam-se entre resmungos e sussurros, afagos e empurrões, em um apertado coletivo, onde talvez, os estranhos certamente, nunca ficaram tão próximos.



Levanta-se e com uma das mãos agarra a alça de metal que descia do teto, com a outra, segurava o encosto do banco da frente, preparando o corpo para a difícil travessia. Assim que aprumou-se, fez soar a campainha. Entrar naquele corredor era realmente a parte mais desagradável da viagem. Era praticamente impossível não incomodar alguém, os olhos dos que encontravam-se de pé, arregalavam-se entre a ira de ver mais um a apertar-lhes o corpo, e a cobiça diante da oportunidade de poder, enfim, apropriar-se de um assento. A revolta intensificava-se quando além de levar mais um empurrão e aperto, via outro mais rápido e ágil, roubar-lhe o lugar. Era ato contínuo nestas viagens dos lotações. Finalmente, infiltra-se, estica um braço daqui, levanta outro sobre as cabeças, dá um passo, suspira, toma fôlego, pede licença, dá outro passo, empurra, aperta, ajeita, rebola, avança, recua, arrisca, e enquanto o suor dava sinais, de querer escorrer pela testa, a porta de saída vinha aproximando-se. O desconforto era maior quanto menor fosse o número de passageiros a descer na mesma parada. Quando são muitos os que descem, um fluxo natural de corpos e almas se instala, e os viajantes vão sendo levados, quase naturalmente até a rua. Mas quando são poucos, a luta pela saída é dura e estende-se até a porta, quando se é praticamente empurrado para fora, ou insultado com palavras e cotoveladas.



Depois de muito esforço, pois atravessara quase meio ônibus, depara-se com a porta que bruscamente abre à sua frente. O motorista ainda segurava o pé ao freio. A sensação de desgrudar-se, livrar-se daquele emaranhado de corpos que se contorcem sob o calor da tarde, proporciona-lhe uma invejável sensação de alívio. As pernas e os ombros, libertos, podem agora movimentarem-se em paz. A saída fora tão rápida, que seria de se perguntar, se havia dada um salto, pulando os degraus, para libertar-se definitivamente do povaréu, ou se ao contrário, fora a tripulação estressada que o havia enxotado de vez, para que o aperto se aliviasse, e para que o condutor pudesse iniciar logo a viagem interrompida. O fato é que chegara à calçada um pouco atordoado. Sente-se um pouco zonzo, talvez pelo calor excessivo ou o ruído das ruas, e lembra-se de levar a mão à carteira para conferir o dinheiro e os documentos. Ao puxá-la do bolso, pequenos papéis com anotações de telefones e endereços, que se deixavam à mostra, são apanhados por uma furiosa corrente de vento, e rapidamente se misturavam aos outros papéis e lixos que esvoaçavam por sobre as cabeças. Um redemoinho de folhas, pó e papelões, que despenteava os transeuntes, levava aquelas informações para sempre. O documento de identidade que levara consigo, talvez devido ao peso do plástico, resistira a ação violenta do vento, mas mergulhara-se ao chão. Para azar de seu dono, esborrachava-se em cheio a uma poça que se formara na descontinuidade dos blocos da calçada. Imediatamente, refaz-se do mal estar, agacha-se, apanha o documento, e esfrega-o nas pernas das calças, para tentar recuperá-lo da água suja que quase o desintegrara. O estrago, porém, não fora pequeno. A foto estava intacta, não fora nem tocada pela água. Já os dados do portador, a identificação, os números e registros, escorriam pela ponta plástica, sujando seus dedos com gotas que corriam escuras e velozes. Faz um olhar de desolação. Levanta o documento à altura dos olhos e para sua surpresa, apenas seu primeiro nome ficara registrado. João. O resto do documento, além da fotografia, era um grande borrão. Havia desaparecido todos os dados, sua naturalidade, sobrenome, estado civil ou idade. Nenhum sinal que pudesse traduzir-se em identidade o cidadão. Apenas o primeiro nome, João. Mesmo sabendo que o registro não mais teria valor ou utilidade, pois apenas com uma foto e um nome, sem qualquer carimbo ou sequer outra letra legível, melhor talvez fosse atirá-lo ao lixo, mas por prudência não o fez, pois constatara que aquele era o único que carregara consigo.



Mesmo lamentando a perda de tão importante documento que lhe acompanhava há vários anos, ainda conseguia dar-se por satisfeito, pois o dinheiro que trazia na carteira estava intocável, três notas gordas, que poderiam proporcionar-lhe um dia inteiro sem muitas privações. Põe-se, então, a andar, e ao contrário do que fazia, quando estava dentro do ônibus, olhando para os lados, as lojas e vitrines, volta-se agora, obstinadamente para frente. E vai, quase silenciosamente, murmurando seu nome. João, João. Inexplicavelmente, uma força brusca, que parece desprender de seus músculos e nervos, trava seus passos. Mantem-se inerte no meio da calçada, com as pernas duras. Um pensamento repentino deixa-o totalmente paralisado. João. Mas João de que? Sabia da infinidade de Joões que tem por aí, um universo inteiro, mas que estrela seria a sua? João da Silva, João de Deus, João Aparecido, João das Almas, João Costa, João Penido, João da Cruz, João Alberto, João das Luzes, João das Trevas. Que João seria, afinal? Nenhuma resposta lhe vinda à mente. Um nada. Um buraco negro. Os borrões de sua prejudicada identidade. Forçava-se, procurava concentrar-se, evitava os olhares dos que por ele passavam, necessitava desesperadamente encontrar-se. Era simplesmente, unicamente João. Procura descontrair-se, sabe que não é o primeiro nem será o último a ter lapsos de memória, mas o incomodava profundamente a dimensão do esquecimento. Escapar-lhe o próprio nome. Arrancou o documento do bolso, em desespero, como se para confirmar que aquilo era mesmo real. Uma foto e um nome apenas. Um resto de tinta havia se acumulado no canto inferior do documento, quando as últimas gotas da água suja escorreram pelos panos do bolso. Quantas letras, números, guardariam aquela pequena porção? Quanto de João levará guardado aquela ponta úmida de papel e plástico? Mete novamente o documento na carteira, enfia-a no bolso e resolve seguir seu caminho. Uma hora lembraria.



Anda alguns metros, e em uma loja grande e espaçosa e com pouco movimento, depara-se com um grande espelho, uma parede inteira. Caminha apressadamente em sua direção. Posiciona-se diante dele, quer ver-se por inteiro. Seus olhos percorrem sua imagem refletida dos pés à cabeça, a imagem inteira, cada milímetro, as mãos, as roupas, o sapato, os cabelos, o rosto, tudo, muito rapidamente, procurando dimensionar-se, ir ao encontro de si. Não deixa escapar qualquer detalhe, sequer uma pequena mancha que levava próxima ao botão superior da camisa. Realizava um verdadeiro trabalho de reconhecimento. Leva as mãos ao rosto, tateia a boca, o nariz, as sobrancelhas, e os dedos percorrem lentamente os sulcos e pequenas fendas que iam se abrindo por sob a pequena bolsa que carregava seus olhos. Que idade teria? Outra vez vinha-lhe a mente a sombra da identidade. Que idade teria? Ainda não iria desesperar-se fatalmente, pois a observar bem, era algo que girava em torno dos cinqüenta anos. Não muito mais ou não muito menos. Mas a idade precisa, apesar dos esforços, não lhe vinha à lembrança. Os olhos buscavam na imagem um sinal, um dado qualquer, que pudesse transmitir-lhe qualquer informação a respeito de si mesmo. Não encontrava. Vestia-se sem grandes distinções, mas também não era um maltrapido, era um sujeito comum, que poderia ser encontrado em qualquer ambiente. Não havia um traço que o destacasse ou distinguisse, talvez pudesse mesmo ser um cidadão qualquer de qualquer grande centro do mundo. Cabelos bem penteados, a barba feita, estatura mediana, e peso aparentemente correspondente à altura. Mira seus olhos nos olhos da imagem, procura por dentro, investiga, mergulha, interroga e outra vez sem resposta. Volta à rua.



João retoma a caminhada. Anda por dois quarteirões, atravessando duas ruas estreitas, e chega a um grande cruzamento. Ali uma grande multidão se deslocava. Um ir e vir sem fim, entre um turbilhão de veículos e uma extensa rede de semáforos. Quando aproxima-se da esquina, da beira da calçada, onde a rua corta-se por todos os lados, retém-se, observa os letreiros que há no entorno, as placas, lê-as todas, reflete, observa os números dos ônibus e os caminhos que tomam, mas decididamente, não sabe para onde deslocar-se. O que exatamente faz ele ali naquele local, aquele horário, no meio daquele grande centro, entre milhares de pessoas que certamente sabem para onde vão? Observa atentamente vários dos que por eles passam, e tem a breve sensação que estão todos programados, com uma rota certa, um traçado pré-definido, caminham todos com passos firmes, parece que além dele próprio, ninguém ali tem dúvidas sobre o roteiro a seguir, o rumo a tomar, mesmo por que, a maioria tem pressa. Encosta-se em um poste e vê uma cena que chama sua atenção. De uma porta estreita, em cujas laterais havia duas placas divulgando preços promocionais de sucos e salgados, sai um homem completamente embriagado. Assim que transpõe a porta do pequeno e estreito bar, leva a mão aos olhos, o interior pouco iluminado do local, onde provavelmente permaneceu por um bom tempo, fez com que se desacostumasse com o excesso de luz. O rosto e a boca estavam um pouco inchados, a camisa desfeita, as pernas pareciam querer dar rasteira uma na outra, por pouco, uma ligeira cambaleada e um tropeço, quase o levam ao chão. O homem escora-se, leva as mãos na parede, e prossegue seu caminho. Seu andar era trôpego, mas sabia para onde ia, onde deveria chegar. João ficou a observá-lo até que desaparecesse de seu campo de visão. Aquela cena deixou-o ainda mais atordoado. Para onde iria ele?



Diante mais uma vez da falta de alternativas ou respostas, resolve sentar-se em uma lanchonete para tomar fôlego, e quem sabe, recobrar suas energias, livrar-se do mal estar, aí sim, lembraria novamente, não apenas para onde ir, mas também o seu nome, e quem de fato era. Senta-se, pede um café, um pão quente, e põe-se a comer. Ao pegar a xícara, detém atentamente os olhos sobre suas mãos, quem sabe ali não estaria um vestígio qualquer de sua identidade perdida. Um calo nos dedos, uma marca ou cicatriz, uma pequena mancha, sinais de algum ofício, algum trabalho, mas as mãos não lhe aliviavam a angústia, apressavam-se apenas em levar o café à boca. Sentia fome, a visão das guloseimas que se expunham nas vitrines dos balcões, abria-lhe o apetite, conhecia bem cada um daqueles salgados e doces, não tinha dúvidas quanto a interpretar o cardápio, ler as informações, placas ou letreiros que encontrava diante de si. Mas quanto à pessoa que era, nada ainda, nem um sinal, uma informação, uma pista ou indício. Não iria mais tentar prosseguir, desconhecia o destino, resolve, então, voltar para o ponto de origem, fazer o caminho de volta, retornar ao local de onde viera. Quem sabe assim, seu drama pudesse ser resolvido. Engole a última lasca de pão apressadamente, corre até o caixa para pagar o que deve, e saí com passos largos em direção ao ponto em que descera, que não estava muito distante dali. Em poucos minutos, encontrava-se exatamente naquele local onde desembarcara, a poça ainda estava lá, do mesmo jeito, ocupando o mesmo espaço e com a mesma quantidade de água. Agacha-se sobre ela, e consegue ver o vulto de seu rosto sobre o líquido amarelo, como a desafiá-lo. Um vento que se arrastava rente ao chão desenha ligeiras ondas naquela pequena poça que se alarga, sua imagem refletida amplia-se e parece rir da imagem real. João levanta-se de uma vez. Uma dor súbita atravessa-lhe o peito. Não sabia para onde voltar.



Estranha sensação. Sem saber o que é ou que fora. De onde veio e que rumo deverá tomar. Como faria agora para recuperar a si próprio? É comum que ao longo da vida percamos uma coisa ou outra, ou várias delas. Afinal, não temos como nos agarrar a tudo a que um dia possuímos. Sempre nos lembraremos de um inconveniente de uma chave perdida, um dinheiro qualquer, um amor, um guarda-chuvas, mas perdermos o que somos, é algo que talvez não ocorra lá com muita freqüência. Estava ali de pé, outra vez sem ter como locomover-se. O que faria a partir dali? Talvez nunca mais voltasse a ser quem era. Não recordava-se de um parente, amigo, um endereço, trabalho, onde mora, nada. Se a cidade fosse pequena, talvez, quem sabe, fosse encontrado por algum conhecido, aí lhe pediria ajuda, e este o levaria para casa, junto aos seus, se é que os tinha. E tudo voltaria ao normal. Mas em uma metrópole deste porte, as possibilidades eram mínimas. Quem sabe fosse alguém famoso ou popular, e em questão de horas, fosse logo identificado por algum fã ou simpatizante qualquer. Mas não parecia ser simples assim. O tempo passava, ele não encontrava ninguém, nem era encontrado, não achava um elo qualquer que o ligasse a sua história pessoal.



Compreendia o mundo que via, mas não sabia que vínculo agora possuía com ele. Nada havia mudado na história da humanidade, apenas na sua própria. Da primeira ainda entendia bem, mas da outra, já coisa alguma. As coisas ao redor, lhe faziam sentido, não era um alienado total. Podia andar pela cidade, entendia o que via, tinha a plena noção de como se organiza esta civilização, da qual tem plena consciência fazer parte, apenas não sabe como. Era estranho e desconhecido apenas de sim mesmo. Não havia muito o que fazer. Vai então perambular pela cidade, a esmo, quem a sabe a sorte, possa lhe restaurar a existência. Leva outra vez a mão ao bolso, retira a carteira, certifica-se que o dinheiro que levava poderia cobrir-lhe as necessidades por no máximo uns dois dias, e arranca, violentamente, o documento manchado. Lá estava novamente, uma foto, era a sua, não havia como negar. O espelho que mirara há pouco, acabava por confirmar. E um nome apenas. Agarra-se ao documento, como o doente em seus suspiros últimos quer agarrar-se à vida, com as forças e esperanças que ainda restam. Segura-o firmemente, observa-o, posiciona-o contra a luz, em perspectivas diferentes, mas a água escura havia feito a limpeza completa.Mesmo assim, não jogaria aquele documento fora por nada, era o fio fino que talvez pudesse conectá-lo ao mundo.



Era incrível, mal podia acreditar no que lhe acontecera. Vai andando pelas ruas, olhando para os outros homens e mulheres que cruzavam seu caminho. Esforçava-se por olhá-los um a um, mesmo sabendo da impossibilidade da ação, pois eram inúmeras as pessoas que povoavam aquele hipercentro, porém, era uma forma de manter viva a esperança de que em algum daqueles olhares, daqueles tipos, alguém que lhe fosse próximo, aparecesse em uma esquina, trazendo-lhe a solução. Não tinha dúvidas, que se casso se deparasse com alguém bem conhecido, do seu dia a dia, não lhe iria passar despercebido. Ele mesmo, pensa, o reconheceria de imediato. Afinal, o mundo e a cidade não lhe pareciam tão estranhos. Naquela parte mesmo da cidade em que se encontrava, sabia que já havia passado por ali, incontáveis vezes. O cenário à volta eram-lhe familiares, o que lhe infernizava mais a cada instante, era não saber como se encaixar nele. Que peça seria em meio a este gigantesco quebra-cabeça que tem diante de si? Teria sido a memória que fatalmente falhara ou o seu passado recente, a sua história toda que resolvera escapar-lhe de vez? Seria, pois, um renascimento, a vinda de outro super-homem, um milagre qualquer, ou o simples prenúncio de uma fatalidade, a morte anunciada, a eliminação completa e definitiva? A cidade cheia, movimentada, dinâmica, com suas várias multidões, gestos e apelos, naquele momento, não lhe faziam qualquer sentido. O mundo é real, palpável, vê todas suas cores e formas, mas que significado ele teria dentro dele? Em que medida seria ele parte integrante? As dúvidas se acumulavam. Talvez fosse um simples fantasma, proveniente de gerações passadas, e que aqui acabara de chegar, um extra-terrestre programado para o esquecimento, ou quem sabe ainda, um destes avatares modernos, criados pelos jovens em seus computadores possantes, e agora possíveis de serem soltos por aí? A cabeça já lhe pesava. Abatido por um forte mal estar e um tremor frio que lhe atravessa o corpo, resolve interromper a caminhada, e procurar um local onde pudesse sentar-se um pouco. Atravessa duas avenidas, com os olhos sempre atentos à multidão, e por fim, encontra uma pequena praça, com alguns poucos bancos, cercada por algumas árvores antigas e frondosas, que lhe renderiam uma boa sombra. Seria ali, onde descansaria um pouco, e recuperaria forças para retornar à vida normal.
Havia encontrado um banco em um ponto mais afastado da rua, debaixo de uma grande árvore, e considerava-se com relativa sorte, pois ali poderia refletir um pouco sobre sua nova condição sem que fosse incomodado. Senta-se, estica as pernas, e inclina a cabeça para o alto, observando os longos e sinuosos galhos que sacodem ao vento, o universo de folhas, os pássaros que vão e vem, o movimento da vida. Um tímido vento sopra-lhe ao pescoço e parece aliviar um pouco suas dores. Observa o céu por sobre as árvores. A noite não tardaria a chegar. Uma fresta de luz ilumina seus ombros. Os músculos descontraem-se e seus olhos se fecham.



Acorda repentinamente, assustado. Um solavanco brusco em seus pés, quase lhe arranca do banco. Ao abrir completamente os olhos, vê dois jovens garotos correndo em disparada. Levaram-lhe os sapatos. Era noite alta. Dormira demais e o sono pesado não lhe permitiu perceber a chegada dos garotos. Além de não haver recuperado o que de mais importante havia perdido, ainda perdera os sapatos. Leva a mão ao bolso, outro susto, a carteira havia sido roubada, estava sem dinheiro algum. Apenas o documento estropiado ainda se encontrava com ele, pois estava no bolso inacessível aos ladrões. Agora nem o pouco dinheiro que poderia ainda lhe garantir uma ou outra refeição, a sobrevivência por quem sabe um ou dois dias, tinha mais. Mais que o não-cidadão, os ser que não é, era agora também um despossuído. Um vento frio cortava-lhe os pés descalços e um calafrio agudo fazia tremer seu corpo inteiro. Inclina-se sob o banco, corre os olhos ao chão, para verificar se pelo menos uma nota, não deixaram os garotos para trás, diante fuga apressada. Inútil, nada mais conseguira localizar, além de papéis de bala, uma tampinha de refrigerante e dois tocos de cigarros.



Ao levantar a cabeça, desconsolado, vê dois policiais vindo em sua direção, eram enormes, tinham a farda bem passada, os braços de ferro, uma boina que quase tampava um dos olhos, escondendo um olhar duro, e tinham os dois, o rosto largo, quadrado. A rua estava deserta, os outros bancos estavam todos desocupados. Apenas ele e os dois policiais pareciam povoar a inquietante madrugada. Os policiais aproximam-se e ordena que fique de pé. João se levanta, leva as mãos ao pescoço, enquanto um dos homens faz a revista. A única coisa que encontram é o documento. O policial puxa-o de uma vez, arrancando-o violentamente do bolso. Levanta-o para o alto e chama seu companheiro para ver mais de perto. Não havia nada escrito ali, apenas a foto do homem. Com os olhos fulminantes, impetuosos, e uma voz metálica e rouca indaga a seu dono. O que é isto? Ele não responde. O policial lhe devolve o que sobrara do úmido documento. Mas o que é isto? Pega rapidamente o documento de volta, como que se este fosse sua única tábua de salvação, seus olhos se esbugalham e o coração aperta, quando percebe que a umidade do papel havia se alastrado por todo o documento, e já nem mais um nome restava. Um outro borrão se formara entre o plástico molhado e o papel, era o pouco que havia restado de si. Até a fotografia já apresentava sinais de esmorecimento, uma pedaço rasgara e começa a deslocar-se do lugar. Novamente, um estrondo invade seus ouvidos. O que é isto? Quem é afinal? Esbravejava o gigante de fardas e botas. O pobre homem não conseguia balbuciar palavra alguma, pois elas não lhe vinham à mente. Qual o seu nome? Insistem as policias. Já não mais o sabia. Não se recordava de nome algum que pudesse dar como resposta. Os policiais não perdem mais tempo. Algemam o homem e atiram-no ao carro. O motorista arranca apressado. No meio do caminho, tem suas pernas amarradas. O veículo segue rumo à saída da cidade. Atravessam os bairros periféricos, acessam a grande rodovia, e deslocam-se em direção às montanhas. Quando a madrugada ensaiava findar-se, estacionam à beira de um precipício, e antes que nele chegassem, uma grande fenda sem fim incrustada ao chão, lhes abreviava a missão. Era um grande fosso de pedras de bocas largas e goelas escuras e profundas. Perguntam ao homem, mais uma vez, se este não lhes diria o nome. O silêncio era completo. É empurrado ao fundo.



Marcos Vinícius.

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