O Rei e os ratos.
Já há muitos anos que era senhor
absoluto por aquelas terras. Na verdade, o poder que acumulava não era fruto de
apenas uma vida ou geração, era poder
que vinha de muito tempo, pois a família tinha sangue real e, em função da
precariedade do serviço de registros, não se sabe dizer ao certo, há quanto
tempo dominaram por ali. O reino era bem vasto, resultado de uma política
expansionista agressiva, levada a cabo por várias gerações de antepassados .
Sob seu comando, atingira o seu limite máximo, nunca fora tão amplas suas
fronteiras. Dominava não só a região das montanhas, os planaltos, mas também a
região dos lagos, as planícies, os vales e as praias. Os domínios estendiam-se
por desertos e florestas. As insígnias do poder real espalhavam-se por todos os
cantos, para que o rei pudesse estar em todos os lugares, onipresente, a
fiscalizar a todos, a ditar-lhes as ordens, a ameaçá-los, pois de ameaças e
arrogância também se faz o poder. Não havia muro, construções, monumentos,
templos, prédios, que não trouxessem dependurados ou gravados os símbolos do
Estado, da nação. Era preciso sempre lembrar aos homens, aos povos, quem de
fato, exercia o domínio e o poder sobre eles. Era necessário também espalhar o
medo, pois sem ele, dificilmente, reinos, impérios sobreviveriam ao longo dos
tempos. A demonstração de força é recurso fundamental dos que desejam manter
entre as mãos o cetro e, sobre os ombros, o manto real. Não há realeza que
sobreviva ante súditos destemidos. Vez ou outra, punições exemplares, públicas,
geralmente em praças, em centros religiosos, para que possam, também as
execuções, serem atos de fé, consagrações. Os impérios se edificam não apenas
sobre leis e fortalezas, pedras e pontes, mas também sobre o sangue dos homens.
Ele era particularmente impiedoso.
Gostava, na maioria das vezes, de participar diretamente dos rituais de
execução. Não se sabe ao certo o porquê do gosto especial que sentia nisso, mas
era algo que há muito o fascinava. Talvez, fosse mesmo o momento em que mais
poderoso se sentia. Afinal, era ali, mais que em qualquer outra ocasião, que se
manifestava e se comprovava seu poder absoluto, pois podia trazer à morte quem
desejasse, no momento em que melhor lhe conviesse. Não era ele quem dava o
golpe final, mas fazia sempre questão de entregar, pessoalmente, o machado ao
carrasco. Eram ritos que considerava necessários,
para que pudesse tornar-se e manter-se especial e temível diante dos olhos de
seus súditos. Quando jovem, fizera vigorar por alguns anos uma lei que
condenava ao degredo ou à morte quem ousasse sobre sua sombra pisar. Gostava
sempre de manter-se à distância dos outros seres supostamente inferiores,
mortais. Não que dispensasse os bajuladores, mas é que no fundo, sentia-se um
deus, o qual de fato não poderia ser, se muito próximo aos homens estivesse.
O excesso de vaidade condenava-o a
alguns vícios. Geralmente, não usava a mesma roupa mais de uma vez, o que não
era um problema, uma vez que possuía inúmeras costureiras e criadas à sua
disposição. Mais difícil às vezes o que sempre custava algumas vidas, era
conseguir as matérias-primas, pois muitas de suas vestimentas preferidas eram costuradas
com peças, tecidos, pedrarias, jóias, vindas de terras muito distantes e de
difícil acesso. Fazia questão de perfurmar-se como ninguém. Havia uma grande
perfumaria no palácio, onde montou uma considerável equipe de especialistas
provenientes das mais diversas regiões do mundo até então conhecido.
Semanalmente, banhava-se com ervas, flores, perfumes, para que a ninguém mais
fosse proporcionada a graça dos mais finos aromas e cheiros. Usava pomadas,
ungüentos, cremes, que retardavam o envelhecimento e proporcionavam uma pele
suave, como só os reis, príncipes e princesas podiam usufruir. As roupas eram
costuradas com fios de ouro. A coroa era mais bela e rica do que a de todos os
outros ancestrais.
Fazia questão que as ruas e os caminhos
por onde passasse fossem todos exaustivamente varridos, mais pelo ritual que
lhe proporcionaria pela passagem, com centenas de homens e mulheres envolvidos
na varrição, quando ia por longas caminhadas, que por uma mania ou obsessão
pela limpeza. Não gostava de animais em casa e fazia questão que os tapetes
fossem sempre trocados. Mas algo o irritava profundamente: Ver ratos
atravessando os cômodos e dependências do palácio. Nunca o admitia.
Característica que, a propósito, herdara
das gerações anteriores, pois recorda-se que já seu avô possuía verdadeiro
horror aos roedores e sempre mandava seus criados persegui-los e eliminá-los.
Tarefa que depois se soube inglória, pois por mais que se perseguissem os
murídeos, eles estavam sempre, ainda, a cruzar-lhe os caminhos.. Já os
encontrara em vários cômodos, pelos corredores e até pelos grandes jardins. Se
era assim pelas entranhas do palácio, imagine quando ia o rei visitar as
regiões mais distantes e pobres do seu crescente império... Essa presença
animal deixava-o intrigado. Se já subjugara tantos povos, eliminara tantas
aldeias e povoados, vencera tantas guerras e batalhas, por que sua dinastia não
fora capaz, enfim, de eliminar os malditos ratos? Que teriam esses animaizinhos
que os fazia resistir aos tempos, aos exércitos e às escaramuças? Com eles,
nada podiam as armas, os venenos, as orações, as mudanças de hábito, a força, e
parecia nada poder também os deuses.
Vem atravessando as gerações de homens, súditos e reis, invencíveis.
Muito o incomodava saber que, a rigor, os
ratos dominavam aquelas regiões muitos
anos antes que os seus mais antigos antepassados, pois pertencem a uma estirpe
animal que soma dezenas de milhões de
anos, existentes desde tempos imemoriais. São mesmo antiqüíssimos estes
roedores que são aparentemente insaciáveis. Uma eternidade a roer. Vem há
milhões e milhões de anos no encalço dos homens, afinal, a humanidade sempre
proporcionou a eles uma grande possibilidade de sobrevivência, com seus mortos
insepultos, seus lixos individuais e coletivos, sobras, restos, esgotos,
sujeiras de todos os tipos. Muito do que não é bom para os homens é banquete
para eles. Afinal, um sistema olfativo privilegiado deu-lhes condições, não só
de escolher o que lhes é saudável entre o que perdido está, como ainda lhes proporcionar
a possibilidade de escolhas, entre variadas preferências e cardápios de todos
os tipos. Além do mais, têm os roedores uma invejável capacidade de adaptação
aos mais diversos ambientes ou condições de vida, permitindo-lhes sobreviver,
em muitas situações em que os homens
certamente morreriam.
Os grandes prejuízos que já tinham
causado ao reino, desde um tempo de que já não mais se tem lembrança, foram
transmitindo a todos que o trono ocupavam, ou próximo dele estivessem, uma
aversão muito grande à sua presença. Perdas de colheitas, ataques aos depósitos
de alimentos, silos, doenças e pestes, sempre fizeram dos ratos, ratazanas e
camundongos alvos prefernciais das políticas de governo no reino. Seus
antepassados fizeram todos os tipos de tentativas, todas fracassadas no longo
prazo. Tipos imagináveis e inimagináveis de engenhocas foram criadas por
inúmeros inventores que de todas as partes afluíam, incentivados pelo rei e por
seus funcionários. Quase de tudo se tentou. Os danados sumiam, às vezes por um largo tempo, mas retornavam depois, aos
milhares, subitamente, a zombar dos inventos humanos e a desafiar o poder
sagrado dos soberanos. Talvez, fosse mais por isso do que por qualquer outro
motivo que o rei havia herdado uma obsessão praticamente genética, hereditária,
em querer eliminá-los. Mais que uma necessidade de fato, era uma questão de
honra. Um desejo de vingança que pudesse redimir os espíritos de seus
ancestrais.
Quando à distância, o rei gostava de
observá-los. Era um exercício. Ficava sempre a imaginar como podiam ser tão
poderosos e resistentes. Não cediam. Eram como os homens, extremamente
territoriais. Sobreviveram às guerras de conquista e anexação de territórios,
que apesar de incorporados ao reino e de todo o aparato de segurança, fugiam ao
controle dos governos. As profundezas, os subterrâneos, as frinchas dos
telhados, os buracos imperceptíveis, as entranhas, os cantos, às escuras. Além
do mais, se reproduziam em proporções geométricas e parecia ainda não dominar o
mundo, pois não haviam vencido de todo a cruzada eterna, que se abatera sobre
eles. Sim. Não podia haver esmorecimento. A impressão que tinha era que a
antiga peleja que sempre tiveram que travar contra eles era condição
fundamental da sobrevivência de seu poderio. Sem o ataque sistemático ao
inimigo comum, dos povos e dos reis, talvez ao grande reino não houvesse
sobrado nem mesmo os escombros, não só pela ação destruidora dos roedores, mas
pelo que a luta contra os pequenos mamíferos não humanos pode gerar entre os que
humanos são - um sentimento de identidade, além dos ressentimentos de classe. A
guerra aos roedores servia, pois, como estímulo ao espírito patriótico,
fortalecia o rei e ajudava a manter uma relativa ordem e paz social.
Como rei que era, não podia se descuidar
deles. Então, subitamente, uma idéia lhe veio à mente. Em vez de enviar equipes
profissionais, técnicos, burocratas pelo território à caça dos inimigos, por
que não envolver cada súdito, a população inteira, numa guerra que afinal
beneficiaria supostamente a todos? Sim. A idéia o estimulava. Seus olhos
brilhavam. Quem sabe inventaria um método próprio, que mais sucesso teria do
que todas as tentativas anteriores? Além de rei que era, poderia ainda, no
futuro, quando neste mundo não mais estivesse, virar respeitável divindade, por
haver dobrado fatalmente o inimigo que a todos sempre dobrou. Por que não havia
pensado nisso antes? Os traços de seu rosto desenhavam linhas de satisfação e
um sorriso rejuvenescedor agarrava-se aos cantos da boca. Os olhos estavam
fulminantes. Por duas vezes passou a mão pela testa para certificar-se se um
suor frio lhe escorria pela testa. Por que não havia pensado nisso antes?
Claro. Pagar aos homens, a todos quantos pudesse, pelos ratos que conseguissem
capturar. O reino vivia uma relativa prosperidade econômica e uma vitória como
esta o levaria à consagração com que sempre sonhara: conquistar o amor ou o
medo dos homens e um trono cativo pelos reinos do além. Seu rosto se iluminava.
Decretou que a partir da décima lua uma
grande caçada, uma caçada coletiva, que deveria atrair não apenas um voluntário
ou outro, mas multidões inteiras, se iniciaria por todas as terras do reino.
Cada canto deveria ser devassado, todos os armários de todas as casas seriam
abertos, revirados, os telhados seriam vasculhados, os porões iluminados, cada
sombra perseguida, cada vulto inspecionado. A grande cruzada aos ratos. O
estímulo seria em ouro, afinal não era pouca coisa o que estava em jogo. As
famílias apresentariam às repartições oficiais o seu montante em ratos e
levariam em troca, proporcionalmente ao peso, uma porção de pó de ouro. Era a
promessa real. As multidões se alvoroçaram. Na verdade, não conheciam o que era
o ouro, mas tinham ouvido sempre falar dele. O sonho do enriquecimento rápido
mobilizou uma população inteira. Nos litorais, nos desertos, nas montanhas e
florestas. No campo, nas aldeias, em todas as partes, crianças, velhos, homens,
mulheres, doentes, se armavam de paus, cassetetes, venenos, armadilhas, para
capturar o valioso adversário. O espírito da caça nunca seduziu a tantos.
Parecia estar próxima do fim a espécie dos ratos, pavimentando à eternidade e à
gloria divina a criatividade do rei, que nunca havia se sentido tão genial.
Tinha a certeza da vitória, antes mesmo que a Grande Cruzada tivesse início.
Na véspera do grande dia, uma série de
festividades animou o reino. O nome do rei corria de boca em boca. Todos faziam
apostas, dançavam, cantavam e bebiam. Havia uma comoção nacional. Estavam
felizes e ansiosos. Trocar ratos por ouro era algo em que realmente nunca
haviam pensado. Mas fosse como fosse era uma oportunidade única, para que
alguns mudassem seu destino. A partir do aparecimento da lua que, naquela
noite, estaria a clarear o país inteiro e viria pela madrugada, começaria a
campanha que poria fim a um longo capítulo da história do reino.
O rei recolheu-se aos seus aposentos.
Estava feliz como nunca. O coração batia mais forte do que normalmente o fazia.
Não conseguia pensar em outra coisa, além da grande guerra que estava por
iniciar. Envaidecia-se. Não imaginava que pudesse ser tão criativo e genial.
Sentia-se ansioso, porém. Um ligeiro formigamento percorria por todo seu corpo,
como se um sangue novo, divino quem sabe, estivesse a percorrer-lhe rapidamente
as veias. A sensação que sentiaera de que não era mais o mesmo e de que jamais
o seria. Não se lembrava de ter vivido tão grande e satisfatória emoção.
Conquistaria ele, depois de tantos anos, séculos, uma vitória que sempre
parecera impossível?
Marcos Vinícius.