terça-feira, 28 de abril de 2009

O símbolo de Fallujah


O símbolo de Fallujah



Confesso que nunca sentei diante de um computador para jogar estes games modernos, que circulam à toda pela internet, que lotam Lan-houses de jovens e adolescentes, que passam ali, horas e horas a fio, como se também conectados estivessem. Minha experiência com jogos virtuais, nunca foi além dos antigos brinquedos, do tipo Atari, que eram conectados à televisão. Eram jogos rudimentares, despretensiosos, geralmente, com cenários únicos ou repetitivos, e as cenas, geralmente, apresentavam pouco movimento. Eram jogos sem cores, com pouquíssimos recursos, uma simulação bem primitiva, como supostos jogos de futebol, jogo de tênis, onde sentavam os dois jogadores diante da TV e ficavam a repicar uma bolinha um contra o outro. O mais sofisticado e envolvente era um bichinho, Pac Man, que ia percorrendo labirintos, acumulando pontos pelo caminho, e fugindo de fantasmas que se aproximavam ameaçadores quando o jogador estava próximo de seu destino e da vitória. Os jogos, virtuais, nas telas dos televisores, eram ainda, graciosos, que faziam até os mais velhos, brincarem como se crianças fossem. Eram jogos em preto e branco, um entretenimento, que muitas vezes, era compartilhado em família, dada a novidade do equipamento, que despertava curiosidade em todos. Pareciam ingênuos e fazendo mal a ninguém.

Os jogos que hoje se apresentam aos jovens e crianças, são de uma geração completamente nova, digamos, jogos de uma nova era, dos tempos da globalização, onde os cenários e a lógica, normalmente são as das guerras. Os jogos vêm deixando, aos poucos, a condição de brinquedos, na medida em que vão se tornando cada vez mais realistas, violentos e sanguinários. São muitos os personagens que parecem reais, verdadeiros, normalmente, inimigos, que se tem que aniquilar. Interessante, que muitas das vezes, os jogadores podem dar toques bem pessoais, a seus avatares. Normalmente, fantasiam-se fortes, belos, bem trajados, estilo ocidental, brancos e poderosos, imbatíveis, ante um inimigo, que represente tudo aquilo que se quer evitar, às vezes, a imagem de si mesmo, refletida supostamente às avessas, ao contrário, e que se quer extirpar. Há uma possibilidade de construção de identidades, que faz com que estas crianças, nestes brinquedos, queiram se afirmar, e também destruir e matar. É uma lógica violenta e cruel. Não lhes é oferecida outras alternativas fora do campo da violência.

Observe os jovens diante destes brinquedinhos do século XXI. Grudam-se aos teclados, como se plugados a maquina, os olhos estatelados, parecem que não piscam estes garotos, e navegam em transe pelos cenários, batalhas, lutas e estratégias destes jogos sofisticados, sempre renovados e aprimorados, pelas empresas de softwares, que disputam um mercado cada dia mais promissor. São muitos os jovens que dedicam muitas de suas horas, diariamente, aos games. Seja em casa, seja em espaços coletivos. Estão ali, teclando, esbugalhando os olhos, raspando ansiosamente o mouse, suando, gritando, torcendo, se armando, defendendo, traçando armadilhas, emboscadas, matando, fuzilando, exterminando. Os exterminadores do presente. São inúmeros os casos de jogadores, que não saem de casa, varam noites sem dormir, e perdem muito do contato com os outros, com o tempo e o mundo real. Em certa medida, podemos admitir que estamos diante da construção de um ser, até então, inusitado, em nossa infinita humanidade. Um sujeito, que dedica várias horas de seus dias, a virtualmente, matar.

Em 2010 haverá novidade no mercado: será lançado o game “Six Days in Fallujah”, onde se pretende alcançar um realismo máximo, com uma grande variedade de recursos, para aumentar ainda mais a emoção e adrenalina dos jovens jogadores. Detalhe: o jogo será montado a partir de um contexto bem real, com homens reais, de carne, osso, e muito, muito sangue: a operação militar americana, denominada Fúria Fantasma, que em seis dias, quebrou a aguerrida resistência dos combatentes da cidade iraquiana de Fallujah, a 50 Km de Bagdá, em Novembro de 2004, vitimando, segundo os dados oficiais, 38 soldados americanos e 1200 iraquianos. A sofisticação do game inclui consultoria de veteranos de guerra, cenários reais, imagens locais, vídeos e inclusive, vozes de soldados, relatando experiências e lembranças. Neste avançado jogo, os cenários podem ser totalmente destruídos e os jogadores podem eliminar quem atravessar seu caminho. E os jogadores, claro, estarão sob a pele dos soldados americanos.

O realismo do game, de fato, impressiona. Fallujah, a cidade de 800 mil habitantes-sobreviventes, a cidade de verdade, real, hoje, agoniza. O cenário é de desolação. As ruas da região central, esburacadas, são cemitérios de edifícios arrasados, escombros, muros em queda, paredes quebradas, tetos arrancados. Há carência de água, eletricidade, telefones, hospitais. Falta trabalho. Os sunitas de Falluhjah são obrigados a apresentar documentos de identidade magnético para entrar ou sair da cidade. Destruição e controle. A lógica do jogo. A lógica da vida. Ficção e realidade entreolham-se pelo espelho dos softwares, pelos olhos dos jovens do mundo inteiro. Quanto tempo será gasto? Quantos jogadores estarão empenhados em destruir milhões de vezes, o que destruído está? Infinitas vezes hão de matar os mesmos mortos, queimar as mesmas cinzas. Sob o Império do Dinheiro, não cabe a insurgência, sequer a tolerância. A vitória não se dá sob a rendição ou diálogo, mas com o aniquilamento absoluto.

Tempos difíceis, e pelos sinais que se prenunciam, podem, em muito piorar. Quem quiser conhecer um pouco mais a juventude que está a se formar, e os adultos que brevemente serão, não poderá deixar passar despercebido, o mundo dos games, onde muitos deles, coabitam, diante da tela do computador. São mundos novos, imaginários, digitais, mas fortemente vinculados a um substrato real, com uma profundidade ideológica, como até então, ainda não se havia ousado mergulhar. São muitas horas dedicadas com afinco, a eliminar um inimigo virtual, que muitos deles, nem sabem que de fato existem, e acaso saibam ou descubram, quererão logo, no curto prazo, quem sabe, eliminá-los também, pois afinal, não é mesmo a vida um jogo? Além de muito tempo ter sido dedicado às lições, aprendendo a odiá-los, caçá-los, em estratégias de ação, onde o caminho da vitória pavimenta-se sobre o número de vítimas que se propõe fazer. Talvez fiquemos piores, ou não. Uma coisa é certa: nos afundamos num atoleiro moral, onde ficamos, a cada dia, não apenas menos sensíveis em relação aos sofrimentos alheios, como a cada geração, mais radicalmente intolerantes. A sorte está lançada e as cabeças a prêmio.



Marcos Vinícius.

segunda-feira, 13 de abril de 2009

Lições da Venezuela


Lições da Venezuela


Quem procurar pelo nome Gustavo Dudamel em sites de busca, como o Google, por exemplo, irá, certamente, admirar-se pelo formidável contingente de fãs e de elogios que vem recebendo pelo mundo todo, o jovem maestro venezuelano de apenas 28 anos. Encontraremos depoimentos em artigos especializados do tipo “não há promessa mais fulgurante”, “a música em estado puro”, “um milagre”, “o maior maestro do planeta”, “o maior prodígio da música erudita e o melhor monstro vivo”. Ou como diz seu mentor José Antônio Abreu, “Gustavo é uma glória universal para a América Latina”. Sir Simon Rattle, diretor da Filarmônica de Berlim, declarou, “Gustavo é o regente mais assombrosamente dotado que já vi”. O jovem, que nasceu em Barquisimeto, a 260 km de Caracas, de família humilde, é o mais recente fenômeno da música erudita mundial. As 17 anos, torna-se diretor artístico da Orquestra Jovem Simon Bolívar, na capital. A partir de 2005 desbrava o mundo, que acaba por desbravá-lo. Gustavo assumiu, como convidado, a regência das Filarmônicas de Berlim, Viena, Nova York e Israel, além de ópera no Scala de Milão. Em 2006 é escolhido diretor da Sinfônica de Gotemburgo, na Suécia, e agora, em 2009, assume a direção musical da Filarmônica de Los Angeles. Gravou pela Deutsche Grammophon, Beethoven, Mahler e acaba de lançar um álbum interpretando Tchaikovsky.

A regência de Gustavo encanta a todos. Não há quem não fique embasbacado ao ver o sujeito, praticamente em transe, se agitando, perante uma multidão de jovens afinadíssimos, fazendo ressoar, uma música como certamente, nunca se ouviu, no mínimo, inédita e fantástica. Gustavo transforma-se em música, como se diz acima, praticamente em “estado puro”, e acaba por dar à música que cria com sua orquestra, um toque próprio, que ninguém mais teria como fazer. Dono de uma energia e originalidade musical que impressionam. O maestro representa um envolvimento tão íntimo e apaixonante pela regência, que cria com seus músicos, um vínculo aparentemente mágico. Um fenômeno que certamente, e felizmente, veio para ficar. Tornou-se já, tão jovem, um nome obrigatório na história da música erudita universal.

O que de imediato se poderia perguntar, é como um garoto pobre, de família pobre, de uma região pobre da pobre Venezuela pode chegar ao fascinante estrelato de Gustavo Dudamel? Se repararmos ao redor, veremos que este fenômeno não está só, ou não é algo isolado. Temos outros exemplos na Venezuela, como Edicson Ruiz, 23 anos, um empacotador de supermercado que aos 17 anos tornou-se o mais jovem contrabaixista da Filarmônica de Berlim. Se prestrarmos ainda um pouco mais de atenção, veremos que a Venezuela é um país com um número extraordinário de jovens e crianças que se dedicam por quatro horas diárias, em seis dias da semana, já a partir dos dois anos de idade, à música clássica. As crianças, além das lições, ganham seus instrumentos. Estima-se que cerca de dois milhões de jovens e crianças já tenham passado pelos cursos oferecidos pelo Estado, nos pouco mais de 30 anos de existência da chamada Fundação do Estado para o Sistema de Orquestras Jovens e Infantis da Venezuela. São ao todo, 125 orquestras juvenis, 57 orquestras infantis e 30 orquestras sinfônicas profissionais para adultos. Aproximadamente 250 mil crianças, noventa por cento delas, de famílias pobres, são estudantes de música erudita em todo o país. São 1.800 professores. A Fundação, vinculada ao Ministério da Saúde e do Desenvolvimento Social da Venezuela, vem recebendo anualmente 29 milhões de dólares do governo federal. As orquestras se espalham tanto pelas cidades, quanto pelo meio rural e estão presentes nos 24 estados do país. Segundo o fundador do projeto, criado em 1975, e mentor de Gustavo Dudamel, o pianista José Antonio Abreu, “Es precisamente por el énfasis social del programa que logramos obtener apoyo governamental. El Estado ha entendido perfectamente que este programa aunque trabaja através de la música, es esencialmente um proyecto social, um proyecto para el desarrollo humano, que es la meta del Estado Venezolano”.

Gustavo Dudamel é a ponta do iceberg. Os frutos do investimento estão agora sendo colhidos. Os jovens músicos venezuelanos estão encantando o mundo. Segundo Roberto Minczuk, regente da Orquestra Sinfônica Brasileira “no futuro, nas grandes orquestras, metade dos integrantes serão orientais, e a outra metade, venezuelanos”. Imagino como um investimento nestas proporções, e digamos ainda, nesta magnitude e ordem de grandeza, tenha contribuído para a vida das pobres crianças das classes populares da Venezuela. O trabalho da Fundação constitui-se em uma verdadeira tábua de salvação para várias gerações e certamente, desviou muitos jovens e crianças da delinqüência ou marginalidade. Ainda de acordo com seu mestre-fundador, “Para los ninos con los que trabajamos, la música es prácticamente la única via hacia um destino social digno. La pobreza significa soledad, tristeza y anonimato. Uma orquestra significa alegria, motivación, trabajo en equipo, el logro de uma meta. Es una gran família que está dedicada a la armonía, a todos esas cosas hermosas que solo la música puede brindar a los seres humanos”.

Um exemplo que serve ao mundo. Fico imaginando que bem não teria feito um projeto deste em um país como o nosso. Quantas crianças, adolescentes, ao invés de estarem a empunhar revólveres e canivetes, poderiam estar tocando violino, baixo, contrabaixo, piano, e tantos outros instrumentos maravilhosos, que infelizmente, pouco temos por aqui? Mas infelizmente, nós, ó pobre de nós, não tivemos a sorte. Enquanto a Orquestra de Jovens Simon Bolívar era criada em 1975, em terras da Venezuela, aqui em nosso Brasil brasileiro, amargávamos a feridas dos duros anos de chumbo, em meio à truculência política e a estupidez sem fim. Foi em 1972, que o coronel Jarbas Passarinho, então ministro da Educação e Cultura, aboliu dos currículos das escolas do país inteiro, de forma definitiva, as aulas de música, trazendo um prejuízo incalculável a milhões de crianças há quase quarenta anos. O mesmo Jarbas Passarinho, que ao assinar o Ato Institucional n°5, em l968, pronunciou a célebre frase: “À favas com os escrúpulos da consciência”. Como diz José Saramago, em fábula recente, A viagem do Elefante, "Têm razão os cépticos quando afirmam que a história da humanidade é uma interminável sucessão de ocasiões perdidas".

A ausência absoluta de uma formação musical mínima da população brasileira tornou-nos, a todos, reféns de uma música meramente comercial, sejam os enlatados americanos, que nos chegam aos tantos, seja a produção nacional, que para vender, torna-se mais um festival de peitos e bundas, do que a revelação de verdadeiros talentos. Afinal, somos o país do pancadão, onde “um tapinha não dói”. E dá-lhe e dá-lhe. Heranças eternas, da ditadura. O silêncio do passado - o vazio do presente. Façamos o futuro a cantar. Ao observarmos bem, veremos que muito temos a aprender com os venezuelanos.



Marcos Vinícius.


quarta-feira, 8 de abril de 2009

Chimpanzés da vida


Chimpanzés da vida

É impressionante como a cada dia, os cientistas e pesquisadores vão descobrindo o quão próximos de nós, estão os chimpanzés. Ficamos cada vez mais convencidos, que se quisermos de fato, conhecer mais profundamente as nossas mais remotas origens, temos que prestar bastante atenção nestes nossos tão próximos parentes. Não é de hoje que o potencial cerebral, a inteligência e as habilidades dos chimpanzés vêm sendo testados e surpreendendo pesquisadores e curiosos pelo mundo inteiro. Muitos mesmo já chegaram a adotá-los como se mais um membro da família fosse. Os humanos já colocaram os pobres bichinhos a realizarem todos os tipos de façanhas, para que fossem conhecidos, experimentados, adestrados. Nos institutos de pesquisa, nos centros de estudo, nos circos e nos zoológicos, os chimpanzés proporcionam espanto e curiosidade aos perplexos olhos dos homens. Há décadas sua capacidade de raciocínio, de memorização, de organização e de realização de operações complexas foi já desvendada pelas pesquisas. Dentro do aparentemente infinito reino animal, não existe ser ou espécie que nos seja mais próxima. É fato.

Uma das descobertas mais recentes e intrigantes que mais ainda os aproximaram de nós, foi a constatação feita há alguns anos por estudiosos, cujos nomes não me recordo, que observaram durante meses os chimpanzés em seu habitat natural. Puderam observar uma cena que muito mudou a forma de compreendê-los. Uma mãe chimpanzé paciente e dedicada dando uma lição para a filha sobre como quebrar um vegetal de casca dura, utilizando as raízes de uma árvore como bigorna, e uma pedra como um machadinho. Interessante observar o processo. Inicialmente, a mãe explicava à filha, atenta, como realizar a operação. Em seguida, passa a ela a responsabilidade por fazê-lo. Após várias tentativas frustradas e mais uma intervenção da mãe, a criança aprendiz, finalmente, acerta a lição. Um grande salto de qualidade, tanto do ponto de vista daquele núcleo familiar, onde pode se verificar, inclusive, a presença de método, um processo ensino-aprendizagem, práticas de preparação para o trabalho e para a vida, quanto para entendermos um pouco mais sobre a natureza deles e a nossa própria.

Há uma espécie de chimpanzés, que como os humanos, copulam de frente, um a observar o outro, com os olhos nos olhos, como não vimos ainda outras espécies fazerem. Edgard Morin, em "O Enigma do Homem", afirma que este contato frente a frente entre os sapiens, a troca de olhares e feições, durante o ato sexual, ao longo de milhares de anos, teve responsabilidade não só sobre a formação dos caracteres femininos, como a sensualidade da boca, da nuca, a maciez ou aveludado da pele, o olhar sedutor, como acabou por criar laços de afetividade que possibilitaram o desenvolvimento de uma estrutura familiar e a formação de uma sociedade cada vez mais complexa. Há quem defenda que passem os chimpanzés, a pertencerem ao gênero Homo, dadas nossas proximidades genéticas. Justo.

Nova perplexidade nos traz agora, as mais recentes descobertas realizadas pelo grupo da venezuelana Cristina Gomes, do Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva, em Leipzig, Alemanha: fêmeas chimpanzés com dificuldade para conseguirem alimento, acabam se prostituindo por carne. Errou quem imaginava que fosse a prostituição uma instituição tipicamente humana ou recente em nossa história. Segundo o jornal Folha de São Paulo, de hoje, dia 08/04/2009, “a descoberta favorece a hipótese de que essa tendência também existia em sociedades humanas primitivas. Segundo os antropólogos, a troca de carnes por sexo fazia com que os melhores caçadores tivessem mais parceiras.” Impressionantes descobertas, e nunca mais serão os mesmos, os chimpanzés e os homens. Mas não entendem os chimpanzés o que é vender-se por dinheiro ou a alma ao diabo. Não sabem os homens o quanto de antiguidade carregam nas palavras, ao dizerem que “vão à caça”, quando, de fato, estão à procura de mulheres.



Marcos Vinícius.

terça-feira, 7 de abril de 2009

Territórios na aldeia global


Territórios na aldeia global.




Vivemos um tempo de grandes e profundas contradições, como talvez sempre tenha sido. Há quem diga que são elas, as contradições, quem guardam as chaves do mundo e são a força-motriz das grandes engrenagens da história. Mas em dadas ocasiões, algumas delas, por serem tão gritantes, tão evidentes e típicas de um momento preciso, parecem mesmo marcar uma época, um período de média ou longa duração. Se procurarmos bem pelos fios e veredas do tempo, veremos que cada época, cada período, idade ou era, trazem as que lhes são próprias, que pertencem aquele momento e a nenhum outro. Assim, supostamente, caminha a humanidade. A espécie humana caminha por sobre um fio, sobre um abismo de contradições. Atualmente, o que chama a atenção de forma particularmente exagerada, são as contradições entre as relações que se estabelecem entre o público e o privado, na construção da chamada aldeia global. Não é algo de difícil percepção. Há um processo contínuo, iniciado nas últimas décadas, intensificado nos últimos anos, de transformar de forma radical e irreversível o que é público em privado e o que há muito acreditávamos pertencer ao espaço meramente privado, vem tornar-se a cada dia, de domínio público.

O mundo da globalização é a vitória do mundo do mercado. A chamada aldeia global torna-se um paraíso privado, uma ilha de delícias e negócios, ladeada pelo grande oceano da exclusão social e econômica. O mundo dos ricos é o mundo do esbanjamento e do desperdício e o mundo dos pobres, o mundo das bombas e da escassez absoluta. É o mundo da peste e das grandes fomes, o mundo das guerras. Um mundo a mirar-se no espelho, refletido às avessas. A imagem de uma época. Tem sido assim. Fora estas contradições maiores, fundamentais, absolutas, estruturais, outras mais, vamos encontrando pelos caminhos. Vivemos uma fase do desenvolvimento econômico, onde o capital torna-se cada vez mais guloso, em um contexto de estados nacionais enfraquecidos e com governos subservientes a seus interesses imediatos. Nestas condições, as riquezas das nações, são geralmente extorquidas para as grandes bolsas de valores, onde o milagre da vida, torna-se jogatina, onde ganham poucos gatunos e espertalhões e sacrifica-se, no altar dos negócios, uma humanidade inteira. A grande cartada das corporações multinacionais foi adquirir, nos últimos anos, empresas nacionais, lucrativas, a preço de banana, através de esquemas, negociatas, pelos balcões dos partidos políticos, em redes de influências e corrupções. O que era público tornou-se privado, como nunca até então, se havia visto. No Brasil, o governo FHC levou a política de privatizações à sua efetivação mais radical. Era a modernidade à moda tucana. O patrimônio público do país foi à feira. Muitos enriqueceram, os brasileiros, de maneira geral, ao contrário, ficaram mais pobres.

A tendência é, portanto, mundial. A palavra de ordem é privatizar. Privatizamos os rios, as terras, as águas, as matas. Privatizamos as gentes. Privatizamos tudo. Privatizamos a vida. Privatizamos os sonhos. Tudo foi colocado à venda. Tornamo-nos coisas, negociáveis, vendáveis. É a lei maior. A lei do mercado. As grandes corporações apropriaram-se do nosso mundo físico, do nosso labor, com o seu dinheiro, e expropriaram nossas almas, com a sua propaganda, suas verdades de mentira. Em que acreditamos todos. É a modernidade que a tudo salvaria. O mundo da globalização em que todos caberiam, e onde entre os homens, menos fronteiras haveria.

Mas o que é fato, e o que motiva a reflexão, é mostrar a tendência, do que era público, tornar-se privado, como a lógica mesmo de ser do mundo contemporâneo, e o que foi de domínio privado, caindo vertiginosamente no espaço público. As contradições que fazem época. De um lado, uma política de privatizações radical, de outro, uma exposição pública de nossas vidas privadas, cada vez mais intensiva. Vivemos na sociedade de informação e, portanto, sociedade do controle, que se pretende fazer, de forma completa, total. As grandes empresas, através de uma grande revolução nos sistemas de informações nos controlam a todos. Sabem nossas preferências, de todos os tipos, o que comemos, o que vestimos, com o que trabalhamos, com o que gostaríamos de trabalhar, para onde fomos e onde pretendemos passar as próximas férias, se empregos tivermos para tanto. Um trabalhador que por ventura, mover ação judicial, trabalhista contra seus patrões, estará provavelmente condenado, a não conseguir mais empregos em seu setor de trabalho, ou talvez mesmo, em qualquer outro setor, pois a classe patronal, possue a seu serviços outras empresas especializadas que se encarregam de rastrear os pretendentes às suas escassas, quando as tem, ofertas de emprego. As câmeras nos vigiam a cada passo, em todos os horários, e em quase todos os lugares. Somos intimamente monitorados. Até onde? Vamos perdendo a dimensão do espaço privado, em uma tendência ascendente. Às vezes, parecem nos faltar, apenas os chips.

Ao usarmos as novas ferramentas de informação e comunicação, baixamos para nossas máquinas, cada vez mais velozes, as tantas vidas privadas que se expõem por aí, ora menos, ora mais que nós mesmos. Fazemos downloads de nossas fantasias, nossos desejos e sonhos, fazemos uploads de nossas frustrações, nossa identidade, na ilusão da cidadania perdida. Perdemos nossos espaços públicos, e acabamos por tornar públicos a nós mesmos. No fundo, sentimo-nos seduzidos pela exposição. Nos escancaramos, nos blogs, nos arquivos virtuais, pelos vídeos domésticos, pelos álbuns de imagens das grandes comunidades virtuais. Aposto como nos próximos anos, a maioria dos jovens casais, enamorados, terão seus momentos de prazer e intimidade, ao contrário do que as gerações que nos antecederam, geralmente o fizeram, às escondidas, mas à vista de quem se dispuser a assisti-los pela tela do computador ou aparelho celular. Sim. O que era público fez-se privado, e o privado, público tornou-se. Assim ensaiam-se os primeiros passos do terceiro milênio. A engatinhar-se.



Marcos Vinícius.