O símbolo de Fallujah
Confesso que nunca sentei diante de um computador para jogar estes games modernos, que circulam à toda pela internet, que lotam Lan-houses de jovens e adolescentes, que passam ali, horas e horas a fio, como se também conectados estivessem. Minha experiência com jogos virtuais, nunca foi além dos antigos brinquedos, do tipo Atari, que eram conectados à televisão. Eram jogos rudimentares, despretensiosos, geralmente, com cenários únicos ou repetitivos, e as cenas, geralmente, apresentavam pouco movimento. Eram jogos sem cores, com pouquíssimos recursos, uma simulação bem primitiva, como supostos jogos de futebol, jogo de tênis, onde sentavam os dois jogadores diante da TV e ficavam a repicar uma bolinha um contra o outro. O mais sofisticado e envolvente era um bichinho, Pac Man, que ia percorrendo labirintos, acumulando pontos pelo caminho, e fugindo de fantasmas que se aproximavam ameaçadores quando o jogador estava próximo de seu destino e da vitória. Os jogos, virtuais, nas telas dos televisores, eram ainda, graciosos, que faziam até os mais velhos, brincarem como se crianças fossem. Eram jogos em preto e branco, um entretenimento, que muitas vezes, era compartilhado em família, dada a novidade do equipamento, que despertava curiosidade em todos. Pareciam ingênuos e fazendo mal a ninguém.
Os jogos que hoje se apresentam aos jovens e crianças, são de uma geração completamente nova, digamos, jogos de uma nova era, dos tempos da globalização, onde os cenários e a lógica, normalmente são as das guerras. Os jogos vêm deixando, aos poucos, a condição de brinquedos, na medida em que vão se tornando cada vez mais realistas, violentos e sanguinários. São muitos os personagens que parecem reais, verdadeiros, normalmente, inimigos, que se tem que aniquilar. Interessante, que muitas das vezes, os jogadores podem dar toques bem pessoais, a seus avatares. Normalmente, fantasiam-se fortes, belos, bem trajados, estilo ocidental, brancos e poderosos, imbatíveis, ante um inimigo, que represente tudo aquilo que se quer evitar, às vezes, a imagem de si mesmo, refletida supostamente às avessas, ao contrário, e que se quer extirpar. Há uma possibilidade de construção de identidades, que faz com que estas crianças, nestes brinquedos, queiram se afirmar, e também destruir e matar. É uma lógica violenta e cruel. Não lhes é oferecida outras alternativas fora do campo da violência.
Observe os jovens diante destes brinquedinhos do século XXI. Grudam-se aos teclados, como se plugados a maquina, os olhos estatelados, parecem que não piscam estes garotos, e navegam em transe pelos cenários, batalhas, lutas e estratégias destes jogos sofisticados, sempre renovados e aprimorados, pelas empresas de softwares, que disputam um mercado cada dia mais promissor. São muitos os jovens que dedicam muitas de suas horas, diariamente, aos games. Seja em casa, seja em espaços coletivos. Estão ali, teclando, esbugalhando os olhos, raspando ansiosamente o mouse, suando, gritando, torcendo, se armando, defendendo, traçando armadilhas, emboscadas, matando, fuzilando, exterminando. Os exterminadores do presente. São inúmeros os casos de jogadores, que não saem de casa, varam noites sem dormir, e perdem muito do contato com os outros, com o tempo e o mundo real. Em certa medida, podemos admitir que estamos diante da construção de um ser, até então, inusitado, em nossa infinita humanidade. Um sujeito, que dedica várias horas de seus dias, a virtualmente, matar.
Em 2010 haverá novidade no mercado: será lançado o game “Six Days in Fallujah”, onde se pretende alcançar um realismo máximo, com uma grande variedade de recursos, para aumentar ainda mais a emoção e adrenalina dos jovens jogadores. Detalhe: o jogo será montado a partir de um contexto bem real, com homens reais, de carne, osso, e muito, muito sangue: a operação militar americana, denominada Fúria Fantasma, que em seis dias, quebrou a aguerrida resistência dos combatentes da cidade iraquiana de Fallujah, a 50 Km de Bagdá, em Novembro de 2004, vitimando, segundo os dados oficiais, 38 soldados americanos e 1200 iraquianos. A sofisticação do game inclui consultoria de veteranos de guerra, cenários reais, imagens locais, vídeos e inclusive, vozes de soldados, relatando experiências e lembranças. Neste avançado jogo, os cenários podem ser totalmente destruídos e os jogadores podem eliminar quem atravessar seu caminho. E os jogadores, claro, estarão sob a pele dos soldados americanos.
O realismo do game, de fato, impressiona. Fallujah, a cidade de 800 mil habitantes-sobreviventes, a cidade de verdade, real, hoje, agoniza. O cenário é de desolação. As ruas da região central, esburacadas, são cemitérios de edifícios arrasados, escombros, muros em queda, paredes quebradas, tetos arrancados. Há carência de água, eletricidade, telefones, hospitais. Falta trabalho. Os sunitas de Falluhjah são obrigados a apresentar documentos de identidade magnético para entrar ou sair da cidade. Destruição e controle. A lógica do jogo. A lógica da vida. Ficção e realidade entreolham-se pelo espelho dos softwares, pelos olhos dos jovens do mundo inteiro. Quanto tempo será gasto? Quantos jogadores estarão empenhados em destruir milhões de vezes, o que destruído está? Infinitas vezes hão de matar os mesmos mortos, queimar as mesmas cinzas. Sob o Império do Dinheiro, não cabe a insurgência, sequer a tolerância. A vitória não se dá sob a rendição ou diálogo, mas com o aniquilamento absoluto.
Tempos difíceis, e pelos sinais que se prenunciam, podem, em muito piorar. Quem quiser conhecer um pouco mais a juventude que está a se formar, e os adultos que brevemente serão, não poderá deixar passar despercebido, o mundo dos games, onde muitos deles, coabitam, diante da tela do computador. São mundos novos, imaginários, digitais, mas fortemente vinculados a um substrato real, com uma profundidade ideológica, como até então, ainda não se havia ousado mergulhar. São muitas horas dedicadas com afinco, a eliminar um inimigo virtual, que muitos deles, nem sabem que de fato existem, e acaso saibam ou descubram, quererão logo, no curto prazo, quem sabe, eliminá-los também, pois afinal, não é mesmo a vida um jogo? Além de muito tempo ter sido dedicado às lições, aprendendo a odiá-los, caçá-los, em estratégias de ação, onde o caminho da vitória pavimenta-se sobre o número de vítimas que se propõe fazer. Talvez fiquemos piores, ou não. Uma coisa é certa: nos afundamos num atoleiro moral, onde ficamos, a cada dia, não apenas menos sensíveis em relação aos sofrimentos alheios, como a cada geração, mais radicalmente intolerantes. A sorte está lançada e as cabeças a prêmio.
Marcos Vinícius.