quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

Peleja


Não há quem não tenha assistido a uma grande produção cinematográfica, campeã de bilheterias, no campo da ficção científica, onde trava-se uma luta mortal entre as forças que representam a humanidade e sua salvação e as forças demolidoras do fim dos tempos. Imagine o já tradicional enredo em que tramas malignas são postas em ação, por personagens fantasiosos que destacam-se pela crueldade e pelo desejo mórbido de verem destruídas a humanidade e sua civilização. O cinema soube explorar, com espetaculares efeitos especiais, as imagens destas grandes pelejas. O mundo em chamas, rachaduras e fendas gigantes abrindo-se na terra e engolindo os homens, grandes explosões, abalos sísmicos, bombas, tiros e desabamento de cidades inteiras. Não foram poucos os filmes em que estas forças poderosas e nefastas lutaram contra os defensores da humanidade por algum código, segredo, alguma substância mágica, que pudesse, enfim, salvá-la ou exterminá-la de vez. Muitas das vezes, o filme inteiro é isto. Uma guerra fantástica e grandiosa entre as forças que procuram preservar a espécie e as que ressurgem das trevas e dos subterrâneos para condená-la ao fim. As disputas travam-se pelo domínio de alguma chave, alguma fórmula, um mapa, uma poção encantada, que possa selar os destinos dos homens. Vendo, nos últimos meses, as poderosas forças que governam o país utilizando-se dos mais impressionantes e cruéis meios para aumentar as estatísticas e os números da morte, e ainda agora, as imagens das vacinas, que nunca chegam até nós, tenho a trágica sensação de um mundo ruindo sob os pés, como se houvesse acordado dentro de um filme destes. E acho que é isto mesmo, acordei dentro de uma destas ficções mirabolantes, de péssimo gosto, e terrivelmente devastadoras. No momento em que escrevo, já ultrapassamos as duzentas mil mortes e ainda são as mesmas forças a apertarem os botões.

 

Marcos Vinícius.



sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

Asas e antenas

 


Nunca tive uma relação amistosa com os insetos, principalmente, se estão dentro de casa. Coloco-os para fora, espanto-os ou até mesmo, em último caso, acabo por matá-los, quando são ameaçadores como os pernilongos, muriçocas e congêneres. Há ainda aqueles grandes, volumosos e pesados que, causam certa repugnância e melhor seria se permanecessem nas copas das árvores, em meio as folhas e arbustos, de onde, certamente, saíram, e ainda há um mundo assim à disposição deles. Se os encontro dentro do quarto então, não durmo enquanto não me livro das incômodas presenças, a exceção de mosquitinhos menores ou as pequenas mariposas. Quando são muitos, em enxame, e não dão sossego, não penso duas vezes antes de borrifá-los com o inseticida, livrando-me do desconforto. Mas como a vida é uma caixa de surpresas, hoje vivi uma situação inédita e interessante com um deles. Aproximei-me da mesa branca que tenho nos fundos de casa e, acima dela, um inseto bem pequenino tentava, sem sucesso, alçar vôo. Ele levantava-se, rodopiava no ar e caía novamente, tentava repetidas vezes, sem conseguir engrenar um vôo que o tirasse dali. Aparentemente, de forma involuntária, voava em círculos, sem livrar-se da mesma órbita. Tentou várias vezes e a trajetória era sempre a mesma. Girava, girava, girava, e não saía do lugar. Depois de um tempo, certamente, cansado das infrutíferas tentativas, permaneceu em repouso sobre a mesa. Aí pude observá-lo de perto e atentamente. Nunca havia visto uma espécie assim. É um inseto bem pequenino, com asas longas, arredondadas, compridas e transparentes. Tem duas antenas enormes, finíssimas, cada uma delas infinitas vezes maior que o conjunto dos demais membros do corpo do minúsculo invertebrado. É realmente impressionante a extensão das antenas, e fico imaginando como deve ser viver com uma estrutura assim. Ao aproximar-me ainda mais do quase invisível ser, observo que as duas antenas estavam presas uma na outra por um pequeníssimo fiapo embolado entre elas. Neste momento, resolvi realizar uma boa ação voltada a um inseto. É muito comum vermos imagens de pessoas salvando cães, gatos, pássaros, mamíferos, em geral, mas, salvar, desta forma, a vida de um inseto, imagino que seja algo incomum, a ponto de merecer registro. Pois então. Peguei um pequeno graveto do chão, arranquei-lhe duas lascas e, com uma delas, com o máximo de delicadeza possível, prendi, levemente, as antenas na mesa e, com a outra lasquinha, em uma minuciosa operação, arranquei o fiapo embaraçante que amarrava uma antena à outra. No instante em que soltei o bichinho, ele esticou os dois articulados apêndices, como a conferir se tudo já se encontrava em ordem e, rapidamente, levantou um vôo certeiro, em linha reta e em direção ao céu. Não mais o vi. Talvez tenha mudado, a partir do episódio, a minha relação com estes seres tão estranhos a nós, ainda há que se confirmar, mas o certo é que arranquei o pequeno fio, realizando uma minúscula boa ação e, mesmo que, quase invisível, ainda assim, proporcionou o encanto e a alegria de fazer voar.

Marcos Vinícius.

terça-feira, 12 de janeiro de 2021

Morte!

 


Já passava da meia noite, quando ela se aproximou. As ruas estavam vazias e escuras. Um vento forte nas encruzilhadas levantava a poeira do chão e varria as folhas secas do asfalto, soltando um assobio longo e fino que, em seguida, trazia o silêncio total. Vez ou outra, um uivo insone de um cão solitário, propagava-se pelo mundo, não se sabe de onde. A lua buscava abrir brechas nas nuvens escuras e densas que pairavam sobre os telhados adormecidos, enchendo a noite de breus e sombras. Fazia frio e as poucas lâmpadas acesas tinham o lume fraco e instável e apenas se via o vulto das coisas. A rua estava completamente deserta, a madrugada avançava, e apenas um gato cinzento, de pelo rajado e olhos luminosos, passava pela calçada, quando a tampa do esgoto se levantou. O pequeno felino, arrepiado da ponta do rabo às orelhas, num salto gigante, como se tivesse asas, desaparece entre o topo dos edifícios, sem soltar um único miado. Ela põe-se de pé. Ajeita-se no vestido negro, abaixa ainda mais o capuz, de modo a deixar às escondidas sua face branca e cadavérica. Os olhos estão invisíveis dentro das órbitas largas, profundas e escuras. As mãos ossudas, de unhas grandes e sujas, seguram firme, apesar de trêmulas, o cabo da foice, com o qual, como um cajado, dá batidas no chão, como um sinal. Atrás de si, um séquito fantasmagórico de almas penadas e errantes, grita em um coro uníssono - Morte! Morte! Morte! - Ela volta-se para eles, solta-lhes um sorriso raivoso de desprezo, levanta o cabo da foice e ordena – Avante, seus desamparados! E as almas, novamente – Morte! Morte! Morte! - Ela, então, arrasta-se pela avenida. Algumas assombrações bajuladoras mais próximas levantam-lhe as correntes, que ainda assim, rastejam pela calçada, enchendo a noite do barulho dos ferros e de um cheiro de ferrugem. - Vamos seus frouxos, rápido com isto. Temos muito o que fazer - E põe-se a caminho do Palácio. Alta madrugada, os morcegos aproveitam-se da densa escuridão e sobrevoam as torres dos edifícios do alto escalão do governo nacional. Por fim, com seu manto invisível dentro do breu da noite, e com a foice em punho, acompanhada de seu séquito de espectros subservientes e aos gemidos de Morte! Morte! Morte! transpõem os portões e muros do Palácio e ocupam o trono máximo do Governo Nacional. Pronto – ela diz – Ocupem os seus postos, há muito trabalho pela frente - Ela dá um salto, fica de pé sobre a enorme mesa do Governo, onde são tomadas todas as medidas e decisões de âmbito nacional, bate repetidas vezes com o cabo da foice sobre a madeira envernizada e proclama – Pois já chega de enviar intermediários, estes só me trazem dores de cabeças e não resolvem de vez minhas demandas, cansei-me dos paliativos, agora, mais que nunca, é necessário resolver os problemas à raiz. Até entendo que os incompetentes tenham se esforçado o quanto puderam, mas ao fim e ao cabo, foram mal sucedidos. Realizaram massacres, carnificinas, genocídios de toda a ordem, e os povos e os países estão aí, ainda todos de pé. Quando das conquistas dos continentes e da escravização em massa, nos aproximamos como nunca das metas, mas ainda era pouco, fizeram anos de guerras totais, mundiais, levantaram os campos de extermínio, as câmaras de gás, os paredões, as bombas atômicas, inventaram a fome crônica, as pestes, tocaram fogo em hospitais, incendiaram cidades inteiras, inventaram as armas químicas, transformaram os rios em esgotões, afinal sem água não há vida, não é assim? De nada adiantou. O mundo continua girando na mesma órbita e a espécie põe-se, com tudo, a proliferar. Basta! - Irritada e resoluta, mete outra vez o cajado sobre o tampo da mesa. As almas gemem – Morte! Morte! Morte! – Ao trabalho, espíritos putrefatos. Já disse que há muito o que fazer. Chega das poucas coisas e das obras pequenas, chega de misericórdias e pequenez. Viemos para a obra fatal e grandiosa. Este mundo que é grande, ainda assim, não é para todos, há gente demais a consumir os recursos e há quem deles, necessite esbanjar, além do que, acabou-se o tempo da política e a era das supostas resoluções das coisas, da era dos paliativos e de se tampar sol com as peneiras. A terra está cansada e faminta. Enfim, basta de intermediários, Eu mesma, fiz-me governo. Eu mesma executarei o que tiver de ser. Eu mesma darei de comer à terra. Ao trabalho! Daqui mesmo, deste amplo gabinete, já sairemos com o ministério formado. E lembrem-se, flores aqui, nem para os que morrem, cansei-me dos ornamentos. Será um Ministério enxuto, não há necessidade de muitas pastas, pois o trabalho não é dos mais difíceis e o executarei com prazer, além do que, será rápido. Basta de delongas, lengalengas. A terra tem fome, o mercado tem urgência, e eu sim, tenho muita pressa. Não é mais o tempo de se perder tempo -  Ela pousa os ossos da mão sobre o encosto da cadeira, apoia-se, e curva-se até uma das grandes gavetas da mesa, abrindo-a. Tira da lá uma pasta cheia de papéis e documentos. Levanta uma folha de papel até a altura da cavidade dos olhos e lê em voz alta e jocosa - Ministério de Agricultura? Mais que diabos é isto? Não entendo como ainda gira o mundo com tamanhas incompetências. De agora em diante, chamar-se-á Ministério da Fome e do Desabastecimento. Aliás, pelo que vejo, haverá uma mudança radical na formação e nas estruturas do meu novo e mórbido Ministério. - Então, suas almas perdidas, degeneradas, ouçam os nomes das novas pastas, para ver em quais delas se encaixam. Ministério da Guerra à Ciência, Ministério da Deseducação, Ministério das Explosões e Dinamites, Ministério das Armas, da Injustiça, da Devastação e do Desplanejamento, ah, e o Ministério das Pestes. Penso que é um bom começo. Façamos aqui nossas mortíferas experiências e apostas, e caso se dê como nos planos, em breve, tomaremos também outros países, outras praças, esgotos abertos pelo mundo não há de faltar, disso sabemos. O dia do triunfo chegará. Por aqui, temos um bom laboratório e a história não nos permitirá falhar. Por fim, abriremos uma cova enorme, gigantesca, monumental, para enfiarmos quase um país inteiro. Monumental, disto se trata. Não fizeram os antigos, nos primórdios da civilização, obras monumentais, faraônicas, para guardarem os seus mortos? Sim. A coisa não funcionou? Hoje construiremos uma sepultura que será um país inteiro, um cemitério fortaleza, não para proteger os mortos, mas para atirar-lhes os vivos. Já não se trata mais do nascimento de uma civilização, mas do seu fim. Afinal, hoje sou em quem mando. Chegou a minha vez. Que se componha, de imediato, o Ministério das Demolições e cavem, cavem, até quase o outro lado do mundo, a maior das covas já vistas. A cova suprema. Depois, enchem-na até a boca e por fim, terra e concreto por cima de todos. Eufórico, o coro é retomado - Morte! Morte! Morte! - E a Morte se fez.


Marcos Vinícius.