sexta-feira, 10 de abril de 2020

O milagre - Parte 2




Sem qualquer ruído, despertador, ou luz que viesse anunciar a chegada do dia, Alberto abre os olhos às cinco horas em ponto, nem um minuto a mais ou a menos. O sol ainda não havia despontado e a noite ainda enchia de escuridões todos os cantos do quarto. O relógio está programado para tocar as cinco e meia, mas agora não há mais remédios, Alberto está, irreversivelmente, desperto. Ainda tem duas horas para se preparar antes de reunir-se com a equipe e pegar a estrada em direção a Jurupemba. Fica alguns instantes a fitar o teto e, bruscamente, se levanta. Vai direto para o banho, em seguida, faz o desjejum, veste-se com uma roupa mais leve, uma calça bege de moletom, uma blusa de algodão azul cobalto, um tênis leve e confortável, apara alguns pelos excessivos da barba, fecha os últimos zíperes das duas malas, fecha a casa, ajeitando o que ainda estava fora do lugar e, pontualmente, às sete horas, como o combinado, estaciona o carro em frente ao edifício do escritório, onde a equipe já estava reunida lhe aguardando, próximos a uma Van, que os levará ao destino, em previstas oito horas de viagem. Somados ao tempo em que parariam para o almoço, o cálculos indicam que chegarão em Jurupemba ao final da tarde. Não foi difícil montar a equipe, Alberto possui, sob seu comando, um número razoável de profissionais competentes e dedicados, mão de obra qualificada, que foi selecionando ao longo de sua gestão na empresa. Ainda enquanto ouvia o discurso do patrão, no escritório, na semana passada, já havia a lista dos nomes em mente. Rogério, o repórter, que há dois anos o acompanha, e que, impressiona Alberto, com sua voz grave, penetrante, invasiva e convincente, foi um dos primeiros nomes a se lembrar. Alberto costuma dizer que não há quem não acredite em seus relatos. Alberto já lhe dissera, mais de uma vez, que sua voz lhe traz recordações dos antigos filmes que assistia de heróis e profetas, em seus tempos de infância, cujo tom, carrega uma aura de suprema confiabilidade, que fazem das palavras proferidas, uma mensagem do infinito, com ares de verdades absolutas. Outro profissional de destaque, já previamente escalado, em qualquer destas ocasiões de emergência, era Pedro, o cinegrafista, destes que chamamos pau pra toda obra, sempre disponível e entusiasmado, além de possuir um olhar especializado em flagrar os melhores momentos e capturar os melhores ângulos e tomadas de cena. Vão ainda, Carlos e Samuel, dois jovens auxiliares, responsáveis pelo som e iluminação, além do motorista, claro, o veterano na empresa, o senhor Arimatéia. Os cinco estavam apenas aguardando a chegada de Alberto para que dessem a partida, todas as bagagens e os equipamentos necessários já estavam acondicionados nos bagageiros da van. Os outros dois homens, Anthony e Peterson, os tais agentes lá do Império, que Alberto ainda não conhecera, chegariam no dia seguinte à Jurupemba e os encontrariam no hotel, onde todos ficarão hospedados. Alberto e a equipe sairão juntos, mas ele viajará em seu próprio carro, o que lhe garante alguma privacidade, da qual, em raras ocasiões, abre mão, além do que, viajaria mais confortável, teria mais espaço para suas coisas, mobilidade garantida em Jurupemba, e evitaria o desconforto de viajar por horas a fio ao lado de seus empregados, o que ele acredita que, ao fim e ao cabo, levaria a exageradas proximidades e intimidades, que põe sob risco, o ritual do exercício de sua autoridade. Antes de partir, todos dão uma última olhada no mapa, para certificarem-se que, mesmo viajando em veículos diferentes, seguiriam todos a mesma rota. Não havendo mais o que acertar, entram todos em seus respectivos carros e tomam o caminho de Jurupemba. Alberto liga o ar condicionado, ajusta o rádio em um volume mínimo e vai observando a paisagem, esta que vê pela primeira vez. Apesar de gostar de viajar e sempre o faz, seja a passeio ou a trabalho, ainda não havia explorado a região para onde se dirige. São, realmente, caminhos novos, o que lhe proporciona uma sensação de prazer, pois gosta disto, percorrer o inexplorado, desbravar novidades. E pelo que vai observando, à medida que se aproxima de seu destino, aquelas paisagens são, de fato, diferentes de tudo o que já viu. A estrada que, em alguns trechos, estreita-se e afunila-se, a adaptar-se as inconsistências do relevo, de um asfalto escuro, segue cortando extensas montanhas de pedra. Em alguns trechos, o dia escurece, pois a estrada corta elevados paredões de rochas negras, por onde, apenas em algumas poucas horas do dia, o sol encontra permissão para entrar. Em alguns pontos, o caminho torna-se bastante íngreme, o que exige habilidades do motorista, nem sempre postas em prática, dadas as surpresas e as peculiaridades da geografia. Subidas ou descidas muito inclinadas requerem sempre um bom sistema de freios e sorte a sua, pois o carro, antes da viagem, passara por uma detalhada revisão mecânica. As plantas rasteiras e as árvores que se agarram às rochas são de um verde exuberante e farto. As árvores, em sua maioria, são de modestas estaturas, com troncos ligeiramente retorcidos, copas generosas e que, em algumas delas, quase tocam o chão. Vez ou outra, destacam-se na paisagem árvores enormes, cobertas de exóticas flores lilás e iluminadas por um céu exageradamente azul, o que dá ao local, pelas imaginações de Alberto, ares dos cenários dos contos de fadas. É necessário, porém, estar muito atento à velocidade e às curvas, pois uma relação mal calculada e ajustada entre elas, pode resultar em fatalidades. Há curvas exageradamente acentuadas, fechadas, onde, caso o motorista desatento, deixe de colocar o carro em velocidades mínimas, pode se esborrachar penhasco abaixo, de alturas tais, em que torna-se impossível qualquer chance de sobrevivência. A estrada é perigosa, mas de uma beleza única, pensa Alberto. Ele encara aqueles paredões de rocha escura, as longas, estreitas e profundas crateras e fendas que se abrem nas montanhas gigantes de pedra, os filetes de água cristalina que escorrem em leitos duros de cascalhos coloridos e, imagina, Certamente, são destas belezas todas, que hão de arrancar a rica matéria-prima que, no frigir dos ovos, claro, secreta e inconfessavelmente, é o que nos traz a Jurupemba. Ao cruzar uma ponte estreita sobre um pequeno riacho, Alberto observa-o e recorda-se de um comentário que ouviu há alguns anos, dentro de um bar, quando tomava das suas cervejas, Se é verdade que água mole em pedra dura, tanto bate até que fura, também o é que, água mole em pedra dura, tanto bate até que um dia a água acaba. Alberto solta um discreto sorrido sem graça, constrangido, e ao virar a curva, avista ao longe, parte posta em uma planície, parte incrustrada na pedra, Jurupemba. 

Alberto chega meia hora antes de sua equipe e dirige-se diretamente para o hotel, pois tudo o que deseja, de imediato, é tomar um banho, tirar aquelas roupas de viagem, e fazer um lanche. Como o previsto, chegou à cidade ao final do dia. Ele percorreu o trajeto em sete horas e meia, mas sua equipe, na van, gastou, em trânsito, as exatas oito horas, minuciosamente calculadas pelo senhor Arimatéia. Por mais que tenhamos pesquisado mapas, lido sobre o local, visto milhares de fotografias, há coisas que só percebemos quando lá colocamos os pés, qual seja, o espírito do local, com seus ruídos, o sotaque e os trejeitos populares, o clima, o regime dos ventos, os ângulos da incidência do sol sobre as cores nativas, as naturais e as artificiais, a conjugação da vegetação, os cantos dos pássaros, as manias, os traumas, a ginga, as lendas, as histórias dos heróis e da gente comum, seus casos, santos, crendices, e aquilo, sabe-se lá o quê, que todo povo tem e é só seu, o que diríamos,  o que aquela gente tem de mais peculiar. Devido às altitudes, Jurupemba, tem um clima ameno, muitas vezes, frio, o que agrada Alberto que, sempre dorme melhor nas temperaturas mais baixas. Jurupemba é a típica cidade do interior, pequena, provinciana, a localização, entre as montanhas e os paredões de pedra, tamanhas barreiras naturais, certamente lhe proporcionou, ao longo de sua história, algum isolamento e, ainda mais peculiaridades. Lugares assim, geralmente, apresentam sólidas tradições culturais. Além do que, cada lugar, com suas belezas e problemas, é único. A rua principal acompanha o curso de um vale que serpenteia três grandes montanhas, que circundam toda a região central, muitas das ruas adjacentes, embrenham-se pelas serras acima, as casas são baixas, os poucos prédios não ultrapassam quatro a cinco andares, o comércio é modesto, mas movimentado, com feiras de barracas de alimentos e coisas da terra, e a população local, apesar de todos se conhecerem entre si, não é de estranhar a presença de forasteiros, pois com eles já se acostumaram, graças ao fluxo de turistas que, no verão, vem usufruir das águas frias de suas abundantes cachoeiras. O hotel é grande, espaçoso e confortável, ocupa um prédio antigo que passou por muitas reformas, têm largas portas de vidro, as janelas são amplas, as paredes são limpas e ornamentadas com quadros e artesanatos, e o atendimento é sempre bem avaliado.  Alberto e sua equipe já eram esperados na recepção, o que facilitou as acomodações, tanto é, que assim que chegou, apresentou-se e correu para o chuveiro, tomou um banho quente e, quando retornou à sala das recepções, lá estava a sua equipe apresentando-se ao recepcionista e descarregando suas bagagens. A viagem transcorrera sem qualquer infortúnio. Depois de guardarem os equipamentos e malas nos quartos do hotel, os homens se reúnem para um jantar servido pelo restaurante do estabelecimento. Estão todos famintos e cansados depois de oito horas de viagem, o que não impede que conversem animados e elogiem as belezas e o clima da região que, segundo dizem, os havia encantado durante a maior parte do percurso. A mesa é farta, a comida é saborosa, e todos comem de bom grado e gula, e por um bom tempo, houve um silêncio absoluto no local, quando todas as bocas não faziam outra coisa além de mastigar e salivar com os temperos típicos da região. Após a sobremesa, saem todos para a rua, a fim de tomarem um pouco do ar frio da cidade. Uns ficam conversando na calçada, bem em frente à porta de vidro da entrada principal do hotel, enquanto outros saem em busca de aspirina e cigarros. Alberto resolve permanecer no hotel, pois precisa redigir algumas correspondências e preencher relatórios, além, claro, de ligar para Virgínia, para dizer-lhe que foi bem de viagem e procurar, mais uma vez, consolá-la, a despeito do adiamento das comemorações do aniversário. Apesar de compreender as demandas do trabalho de Alberto, e as emergências que, vez ou outra, tem que atender, ela não consegue livrar-se da chateação e do tormento, que é ver seus planos, indo por água abaixo. Ele, então, tranca-se no quarto e liga para ela. Alô, meu amor, como estão as coisas por aí? Por aqui está tudo bem. A viagem foi muito tranquila, sem qualquer transtorno e, por um longo trecho, digamos, a partir da segunda metade da viagem, a estrada estava praticamente vazia. A paisagem é linda e o carro, como bem sabe, é muito confortável e não há melhor para viagens. Tranquilize-se, estou muito bem por aqui, além do que, o hotel é confortável, bem localizado, a comida é maravilhosa, e a equipe, apesar de serem todos muito bons de serviço, são pessoas bacanas e de convívio fácil. Não se martirize, Virgínia, a festa pode esperar. Em dez dias estarei de volta e, então, faremos uma comemoração bem maior ou melhor do que seria esta que não poderá ser. E não acabou, digo que além da festa que faremos, já lhe adianto que pode pensar em preparar malas, pois, depois desta minha empreitada, quando voltar, faremos uma boa e inesquecível viagem para um paraíso qualquer. Já pode ir olhando os mapas, escolhendo destinos e hotéis, aí sim, finalmente, poderemos usufruir de merecidas férias e descanso. Fazemos a festa e, em seguida, viajamos. O que acha, meu bem? Não se desespere, porém, e nem precisa consumir-se em ansiedades, ainda temos um bom tempo pela frente, ao longo da semana, vamos conversando e programando melhor. Descanse, meu amor, que é, também, o que farei agora. Como estão todos por aí? Mande, por favor, meus abraços e saudações. Tchau, beijos. Desliga o telefone, solta um longo suspiro e senta-se na beirada da cama. O telefone pisca, mensagem do senhor Hamilton. O que se lê, Boa noite, senhor Alberto, como vai? Espero que tudo tenha transcorrido bem durante a viagem e que tenha gostado do hotel. Passo para avisar que os agentes Anthony e Peterson, ao contrário do previsto, não chegarão amanhã, vão se atrasar em alguns dias. Quando a data estiver definida, envio mensagem. Boa noite e bom trabalho. Abraço. Alberto olha para o aparelho celular, desliga-o e põe-se a imaginar, Mas o que terá ocorrido? Já estou curioso para conhecer estes dois. Afinal, a tarefa que tem pela frente, é de extrema ousadia. Como farão para realizar com sucesso tal empreitada? Será tão transparente assim o equipamento, a ponto de ninguém percebê-lo? Como farão para instalá-lo, acioná-lo e desmontá-lo à vista de todos? Claro, estando tudo combinado com o candidato, facilitam muito as coisas. No momento exato, o candidato, em discurso, chamará todas as atenções para si, quando então, as mãos habilidosas dos agentes, entrarão em ação. Vou evitar preocupar-me com isso, afinal, o Império não encarregaria de tais ações, gente inexperiente e despreparada. Quanto a mim e a equipe, temos que nos preocupar com os registros e as devidas edições, produzir nosso trabalho jornalístico, as reportagens, e claro, dar cobertura aos agentes, fazer crer que somos todos da mesma equipe de trabalho, técnicos de um jornalismo sério e de qualidade. Alberto levanta-se e vai até a janela. Ao abri-la, a primeira imagem que lhe vem aos olhos é a da estátua do Coronel Jovelino Miranda, robusta, imponente e grandiosa, com a expressão de bronze, observando e dominando toda a praça. Um calafrio percorre os braços de Alberto, passa pelo peito e soca-lhe o estômago, arrepiando-lhe os pelos. Ele mira-a por alguns instantes, intrigado, fecha a janela e resolve deitar-se para dormir. Acomoda-se na cama, mas o sono custa a chegar, vira para um lado e para o outro, diversas vezes, até que o sono venha lhe subtrair as forças. Ao dormir, porém, os sonhos não lhe dão sossego, uma sucessão de imagens, advindas de sua vida real, do seu dia a dia, e de situações absurdas, lhe vem à mente, as paisagens que vira na estrada, Virgínia, a fisionomia onipotente do patrão, os dois agentes, os quais nunca viu, sequer em fotografias, lhe aparecem com os rostos encapuzados, Bianca em toda sua sensualidade, e de repente, aparece o candidato Josemar com as mãos voltadas em sua direção, em forma de ganchos, prontas para estrangulá-lo, e quando prepara o grito de socorro, a estátua do Coronel, tomba sobre si , a esmagar-lhe. Neste momento, Alberto desperta em um salto da cama, tem o corpo, o lençol e o travesseiro ensopados de suor. Levanta-se, toma um copo d’água, vai até o chuveiro, toma um banho rápido, ao voltar, abre a janela, a constatar se Jovelino Miranda se mantém em seu posto, lá está, intocável, e fecha-a rapidamente. Volta para a cama. São quatro horas da madrugada e o sono resolve abandoná-lo. As cinco, levanta-se novamente, abre a agenda com os números dos telefones dos candidatos à Prefeitura de Jurupemba e rascunha, em uma folha de papel, a programação dos trabalhos para os próximos dias. Pontua, em tópicos, os assuntos que ainda hoje, pretende tratar com sua equipe, em reunião, após o café da manhã. Às sete e meia estavam todos reunidos em torno de uma grande mesa, recheada com todo tipo de guloseimas, pães, bolos, cafés, sucos e chás, além de uma considerável variedade de frutas e, mais uma vez, todos degustam em silêncio, à exceção de um comentário ou outro, sobre o sabor das iguarias, e pequenas brincadeiras e piadas de uns com os outros, o que é comum entre colegas de trabalho, nos raros momentos de descontração e lazer. Às oito horas, sentam-se todos ao redor de Alberto, que, valendo-se de sua condição de liderança, expõe as metas e as ações daquele dia. E assim os dias se sucedem em Jurupemba, entre reuniões pela manhã, desjejuns maravilhosos e inesquecíveis, e uma longa rotina de filmagens, entrevistas, pesquisas de opinião, conversas com autoridades, técnicos do governo, levantamento de dados e informações e a produção de um infinito número de imagens. Ao fim da tarde, a equipe se reúne novamente para realizar um balanço da produção do dia. Alberto, às vezes, vara madrugadas, a conferir o material produzido e planejar suas edições. Esta rotina se mantém ao longo dos dias e, em uma semana, já haviam entrevistado todos os candidatos e seus principais assessores. 

A rotina iria se alterar apenas com a chegada dos agentes que, como o senhor Hamilton havia avisado, ocorrerá nesta manhã de quinta-feira, às nove horas, quando a equipe já saiu para seu trabalho de campo, e apenas Alberto os aguarda para fazer as devidas recepções, na véspera do esperado comício do candidato Josemar Miranda aos pés da estátua do avô. Enquanto Alberto aguarda a chegada dos homens, deita-se um pouco na cama, em seu quarto, logo após o café da manhã e a saída de seus funcionários. Mal teve tempo de acomodar-se no leito, a recepcionista, pelo interfone, avisa que Anthony e Peterson acabam de chegar e estão à sua espera. Alberto dá um salto da cama, abre a janela do quarto, guarda a camisa que havia deixado em cima da escrivaninha, ajeita duas cadeiras, olha-se no espelho, ajeita os fios da barba e do cabelo que estavam levemente desalinhados e pede a recepcionista que os encaminhe para o quarto, onde vai recebê-los. Bom dia, senhor Alberto Matias, como vai? Disse Anthony, com sotaque carregado das línguas estrangeiras. Bom dia, senhores, muito prazer. Sentem-se, acomodem-se, aceitam um copo d’água? Necessitam de algo, um lanche, um banho? Afinal, acabam de chegar de uma longa viagem. Não se preocupe, senhor Alberto, respondeu Peterson, estamos bem. Alberto os observa com curiosidade. São jovens, bem vestidos, altos, de pele clara, os dois são parecidos, não ao ponto de assemelharem-se a irmãos ou primos, mas como pertencentes a um grande grupo familiar, como se do mesmo ramo genético, ou no mínimo, como se houvessem sido criados sob os mesmo códigos de condutas e posturas. Eles se parecem, inclusive, observa Alberto, na maneira de se sentarem e de olharem para ele. Nada que lembrasse as aparições em sua noite de pesadelos. Pois, então, senhor Alberto, o senhor já sabe a que viemos, já recebeu as orientações, então, aqui estamos, o senhor não tem muito com o que se preocupar, com relação a nós, o que lhe cabe fazer é integrar-nos a sua equipe, como se dela fizéssemos parte por todo o sempre, pois, amanhã, na hora do evento, teremos que estar entre eles, manipulando os equipamentos de filmagens, com seus pedestais, cabos, tomadas, fios, e luzes, sim, mais que qualquer outra coisa, é importante que tenhamos um holofote em mãos, ele nos ajudará na cena, apenas como mais uma garantia, qual seja, ofuscar um pouco as vistas dos que estiverem mais próximos do ponto zero do milagre, a estátua do Coronel Jovelino. Quanto aos demais detalhes da operação, o senhor não se preocupe, não tem como dar errado, nosso método é bastante eficaz. Estivemos agora pela praça e percebemos que o monumento e suas medidas são exatamente aquilo que temos catalogado em nossos registros e imagens. O candidato está ciente de toda a operação, é coadjuvante, e já nos entendemos com ele, antes mesmo de virmos para cá. No momento em que ele se referir ao avô e repetir suas palavras, gravadas aos pés da estátua, quinze minutos após o início do comício, o milagre ocorrerá. Prepare seus olhos e lentes, senhor Alberto.  Infelizmente, não há como fazer demonstrações prévias, mas o senhor verá o milagre acontecer. Já viu algum, senhor Alberto? Alberto esboça um sorriso sem graça e desajeitado. Vários, senhores, vários, responde. Anthony retira uma folha em dobras do bolso e abre-a sobre a mesa, é uma fotografia da praça do Coronel, quase um mapa, feita por satélites, em alta resolução, onde se pode ver detalhes da imagem, um retrato minucioso do local onde ocorrerá o comício. Os três homens tem os olhos fixos sobre a fotografia. Anthony percorre a imagem com os dedos e vai apontando para Alberto, os pontos exatos, onde cada um deverá se posicionar, para garantir o sucesso da operação. Alguns minutos após terminar sua exposição, acertam ainda um detalhe ou outro e, por fim, Peterson, indaga, Ainda há alguma dúvida, senhor Alberto? Não, está bem entendido. Os homens, então, como se ouvissem uma senha, levantam-se, e Anthony diz, Pois bem, agora, precisamos comer alguma coisa, tomarmos um banho, nos acomodarmos e descansar um pouco. Qualquer coisa, senhor Alberto, estamos no quarto ao lado. Foi um prazer conhecê-lo. Os homens se levantam e estendem as mãos para Alberto. Deixe que eu os acompanho, diz Alberto, procurando oferecer gentilezas. Muito obrigado, senhor Alberto, mas não é necessário. Nos vemos ao final do dia. Até lá, abraços. Os homens saem pela porta e desaparecem como um raio, como se por ali, nunca houvessem passado. Alberto resolve passar o resto da manhã dentro do quarto, revisando parte do material produzido pela equipe ao longo da semana e programando possíveis edições. Liga o computador, espalha algumas folhas pela mesa, muda a caneta de lugar e vai até a janela. Encosta-se no parapeito e passa a observar, detidamente, a estátua do coronel. Fixa os olhos nela e deixa-se levar por um turbilhão de pensamentos, até perder-se no meio deles, e se esquecer do trabalho que havia programado realizar. Quando dá por si, já eram as horas do almoço. Ao final do dia, reúnem-se todos no salão reservado do hotel, Alberto, a equipe e os dois novos agregados, Anthony e Peterson, que são rapidamente apresentados. A equipe esbanja simpatias para os dois novatos, no intuito de melhor integrá-los ao grupo, fazem brincadeiras e o quanto podem em gentilezas para deixá-los à vontade. Os dois, porém, apesar de esbanjarem cordialidades e delicadezas, estabelecendo amistosas relações, são homens de poucas palavras, dão respostas curtas e evitam estender os assuntos. Antes de encerrar o relato que o repórter Rogério fazia sobre o seu trabalho do dia, Anthony e Peterson pedem licença, despedem-se e, desculpam-se pela súbita retirada, alegando a necessidade de dormirem bem, para estarem devidamente descansados e preparados para o exaustivo dia de amanhã. Meia hora depois, todos se despedem e recolhem-se aos seus aposentos.

Como ainda não havia ocorrido desde que chegara a Jurupemba, Alberto dorme, ininterruptamente, mais de oito horas. Quando abre os olhos pela manhã e percebe o sol já bem claro e o dia quente, assusta-se, imaginando que, talvez, houvesse dormido por uns dois dias consecutivos. Sente-se confortável, após uma noite de um sono revigorante, estende levemente os músculos dos braços e das pernas e, rapidamente, pega o relógio, para conferir o adiantado das horas. Ainda é cedo, não há necessidade de correrias, mesmo porque, hoje à noite será o esperado comício do candidato e a equipe não sairia a campo durante o dia, ficariam todos no hotel para ajustar os equipamentos e fechar últimos detalhes da cobertura. E assim se fez. Alberto quase não sai do quarto durante todo o dia, e a equipe aproveita a ocasião para empanturrar-se das guloseimas que o local oferece, comem de tudo, dos salgados aos doces, e o resto do tempo, dedicam-se ao ócio e ao sono. Anthony e Peterson são vistos muito rapidamente, apenas durante o horário do almoço. O comício terá início às oito horas da noite, e tudo já está preparado, organizado, faltando apenas aguardar o momento de iniciar os trabalhos na praça. Enquanto seus funcionários se empenharão em registrar o evento, carregando filmadoras, microfones, lâmpadas, cabos e toda a parafernália própria do ofício, posicionando-se nos mais apropriados ângulos, não apenas para registrar as melhores imagens, mas também para dar as devidas coberturas ao trabalho dos agentes, caberá a Alberto apenas acompanhar todo o trabalho e o desenrolar dos acontecimentos. Fará o papel de observador, ao mesmo tempo em que sua presença impõe o espírito de coordenação e organização do grupo, o mais importante que terá a fazer na ocasião, será tentar perceber, bem de perto, a eficácia da ação dos agentes, tanto no que diz respeito à sua habilidade e presteza, quanto à reação do público presente. Como está programada uma apresentação musical após a fala do candidato, estarão ali, tanto seus eleitores como, certamente, eleitores dos candidatos adversários, uma vez que, muitos são movidos apenas pela promessa da música e pelo movimento que estes eventos, geralmente, proporcionam em uma cidade, normalmente, pacata. A partir das sete horas, mal a noite caíra sobre Jurupemba, e grupos de pessoas, eleitores, curiosos, correligionários de Josemar Miranda começam a chegar, a equipe já se encontra posicionada, ainda esticando e enrolando fios, dando os últimos ajustes em suas lentes, nos controles dos equipamentos, nivelando os tripés, testando áudios e microfones, regulando as luzes e no caso de Rogério, exercitando a voz. O palanque, montado bem ao lado da estátua do coronel, recebe os últimos retoques, técnicos fazem os testes finais em suas aparelhagens e mulheres, jovens e idosas, cuidam da ornamentação do local, com flores, arranjos e material diverso de campanha, entre bandeiras, cartazes, banners e faixas. Aos poucos, o local vai se enchendo. Vem gente de todas as direções. Jovens aos grupos, senhoras, casais de todas as idades, com filhos ou sem eles, crianças, que ao colocarem os pés sobre a calçada da praça, soltam-se das mãos de seus pais e correm apressados ao redor dos canteiros e dos jardins, carros se aglomeram pelas ruas laterais, entre congestionamentos e buzinaços, homens montados em cavalos, vindos da extensa área rural de Jurupemba, representantes de partidos políticos, organizações empresarias e entidades de fazendeiros, com suas siglas, símbolos e logomarcas, pipoqueiros, vendedores de balas, de algodão doce, militantes que distribuem santinhos, chaveiros, panfletos, adesivos, homens e mulheres vestidos com camisetas estampadas com a foto de Josemar, sacodem, efusivamente, bandeiras de plástico com as cores da campanha e do partido do candidato. Anthony e Peterson, estes dois que parecem um, de tão juntos e inseparáveis que são, vestidos com o uniforme de jornalismo da equipe, já estão a postos, bem próximos da estátua do coronel. Eles têm o semblante duro, fechado, por mais que se esforcem em compartilhar simpatias e cumprimentos, seus olhares alternam-se entre o palanque, o monumento ao coronel Jovelino e a multidão ali reunida, ao conjunto dela, suas medidas e dimensão, e ao mesmo tempo, procuram observar um a um dos que a compõem, como a procurar desvendar sua natureza ou intenções, as individuais e as coletivas. De longe, Alberto os observa e pensa consigo mesmo que, pudesse apostar, apesar do pouco que os conhece, diria, sem medo de errar, que ali se trata de um elevado estado de espírito de tensões. Como que para quebrar seu pensamento, ao que chega a assustar-se, uma música alta, executada por uma banda de trompetes e cornetas, irrompe do nada, sem aviso. Os músicos, com suas bochechas de foles, enchem e esvaziam freneticamente os pulmões, e com sopros retumbantes, tomados pelo entusiasmo, e pela potência da laringe e de seus instrumentos, enchem a praça e explodem os espíritos dos cidadãos com sua música milenar. Anunciam a chegada de Josemar Miranda. Uma grande euforia toma conta do lugar. Enquanto sobe ao palanque, a multidão grita seu nome repetidas vezes, soltanto urras, já ganhou, já ganhou, Josemar, Josemar, e é efusivamente aplaudido pela maioria das pessoas que tomavam a praça. O candidato posta-se à frente do microfone, sobre o palanque, ainda em silêncio, com os braços erguidos, acompanhando as manifestações de seus entusiasmados apoiadores. Do alto, o candidato vai cumprimentando os que acenam para ele. O candidato vê Alberto, mesmo porque já sabia onde este estaria posicionado e o cumprimenta com um ligeiro aceno com a mão. Sem graça e visivelmente desconfortável, Alberto retribui o gesto. Por alguns minutos, o candidato ainda ficaria a cumprimentar e apertar as mãos dos que lhe estavam mais próximos. O candidato leva a mão ao microfone e inicia seu discurso. Neste momento, faz-se um silêncio geral na plateia. E Josemar inicia, Boa noite, meus amados cidadãos, conterrâneos e compatriotas. É com muito prazer e satisfação que hoje me dirijo a vocês, aqui, reunidos em praça pública, praça esta, que por tantas vezes podemos nos encontrar, conversarmos e darmos as mãos, nesta local, tão cheio de significados, para mim, em particular, e para todo o povo de Jurupemba, para os que aqui ainda estão e para os que desta já se foram, os da geração passada. Por isto, este nosso encontro, não poderia ocorrer em nenhum outro local. Amigos, Jurupemba não se esquece dos seus antepassados, dos seus heróis, dos que permitiram, lá atrás, que pudéssemos chegar aonde chegamos, com sacrifícios e dificuldades, é claro, mas com o orgulho dignificado, com a honra restabelecida e, mais importante, com a alma lavada. Neste momento, Josemar é interrompido por uma saraivada de palmas. E volta, com a voz mais firme e o punho em riste, Sim, meu povo, nunca nos esqueceremos dos nossos fundadores, dos nossos guerreiros de ontem, mas Jurupemba vislumbra uma era de prosperidades e não tira os olhos do futuro. Precisamos, juntos, construirmos a Jurupemba que queremos, e para isto, preciso de todos vocês, não apenas do seu voto, mas do seu dinamismo e de seu poder de convencimento, para convencer cada cidadão de Jurupemba, o pai indeciso, a mãe que ainda se definiu, o tio que ainda não compreendeu que o nosso governo é o melhor que podemos fazer por esta terra querida. Por isto, amigos de Jurupemba, conclamo todos vocês, nestes dois dias que nos restam, a fazer o possível e o impossível para conquistar o voto que seja, do indeciso, do que pretende abster-se e por que não, dos que pretendem votar no adversário. Sãos momentos decisivos, meus irmãos. É tudo ou nada. Ou vai ou racha. Jurupemba está nas mãos de vocês. Não podemos titubear. Outra vez, Josemar é interrompido por aplausos e gritos de euforia. Viva, Josemar, o homem que vai salvar nossa terra, berra alto, um homem no meio da multidão. Viva, Viva. Josemar volta-se para o homem e agradece, dá-lhe um aceno e retoma, Pois, então, irmãos de Jurupemba, milagres não fazemos, mas prometo, dos fundos da minha alma e do meu coração que de tudo farei, o que estiver ao meu alcance e o que não estiver, lutarei com todas as minhas forças, até o último suspiro, para ver este povo feliz. Jamais medirei meus esforços para levar Jurupemba pelos caminhos do desenvolvimento, da paz e do progresso. Faço esta profissão de fé, não apenas em meu nome ou movido por anseios pessoais, mas em honra ao espírito do meu avô que derramou seu sangue para o bem e a salvação do povo desta terra. Josemar põe as mãos sobre os ombros em bronze do avô. Era a senha. Alberto tem os olhos fixos no candidato e em Anthony e Peterson ao mesmo tempo. Os dois se movimentam de forma suave, quase imperceptíveis, e neste momento, por incrível que pareça, tem um ar de tranquilidade e um comportamento, nitidamente, profissional e movimentam-se, sem dar às vistas. Estes sujeitos estão bem treinados, pensou Alberto. O candidato mantem as mãos pousadas sobre os ombros do avô e proclama, Não terão sido em vão as palavras vivas do meu avô proferidas pouco antes de ser alvejado pelos inimigos cruéis e mortais, “Morrerei na batalha, mas meu sangue e minhas lágrimas inundarão de esperanças e coragem o coração do povo e a terra de Jurupemba”. Neste instante, sem mover o rosto um único milímetro, Peterson dá o primeiro arranque brusco nos braços, em seguida, um segundo solavanco, e sua expressão mantem-se completamente inalterada. Neste momento, o candidato solta um grito de espanto, Ele sangrou, ele sangrou. Josemar leva as mãos até o peito do avô e um sangue vermelho, viscoso e farto, escorre entre seus dedos, dos olhos de Jovelino, lágrimas salgadas correm em pequenas cascatas. Milagre, um milagre, o sangue de Jovelino volta a escorrer, Milagre, milagre, gritava Josemar, com as mãos levantadas para o alto. Assessores mais próximos aproximam-se da estátua para verificar o fenômeno e voltam, nitidamente, embasbacados com o que acabavam de ver. A equipe corria de um lado para o outro, de modo a fotografar o momento sob os mais variados ângulos, Alberto encontra-se paralisado como uma pedra. O povo, alarmado, em alvoroço, solta gemidos, lamentos, alguns ajoelham-se, outros clamam aos céus, entregam-se a cânticos, louvores e orações, o candidato insiste, do alto do palanque, Milagre, milagre, enquanto o sangue do avô lhe escorre pelos braços e ensopa a camisa. É sangue, é sangue. O sangue derramado do peito em bronze de Jovelino escorre por seu corpo, formando uma poça escura sob os pés da estátua. Os flashes das câmeras fotográficas são disparados em todas as direções. Os homens da equipe não tomam fôlego um segundo sequer, procuram capturar com suas máquinas possantes todos os registros possíveis. Anthony e Peterson espalham-se no meio da multidão com naturalidade tal, como se mais não tivessem feito, além da prestação de assessoria técnica à equipe de jornalistas, compram sacos de pipoca e refrigerantes e, em pouco tempo, estariam de volta ao hotel. Em meio ao alvoroço que se instalou, Josemar, com a roupa suja de sangue, pega novamente o microfone e diz, Amigos, irmãos, povo de Jurupemba. E neste instante, todos se calaram, um silêncio absoluto dominou toda a praça e apenas a voz de Josemar se fazia ouvir. Homens, mulheres e crianças, todos o olham com espanto e admiração. Meu povo, confesso que estou sem palavras, peço que tenhamos calma, afinal, é o sangue de Jovelino, é o sangue ancestral de Jurupemba que vem abençoar a nossa terra, o nosso povo e o nosso destino. Não nos alarmemos, pois. Tenho a plena certeza e convicção que o que temos é um sinal de sorte, é o anúncio de um novo tempo em que Jurupemba trilhará pelos caminhos da paz e da abundância. Creio que o melhor que fazemos agora, para evitarmos maiores tumultos, especulações ou confusões, é voltarmos para casa, refletirmos sobre este momento, entregarmo-nos as orações e não nos esquecermos que, depois de amanhã, daqui a dois dias, só temos um caminho, ao que a multidão atônita lhe interrompe e responde aos gritos, Josemar, Josemar, Salvador, Salvador. Alberto permanece de pé, observando o movimento e a reação das pessoas e a praça que, sob os pedidos de Josemar, começa a se esvaziar, não sem antes, em peregrinação, passarem, um a um, ao lado da estátua, para verem o sangue derramado do Coronel, porém, mantendo certa distância, sabe-se lá, por receio, respeito ou veneração. Boa noite, meu povo amado, estamos todos protegidos, até a vitória. Josemar, Josemar, Salvador, Salvador, o povo vai tomando o caminho de casa, cantando pelas ruas, Josemar, Josemar, Salvador, Salvador. O candidato, cercado por seguranças, assessores, curiosos e os fãs mais exaltados, dirige-se rapidamente para o carro e retira-se do local. A praça torna-se, a cada minuto, mais vazia. Enquanto a equipe recolhe e guarda os equipamentos, Alberto observa os últimos movimentos. Impressionante, ele pensa, Não imaginei que fosse viver para presenciar um milagre. Bem, mas como se diz por aí, milagres, realmente, acontecem. Estes de sangue, então, acredito serem os mais eficazes, pois há toda uma sacralidade em torno desta matéria física, deste fluido enigmático, que é o nosso sangue, afinal, é a fonte da vida, da energia, da saúde e, como acreditam muitos, é a fonte da salvação e, para tanto, é necessário jorrar. Faz-me recordar a passagem do livro sagrado, onde se diz que, De fato, segundo a Lei, quase todas as coisas são purificadas com sangue, e sem derramamento de sangue não há perdão, se então é assim, se são certas as palavras, o sangue do avô redimirá o neto e, este, muito, provavelmente, arrancará a vitória das urnas. Afinal, o sangue simboliza muitos dos pactos entre os homens e suas divindades. É símbolo da vida e das paixões, da fertilidade, em seu fluxo contínuo, ou ao contrário, onde também se manifestam seus poderes, nas cenas e no cotidiano da violência e da guerra, no contágio, nas doenças e nos genocídios. O sangue da morte, o sangue da vida. Retrata o fim e o extermínio, mas também, a purificação e a redenção. Enquanto há vida, há sangue, sem ele, é o fim, o nada. Além do que, ele, também, carrega de força as expressões ou as caracterizações humanas ou seus estados de espírito. És um sangue-frio ou ao contrário, é o fogo em chamas que corre por tuas veias? Um sanguinário, sanguinolento ou apenas um sanguessuga? Mais vale uma bala na agulha ou o sangue na veia? Tem sangue nos olhos? É sangue ruim? Sangue de barata? Sangra até a morte? É sangue do teu sangue? O acordo é da boca pra fora ou é um pacto de sangue? A disputa foi pacífica ou derramou-se um mar de sangue? Ah, quanto sangue derramado. A bem da verdade, não apenas a história dos homens está repleta de sangue, mas também, os seus dicionários. Que coisa. Rogério, o repórter, toca o ombro de Alberto, Tudo bem, chefe? Alberto desperta, assustado, a ponto de, mais uma vez, ser tomado pelo calafrio que lhe sobe os braços, irradia-se pelo peito e soca-lhe o estômago. Tudo bem sim, Rogério, tudo bem. Ufa, que dia, hein? Sim, miraculoso, responde Rogério. A propósito, rapazes, venham aqui, e acena para a equipe, chamando-a para junto de si. Pois, então, parabéns pelo trabalho, tenho certeza que temos em mãos um material preciosíssimo, vi bem o empenho de vocês durante todo o tempo. É o seguinte, comentários e avaliações, deixaremos para uma outra ocasião, agora tenho pressa, a noite mal começou, tenho muito trabalho pela madrugada adentro. Vou dar-lhe um tempo, mínimo, uma hora e meia, para que juntem todo o material produzido hoje, organizem, por favor, os arquivos, e me entreguem, em meu quarto, o material bruto, tudo, impreterivelmente, dentro deste prazo. Mãos a obra, garotos. 

Os homens se apressam, enrolam os últimos fios, desligam os últimos botões, e vão para o hotel. Alberto lhes passa mais algumas orientações, antes de dirigir-se ao quarto, e reafirma que os aguarda, ansioso, com o material, pois, ainda esta noite, deverá distribuir parte deles em outras seções e departamentos da empresa. Havia ainda aproximadamente trinta horas até as eleições, era o prazo que tinha, para enviar as imagens e audiovisuais capturados no comício para os responsáveis pela linha editorial e pela construção da propaganda. Uma propaganda agressiva, obviamente, incisiva, imagina Alberto, pois, não há outros caminhos ou estratégias viáveis, quando tão a beira do pleito. De lá, dos escritórios confortáveis da empresa, ainda nesta madrugada, os editores e redatores formatarão todo o material, de modo a encaixá-los nas estratégias de convencimento e persuasão mais eficazes que tem em mãos. Utilizando-se de truques imagináveis e também os inimagináveis, e todos os recursos que a tecnologia lhes oferece, dos quais, a empresa é pioneira e faz usos sem limites, em poucas horas, poderão invadir as telas dos eletrônicos de toda a população de Jurupema, valendo-se dos mais sofisticados códigos, sistemas e meios de transmissão de informação e contrainformação que a humanidade já vislumbrou, com todo o tipo de propaganda, montagens, frases de efeito, imagens sedutoras, enaltecendo o candidato Josemar Miranda e empurrando-o de vez, para as urnas e para a cadeira de prefeito. E o melhor de todos, os ingredientes desta complexa receita, a cereja do bolo, pensa Alberto, quase em voz alta, já sentado a escrivaninha, é este bendito milagre, este sim, talvez, seja a minha tábua de salvação. E sorri com ares de satisfação. Exatamente dentro do prazo estabelecido, os homens batem em sua porta e entregam-lhe as cópias de todos os arquivos. Alberto passa toda a madrugada, debruçado sobre o computador, vendo e revirando tudo quanto fora registrado, fazendo recortes, supressões, anotações, sugestões de estratégias e linhas de abordagens, e em comunicação direta, pelo telefone, com os técnicos, a centenas de quilômetros de distância que, trabalham, sem trégua, até o raiar do dia. Alberto passa a noite às claras, e às sete horas da manhã, para conseguir manter-se acordado, toma um banho e abre as janelas, pois em meia hora, receberá Anthony e Peterson, que estavam de malas prontas para a partida. Às sete e meia em ponto, os dois batem à porta de Alberto. Bom dia, senhor Alberto, como vai? Olá, rapazes, bom dia. Estou bem, felizmente, apesar de, como vocês podem imaginar ou observar, ainda não dormi, deste ontem, agarrado nestes serviços, diz Alberto, apontando para o computador ligado e os papéis espalhados sobre a mesa. Oh, lamentamos, senhor Alberto, nós dormimos como pedra, sabe, aquela sensação de missão cumprida, além do mais, para sermos sinceros, não é qualquer coisa que nos subtrai o sono. Mas não vamos prolongar os assuntos, senhor Alberto, pois já estamos de saída, a estrada é longa, então, estamos um pouco às pressas, diz Anthony, viemos apenas lhe dar as despedidas. Tudo bem, rapazes. Olha, parabéns, é impressionante a atuação de vocês, um trabalho executado com o máximo de destreza e discrição. Incrível, quanta habilidade. É nosso trabalho, senhor. A propósito, o senhor e a equipe ainda ficam muito tempo por aqui? Não, também estamos quase de saída, mas resta-nos ainda, fazermos, amanhã, a cobertura do dia da eleição, depois disso, fechadas as urnas, estamos todos liberados. A equipe sairá na manhã seguinte, segunda-feira, lá pelas sete horas, e eu, um pouco mais tarde que eles, estamos mesmo em carros separados, e pretendo dormir até mais tarde um pouco. Sairei na segunda-feira às nove horas da manhã. Na terça-feira, as oito, tenho compromissos inadiáveis no escritório. Mas, enfim, foi um prazer conhecê-los. Façam uma boa viagem e quem sabe nos encontramos em operações futuras. Um grande abraço para vocês.  Bom dia, senhor Alberto, descanse. Mande outro abraço para a equipe. Felicidades, sucesso. Abraços. Assim que saem, Alberto toma seu café da manhã, rapidamente, volta para o quarto, e dorme, praticamente, todo o dia, saindo apenas para as refeições e para saudar a equipe. No domingo pela manhã, todos se levantam cedo, é o dia que definirá a sorte de Jurupemba, o dia de ir às urnas. A equipe se divide em duas, na tentativa de fazer a cobertura da ida à cabine eleitoral dos principais candidatos que, via de regra, nestas ocasiões, sempre vão acompanhados de suas respectivas famílias e, no mais, registrar o clima eleitoral e o ânimos dos eleitores. Logo pela manhã, já se vê o movimento dos primeiros deles, os mais idosos, estes que, como se fosse combinado, são sempre os primeiros a chegar, inclusive, aglomerando filas em alguns postos de votação. Os mais jovens, na maioria dos casos, deslocam-se para suas seções no período da tarde. Estes preferem aproveitar o feriado do dia para dormirem o quanto podem. Enquanto os mais velhos engrossam as filas pela manhã, no desejo de depositarem logo os seus votos, os mais novos, em função de atrasos, ou outra prioridade qualquer, tumultuam o fechamento das seções, com a chegada aos locais, em cima da hora, às correrias, como se também, neste caso, houvesse alguma combinação prévia. O domingo corre tranquilo, sem qualquer incidente, e a equipe, no início da noite, já está com as malas prontas, para a viagem na manhã seguinte. Faltando alguns minutos para a meia noite, Jurupemba tem o resultado das urnas. Josemar Miranda será o novo Prefeito, sua vitória é confirmada. A cidade está em festa. Foguetes estouram por todos os lados, pequenas aglomerações se formam nas portas das casas, e muitos, entusiasmados e eufóricos, gritam das janelas de suas casas, saudando o candidato vitorioso. Alberto cumprimenta a equipe pelo trabalho, abraça um por um, dentro do hotel e, após uma rápida e discreta comemoração, vão todos para os seus quartos, porque, afinal, no dia seguinte, pela manhã, seria a hora de retornarem para casa. Todos caem em um sono pesado e a cidade, após festejar o resultado, adormece.

São três horas da madrugada. Enquanto a cidade dorme e o silêncio da noite paira absoluto, das sombras, submergem os vultos de Anthony e Peterson, vagueando pelas proximidades do hotel. Caminhando nas pontas dos pés e sem emitirem qualquer ruído, como fantasmas, de tão leves, enfiam uma agulha na fechadura do pequeno portão que dá acesso à garagem do hotel, abrem-no e entram rápido, com passos tão ligeiros e silenciosos, que parecem flutuar. Os dois vão até a Van em que viaja a equipe, enfiam-se por baixo dela, e acoplam em sua estrutura mecânica um minúsculo dispositivo eletrônico, depois, enfiam-se pelo estreito corredor lateral e vão até a cozinha, onde abrem e fecham algumas gavetas e, em seguida, saem as pressas, sem deixar qualquer evidência de sua passagem, qualquer rastro ou sinal, e daí, desaparecem e ninguém mais os vê. Às sete horas, em ponto, a equipe guarda a última mala no bagageiro da Van e o senhor Arimatéia dá a partida no motor. A manhã está luminosa, com um céu aberto e sem nuvens, mas um vento frio e úmido desce das montanhas escarpadas, levantando a poeira do chão e assobiando pelas esquinas das ruas, quando o veículo, com a equipe, deixa a cidade, definitivamente, para trás. São nove horas, quando, ao descer uma das mais íngremes encostas pedregosas da estrada, uma das rodas se solta, abruptamente, os freios arrebentam, e o senhor Arimatéia perde totalmente o controle do veículo, que se atira ao precipício. O impacto da queda é tal que o veículo explode e, em poucos minutos, é consumido pelas chamas. Exatamente às noves horas, Alberto é despertado pelo telefone. Senhor Alberto? Sim, bom dia, quem é? Senhor Alberto, aqui é da gerência do hotel e, imaginando o quanto o senhor deve ter se cansado por estes dias, dados o excessos do trabalho, faremos a cortesia de lhe oferecer um lanche especial nesta manhã, que lhe será servido no quarto. Alberto agradece a gentileza e acomoda-se novamente na cama. Em menos de dois minutos, recebe o lanche na porta. A mesa fica farta, com uma grande variedade de pães, bolos, frutas, doces e sucos. O aroma que vem dali, de imediato, abre o apetite de Alberto que, vai até o banheiro, escova os dentes, e corre, com gula, a devorar as tentadoras guloseimas. Em poucos minutos, ainda deliciando-se das sobremesas, um mal estar súbito lhe abate os ânimos, Alberto mira o espelho à frente e assusta-se com a palidez. Um tremor frio toma conta de si e, quando levanta-se, no intuito de solicitar ajuda e socorro, uma dor dilacerante lhe irrompe o peito, um engasgo medonho lhe torce a garganta, como se uma mão invisível a espremesse a torniquete. No primeiro passo, Alberto vai ao chão. Leva as mãos ao pescoço, na tentativa de desafogar-se, mas perdera, irremediavelmente, as suas forças. Algumas horas depois, é encontrado sem vida. O caso das mortes não teve grandes repercussões nas mídias nacionais e um texto único foi publicado e replicado em todos os veículos da imprensa que deram a notícia, “Laudos técnicos e periciais concluíram que a Van que transportava a equipe de jornalistas, não havia se submetido a reparos e revisões periódicas neste ano e Alberto Matias, o Diretor, traumatizado e impactado com a notícia da tragédia, veio também a óbito, em decorrência de uma parada cardíaca.”

FIM



Marcos Vinícius.

O milagre - Parte 1




É final do dia, há muito movimento pelas ruas, carros vão e vem para todos os lados, alguns em ritmo frenético e veloz, denunciam a pressa de seus condutores para chegarem logo em casa, outros amontoam-se em engarrafamentos, nos cruzamentos, e de dentro deles, motoristas esbravejam, xingam impropérios, como se desta maneira, pudessem se livrar das irremediáveis complicações do trânsito, principalmente, por estas horas, em que milhares saem de seus locais de trabalho e a noite já se avizinha, com os primeiros sinais da penumbra e da escuridão. Nas grandes cidades, é justamente nos períodos da manhã, quando a claridade do dia começa a se firmar, e depois, quando esta vem se esconder, é que os transeuntes mostram-se mais apressados. Os que, por um motivo ou outro, prostram-se pelas calçadas das grandes avenidas das regiões centrais, ou precisam afrouxar os passos, são, na maioria das vezes, atropelados por gente apressada, que vai não vai, passam por cima, dão solavancos, cotoveladas e empurrões. Os que deslocam-se de carro, apesar dos congestionamentos e do estresse que é estar ao volante nestas horas, em meio ao caos, pretensamente ordenado pelas placas e luminosos, encontram-se ainda em condição de conforto e privilégio, se comparados às multidões que se espremem nas filas dos pontos e no interior das lotações, expostos a todo tipo de odores, esfregões, quiçá, contágios e doenças. Alberto Matias, diariamente, atravessa a cidade, e pertence à categoria dos que, apesar de enfrentarem as longas distâncias para deslocarem-se da casa para o escritório, do escritório para a casa, possuem em suas garagens, veículos de última geração, e se tem algo, do qual sempre faz questão de se gabar, é que com este tipo de conforto e luxo, nunca se preocupa em economizar, afinal, ele acredita que é para isto que trabalha e dedica os esforços que faz na vida. Dia sim, dia não, vez ou outra, dia sim e o outro também, a depender da ocasião, não vai para a casa, sem antes tomar algumas cervejas, em algum boteco pelo caminho.

É quase noite quando Alberto Matias estaciona o carro. Ao descer do veículo, dá alguns passos, cumprimenta dois homens que bebem na calçada e entra para os fundos do bar. Senta-se encostado ao balcão, saúda o garçom, desativa algumas funções do aparelho celular e pede uma cerveja gelada. O primeiro copo, bebe de uma só vez, num único trago. Seu rosto se avermelha, um suor fino escorre da testa às têmporas, leva os dedos à sobrancelha, alisando-as, retira o sal das bochechas e respira aliviado. Abre os primeiros botões da camisa, esfrega as mãos e solta um sopro abafado e quente pelos ares. Passa os olhos, rápido e atentamente, em todos os cantos do estabelecimento. O bar é pequeno e em poucos instantes, o passa em revista. Naquele horário, as poucas mesas ainda estão vazias e o ambiente é silencioso, afora uma música, que toca baixinho, vinda, provavelmente, dos fundos da cozinha, quase um ruído, indistinguível. A cada minuto, o silêncio é entrecortado pelo barulho dos ônibus e caminhões que forçam seus motores para subir a rua, acentuadamente inclinada. Já no terceiro copo, Alberto relaxa o alinhamento, com o qual entrara no bar. A gola da camisa se entortara, as mangas se levantaram para além dos punhos e, depois de alisar e coçar os cabelos, estes de desgrenharam um pouco, e um pequeno e inusitado topete, levantara-se do conjunto, sem que ele o percebesse. Afora isso, mantém uma inquebrantável altivez, a pele, já pela casa das cinco décadas, é estampa de gente bem alimentada, nutrida, rodeada de cuidados, sabe-se lá, cremes, hidratantes e perfumes. A barba grisalha, sempre bem feita, de corte impecável, e os olhos úmidos e brilhantes fazem dele, um homem elegante, admirável. O sorriso simpático, quase amável, lhe dá a aura de boa gente, em quem, talvez, se possa depositar alguma confiança. Esvazia a primeira cerveja, vai até a rua, acende um cigarro e fuma-o inteiro, rapidamente, observando os movimentos dos carros e das pessoas. Em seguida, retorna ao balcão e pede ao garçom uma segunda garrafa. Enche o copo, observa, atentamente, as bolhas e espumas que se formam sobre o líquido amarelado, antes de levá-lo à boca, quando o telefone toca. Alô, Virgínia, meu amor, tudo bem? Ainda não cheguei em casa, estou aqui dentro do mercado, comprando algumas coisinhas que estão me faltando, apenas fazendo algumas reposições ligeiras. Não passasse por aqui, sequer teria um pão amanhã pela manhã. Poxa, como foi corrida a semana. Acho que, por estes dias, não vamos nos ver, o trabalho no escritório anda apertadíssimo, sinto-me um pouco cansado e dormi tão mal esta noite que, provavelmente, vou precisar de mais umas duas noites, no mínimo, para me restabelecer. Marcamos, então, para o final de semana? Sim, sei que está preocupada com a festa, mas ainda faltam muitos dias, acalme-se. Além do mais, fazemos aniversários todos os anos, se formos nos preocupar com eles com tantas antecedências, passaremos uma vida inteira, sem pensar em outra coisa. Já fez a lista? Sugiro que este ano, façamos algo mais modesto, vamos restringir os amigos e fazer um encontro mais familiar, combinado? Mas não se esqueça de incluir todos eles, mesmo aqueles com os quais não nos damos muito bem, os chatos e inconvenientes de sempre, não os deixaremos de fora, afinal, tratando-se de nossas famílias, já sabemos que o melhor mesmo, é a política das boas vizinhanças. Sossega, meu amor, garanto-lhe, aos finais, tudo se ajeita. Descanse, sem preocupações. Sabe que, mais uma vez, será um sucesso. A propósito, já pode, para este final de semana, providenciar um horário no salão, para embelezares ainda mais. É bem provável, que nos encontremos com o pessoal da Redação. Beijos, amor, e uma boa noite. Desliga o telefone e, imediatamente, dá uma golada grande na cerveja, praticamente, esvaziando o copo. Uma sensação de calor lhe invade o corpo, abre mais um botão da camisa, leva a mão ao peito, retirando o excesso do suor, e toma outro copo de cerveja. Por alguns instantes, volta a olhar cada canto do estabelecimento, o rosto do garçom que lá vai limpar as mesas, um quadro de paisagem pendurado sobre o freezer, já transformado em depósito de dejetos de moscas, algumas plantas penduradas na parede do fundo, e dois pôsteres de times de futebol, colados ao lado da velha máquina registradora. Lá fora, a noite cobre de breu e escuridões os passos apressados dos que vão pelas calçadas e enchem de sombras os olhos fixos dos motoristas, orientados pelas luzes fortes e, as vezes, ofuscante, dos faróis. Alberto pega, novamente, o telefone, as luzes do aparelho revelam as linhas e o desenho de sua expressão e um sorriso leve e crescente se esboça a partir do canto direito de sua boca entreaberta. Suas faces estão rubras. Abre a agenda, e vai olhando nome por nome, rola a tela de cima para baixo e de baixo para cima. Verifica os nomes que se iniciam com a letra A. Ali estão Adriano, Álvaro, Andrea, Angelina, Ataíde, Augusto, e tantos outros, em uma listagem quase sem fim. Passa pela letra B, vem a Bárbara, a Beatriz e a Bianca. Sim, a Bianca. Por um rápido instante, tira os olhos da tela, olha para a rua lá fora, e volta à Bianca. Abre o campo das mensagens e escreve, Boa noite, Podemos nos ver esta noite? Ao que ela responde, É claro amor, Que horas pretende? Às 23h, Ok? Combinado, nos encontramos, então, no mesmo local. Combinado. Beijos e até lá. Alberto desliga o telefone, toma mais um copo e outro e, por fim, pede a conta ao garçom. A partir daí, ele se apressa um pouco, despede-se dos poucos que ainda se encontram do lado de fora do bar e caminha em direção ao veículo estacionado à frente. Pelas vezes que já passou por ali, sua fisionomia já se tornara conhecida, ele mesmo, no entanto, não, pois apesar de nunca se demorar demais, também não é muito dado aos assuntos com os poucos que, geralmente, ali bebem naquele horário. O bar é distante de sua casa, o que lhe garantia certo conforto, relaxamento, e principalmente, anonimato. Tem que se apressar, o tempo que lhe resta, até a hora de ir ao encontrar com Bianca, é o suficiente para que chegue em casa, tome um banho, faça um abreviado lanche e desloque-se até o local combinado. Assim fez.

São vinte e três horas em ponto, quando Alberto estaciona o carro em frente a uma pequena lanchonete, onde Bianca o aguarda. Ele a vira muito antes de se aproximar. Ela usa uma roupa clara, uma blusa curta lilás e um short branco que, as vistas dele, são perceptíveis a mais de duas quadras de distância. Ele a enxerga de tão longe que, às vezes, chega a imaginar que se trata de alguma miragem ou alucinação, mas não, é sempre ela mesma. Ele não se recorda de identificar alguém desta forma, há tantos metros distante. É assim todas as vezes. Ela entra no carro e uma nuvem de perfumes acomoda-se no interior do veículo. Solta-lhe um sorriso largo, dá-lhe um beijo breve e encara-o com olhos de fogo. Sua pele clara reluz sob a incandescência do poste que ilumina a rua e seus pelos curtos arrepiam-se sob as mãos pesadas de Alberto. É uma bela jovem e, bem feitas as contas, sua idade talvez não se aproxime da metade dos anos que ele tem. Antes de ligar, novamente, o motor e dar a partida, Alberto a fita-a de cima em baixo e, pelas linhas de sua expressão é de se crer que, ele gosta muito do que vê. Acostumou-se a dizer a ela que, a cada dia que a encontra, está sempre mais bela e atraente que da vez anterior. O elogio lhe arranca um sorriso doce. Em menos de quinze minutos, estão à porta do motel. A recepcionista pede apenas o documento dela, ele, com um simples gesto amistoso com as mãos, um breve aceno, resolve a necessidade de identificação, ou sabe-se lá, a camareira já o conhecesse de outras ocasiões. O quarto é espaçoso e aconchegante. A cama é redonda, há espelhos pelas paredes e no teto e a iluminação é regulável através de um sofisticado sistema de interruptores e botões. Há as opções de penumbra, claridade total, alternância de cores, ou pisca-pisca, como nas boates. À disposição dos amantes, uma série de fragrâncias à venda, perfumes para cada tipo de fantasias, das catalogadas e das incatalogáveis, e um freezer farto de bebidas e guloseimas. Para atender aos mais variados gostos e opções, o estabelecimento oferece um enorme cardápio, com todos os tipos de acessórios e brinquedinhos. Bianca, após lavar suas mãos, vai até o frigobar, de lá retira uma garrafa de vinho, abre-a, enche duas taças e põe-se a brindar. Por todo o tempo, ela persegue os olhos de Alberto, sabe o poder sedutor que carrega no olhar, entrelaça seus braços aos dele, amarrados um ao outro, e com a taça em punho, celebram o primeiro gole. Um fogo, de imediato, se acende dentro dela e seus olhos faíscam. Alberto sente a volúpia do sangue acelerar-se por dentro das veias. Ela levanta-se, escolhe uma música no rádio e dança para ele, despindo-se, lentamente, peça por peça, até que fica completamente nua e se atira em seus braços. É alta madrugada, quando os corpos úmidos de Alberto e Bianca se desgrudam e, já exaustos, devido às demandas e emergências do amor e do sexo, põem seus músculos ainda quentes a relaxar sobre a cama macia. Ela passa os dedos, então, suavemente, sobre seus lábios e, depois, repete o movimento sobre os lábios dele. Ele alisa as pernas de Bianca, levemente, do quadril ao joelho, dá-lhe uma piscadela, levanta-se, bebe mais um gole do vinho, observa o corpo bem desenhado e atraente de Bianca, por um feixe de luz que atravessa a fresta da cortina, e deita-se novamente. Ela se agarra a ele que, está deitado olhando, agora, para o teto, e o abraça em concha, dobra sua perna sobre as dele, encosta a cabeça sobre o seu peito e lhe acaricia os pelos. Alberto repousa suas mãos sobre os ombros delgados e aveludados da amante. Como você está? Há tanto tempo não o via. Pensei que já nem mais se lembrasse de mim. Veja se não me abandona desta forma, podemos combinar assim? Ela pergunta. Claro, meu amor. Você bem sabe que sou um sujeito sem tempos, o trabalho no escritório, aperta-se a cada dia, e ultimamente, quase não tenho ido à minha própria casa, e você sabe que não é alguém que se esqueça ou abandone com facilidade. Não conseguiria. Vamos combinar de nos vermos com mais frequência, uma vez pela semana, o que acha? Ótimo, mas diga-me, que trabalho é este que te toma tanto tempo? Alberto silencia-se, mira fixamente o teto, inclina-se, levemente, para dar mais um trago no vinho e, rapidamente, volta à posição anterior, enlaçado pelo corpo leve e pela cabeça de Bianca em seu tórax. Você é misterioso, ela diz. Nunca fala às claras sobre o ofício que tem. Não há segredos, meu bem, como já lhe disse, sou jornalista. Mais da metade de minha vida enfurnado nas redações de jornais, já fiz todo tipo de jornalismo, policial, político, esportivo, sensacionalista, e já passei por várias empresas, das pequenas às grandes, hoje, depois de muitos sacrifícios e muitos socos em pontas de facas, consegui me posicionar um pouco melhor, e diria que sou um Diretor Editorial. Nossa, que chique, ela exclama. Então, você pode me dizer o nome do jornal em que trabalha atualmente? Você me parece ser uma pessoa importante, porém, não se revela. Certamente, deve ter os seus motivos, mas confesso que, às vezes, fico curiosa. Mas tudo bem. Diga apenas o que puder ou se sentir a vontade em dizê-lo, o que me importa mesmo é que você não desapareça, seu fujão. Ele sorri e leva os dedos entre os cabelos dela, massageando o seu couro cabeludo. Ela o aperta, aconchegando-o mais de perto. Sabe o que é? Diz ele, A bem da verdade, nos últimos anos, não presto serviço a um jornal apenas, como fiz na maior parte da minha vida, mas coordeno uma rede de entidades e jornalistas que produzem artigos, matérias, editoriais que são destinados a diversos órgãos de imprensa espalhados por todo o país, entre jornais, revistas, até televisão, para ser muito sincero e, principalmente, produzimos material para muitos sites, blogs e redes sociais. O jornalismo já não é mais como foi a uns anos atrás. Hoje em dia, ou nos sofisticamos ou ficamos para trás e somos engolidos pelo rápido avanço da ciência e da tecnologia. Poxa, senhor Alberto, Alberto o quê, mesmo? Ah, sim, me lembrei, Senhor Alberto Matias, minhas intuições não falham, sabia que lidava com gente importante, diz ela. Não é bem assim, meu amor, o mercado é muito competitivo, revolto como um mar tempestuoso, com suas ondas gigantes e demolidoras, ora surfamos pelo alto, ora somos destroçados nas arrebentações. E ouso dizer que se a maré não está boa para os peixes, também não está para muitos aventureiros, que acabam se afogando em suas águas intranquilas. Felizmente, posso dizer que, por enquanto, surfo bem e os ventos tem sido favoráveis. Em parte, consegui me adaptar a algumas demandas do mundo contemporâneo. Os dois sorriem juntos. Que luxo, ela diz. Ainda resta quase meia garrafa de vinho. Desta vez, a iniciativa é dela. Inclina-se na cama, enche as duas taças e convida-o a um brinde. Ela saboreia suavemente o vinho, ele dá um trago longo. Então, você deve ser um homem famoso no meio jornalístico, não é? Não é bem assim. O trabalho que hoje realizo não me proporciona muita visibilidade, as tecnologias digitais, me permitem que o execute de forma bem discreta. Mesmo porque, hoje, não assino matérias ou artigos, apenas administro uma equipe, um sistema. Minha equipe não sai às ruas, em busca das notícias, nossa tarefa, ofício, poderia dizer, é pegar a notícia pronta, já veiculada, e dar a ela o verniz das concepções e pontos de vista daqueles que nos contratam. Nós trabalhamos as notícias, as adaptamos às expectativas e demandas do público que consome as informações dos nossos clientes. Nossos clientes? Grandes portais de notícias, mídias impressas, televisivas e digitais, instituições religiosas, que são sediadas no país e até fora dele, temos muitas organizações do Império que nos contratam. O meu patrão, com o qual tenho pouco contato direto, é um sujeito muito bem relacionado, passa a maior parte do seu tempo fora do país, é um sujeito que possui contatos poderosos. Enquanto estiver sob sua guarda e proteção, não me faltará o trabalho e, também, algum conforto. A menos que algo dê muito errado e nos ponha à mostra, é um trabalho que, apesar de se destinar a um público enorme, nos permite trabalhar mais à sombra dos escritórios, do que à luz dos holofotes. Mas, poxa, acho que já falei demais. Deve ser resultado do vinho, não sou lá de desembolar estes assuntos, mesmo porque, se for falar de trabalho nos poucos momentos em que estou fora dele, posso acabar me estafando, não acha? Verdade, meu bem. Mas só uma pergunta, Como é isso de adaptar a notícia às expectativas de alguém? É a parte que não compreendi bem. A notícia não é o fato por si só? Claro que não, minha linda. O fato é uma coisa, a notícia é outra. Notícia é narrativa, é alguém, alguma entidade, empresarial, governamental, religiosa ou sei lá o quê, que relata o ocorrido de acordo com suas conveniências, suas crenças ou negócios. A notícia é algo muito maleável, somos os artesãos da notícia. Porém, artesãos à moda contemporânea, lhes metemos as mãos, dando nossas formas, tintas e tons, em um trabalho minucioso, cirúrgico e artesanal, depois, as distribuímos em escala industrial. Aliás, somos os operários da notícia. E hoje, mais que nunca, a notícia anda cada vez mais à distância dos fatos que se propõe narrar.  Olha, Alberto, sendo assim, não é então, a notícia, uma representação, um retrato da realidade do fato? Pelo que diz, há casos em que a notícia pode caminhar em um sentido e a verdade para o outro, a depender dos interesses de grupos ou ocasiões? Poxa, Bianca, você é mais atenta do que podia imaginar. Sim, em muitos dos casos, e é o que fazemos. Mas não acha que prolongamos demais o assunto? Não demora a manhã chega e precisamos descansar, diz, Alberto, encerrando o assunto. Isso mesmo, meu Redator, querido, aliás, Redator? Penso que é mais um gerente, não é isso? Diretor Editorial ou Gerente Geral de Negócios?  Acho que as duas coisas, sua curiosa, mas quem trata mesmo da parte financeira é o homem lá de cima, esta entidade milagrosa, que vem salvando um setor do jornalismo da bancarrota total, nestas épocas de rápida circulação do noticiário, e de uma proliferação infinita de sites e blogs de todos os tipos e para todos os gostos e públicos. A disputa e concorrência são tão grandes que passamos por um acelerado processo de seleção natural, onde uma grande parte de profissionais são, literalmente, ceifados do mercado. Assim é a vida, assim é o mundo. Boa noite? Boa noite, meu lindo. O sol já brilha forte, quando Alberto abre os olhos, um pouco empapuçados, devido aos excessos com a bebida, e assusta-se com a claridade do dia, escondido por trás das cortinas, anunciado apenas pela fresta que, ainda ontem, iluminava o corpo sedutor de Bianca. Olha para o relógio e constata que estava atrasado de fato. Sacode delicadamente o ombro esquerdo de Bianca e sussurra em seu ouvido que já passou da hora de se levantarem. Ela abre os olhos, lentamente, também incomodada com a claridade que lhe batia no rosto, puxa-o para os seus braços, no que ele cede e mais uma vez, enlaça-o nas teias do sexo e do amor, com sua carne quente e seu sangue jovem e vulcânico. Após um banho rápido, vestem, apressadamente, suas roupas, Bianca demora um pouco mais, pois o batom deveria seguir fielmente as linhas dos lábios, o que lhe realça a beleza e a jovialidade. Alberto, antes de dirigir-se à porta, retira a carteira do bolso, arranca de dentro duas notas de cem e as entrega a Bianca. Ela dá-lhe um beijo no rosto e diz, Obrigado, amor, Vamos já marcar nosso próximo encontro? Ainda não, meu bem, meus horários por estes dias são instáveis e imprevisíveis. Assim que der e, espero que seja breve, te envio uma mensagem. Ele a deixa no mesmo local que a apanhou e em poucos minutos, chega em casa.

Não vai demorar em casa, apenas trocar de roupa, pegar alguns documentos, certificar-se de que as coisas estão em seus lugares e, em seguida, correr para o escritório, pois o atraso, sempre lhe traz problemas e embaraços. Enquanto abotoa a camisa, o telefone dá o sinal que acabava de receber uma mensagem do seu chefe, aquele homem impenetrável, exigente e rigoroso, porém com poderes ainda não completamente dimensionados, dados os contatos e influências que tem no Império, os quais nunca revela, em detalhes, quais são exatamente. O aparelho telefônico está programado para acender uma luz alaranjada e forte, quando recebe qualquer tipo de mensagem desta entidade onipresente e invisível. Foram poucas as vezes em que, apesar do bom tempo que lhe presta serviços, os dois se encontraram pessoalmente, assim, em carne e osso, olho no olho, ao vivo e a cores, como muitos diriam. Normalmente, estes encontros presenciais, ocorrem apenas diante de demandas mais urgentes, as reuniões, quase, invariavelmente, se dão pelo sistema de videoconferências. Nos primeiros tempos de Alberto no cargo, estas reuniões eram mais frequentes, porém, foram reduzindo a frequência, à medida que aumentou a confiança do chefe em seu empregado. Alberto nunca lhe traz problemas, a empresa vai bem, é perceptível o enriquecimento do patrão e, ele sempre elogia os editoriais e os artigos que, junto à equipe que montara, Alberto despacha para as milhares de organizações e empresas que as compram e disseminam para um público cada dia mais vasto. É um negócio em ascensão. Quando recebe destas mensagens, Alberto larga o que quer que esteja fazendo, para verificar do que se trata. Afinal, dali vem as orientações e diretrizes que traçam não apenas as linhas do seu trabalho, mas os rumos da sua vida. Ele não termina de fechar todos os botões da camisa. Corre até o aparelho e abre, curiosamente, a mensagem, que diz, Preciso falar com você com urgência. Podemos nos reunir às dezesseis horas? Um abraço e não atrase. Claro, Senhor Hamilton. A partir das quinze horas, já estarei à sua espera e inteira disposição. Um abraço. Desliga o telefone, desacelera a pressa inicial, afinal, seu compromisso maior, para o qual deve poupar energias, será apenas no final da tarde. Joga-se no sofá e põe-se a imaginar do que poderia se tratar, pensa em uma série de possibilidades e motivos, algum contrato novo, algum material que não tenha saído a gosto e contento de algum cliente poderoso, algum excesso, alguma falha técnica imperdoável, uma transferência, mudança de posto? Pensa, pensa e, acaba por se convencer que, certamente, não seria nada daquilo. Dado o perfil megalomaníaco e excêntrico do chefe, estes raros encontros e reuniões, são sempre uma surpresa. As ligações que o patrão possui com o mundo dos negócios, circulação de capitais e fortunas, seja no plano nacional ou transnacional, fazem dele um homem sempre surpreendente. Além de estar bem consolidado no ramo das comunicações, possui um bom faro para as forças e tendências do mercado e da política e, vez ou outra, aventura-se em outros empreendimentos. E, por enquanto, vem se saindo bem. A preocupação com a reunião das dezesseis horas, somada a uma ligeira ressaca, advinda das cervejas e vinhos consumidos na noite anterior, lhe proporciona uma incômoda dor de cabeça e o desconforto das ansiedades. Esforça-se para relaxar e, para tanto, puxa do fundo do baú das memórias, momentos que passara no campo, no mato, põe-se a recordar do barulho das águas, dos roncos das ondas do mar à melodia úmida do rio em cachoeiras, que se arrebenta nas pedras. É uma tática costumeira que utiliza quando lhe escapa o sono ou as tensões lhe formigam os nervos. Geralmente, funciona. Afunda-se no sofá e, por sorte, pode desfrutar de um sono de quase uma hora.

São quinze horas e cinquenta minutos e, pelas marcações e agendamento, em dez minutos, Senhor Hamilton entrará por aquela porta. O escritório de onde despacha diariamente é uma sala enorme, bastante iluminada e ventilada, graças as enormes janelas de vidro que rodeiam todo o edifício. A vista ali de cima é privilegiada, e é possível mirar uma grande parte da cidade, com seus prédios cinzentos, as áreas das encostas, os morros degradados e os brilhos dos automóveis, enfim, um retrato panorâmico e do alto, do que são nossas cidades e o que fizemos de nós mesmos, os contemporâneos, Homo urbanus. O salão é amplo, confortável, a mesa onde trabalha Alberto está plantada sobre um tablado de madeira, elevado do plano do chão em dois curtos degraus, onde se espalham dois armários com arquivos, dois computadores enormes e possantes, um notebook, e um telefone celular de última geração acoplado a um tripé, bem ao lado da poltrona de couro utilizada por Alberto. Sem luxos desnecessários, o espaço é ornamentado com quadros pendurados nas paredes, fotografias de paisagens, um cactos ao fundo, oitos poltronas estofadas, para o caso de reuniões ou visitas, e uma pequena estante, próxima da porta de entrada, guarda várias publicações e títulos nas áreas de jornalismo, gestão de negócios, tecnologias e mídias digitais. Na prateleira de cima, há uma pequena coleção de best-sellers de autores estrangeiros. Alberto dá uma última conferida, se está tudo em ordem, ajeita alguns papéis sobre a mesa, organiza as pastas, alinhando-as umas sobre as outras, abre e fecha gavetas e olha para o relógio, são dezesseis horas. O local é adequado para quem quer trabalhar em privacidade, apenas ele fica ali, sua equipe de trabalho ocupava as salas adjacentes, por onde Alberto passa a maior parte de seu dia. Com dez minutos de atraso, a secretária anuncia a chegada do Senhor Hamilton. Alberto levanta-se para recebê-lo à porta. Olá, boa tarde, Sr. Hamilton, como vai? Há um bom tempo não nos vemos, não é mesmo? Boa tarde, Senhor Alberto Matias. Aqui estamos novamente. Os dois homens se cumprimentam com um aperto de mão e um abraço rápido e formal. Como era de costume, os olhos curiosos e investigativos do chefe percorrem, rápida e atentamente, cada canto e detalhe do salão, enquanto desloca-se da entrada à poltrona em que ocuparia para dialogar com o seu Diretor Editorial. Alberto observa que o homem havia adquirido um peso a mais, desde a última vez que o vira. As mãos, sob o paletó, estão roliças, rechonchudas e arredondadas. O rosto, mais redondo, brilhoso e bronzeado, denuncia uma vida de excessos e farturas, coisas que o dinheiro em sobra, geralmente, à falta de cuidados, costuma proporcionar. O visitante veste um terno azul, muito alinhado, e uma gravata bege, ajeitada ao pescoço com uma precisão milimétrica, certamente, havia alguém contratado, especializado, para dar um nó tão perfeito. Alberto toma seu lugar à mesa e o patrão senta-se, quase jogando-se, na acolchoada poltrona de visitante à frente. Como vão as coisas Senhor Alberto Matias? Tudo bem? A família, como vai? Virgínia? Estão todos bem, Senhor. E o Senhor e os seus? Tudo ok, Alberto, tudo ok. Fico satisfeito em lhe ver bem, Senhor Matias. Devo admitir que, através de seus reconhecidos esforços, o senhor, hoje, adquiriu posição de destaque entre os nossos melhores quadros. Estamos muito satisfeitos com os resultados apresentados, nossos clientes tem elogiado muito a qualidade e eficácia das matérias e editoriais produzidos por sua equipe. O senhor é um bom articulador, o que me dá seguranças, principalmente, em uma conjuntura de crescimento da demanda por nossos produtos. Sabe, Senhor Matias, em um mundo polarizado e dividido como o nosso, a propaganda, digo, o jornalismo, torna-se uma arma muito importante para os nossos clientes. As versões que vocês têm produzido encontram uma aceitação muito grande no mercado das notícias. Nossos clientes, gente poderosa, são guerreiros em uma batalha permanente, e como bem sabe, não só com pólvora e bombas se ganha uma guerra. E consideram que umas das frentes vitoriosas deste gigantesco campo de batalha, é a guerra, onde nós, temos produzido das armas mais eficazes. Hoje as bandeiras que mais arrastam as multidões, já não são as de mastro e tecido costurado, são as forças das ideias, a subjetividade dos símbolos, a arte do convencimento, as palavras de ordem, os robôs digitais, as palavras-chave, os algoritmos e as campanhas de hashtags. O mundo gira, Senhor Matias. E vejo que você é um artista, captou bem o espírito da época. O senhor, Alberto Matias, é um especialista na arte de plantar a notícia, a boa notícia. Estamos satisfeitos mesmo, de verdade, com a qualidade do trabalho, a perspicácia do argumento, as linhas do raciocínio, as premissas e os princípios, a força dos vocábulos e das expressões, a sedução da palavra, o disfarce, o despiste, a arte de mostrar o que não se viu, e de ocultar o que não pode ou não deve ser revelado. Sejamos francos, Senhor Alberto, assim ganhamos a vida, quiçá, conquistamos o mundo, declara o senhor Hamilton. Apesar de ter a plena consciência do quanto se dedica com afinco ao trabalho, dando o máximo de si e o máximo que acredita poder oferecer, a contundência do elogio do chefe, deixa Alberto, visivelmente, constrangido. Suas mãos não encontram local que as caiba, acaricia as bordas das pastas sobre a mesa, muda de posição a caixa de lápis, deixa os dedos tamborilando sobre o estojo, enquanto o restante do corpo mantém-se imóvel e sem tirar os olhos do patrão. Aqui, Senhor Alberto Matias, nas organizações que comando, sabemos bem valorizar os talentos que temos, sabe-se lá, não é este o segredo do nosso sucesso. A propósito, como vão os seus tempos? Tens outros compromissos afora os quem temos entre nós? Talvez precisemos ainda mais do senhor, com dedicações exclusivas, possibilidades de viagens, algumas ações fora da cidade. Tem outras ocupações que o limitam, senhor Alberto? Estamos expandindo e potencializando nossos empreendimentos e temos promovido uma ousada política de promoções. Tens interesse? Por alguns segundos, Alberto engasga-se com uma tosse seca, pigarreia, as maçãs do rosto ficam ligeiramente coradas, toma um gole d´água, e responde, Claro que tenho interesse, senhor. O senhor bem sabe que nos últimos anos não tenho feito outra coisa, do que dedicar-me às demandas da organização. Não fosse assim, talvez não merecesse os elogios que faz. A escolha de uma equipe competente, a aplicação disciplinada dos editoriais, abordagens e versões, aos princípios que nos regem e pelos quais trabalhamos, a realização de pesquisas e análises permanentes, que nos permitem conhecer a fundo e sistematicamente os mais variados nichos de leitores e consumidores que atendemos, a disposição em dialogar com os clientes para conhecermos melhor os detalhes e especificidades de seus públicos e seguidores, nada disso seria possível de ser executado com a mínima eficiência, se já não estivesse dedicando-me em regime de dedicação exclusiva. A linha de frente, senhor, exige empenhos férreos e a disciplina dos combatentes. Pois, então, gosto de ouvi-lo, senhor Alberto, o senhor nunca me faz perder o tempo, este bem precioso, ao contrário, sempre me retiro daqui acreditando, que saio em benefícios e vantagens. O senhor agrega muitos valores aos nossos empreendimentos e negócios, é um homem que soma.  Além do que, depois de tudo que já foi realizado, fico tranquilo em afirmar que o senhor é um colaborador da minha mais estrita confiança. Alberto sorri em um constrangimento indisfarçável e lança um olhar fugidio e distante para a janela, encara novamente o chefe e agradece, Obrigado, senhor, muito obrigado mesmo. Sinto-me lisonjeado e, agora, sem palavras. Um ligeiro silêncio interpõe-se entre os dois homens. O senhor Hamilton observa atenta e fixamente o seu Diretor Editorial, mais do que é observado por este. Alberto esforça-se para livrar-se do desconforto e da ansiedade, remexe-se continuamente na poltrona, tampa e destampa a caneta posta sobre a mesa, esfregando lhe o polegar. O Senhor Hamilton aproxima a poltrona da mesa, coloca as duas mãos sobre ela, procura os olhos de Alberto e indaga, Tudo bem, senhor Alberto? Tudo ótimo, senhor. Que bom, e Virgínia, como vai? Virgínia está muito bem, no momento, está empenhada na organização da minha festa de aniversário, adora organizar eventos, mas é um pouco ansiosa e, praticamente, não pensa em outra coisa. É uma excelente mulher, acho que não poderia ter feito escolha melhor. Inclusive, aproveito a ocasião para já lhe estender e antecipar o convite, ficando a dever os detalhes sobre horário e endereço que estamos definindo por estes dias. Muito obrigado, Alberto, mas não estarei no país. Viajo na próxima semana, e ficarei cerca de dois meses em viagens. De antemão, porém, lhe desejo muitas felicidades e sucesso. Levanta-se e abraça Alberto. Senta-se novamente e retorna à carga. Bem, senhor Alberto Matias, voltemos, pois, aos assuntos. Hamilton segura as bordas da mesa com as pontas dos dedos, retirando as costas do encosto da poltrona, levanta o peito e posiciona-se frente a frente com Alberto. Senhor Alberto, temos uma missão à frente. E o senhor me parece a pessoa mais qualificada, senão, ideal, para colaborar no intento. Vejo-o com todas as credenciais para tal, é das nossas confianças, acredita no que faz, veste a camisa, é determinado e possuí um inegável espirito de liderança de equipe. A fórmula fechou. Um calafrio, como nunca lhe ocorrera, rasga o peito e atravessa o estômago de Alberto que, por alguns instantes, tem a sensação de perder a cor e ser possuído por uma incontrolável frouxidão nos braços. Respira fundo algumas vezes, procurando disfarçar ao máximo a ação à frente do patrão, pois sabe que o recurso lhe cai bem quando diante de grandes expectativas ou ansiedades. Rapidamente, porém, retoma o fôlego e, acredita que a pequena movimentação tenha passado imperceptível aos olhos do chefe. Tome um gole d´água, Senhor Alberto. O patrão se apressa em servi-lo. Muito obrigado, senhor, muito obrigado. Dá um gole apressado e indaga, Mas como o senhor lá ia dizendo. Pois bem, senhor Alberto, em breve, teremos as eleições municipais. E como o senhor bem sabe, nestas ocasiões, nossos clientes assanham-se, mesmo porque, o jornalismo político e religioso são nossos carros-chefes, nossas especialidades primeiras e inadiáveis. A demanda por nossos serviços aumenta muito. É hora de arregaçarmos as mangas mais que nunca. O problema é que nossos mais importantes e poderosos clientes vão se tornando, a cada dia, mais exigentes. Querem cada vez mais de nós. Às vezes, me ponho a imaginar até onde vamos, para atender as suas mais extravagantes exigências. O mundo dá muitas voltas, disso sabemos, as coisas, às vezes, parecem colocarem-se de pernas para o ar, mas é o mundo que temos. Não há outro. Dos formadores de opinião, estrategistas da comunicação, exigem-se não apenas o controle da narrativa, mas também, a criação do enredo. As estratégias de campanha não são mais as mesmas do que eram há apenas algumas décadas. Tornaram-se mais contundentes, bilionárias e ofensivas. Há um campo infinito e inexplorado de possibilidades, ações e recursos que, por mais domínio que acreditamos possuir na área, nunca deixamos de nos surpreender.  Como sempre ouço, em várias ocasiões, as forças do mercado e as poderosas forças políticas, em nome de supostas modernidades, exigem de profissionais de todas as áreas, não apenas competência técnica, mas o que chamam, aos quatro de cantos, de maleabilidade, um sinal de progresso, e de nós, agentes do jornalismo e da propaganda, nos querem, a cada momento, cada vez mais versáteis. Disto se trata. Querem nos ver às estripulias e hoje, já não nos basta o controle da narrativa como disse há pouco,  somos convocados a interferir nos rumos próprios da história. Hamilton faz um breve silêncio e fica a observar a reação de Alberto. Este, não consegue conter-se de ansiedade e os olhos estão mais abertos do que o de costume. Força uma tosse, para dar-lhe tempo de pronunciar a pergunta, sem o risco de engasgar-se, e atreve-se, Sim, senhor Hamilton, mas onde é, exatamente, que entro nesta história? É uma boa pergunta, senhor Matias, aguentou por muito tempo, hein? Pois, então, agentes do Império, gente poderosa que nada nos dinheiros e nos luxos, como você não imagina, ligados a poderosas corporações econômicas e políticas, a maioria deles, nunca colocou os pés por aqui, mas estão interessadíssimos nos rumos e resultados das eleições do final do ano, sabe onde? Pasme, senhor Alberto, em Jurupemba. O senhor já ouviu falar em Jurupemba, senhor Alberto Matias? Sei que não, lugarejo isolado, enfurnado nos cafundós, eu também até quinze dias atrás, nunca havia ouvido falar. Estas terras são muito grandes, não se conhece tudo, por mais que se leve uma vida inteira viajando em veículos de toda espécie, carros, jatos, navios, não temos a oportunidade de conhecermos uma ínfima parte do chão deste planeta, mesmo deste país. Jurupemba, senhor Alberto, guarde bem este nome. Pois, então, nossos clientes já têm o seu candidato em Jurupemba. Na verdade, eles sempre têm seus candidatos. E quais são os seus candidatos? Obviamente, desnecessário dizer, que são aqueles que, compactuam com seus negócios, fazem os acordos prévios, às vezes, às claras, às vezes, as sombras, para garantirem o sucesso dos empreendimentos. Não há fronteiras para estes grupos, estão em todos os lugares, em todo o mundo. Agora, estão empenhadíssimos na campanha de Jurupemba. Ainda não conhecemos de perto o candidato deles e, obviamente, também nosso, mas certo é que técnicos encontraram, não faz muito tempo, riquezas grossas no subsolo do município. Jurupemba não faz ideia de quantos olhos voltam-se sobre ela. Melhor dizendo, sobre o que há por baixo dela. O centro urbano é pequeno, os habitantes são algumas poucas dezenas de milhares, mas o território do município é vasto e se constatou que ali há um potencial fabuloso para a indústria extrativista, parece-me que são minérios, dos quais se alimentam a produção de eletrônicos, computadores, telefones, parafernálias tecnológicas de toda ordem. Mas esta parte não é a que nos interessa diretamente, ou que nos diz respeito. É apenas para que compreenda, senhor Alberto, a complexidade do trabalho. E se não há como varrer aquele povo daquele território, o que temos a fazer, é que eles se convençam e se alinhem às políticas que são gestadas para eles. Entende-me, senhor Alberto, por onde entramos? Compreendo, senhor, mas ainda não vi onde há a novidade, afinal não será a primeira vez que realizamos trabalho deste tipo. Diria mesmo que, não é de pouco tempo que fazemos coisas assim. Não é nisto que vamos nos especializando e conquistando cada vez mais os mercados? Exato, senhor Alberto, porém, como se diz por aí, cada caso é um caso, e não há um dia igual ao outro, não é verdade? Pois, sim. Então, vou lhe dar os detalhes. Explicar-lhe o passo a passo.  Antes, porém, preciso saber se há alguma objeção da parte do senhor em instalar-se em Jurupemba por um período, talvez umas duas semanas, talvez mais ou menos, ainda não se sabe exatamente, para levar a cabo a missão.  O senhor se dispõe? Espero que sim, pois os prazos, não demora se esgotam, e confesso que, provavelmente, terei dificuldades em encontrar um substituto à altura, neste ponto do campeonato. A campanha eleitoral já está bem aquecida em Jurupemba e daqui a alguns dias, entraremos em sua fase crucial, onde, certamente, se definirão os resultados. Ganhamos ou perdemos, e não podemos perder, senhor Alberto Matias. O senhor, volto a repetir, já conquistou a confiança e o respeito de nossos clientes. Não podemos frustrá-los. O senhor se dispõe? Alberto sorri para o chefe, na tentativa de esconder o desconforto, sabe que não é o momento para titubear, estufa o peito, a mostrar-se decidido e, sem tempo ou condições para pensar em qualquer possibilidade de um não, adianta-se, antes que qualquer constrangimento pudesse ocorrer em meio ao diálogo com o patrão. Sim, senhor Hamilton, quando foi que não estive à frente, preparado, armas em punho, para atender as demandas da empresa e seus projetos? Sabia que podia contar com o senhor. Então, ouça-me. Caberá ao senhor a coordenação de uma equipe, não mais que dez homens. Alguns serão indicados pelo senhor, homens que além da competência técnica, já tenham demonstrado lealdade aos propósitos de nossos negócios, profissionais da sua confiança, e alguns outros, serão indicação dos clientes. Isso ainda vai se ver em detalhes. Temos um plano a ser executado. Desta vez, não somos nós os idealizadores, já vem pronto, empacotado, diria mesmo, lacrado, do Império. Resta a nós, a parte da execução, seguirmos a receita já elaborada. Vamos por etapas. Regra primeira, a equipe se instalará em um hotel na região central da cidade. É uma equipe de jornalismo, a serviços da mídia nacional e internacional , que chegará à cidade para fazer uma cobertura meramente jornalística da campanha eleitoral que ocorre no município. Todos os candidatos deverão ser entrevistados, filmados, fotografados, suas falas serão registradas, em tempos e tratamentos similares, para não se gerar as legítimas suspeitas. Colocaremos à disposição da equipe, logomarcas das empresas que pactuam com a ação e que tem os votos de confiança do povo, são conglomerados importantes, que também financiam os nossos trabalhos e foram incorporados ao imaginário popular, como símbolos da verdade, do respeito e da confiabilidade. Estamos em boas mãos. O que ninguém precisa saber é que, além do trabalho jornalístico a ser realizado, ao fim e ao cabo, o material produzido estará a cargo de outras equipes, nacionais e estrangeiras, agregando valores, que o transformará em objeto de propaganda política a ser disseminado pelas redes sociais, a favor claro, do nosso candidato, o senhor Josemar de Miranda, que já fechou os contratos. Assim é a política e esse é, no frigir dos ovos, o nosso trabalho. E vamos além. Agora vêm as novidades, senhor Alberto Matias. E esta talvez seja a parte mais empolgante e inovadora desta nossa ação. Preste muita atenção, senhor Alberto. A sua equipe ficará hospedada em um hotel na região central da cidade. É um alojamento modesto, porém, confortável, estrategicamente localizado e atende bem aos nossos propósitos. Em frente à janela do quarto onde o senhor se hospedará há uma praça, com alguns bancos, um pequeno jardim, árvores, ao fundo, há guardada em uma cúpula de vidro, uma imagem de uma santa, onde, em dadas ocasiões, devotos lhe depositam flores e oferendas, até às dez horas da noite ainda é possível encontrar um ou outro casal de namorados e, ao centro da praça, bem ao lado de uma antiga fonte luminosa, hoje, desativada, há uma estátua em tamanho real, à altura de um homem de quase dois metros. Não tenho lá certezas se, de fato, era assim, tão grande, o representado, o estatuado, quando em vida. Bem, mas isto não importa. Assim o fizeram, assim é visto por seus conterrâneos. Alberto, impaciente, o interpela, O senhor esteve lá? Ora, Alberto, não esbanje ingenuidades, isto não é necessário. Os agentes do Império já estiveram por lá, a área está bem mapeada, fotografada, inclusive, se preferir, temos imagens até em escala tridimensional. Estas novas tecnologias são mesmo uma beleza, o senhor não acha? Da janela do seu quarto, senhor Alberto, o senhor tem uma vista privilegiada para esta estátua, diria mesmo que, sentado em sua cama, poderá, praticamente, caso o queira, mirá-la nos olhos. É a estátua de um dos fundadores da cidade, feita de um realismo que sempre impressionou os moradores. Hoje, sua história confunde-se com as lendas, e quase ninguém sabe ao certo, quais os feitos e ditos pertencem à realidade dos fatos, e quais deles, são provenientes dos campos do imaginário popular e das crendices. Certo é que o consideram um herói, tombado em uma violenta luta, há mais de cem anos, quando bandos de saqueadores invadiram o local, abusaram das mulheres e mataram muitos homens e inocentes. Em seu traje de combatente, agora em bronze, há um corte grande à altura do peito, uma rasgadura, por onde teria entrado o punhal que lhe subtraíra a vida. Ao lado da estátua, há um pequeno obelisco que traz afixada uma placa onde se lê as últimas palavras proferidas pelo guerreiro, quando acuado e cercado pelos inimigos, já próximo da emboscada fatal, “Morrerei na batalha, mas meu sangue e minhas lágrimas inundarão de esperanças e coragem o coração do povo e a terra de Jurupemba”. Hamilton faz uma pausa, toma um gole d’água, enquanto observa as reações de Alberto. Alberto encara-o, espantado e curioso. Prossiga, senhor Hamilton. Pois bem, senhor Alberto, este herói local, hoje em bronze, denominado Coronel Jovelino Miranda, é ninguém mais, ninguém menos, que o avô de nosso candidato, o senhor Josemar Miranda. A primeira vista, talvez, possa se imaginar que, diante de um antepassado assim, a eleição do neto fosse favas contadas, um tiro certeiro, mas não, tantas bobagens fizeram os descendentes, ele próprio, o candidato, envolvido em falcatruas e negócios suspeitos, que comprometeram um resultado favorável e uma vitória eleitoral garantida à família. Se ainda há muitos que o apoiam, muitos outros também, já o repudiam, influenciados pelos casos mal elucidados e pela má fama que, principalmente, em épocas eleitorais, os opositores nunca deixam de explorar. Além disto, aparece um jovem candidato, carismático, cuja popularidade cresce a olhos vistos, que pelos dados e informações que levantamos, tem tudo para quebrar a hegemonia dos Miranda. É onde entramos, Alberto. E o que vou lhe contar agora, é de sigilo absoluto. Nem Virgínia ou ninguém, qualquer outra pessoa, poderá sabê-lo. Por favor, desligue o seu telefone, senhor Alberto. Alberto, imediatamente, desliga o aparelho. O que vem agora é a parte mais delicada da ação. Já disse que alguns homens que o acompanharão virão designados lá do Império, tranquilize-se, que trata-se de gente da mais larga experiência, e eles tem uma tarefa, diria melhor, uma missão, para o qual estão plenamente treinados, equipados e capacitados, qual seja, plantar um milagre em Jurupemba. Isto mesmo, plantar um milagre. Como assim? Uma equipe de estrategistas, gente que se dedica aos temas da política, dos negócios, das ciências e tecnologias, especialistas das estatísticas, psicologias sociais e de massa, gentes para lá das fronteiras, dos laboratórios do Império, estão convencidos que só mesmo um milagre poderá levar à vitória, o nosso candidato. Sabe o que os especialistas sugerem, ou melhor, determinam? Que a estátua do Coronel Jovelino Miranda chore e sangre as vésperas das eleições. Alberto, em uma reação espontânea, dá um pequeno salto da poltrona e tem os olhos, involuntariamente, arregalados. Como pode uma estátua lacrimejar e verter sangue, senhor? Realmente, devo admitir que é uma boa e inteligente pergunta. Milagres acontecem, senhor Alberto. Somos nós que os operamos. Pode crer nisto? Se o puder, melhor. Os homens sabem como fazê-lo. Os agentes que vão acompanhá-lo são especialistas nestas modalidades, é gente experiente, nada de marinheiros de primeira viagem. De primeira viagem, em ação desta natureza e de tal envergadura, somos nós, senhor Alberto. Eles, porém, não tem como infiltrarem-se nesta comunidade, onde todos se conhecem e dão notícias de uns sobre os outros e tudo o mais, e realizarem com sucesso seus serviços, se não estiverem amparados e acompanhados de uma sofisticada equipe de jornalistas que, certamente, despertarão os olhares curiosos, mas tem a admiração e a fé da população local, por carregarem os símbolos e as logomarcas sempre estampadas nas bancas dos jornais e nos canais de televisão que, por seguidas gerações, levam filmes, noticiário e novelas para o interior de suas casas. Nestas cidades do interior, mais que nos grandes centros, as grandes mídias, principalmente, as televisivas, são, na maioria dos casos, colocados sempre acima de qualquer suspeita. Então, enquanto nossa equipe se encarrega da parte das filmagens e entrevistas, diria, do aspecto jornalístico do trabalho, os agentes realizam sua operação. Eles ficarão acobertados sob nossa equipe de repórteres e técnicos. Nós lhes daremos as devidas coberturas. Já os vi, senhor Alberto, são dois homens gentis, inteligentes e, apesar de discretos, como é próprio do ofício, lhes farão uma boa companhia, apesar de não dominarem por completo a nossa língua. Inclusive, a sugestão é que os dois, principalmente, quando em público, falem o menos possível, obviamente, para que o sotaque estrangeiro não desperte muitas atenções. Sabe como é, forasteiros, nestes lugares, sempre despertam os olhares atentos e curiosos dos nativos, quanto mais diferentes de si são os visitantes, mais são alvos de curiosidades e bisbilhotices. Não se aflija, senhor Alberto, tudo sairá bem. Dois dias antes da eleição, o candidato fará um comício bem ao lado da estátua do avô. Ao elogiar o coronel em seu discurso, puxando para si, as palhas e as sardinhas, em vistas a faturar sobre glórias alheias, Josemar de Miranda tocará os ombros em bronze de Jovelino Miranda. E neste instante, justamente, neste instante, lágrimas grossas, de água e sal, escorrerão pelos olhos do avô, enquanto um sangue vermelho, viscoso e vivo, escorrerá do seu peito rasgado, alvejado. Técnicos e cientistas renomados e a serviço do Império desenvolveram um pequeno dispositivo com um material especial e completamente transparente, invisível mesmo, que, bem acoplado a estátua, fará, de forma eficaz e rápida, jorrar lágrimas e sangue da imortal estátua de bronze. Já estiveram em Jurupemba, visitaram a estátua, tiraram todas as suas medidas e desenvolveram o equipamento perfeito, completamente ajustado à estrutura. Holofotes estarão posicionados sobre ela, e a equipe de fotografia e filmagem se posicionará de modo a capturar, dos mais variados ângulos, as melhores imagens deste dia histórico. Certamente, um pequeno alvoroço, entre falatórios e espantos, se sucederá à constatação do ocorrido. Neste primeiro momento, em questão de segundos, por um fio, a pequena, leve e invisível parafernália, já estará nas mãos dos agentes e, sem sombras de dúvidas, para sempre ocultadas, da curiosidade ou investigação de quem quer que seja. Os caras são perfeitos nisto, Alberto. Eles irão embora na manhã seguinte ao comício, para que, de imediato e, definitivamente, possam ser destruídos quaisquer rastros de sua operação. O senhor e a equipe ficarão ainda realizando a cobertura do dia da eleição. Os homens, lá do Império, estão plenamente convencidos que após o milagre da estátua, a eleição de Josemar estará garantida e nisto, estão apostando muitas de suas fichas. A propósito, Alberto, será o trabalho mais bem remunerado, entre todas as encomendas que já lhe trouxe. Após o feito, sugiro, inclusive, que tire umas boas férias, conheça e explore os tantos paraísos que temos aí pelo mundo afora. O senhor bem merece e lhes ofereceremos das melhores estadias. As portas vão se abrindo, Alberto. Sugiro que leve Virgínia, será necessário oferecer-lhe compensações, após ver frustrada sua propalada festa de aniversário. Hamilton interrompe a fala, toma mais um gole d’água e, antes que, qualquer outra palavra se interpusesse entre eles, procura fazer a leitura da expressão de Alberto de modo a antecipar-se a qualquer comentário ou resposta de seu interlocutor. Alberto mantém-se em silêncio, gira a caneta entre os dedos, e pelas linhas de sua fisionomia, pode se supor que ainda esteja digerindo os detalhes do plano que lhe foi apresentado. Um breve silêncio toma conta da sala. Alberto procura palavras, os olhos permanecem bem abertos e estáticos e, balbucia, Sim, o aniversário. Sim, senhor Alberto, já se esqueceu o quanto estamos próximos das eleições? Estamos, de fato, em cima da hora, mas apenas agora, a proposta surgiu. Acredito que coisas assim, não se programam mesmo com muitas antecedências, o plano, na verdade, é uma estratégia de emergência. Acredito que há alguns meses ainda não contavam com o crescimento da candidatura opositora, foram todos pegos de surpresa. Senhor Hamilton, estou pronto para atendê-lo em mais esta missão, mas cá estou a interrogar-me, não seria um exagero, não estamos forçando um pouco os limites e as linhas do oficio que, normalmente, executamos? Ora, senhor Alberto Matias, pelos vistos, não carrega toda a ousadia que, às vezes, faz parecer. A que limite, exatamente, o senhor se refere? Ora, senhor Hamilton, aqui não estamos apenas manipulando notícias e narrativas, mas criando o fato, já é certo que forjamos as versões, mas forjarmos a realidade a ponto de plantar-lhe milagres não é algo que vai muito além dos produtos que vendemos? Ora, Alberto, perdoe-me discordar, mas o que faz, no dia a dia, neste escritório, ao forjar as versões, como o senhor mesmo diz, não é também uma forma de forjar a própria realidade do mundo? Se você manipula os modelos e as fórmulas para a compreensão das coisas, não está a mudar a própria realidade e natureza delas? Senhor Alberto, não sou um empreendedor alheio aos produtos nos quais invisto, do tipo distante. Acompanho de perto seu trabalho e parabenizo-o na forma como o faz com maestria. O senhor e sua equipe trabalham bem com as palavras, com o trato das narrativas, com a guerra de propaganda. Mas bem sabe, Senhor Alberto, que muito do mundo e das versões que vende, são embasadas na mentira. De certa forma, nos tornamos mercadores de mentiras, ou não o vê? Tem as contas do quanto já foi obrigado a esconder e omitir, do quanto foi necessário silenciar? Tem a lembrança de quantas meias palavras, quantas edições mal recortadas, foram utilizadas para encaixar-se na narrativa pronta? Uma meia verdade também é uma mentira, senhor Alberto. A palavra também é uma arma e admira-me como a manipula bem, sabe lidar com seus códigos, seja para exaltar nossos melhores clientes ou para destruir os seus inimigos. Vejo como lhe são úteis os adjetivos e tenho aqui uma lista deles. Hamilton retira do bolso o aparelho celular e acessa os arquivos. Veja, aos nossos, o senhor brinda com adjetivos como esplêndido, intocável, grande, grandioso, resplandecente, incontestável, cristalino, esclarecido, santo ou fenômeno, aos adversários os artigos são recheados de agressivos, ladinos, fanáticos, impávidos, espertalhões, desqualificados, boçais, pitorescos, para ficar em apenas alguns exemplos, senhor Alberto. O senhor já está nesta guerra e já rompeu as linhas do ofício não é de hoje, meu amigo. Quando estas grandes engrenagens da mentira encaixam-se nas engrenagens da política e das disputas pelo poder e pelo dinheiro, não há como retroceder, é um caminho sem volta, mesmo quando não imaginamos o que nos aguarda à frente. Volta os olhos ao celular, acessa um outro arquivo e volta-se, novamente, para Alberto, Veja esta passagem, senhor Matias, de Martinho Lutero, “Somos por natureza propensos a acreditar em mentiras, em vez de verdades. Uma mentira é como uma bola de neve; quanto mais roda, maior se torna”. Pois, então, a bola de neve cresceu. E o senhor, está apenas sendo promovido. Parabéns, senhor Matias. O chefe o cumprimenta e trocam um aperto de mão. Fechado, senhor Alberto? Fechado, senhor. Hamilton levanta-se. Bem, combinado, então. Vou levantar âncoras, já passou dos meus horários. Fique mais um pouco, senhor. Tome um pouco de café. Obrigado, Alberto, mas este fica para outra ocasião. Preciso ir. A gente vai se falando. Prepare-se. Organize os seus homens, suas coisas, providenciarei as reservas para a semana que vem. Passe bem, senhor Alberto. Daqui em diante, o que tivermos de acertar ou resolver, quanto aos detalhes da operação, nos comunicamos pelo telefone. Estou de malas prontas e nos próximos dias estarei fora do país. É sempre um prazer reunir-me com o senhor. Tem descansado, se divertido? Cuidando da saúde? O senhor é um homem de sorte e ainda tem Virgínia, que é uma bela mulher.  Cuide-se, senhor Alberto, ainda precisaremos muito de seus serviços. Hamilton apressa-se em direção à porta, coloca as mãos sobre os ombros de Alberto e despede-se, Sucesso, senhor Alberto, Sucesso. Vira as costas em direção ao elevador. Alberto acompanha-o com os olhos até que desaparecesse pelo corredor.