Para os leitores de Ensaio Sobre
a Cegueira, não há como não se lembrar da história da cegueira branca, criada
por José Saramago, ao deparar-se com as imagens da marcha dos manifestantes
chilenos que perderam a visão nos últimos dias, vítimas de uma nova modalidade
de violência policial e truculência política, como ainda não havia registro na
história, que condena os que saem as ruas, não apenas a jatos d´água e bombas
de gás, como sempre vimos nas manifestações no Chile, mas a tiros de escopetas
com esferas de chumbo e balas de borracha, elas próprias, com chumbo em seu
núcleo, balas de ar comprimido, projéteis de nove milímetros, que geram lesões
profundas no globo ocular, condenando uma legião de manifestantes à perda total
da visão, a uma cegueira definitiva. Mais de duzentos e trinta chilenos
perderam a visão nas manifestações que a partir de 18 de outubro, se alastraram
por todo o Chile. O saldo da violência é estarrecedor. Além dos cegos, já são
mais de vinte mortos, mais de dois mil feridos e cinco mil detidos. Segundo Maurício
Lopez, oftalmologista, chefe de turno da Unidade de Trauma Ocular do Hospital
Salvador, “Temos o triste recorde mundial no número de casos de cegueira. Foi
inacreditável. Nada parecido já aconteceu na história da medicina ocular no
Chile. É uma epidemia.” Inevitável não nos remetermos ao memorável romance, à
cegueira branca de José Saramago. Mas, o que há em comum entre os cegos de
Saramago e os cegos de Sebastián Piñera? Onde suas cegueiras se cruzam? Que
relação há entre os cegos do mundo da ficção e os cegos do nosso trágico mundo
real? Tantos uns quanto outros, são vítimas de uma cegueira coletiva e
repentina. Uma e outra ocorrem em cenários de caos social e excessos de
violência institucional. São cegueiras típicas do mundo contemporâneo. Há uma
linha de comunicação, um diálogo entre eles, o que faz de Saramago quase um
visionário. Mas o que diferencia os cegos de Saramago e os cegos de Piñera? Os
cegos de Saramago nos mostram o quanto estamos próximos do caos e da desordem
absoluta, o quanto é fino o fio que faz fronteiras entre a civilização e a
barbárie. Através da linguagem da ficção, nos faz ver, a nós, que temos “a
responsabilidade de ter olhos quando os outros os perderam”, o quão fácil é
cairmos no precipício da perturbação e da loucura, do olho por olho, dente por
dente, no domínio da perversidade e do medo. O romance de Saramago é um alerta.
É aí que realiza o que sempre fez de melhor, que é abrir nossos olhos. A
literatura de Saramago é, de maneira geral, um apelo contra a cegueira e luz
sobre as coisas do mundo. Já os cegos de Piñera são a constatação que em nosso
mundo real já cabem até os horrores dos absurdos da ficção e a consumação da
tragédia anunciada. Os cegos de Piñera nos apresentam um mundo as avessas, também
de pernas para o ar, onde quem protesta contra ele, não está condenado apenas a
morte ou ao cárcere, mas a uma perda de visão, parcial ou total, de um olho ou
dos dois, como se desta forma, fosse possível cegar os anseios populares e
conter resistências e rebeliões. Como se através da cegueira involuntária,
desta vez, criminosa, as perversidades políticas e o terrorismo de Estado, se
tornassem menos visíveis. A cegueira como arma política. Vê o que pode te
acontecer? Podemos cegá-lo. Os cegos de Piñera são o símbolo de um mundo sem
compaixão ou piedade. Não é apenas no Chile, porém, que as esferas de chumbo,
os tiros de escopetas e as bombas de gás fazem suas vítimas, elas estão
espalhadas por todos os quadrantes do planeta, ali, se destacou pela
intensidade, pelo recorde histórico. A propósito, cegar homens e povos tem sido
uma estratégia bastante eficaz de controle e domínio político e hoje se
apresentam inéditas modalidades de cegueira, digamos, cegueiras, que vem desde
a destruição dos globos oculares dos manifestantes nas ruas até a criação de um
mundo de mentiras e ilusões, de faz-de-conta, que grande parte das populações e
largas fatias do eleitorado, consomem como se tratasse da mais pura e absoluta
das verdades. Este processo de cegueira, artificialmente criado, induzido, é
facilitado pelos truques da tecnologia digital, da psicologia aplicada, dos
algoritmos, muito dinheiro, pelas tramoias espúrias entre a ciência e o
capital. Aqui na América Latina, em 2019, temos sentido de forma muita dura e
perversa o impacto desta política, que se impõe muito rapidamente. Para ficar
em breves exemplos, diria que, se um dia quiser entender o que se passa na
Venezuela, terá uma tarefa árdua pela frente, pois a grande mídia criou um
extenso, quase intransponível ‘cordão sanitário’ jornalístico que, a serviço
das grandes corporações e de interesses inconfessáveis, tem por missão,
confundir e desinformar, e para tanto, utilizam-se de sofisticadas técnicas de
manipulação, omissão e mentiras. Não é nada fácil compreender o que, de fato, se
passa por lá, as mídias da cegueira não podem ser esclarecedoras. E isso ocorre
em toda a América Latina. Como explicar que pobres, dependentes da saúde
pública, diante de todas as precariedades impostas, queiram expulsar médicos
cubanos? No Brasil, uma ideologia da morte, que prega a violência extrema como
solução para os nossos males, vem se capilarizando pelo país em sucessivas
eleições. Enquanto adota-se uma política que tem como pressupostos e pilares,
apologia à tortura e à ditadura, legitimação da exploração do trabalho infantil
e escravo, racismo, censura e brutal retirada de direitos, leva um amplo setor
da população a defender, fanaticamente, que a terra é plana, peixes são
inteligentes e sabem como se safarem da contaminação do óleo tóxico, óleo este
que brota de lugar algum, que Jesus, vez ou outra, sobe pelas goiabeiras, que o
nazismo é de esquerda e que os meninos vestem azul e as meninas, cor-de-rosa.
Trata-se de uma epidemia. Na Bolívia, golpistas, amparados pela polícia e pelo
Exército, matam manifestantes, promovem sequestros, incendeiam casas, queimam a
bandeira sagrada dos indígenas, e tomam de assalto o palácio presidencial, com
a Bíblia em punho. Instalam uma ditadura brutal sob os auspícios e coadjuvância
da OEA, supostamente, encarregada de zelar pela democracia no continente. Trata-se
de uma epidemia. Em um diálogo no Ensaio Sobre a Cegueira, diz-se, “Por que foi
que cegamos? Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão. Queres que te
diga o que penso? Diz! Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, Cegos
que veem, Cegos que, vendo, não veem.” Alguns poucos dias após o início do
levante chileno, o presidente Sebastian Piñera veio a público pedir perdão por
sua “falta de visão” e que iria reconhecer as demandas da população. Já era
tarde demais. O Chile exige sua renúncia e tornou-se um barril de pólvora. Em
outro trecho do romance, “a mulher do médico compreendeu que não tinha qualquer
sentido, se o havia tido alguma vez, continuar com o fingimento de ser cega,
está visto que aqui já ninguém se pode salvar, a cegueira também é isso, viver
num mundo onde se tenha acabado a esperança.” Na linha do diálogo entre os
cegos de Saramago e os cegos de Piñera, um destes últimos afirma “os médicos me dizem
que agora preciso me cuidar, porque a recuperação será lenta, mas ainda vou aos
protestos, quando me sinto forte”, ao que um outro acrescenta, “Ainda tenho um
olho, e pretendo continuar usando até que algo mude”. Pelo visto, ainda há luz.
Há?
Marcos Vinícius.