quinta-feira, 21 de novembro de 2019

Um diálogo entre os cegos de Saramago e os de Sebastián Piñera.



Para os leitores de Ensaio Sobre a Cegueira, não há como não se lembrar da história da cegueira branca, criada por José Saramago, ao deparar-se com as imagens da marcha dos manifestantes chilenos que perderam a visão nos últimos dias, vítimas de uma nova modalidade de violência policial e truculência política, como ainda não havia registro na história, que condena os que saem as ruas, não apenas a jatos d´água e bombas de gás, como sempre vimos nas manifestações no Chile, mas a tiros de escopetas com esferas de chumbo e balas de borracha, elas próprias, com chumbo em seu núcleo, balas de ar comprimido, projéteis de nove milímetros, que geram lesões profundas no globo ocular, condenando uma legião de manifestantes à perda total da visão, a uma cegueira definitiva. Mais de duzentos e trinta chilenos perderam a visão nas manifestações que a partir de 18 de outubro, se alastraram por todo o Chile. O saldo da violência é estarrecedor. Além dos cegos, já são mais de vinte mortos, mais de dois mil feridos e cinco mil detidos. Segundo Maurício Lopez, oftalmologista, chefe de turno da Unidade de Trauma Ocular do Hospital Salvador, “Temos o triste recorde mundial no número de casos de cegueira. Foi inacreditável. Nada parecido já aconteceu na história da medicina ocular no Chile. É uma epidemia.” Inevitável não nos remetermos ao memorável romance, à cegueira branca de José Saramago. Mas, o que há em comum entre os cegos de Saramago e os cegos de Sebastián Piñera? Onde suas cegueiras se cruzam? Que relação há entre os cegos do mundo da ficção e os cegos do nosso trágico mundo real? Tantos uns quanto outros, são vítimas de uma cegueira coletiva e repentina. Uma e outra ocorrem em cenários de caos social e excessos de violência institucional. São cegueiras típicas do mundo contemporâneo. Há uma linha de comunicação, um diálogo entre eles, o que faz de Saramago quase um visionário. Mas o que diferencia os cegos de Saramago e os cegos de Piñera? Os cegos de Saramago nos mostram o quanto estamos próximos do caos e da desordem absoluta, o quanto é fino o fio que faz fronteiras entre a civilização e a barbárie. Através da linguagem da ficção, nos faz ver, a nós, que temos “a responsabilidade de ter olhos quando os outros os perderam”, o quão fácil é cairmos no precipício da perturbação e da loucura, do olho por olho, dente por dente, no domínio da perversidade e do medo. O romance de Saramago é um alerta. É aí que realiza o que sempre fez de melhor, que é abrir nossos olhos. A literatura de Saramago é, de maneira geral, um apelo contra a cegueira e luz sobre as coisas do mundo. Já os cegos de Piñera são a constatação que em nosso mundo real já cabem até os horrores dos absurdos da ficção e a consumação da tragédia anunciada. Os cegos de Piñera nos apresentam um mundo as avessas, também de pernas para o ar, onde quem protesta contra ele, não está condenado apenas a morte ou ao cárcere, mas a uma perda de visão, parcial ou total, de um olho ou dos dois, como se desta forma, fosse possível cegar os anseios populares e conter resistências e rebeliões. Como se através da cegueira involuntária, desta vez, criminosa, as perversidades políticas e o terrorismo de Estado, se tornassem menos visíveis. A cegueira como arma política. Vê o que pode te acontecer? Podemos cegá-lo. Os cegos de Piñera são o símbolo de um mundo sem compaixão ou piedade. Não é apenas no Chile, porém, que as esferas de chumbo, os tiros de escopetas e as bombas de gás fazem suas vítimas, elas estão espalhadas por todos os quadrantes do planeta, ali, se destacou pela intensidade, pelo recorde histórico. A propósito, cegar homens e povos tem sido uma estratégia bastante eficaz de controle e domínio político e hoje se apresentam inéditas modalidades de cegueira, digamos, cegueiras, que vem desde a destruição dos globos oculares dos manifestantes nas ruas até a criação de um mundo de mentiras e ilusões, de faz-de-conta, que grande parte das populações e largas fatias do eleitorado, consomem como se tratasse da mais pura e absoluta das verdades. Este processo de cegueira, artificialmente criado, induzido, é facilitado pelos truques da tecnologia digital, da psicologia aplicada, dos algoritmos, muito dinheiro, pelas tramoias espúrias entre a ciência e o capital. Aqui na América Latina, em 2019, temos sentido de forma muita dura e perversa o impacto desta política, que se impõe muito rapidamente. Para ficar em breves exemplos, diria que, se um dia quiser entender o que se passa na Venezuela, terá uma tarefa árdua pela frente, pois a grande mídia criou um extenso, quase intransponível ‘cordão sanitário’ jornalístico que, a serviço das grandes corporações e de interesses inconfessáveis, tem por missão, confundir e desinformar, e para tanto, utilizam-se de sofisticadas técnicas de manipulação, omissão e mentiras. Não é nada fácil compreender o que, de fato, se passa por lá, as mídias da cegueira não podem ser esclarecedoras. E isso ocorre em toda a América Latina. Como explicar que pobres, dependentes da saúde pública, diante de todas as precariedades impostas, queiram expulsar médicos cubanos? No Brasil, uma ideologia da morte, que prega a violência extrema como solução para os nossos males, vem se capilarizando pelo país em sucessivas eleições. Enquanto adota-se uma política que tem como pressupostos e pilares, apologia à tortura e à ditadura, legitimação da exploração do trabalho infantil e escravo, racismo, censura e brutal retirada de direitos, leva um amplo setor da população a defender, fanaticamente, que a terra é plana, peixes são inteligentes e sabem como se safarem da contaminação do óleo tóxico, óleo este que brota de lugar algum, que Jesus, vez ou outra, sobe pelas goiabeiras, que o nazismo é de esquerda e que os meninos vestem azul e as meninas, cor-de-rosa. Trata-se de uma epidemia. Na Bolívia, golpistas, amparados pela polícia e pelo Exército, matam manifestantes, promovem sequestros, incendeiam casas, queimam a bandeira sagrada dos indígenas, e tomam de assalto o palácio presidencial, com a Bíblia em punho. Instalam uma ditadura brutal sob os auspícios e coadjuvância da OEA, supostamente, encarregada de zelar pela democracia no continente. Trata-se de uma epidemia. Em um diálogo no Ensaio Sobre a Cegueira, diz-se, “Por que foi que cegamos? Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão. Queres que te diga o que penso? Diz! Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, Cegos que veem, Cegos que, vendo, não veem.” Alguns poucos dias após o início do levante chileno, o presidente Sebastian Piñera veio a público pedir perdão por sua “falta de visão” e que iria reconhecer as demandas da população. Já era tarde demais. O Chile exige sua renúncia e tornou-se um barril de pólvora. Em outro trecho do romance, “a mulher do médico compreendeu que não tinha qualquer sentido, se o havia tido alguma vez, continuar com o fingimento de ser cega, está visto que aqui já ninguém se pode salvar, a cegueira também é isso, viver num mundo onde se tenha acabado a esperança.” Na linha do diálogo entre os cegos de Saramago e os cegos de Piñera, um destes últimos afirma “os médicos me dizem que agora preciso me cuidar, porque a recuperação será lenta, mas ainda vou aos protestos, quando me sinto forte”, ao que um outro acrescenta, “Ainda tenho um olho, e pretendo continuar usando até que algo mude”. Pelo visto, ainda há luz. Há?


Marcos Vinícius.

quinta-feira, 14 de novembro de 2019

O resgate




Surpreendente o ato de bravura, coragem e solidariedade do presidente mexicano, Manuel López Obrador, no resgate de Evo Morales, salvando-lhe a pele e a vida. Obrador realizou um gesto histórico de rara grandeza. Deu a Evo a oportunidade de salvação que a história recente da América Latina negou a tantos outros. Alan Garcia, ex-presidente do Peru, suicidou logo após ter seu pedido de asilo negado pelo Uruguai; o Equador de Lenin Moreno expulsou Assange de sua embaixada em Londres, colocando-o no caminho dos corredores da morte nos EUA. A própria Bolívia de Evo Morales, entregou Cesare Battisti às garras dos fascistas italianos, ainda ontem. E há quem diga que o Brasil fez vistas grossas a um desejo de Snowden em vir para cá. Morales teve sorte em conseguir escapar, estava sitiado. Não fosse o heroísmo, a valentia e a grandeza de Obrador, talvez, não sobrevivesse. Vida longa a Evo Morales. Vida longa a Manuel Obrador, e à sua ousadia e coragem. Precisamos deles.


Marcos Vinícius.

domingo, 10 de novembro de 2019

No espelho




Um dos mais antigos ditos populares, de natureza universal, e de caráter, fundamentalmente, educativo e pedagógico, que a sabedoria milenar já consagrou, "sujou, limpou", por aqui, no Brasil de 2019, não tem a menor valia ou sentido, e disso, já temos mostras diárias, mas a imundície que se espalhou por nossos paradisíacos litorais, o óleo derramado, somado à total ausência de qualquer iniciativa dos poderes constituídos, seja para a adoção de políticas mínimas de redução de danos, seja para a identificação dos responsáveis pela tragédia e cobrança de ações emergenciais de despoluição, afora o discurso oficial, dominante e exclusivo, de que o vazamento é obra de uma conspiração venezuelana, são demonstrações espetaculares e tenebrosas, de como o povo brasileiro migrou do já conhecido sono profundo, para as profundezas dos piores dos pesadelos. No Brasil da nova era, somos milhões de perfis fakes, fantasmagóricos e raivosos, prostrados à frente de um grande espelho, fazendo chacotas e simulando tiros e assassínios, em nós mesmos. O gigante desacordou.


Marcos Vinícius.

Belo Horizonte, 2019




Para não deixar dúvidas que aqui se trata de fascismo, Belo Horizonte, através de sua Câmara Municipal, pela primeira vez, em trinta e cinco anos, fechada para o povo, com um esquema de policiamento ostensivo, aprovou o Projeto 274/17, Lei da Mordaça ou Escola sem partido, em um primeiro turno de votação. A Lei da Mordaça é um ataque feroz da extrema direita, que visa destruir os mais elementares pilares do processo educativo, a liberdade, a universalidade do conhecimento, e criminalizar o trabalho docente e o professor. O projeto inspira-se na famigerada paranóia do marxismo cultural, teoria conspiratória, hoje alimentada pelos ianques, mas que remonta à Alemanha do período entre guerras, onde os ressentimentos, o ódio e a bestialidade triunfante, conduziram o mundo e sua civilização à barbárie, aos campos de extermínio, às câmaras de gás, ao hitlerismo. Não se trata de exagero ou força de expressão , o fascismo é histórico, contemporâneo, e seus monstros continuam vivos, muito vivos, entre nós. Pobres de nós. A Câmara Municipal, lacrada, tornou-se então, além do reforçado cordão policial, uma grande vitrine, onde Belo Horizonte, absurdamente, tristemente, se expõe, como a grande vanguarda do atraso. Corre o ano de 2019.


Marcos Vinícius.

Na rodoviária



Bem antiga esta foto da rodoviária de Belo Horizonte, não? A propósito, passei nela por estes dias. Há uma mudança sendo feita que irá alterar completamente sua imagem e modelo. O espaço púbico da estrutura, do prédio, está sendo garfado, fisgado pela iniciativa privada. Mesas de um restaurante, que já haviam ocupado um vão inteiro há alguns anos, onde antes ficavam vários assentos, agora, com reformas em andamento, vão ocupar dois vãos inteiros. Não demora muito, o povo vai esperar suas viagens de pé, e só vão poder se acomodar sentados, os que pagarem as fortunas cobradas pelos privilegiados restaurantes. Como será que a gente faz para ter uma sorte assim?


Marcos Vinícius.