Final do dia em Belo Horizonte. A
noite cobre a cidade com seu grande manto negro, enquanto nuvens pesadas se
derramam em águas, e uma chuva contínua, sonora e fria, encharca os cruzamentos
e as calçadas. Por alguns instantes, um apagão parece apropriar-se do mundo. O
portão não se abre, as luzes não se acendem, os prédios se apagam. Não há
qualquer sinal de telefonia ou possibilidade de acesso às redes, tudo está fora
do ar. Por alguns instantes, ficamos, absolutamente, off-line. O tempo quase
parou. Mas não. Logo em seguida, as lâmpadas frias, vagarosamente, voltaram a brilhar. Pouco a
pouco, o lúmen fraco vai varrendo o breu que se instalara e os primeiros sinais de que a
humanidade volta a conectar-se, anunciam-se na tela do eletrônico, este sim,
insistentemente luminoso. Rapidamente, o mundo, a noite e a cidade, voltam ser
o que eram. Enquanto se desfazia a escuridão e a luz não dominava de todo, uma
volta rápida em frente ao espelho revelou-me, em uma perspectiva ainda pouco
explorada, uma penumbra insurgente e uma imagem fosca, que talvez já passasse
da hora de cortar os cabelos. Os fios grandes e desconexos tornaram-se sombras
disformes. Não era coisa de se pensar duas vezes, enfrentei o tempo úmido e fui
ao salão.
Tenho sorte por servir-me de um cabeleireiro
há anos, que antes de qualquer credencial que lhe possa ser atribuída no campo
profissional, é, sobretudo, um artista. Não que seja operador de milagres, ou
possa consertar os estragos, que a natureza já consagrou, mas executa seu
trabalho, como se ali, estivesse a dar o melhor de si. Observando-o em ação,
não é difícil perceber como suas mãos, como a dos pintores ou escultores,
procuram, diante do espelho, o corte ideal, a franja justa, dominar a mecha
rebelde, que não quer se acalmar, os fios desgrenhados, o toque à medida, o
traço original. Além do que, arrancarmos os excessos, os pelos inúteis, sempre
nos dá uma sensação de leveza, afinal, seja lá o que for que possa aliviar o
calor e o mormaço nestes dias de verão, será sempre bem vindo. Sem contar que a
permanência em salões, muitas das vezes, pode ser uma excelente fonte de
inspiração e aprendizagem.
Aprendi muito hoje. Uma senhora,
muito próxima de seus sessenta anos de idade, de cabelos claros, longos e
raízes brancas, que ali estava para tingi-los, empenhou-se, o tempo todo, em
dominar a cena. Tagarela, queria dar lições sobre política. Afirmou estar
sempre preocupada em inteirar-se do assunto, e sentiu-se no local apropriado, privilegiado,
para que uma plateia, praticamente inescapável, pudesse ser capturada. Não
sobraram muitas alternativas, e tanto os profissionais, quanto os clientes,
enquanto cuidavam de seus cabelos, pés ou mãos, davam-lhe os ouvidos. Não foram
poucas as novas informações que obtivemos neste início de noite molhada. Segundo
ela, todos os males e problemas existentes em nosso país, são de
responsabilidade exclusiva de uma das mulheres mais megeras que passaram pela
história, ninguém menos, que a presidenta derrubada, Dilma Rousseff. Não fosse
ela, certamente, estaríamos muito provavelmente, ingressos no Primeiro Mundo e
não no fim dele. Já o que estraga a performance de Michel Temer, diz com
convicção, é andar acompanhado de Renan Calheiros, este sim, o corrupto, o
vende-pátria. Não fosse isto, nossos problemas talvez, já estivessem
solucionados.
A mulher, à medida que falava,
não só gesticulava com mais vigor, como exaltava-se. Os músculos da face
tornavam-se mais rígidos, os olhos tensos e a voz, definitivamente, dura.
Confessava, porém, que tinha dificuldade em entender como Lula ainda não estava
na cadeia, principalmente, após ela ter descoberto, por fontes que não havia
como revelar, que ele possui uma gigantesca mansão, de um quarteirão inteiro,
não se sabe, se no Uruguai ou no Paraguai, ou talvez mesmo, nos dois países. A
outra, que a ouvia, sem piscar, atentamente, afirma que já ouvira falar que, na
verdade, ele possui mansões como essa, não em um paisinho ou outro, mas no mundo
inteiro. Deixando as temáticas nacionais de lado, e voltando a carga, com um
ânimo revigorado, após um largo sorriso de satisfação e a certeza de ser
respaldada, passa a opinar sobre a conjuntura internacional. Afirma com ênfase
e empolgação que, apesar de todos os problemas que nos infernizam a vida, está
muito otimista é com os Estados Unidos, pois lá venceu o seu candidato. Será um
presidente surpreendente, sem sombra de dúvidas. Tem a certeza que coisas
maravilhosas estão por vir, apesar de não saber o que, e o mundo tornar-se-á
melhor. Que esta conversa sobre discriminação de estrangeiros, brasileiros,
latinos, é pura balela, pois a eleição de Trump é resultado de uma campanha
poderosa, levada a cabo pela mídia mexicana e que Hillary é demoníaca a ponto
de, junto ao marido, envolver-se em escândalos de pedofilia.
Ela diz sentir-se muito segura
para falar sobre os problemas do mundo e da política, pois hoje, com a internet, sabe-se de
tudo, nunca foi possível o acesso a tanto conhecimento e informação. Diz saber
de coisas que até Deus duvida. Eu não. Finalmente, o corte fica pronto e a
sensação de alívio dá-se em dobro. O ar de fim de chuva, as luzes
intensas do salão e o bafo dos cremes e perfumes, tornavam o ambiente quase
insuportável. Antes que minha jornada se encerrasse e fosse embora de vez, a
senhora dizia estar muito satisfeita com as cores do seu novo cabelo, como
também lamentava, que outras mudanças não pudesse fazer em si, por razões
financeiras. Não que pretendesse fazer como uma amiga, que realizou uma
arriscada cirurgia, que a transformou da cabeça aos pés, mas que, no mínimo,
pudesse dar um fim ao acúmulo de peles, que ao longo do tempo, inevitavelmente,
incorporou. Nesta hora pensei. Mentirosa. O que chama de excesso de pele, mais
apropriado me parece, denominar-se pelancas, e até onde sei, as pelancas
cerebrais, infelizmente, ainda, não são passíveis de intervenções cirúrgicas,
mesmo que muito cabeludas e o dinheiro esteja a sobrar.
Marcos Vinícius.
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