O achado
Alice
tamborilava seus dedos sobre a mesa, assim que terminou o último horário de
aula antes do recreio. Assim que o sinal soou, as colegas correram para o pátio
enquanto ela ficava ali ainda a pensar sobre o que o professor acabara de
dizer. Naquele instante, não possuía pressa. A mão avançou sobre o lápis, abriu
uma folha branca no final do caderno, e pôs-se a arriscar alguns versos.
Imediatamente seus dedos corriam ligeiros sobre o papel, e uma estrutura
modelada de palavras, em grafite, tomava forma, enquanto Alice repetia-as em
voz alta para si mesma, para que pudesse perceber melhor sua sonoridade. Ainda
criança, os versos já lhe encantavam. Escreveu uma estrofe atrás da outra, e
elas lhe saíam espontâneas, repentinas, com pressa de chegar, aparentemente já
prontas dentro da autora, que mais não fazia do que registrá-las no papel. Lia
outra vez, e gostava do que ouvia. Em poucos minutos, o texto ficara pronto.
Arranca a folha do caderno, dobra-a e a enfia no bolso. Não era para ficar ali
exposta sobre a carteira à vista de algum colega mais curioso. Era uma aluna
aplicada, gostava das aulas de literatura, ciências e geografia. Não apenas por
haver ali os professores de sua preferência, mas porque eram as matérias que
mais lhe traziam admiração. Gostava de ler os poetas e vibrava ao descobrir
quão grande era o mundo, com suas ilhas, continentes, rios, oceanos e estrelas,
ah, como amava admirar as estrelas. Como outras garotas da sua idade, onde o
brilho das cidades e metrópoles ainda não as embaçara de vez, e podiam sempre
mirá-las, viam nelas sinais dos amores prometidos, das paixões que ainda
desfrutariam e das fortunas que lhes proveriam o caminho. Nas aulas de
ciências, maravilhava-se com a grande diversidade da vida, que se espalhava
pelo mundo e pelos tempos afora. Vivia distante da cidade em um pequeno
povoado, e via nas leituras, mesmo ainda em tenra idade, uma grande janela para
os lugares e épocas onde nunca pudera ir. Era sonhadora, generosa e tinha
planos. Queria tornar-se uma grande cientista, não apenas para desvendar os
grandes mistérios do universo, que os homens ainda não conseguiram decifrar,
como usar seus conhecimentos para melhorar o mundo e salvar as pessoas. Era
sincera em seus sentimentos e convicções e, além do mais, achava-se apaixonada.
Não era um sentimento que já havia experimentado, não naquela intensidade.
Alguns garotos já lhe despertaram a atenção, achara-os bonitos e carismáticos,
mas nada que lhe fizesse o coração saltar aos pulos, como diante dos olhos
daquele rapaz. Era algo novo e as maçãs do rosto lhe coravam quando o via
passar ou ele se aproximava. A soma de todas as sensações e vivências faziam de
Alice uma garota feliz.
Já
era tardezinha quando Alice desgruda-se de suas amigas após as aulas e segue
para casa. Vai andando sozinha, e uma série de lembranças vem se descortinando
à frente, as falas dos mestres, o namorico da amiga que senta ao lado e as
fofocas entre as colegas de sala já do lado de fora da escola. Vai sorrindo
quando lembra-se mais uma vez do garoto e dos versos que levava no bolso.
Senta-se sobre a raiz de uma árvore frondosa que se colocava ao caminho e,
afoitamente, desdobra o papel que já segurava entre as mãos. Outra vez lê
aqueles versos, primeiro silenciosamente, depois em voz alta para certificar-se
de vez da musicalidade do texto. Assim que termina a leitura da última estrofe,
um pássaro enorme do peito azulado pousa sobre um dos galhos da árvore e canta
para ela. Apesar de viver já há um bom tempo naquela região, ainda não ouvira
canto assim. Era um canto forte, alto, lindo, e a sensação que tivera era que
cantava não apenas para si, mas para o planeta inteiro, e sentia que o pássaro
lhe dera canção aos versos, como se a leitura do poema e a música daquela ave
fossem uma coisa só. O peito se enchia de alegrias. Imaginava que onde quer que
estivesse, ao ler novamente aquela última estrofe, aqueles sons lhe viriam à
mente. O pássaro olha para Alice e passa a observá-la. Tem os olhos fixos,
grandes. Em seguida, estica o pescoço, sacode-se, e estica suas duas compridas
asas. Alice espanta-se e o pássaro põe-se a voar. Sobrevoa o local, quase em
círculo e pousa novamente, agora em outra árvore, em frente, e continua a
observá-la. Alice entrega-se outra vez aos seus pensamentos. O sol escondia-se
atrás dos montes e uma sombra escura escorria sobre o povoado. A noite havia
chegado. Quase prestes a se levantar, Alice pega do chão um galho seco, espalha
com ele as folhas próximas de seus pés, e prepara-se para gravar ali uma idéia
em palavras que lhe havia ocorrido, um último gesto, antes de abandonar o
local. Fricciona o graveto ao chão e começa a arranhar as primeiras letras.
Eram letras bem desenhadas, e ali mais valia a arte da caligrafia do que o
conteúdo que pretendia gravar, que se resumiam nas iniciais de seu nome e o
nome do amado, o que não havia feito no pedaço de papel. Esta superfície de
terra era mais apropriada para o feito, pois podia exagerar no tamanho dos
caracteres, dar-lhes formas novas e, ao despedir-se dali, poderia apagá-los com
os pés, para que não ficassem vestígios do amor não declarado, uma vez que não
tinha pretensões de tornar público os sinais de uma estimulante paixão ainda
não correspondida. Após riscar as duas letras no chão, amarra-as com um grande
coração, envolto de folhas secas e torrões de terra. As letras são gravadas com
força, com profundidade, Alice desejava que a Terra fosse testemunha do seu
amor, a grande mãe, que não iria traí-la, nem zombar de seu sensível coração.
Ao levantar-se, os últimos feixes de luz solar já haviam desaparecido por
completo, (ofuscando o desenho). Leva os pés sobre ele, para apagá-lo. Ao
esfregar a terra com as pontas dos dedos, uma faísca luminosa, azulada,
desponta sob suas sandálias. Teria a Terra ouvido seus apelos, seria uma
resposta, a benção divina que consagraria aquele desejo? Alice fica eufórica. O
mundo, provavelmente, conspirava a seu favor, e o manto do planeta havia se
tornado cúmplice. Agacha-se para ver mais de perto e o brilho intenso que vinha
do chão faz arder os seus olhos. Era um azul maravilhoso, uma coisa mágica, um
pó fluorescente, que deixou Alice em êxtase. Apalpou-o, espalhou-o sobre os
vestígios de suas iniciais que ainda não haviam se apagado, e se enche de
esperanças. Que luz seria aquela? Põe-se de pé, e fica de boca aberta,
observando, sem palavras, as duas iniciais que brilhavam no chão.
Após
certificar-se que não havia ficado qualquer sinal de seus nomes, e nem das
tortuosas linhas do coração, Alice volta a lhe esfregar os pés e observa que
apenas a luz azul continuava a se desprender do solo. Resolve, então, mostrar a
novidade para as amigas mais próximas para que, juntas, pudessem resolver o que
fazer com aquilo e, quem sabe, poderiam também testar as possibilidades
amorosas de cada uma delas, sugerindo que riscassem também seus nomes no chão,
para ver qual dos amores traria um brilho mais intenso, se é que todos eles
contassem com a mesma sorte. Na idade que tinham, todas elas levavam a arder
alguma paixão no peito. Corre até a casa, seus pais ainda não haviam chegado,
toma um banho rápido, pega um pedaço de pão que havia sobre a mesa da cozinha e
posta-se diante do espelho. Estava mais bonita naquele dia. Fica alguns minutos
a se contemplar. Tinha os olhos cheios. Olha-se de frente, vira-se, observa
cada detalhe das formas. Retira os cabelos do rosto, enrola-o, contorce-o, e
prende-o sobre a cabeça, tem o rosto totalmente descoberto. A conjunção dos
olhos e a boca, mais o vermelho das faces, proporcionava-lhe uma beleza única.
Solta novamente os cabelos, e ali se revela a mulher quase pronta que nasceria
dela. Mas a meninice ainda não havia lhe deixado de vez.
Antes
de que os pais chegassem e colocassem algum impedimento à sua saída, corre em
disparada para as casas das garotas, para mostrar-lhes a novidade. Em poucos
minutos, reúne um pequeno grupo delas e leva-o até a árvore frondosa, sob a
qual uma luz azulada que irradiava do chão quebrava a monotonia da noite,
deixando em segundo plano o brilho das estrelas, no coração daquelas meninas.
Ficaram todas admiradas com o que viam, e como ver só já não lhes bastasse,
após rabiscarem seus nomes e os de seus pretendentes sobre o pó brilhante,
escavam mais a terra, para arrancar-lhe mais luz. Estavam em festa, e
brincavam. Jogavam o pó umas sobre as outras, esfregavam-se nele, era um
encontro radiante. Sem qualquer explicação sobre a descoberta, as garotas
começam a especular, sobre como a novidade poderia alterar os seus destinos.
Uma delas dizia: Acho que mais que muito amadas, nos tornaremos belas
princesas, pois quem sabe não encontramos uma fonte inesgotável de riquezas que
possa lá valer mais que o ouro? Já até me vejo em castelos, com jóias de todas
as cores e brilhos, e não haverá no mundo mulheres mais cobiçadas que nós.
Outra afirma: Ora, mesmo que não cheguemos a tanto, pelo menos, quem sabe,
algum conforto poderemos proporcionar para as nossas famílias, pois uma coisa é
certa, de alguma preciosidade se trata.Nunca vi tamanho brilho irradiando em
farelos. A menor delas, que ouvia calada, desafia: Mesmo que não tenha valor
algum esta coisa, uma certeza podemos ter - se jogarmos este pó por sobre
nossas casas, teremos, para reconhecimento internacional, a aldeia mais bonita
do mundo. Acho que já não é pouco. As meninas riam da inocência manifesta da
caçula. E ficam ali conversando, especulando, brincando, sonhando, com
riquezas, amores, com o futuro promissor que teriam. Ali permanecem em transe,
até que uma delas lembrava às outras de que há muito havia passado a hora de
irem para a casa, era tarde da noite. E seguem todas para seus lares,
carregando consigo uma euforia indisfarçável e uma sombra azulada.
Em
um vilarejo daquele tamanho, segredos desta natureza não eram para ficar
guardados por muito tempo. Indagados pelos parentes porque naquela noite haviam
demorado tanto para chegar à casa, os filhos foram contando a história, que foi
se propagando de família em família, até que um grupo de homens resolve ir
conferir o caso contado pelas crianças. Que luz misteriosa seria aquela. Alguns
vizinhos passam chamando uns aos outros para irem até o local. À medida que iam
chegando, ficavam paralisados, boquiabertos com a luz azul radiante,
aproximavam-se, apalpavam os grãos luminosos, e olhavam uns para os outros,
para ver se alguém podia explicar melhor o que seria aquilo. Havia em
quantidade suficiente para que todos pudessem apanhar um bocado para si. Houve
quem juntasse pequenos montículos e os levassem para a casa, para que todos
pudessem ver a luz misteriosa que acabara de chegar aos moradores da vila. Era
o assunto em quase todas as casas. A notícia se espalhou muito rapidamente.
Durante a madrugada, crianças e adultos brincavam com o pó na intimidade dos
seus lares. Quem sabe estivesse ali a redenção daquela gente, era o que muitos
pensavam.
Na
manhã seguinte, uma pequena multidão se aglomerou no local, todos queriam ver
de perto a intrigante fonte luminosa. Os adultos e crianças disputavam a
cotoveladas uma vaga mais próxima dos grãos azuis. Mas, naquele horário, com o
sol espraiando sobre o vale, os pequenos grãos haviam perdido sua luz e o
desalento era geral. Teriam tido um sonho, um delírio coletivo, a substância
fora roubada enquanto dormiam, ou a luz havia se recolhido apenas
temporariamente em respeito à luminosidade absoluta do sol que tudo clareia?
Deveriam aguardar, então, a chegada da noite, para que pudessem certificar-se
do que havia acontecido, se o sonho azul da noite passada haveria ou não de se
repetir. Voltam todos a seus afazeres, e combinam retornarem juntos, quando o
sol começasse a se esconder. Assim foi feito. Quando o dia vai a escurecer e as
primeiras nuances da noite vem a assombrar-lhe o lume, a multidão outra vez de
aglomera e ficam todos, atentos, atônitos, observando a luz que vai ficando a
cada instante mais forte. Quando o véu da noite cobre o povoado, os seus
moradores reúnem-se em torno da luz que lhes chegara, acreditavam, das
profundezas da Terra. Todos queriam saber de Alice como fora a descoberta.
De
início, a garota gostava de relatar o caso, contar sua história, omitindo, claro,
os amores secretos, os corações e os nomes que haviam, por fim, revelado aquele
fenômeno. Dizia apenas que esfregava, aleatoriamente, o graveto ao chão, quando
a luz se fez. Contava que já havia lido sobre os minérios e os metais, mas que
não conhecia imagem que pudesse se associar àquilo que viam. Todos queriam
saber diretamente da garota, ouvi-la, como teria chegado àquelas pedras
mágicas, iluminadas. Por fim, como eram muitas as pessoas que se aproximavam,
todos fazendo as mesmas perguntas, com a mesma insistência, Alice começou a se
cansar. Naquele dia, relatou o mesmo caso inúmeras vezes e certo esmorecimento
já se esboçava em seu rosto fatigado. A euforia da noite passada já lhe
perturbara o sono e esta noite não seria diferente.
Os
homens, após muito observarem, tocarem, banharem-se naquele pó, começam a
imaginar o que a sorte lhes proporcionaria dali para frente. Formavam um grande
círculo em volta dos feixes azuis, onde debatiam suas expectativas e demandas
e, sem que percebessem, o pássaro do dia anterior volta a pousar sobre a
árvore, antes que o sol se escondesse de todo. Alice o vê assim que se
aproxima. Os demais estavam muito preocupados em suas conversações e não deram
por ele. Ele, do alto, com o pescoço erguido, observava a todos, mas estacionava
seus olhos nos olhos de Alice. Ela mirava-o, interrogativa. Percebendo que a
noite havia fatalmente chegado, o pássaro levanta voo, não sem antes inclinar
por duas vezes a cabeça para mirar melhor a garota. Desta vez, não houve
versos, e o pássaro foi-se, silenciosamente. Embaixo, os homens não paravam de
falar. Alguém teve que organizar os debates, pois todos queriam expor seu
pontos de vista ao mesmo tempo. Havia ali uma grande ansiedade. Alice
chateava-se ainda mais. Por instantes, arrependera-se de anunciar a descoberta.
Antes tivesse guardado apenas para si, feito segredo. Não teria passado por
tanto interrogatório, nem causado tanta celeuma. Sabia, porém, que há segredos
que não se guardam, principalmente quando se trata destes grandes mistérios que
rodeiam a humanidade, onde não há como não compartilhar as dúvidas,
curiosidades e anseios. Os raios azuis iluminavam aqueles rostos especulativos,
enquanto emitiam suas mais variadas e díspares opiniões. O homem que
agachava-se, próximo à luz, levantava o pó nas mãos, deixava-o escorrer entre
os dedos e dizia: Nós somos um povo de sorte Iluminados. Este achado nos trará
muita fortuna, penso que fomos eleitos. Muito não enriqueceram os homens,
quando no passado descobriam o ouro? Muito nos enriqueceremos agora, com o ouro
azul que brota por sob os nossos pés. Outro, empolgado, procura complementar o
entusiasmo e a fala do homem: Sim, e como sabemos todos, fortuna traz também
poder. Imaginem livrar-nos da condição de vila, e este pequeno povoado que somos
transformar-se em um grande Império, de onde poderíamos conquistar o mundo.
Faríamos todos parte de uma mesma elite imperial e do quase nada que somos
tornaríamo-nos celebridades, e as portas da história se escancarariam para nós.
Não é nada mal. Duas mulheres levantam-se e dizem que deveriam ter alguma
cautela, pois como consideravam valiosa a descoberta, poderia também de nada
valer. Era necessário relativizar as coisas, para que posteriormente não
amargassem muita desilusão e frustrações. Não queriam ver depois os homens
lamentarem por uma eternidade a enorme oportunidade perdida. Melhor talvez
fosse chamar as autoridades para que, estas sim, em contato quase direto com as
coisas da ciência, pudessem entender melhor, tentar traduzir o que por ali se passava.
Na
terceira noite, quando as autoridades, prefeitos e o governador chegam ao
local, encontram o povoado inteiro, todos os seus moradores ao redor da luz
misteriosa. Não conseguiam desgrudar dali. O Secretário das Finanças é o
primeiro a abrir a falação. Diz alegrar-se com o espírito empreendedor daquela
gente, e afirma que logo depois que a substância fosse identificada, tivesse
início sua exploração e comércio, e os lucros começassem a confluir aos cofres
do governo e das grandes empresas, a população teria finalmente sua recompensa.
O prefeito elogia a presteza daquele povo em informar-lhes da descoberta assim
que esta é feita, e o governador promete mundos e fundos para aquela população
agraciada que tivera a graça de receber o milagre à porta de suas casas. Uma
mulher mais velha, com a pele enrugada e com grandes papas sob os olhos, agita
freneticamente os braços e grita: Somos iluminados, os eleitos, os eleitos. Foi
Deus. Foi Deus. Os homens entreolham-se, crédulos. O governador promete retornar
o mais rápido possível, assim que estivesse concluído o laudo a partir das
amostras que levariam. Antes de partir, porém, queria ouvir Alice. Esta
encontrava-se abatida, os olhos estavam irritados, vermelhos, e a sensação de
um cansaço incontrolável abatia-lhe o corpo. Alice fizera vômitos e não pode
atendê-lo. Atrás do séquito das autoridades, ia aos tropeços, um bando de
bajuladores, que disputavam espaço entre si, e rogavam benefícios e piedades. A
partir daquela noite, enquanto aguardavam o resultado da análise que era
realizada pelos técnicos, a comunidade inteira reunia-se em torno do seu
tesouro azulado. Alice não apareceria mais ali, adoecera irremediavelmente. Em
três dias, a comunidade recebera o laudo encomendado pelo governo. Não eram
boas as notícias. Haviam colocado a descoberto o césio radioativo.
Marcos Vinícius.